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A DISCIPLINA DE EDUCAÇÃO MORAL E CÍVICA NA DITADURA MILITAR:

UM ESTUDO SOBRE O IDEAL DE HOMEM CIVILIZADO


PRESENTE NOS LIVROS DIDÁTICOS

Daniele Cristina Frediani1


Tony Honorato2

Introdução

A disciplina de Educação Moral e Cívica (EMC) tornou-se obrigatória no currículo


escolar brasileiro através do Decreto-lei 869/1969 que fixava dentre outras atribuições a
inclusão da Educação Moral e Cívica como disciplina escolar e prática educativa em todos os
níveis e modalidades dos sistemas de ensino no País e instituía suas finalidades

Art. 1º É instituída, em caráter obrigatório, como disciplina e, também, como


prática educativa, a Educação Moral e Cívica, nas escolas de todos os graus e
modalidades, dos sistemas de ensino no País.
Art. 2º A Educação Moral e Cívica, apoiando-se nas tradições nacionais, tem
como finalidade:
a) a defesa do princípio democrático, através da preservação do espírito
religioso, da dignidade da pessoa humana e do amor à liberdade com
responsabilidade, sob a inspiração de Deus;
b) a preservação, o fortalecimento e a projeção dos valores espirituais e
éticos da nacionalidade;
c) o fortalecimento da unidade nacional e do sentimento de solidariedade
humana;
d) a culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições, instituições e aos grandes
vultos de sua história;
e) o aprimoramento do caráter, com apoio na moral, na dedicação à família
e à comunidade;
f) a compreensão dos direitos e deveres dos brasileiros e o conhecimento da
organização sócio-político-econômica do País;
g) o preparo do cidadão para o exercício das atividades cívicas com
fundamento na moral, no patriotismo e na ação construtiva, visando ao bem
comum;
h) o culto da obediência à Lei, da fidelidade ao trabalho e da integração na
comunidade (BRASIL, 1969).

1 Mestranda do PPEdu/Universidade Estadual de Londrina – UEL. E-mail: frediani.daniele@yahoo.com.br


2 Doutor e professor no PPEdu/ Universidade Estadual de Londrina – UEL. E-mail: tonyhonoratu@gmail.com
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Enquanto prática educativa e disciplina escolar a EMC passou a representar um
significativo veículo de disseminação de padrões de condutas socialmente aceitas pela
sociedade brasileira durante as décadas de 1960, 1970 e meados de 1980.
A inclusão de EMC como disciplina nos currículos de todos os níveis e
modalidades de ensino integrava esse movimento de reestruturação
educacional que ultrapassava o âmbito escolar. Procurava-se atingir a
sociedade e criar uma moral do cidadão. O termo civismo referia-se ao
padrão de conduta desejável a todos os membros da sociedade brasileira.
(FILGUEIRAS, 2006, p.4)

Partindo do entendimento de que a disciplina de Educação Moral e Cívica disseminou


normas de condutas e de comportamentos que condiziam a um padrão desejado pela
sociedade vigente, assim buscou-se no presente trabalho analisar a partir de cinco livros
didáticos de Educação Moral e Cívica o arquétipo de homem civilizado idealizado pela
sociedade brasileira no contexto da Ditadura Militar. Para tanto, utilizou-se como aporte
teórico para conceber esse objeto de pesquisa, das contribuições de Norbert Elias expressos
em sua obra O Processo Civilizador.

As disciplinas escolares como objeto de pesquisa

As disciplinas escolares enquanto objeto de pesquisa passaram a fazer parte das


produções historiográficas da área da educação por volta da década de 1970, impulsionadas
por algumas renovações paradigmáticas ocasionadas principalmente pelos debates
desenvolvidos no âmbito da História Cultural e particularmente pelos estudos da História da
Cultura Escolar. Segundo Goodson (1995), antes desses movimentos, o estudo do currículo e
das disciplinas escolares era considerado questão marginalizada.
As produções realizadas nas últimas décadas pelo campo da história das disciplinas
escolares (HDE) têm centralizado seus esforços na análise e investigação de dimensões que
permeiam o universo da cultura escolar. Segundo Vinão Frago (2008, p. 175), “a história das
disciplinas escolares se localizaria sob o guarda-chuva da nova história cultural e constituiria
inclusive para alguns, o núcleo fundamental da cultura escolar”. Para Dominique Julia (2001,
p, 10), essa cultura escolar corresponderia ao “conjunto de normas que definem
conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a
transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos”, e portanto
condicionada às suas épocas e finalidades.
Entender as disciplinas escolares sob o ângulo da cultura escolar compreende o
entendimento da cultura que a engendrou e a concebeu como necessária e o reconhecimento

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dos diversos fatores que permeiam sua seleção, criação, exclusão ou fusão. As disciplinas
escolares podem ser pensadas como um dos enfoques correspondentes à multiplicidade do
arcabouço emblemático que abrangem o universo da cultura escolar, sendo então um prisma
para se pensar as finalidades da escola e o porquê a escola ensina o que ensina.
No entendimento de Chervel (1990), as disciplinas escolares têm como característica
sui generis nortear a aculturação dos alunos seguindo determinadas finalidades, “é isso que
explica sua gênese e constitui sua razão social” (p.173). As disciplinas podem ser entendidas
como “os modos de transmissão cultural que se dirigem aos alunos” (p. 186). Podemos supor
que o livro didático de Educação Moral e Cívica cumpria a função de ser o transmissor dos
anseios esperados à formação psicossocial dos educandos.
Sabendo que essa transmissão cultural passou a ficar a cargo da escola que assumiu a
função de integrar os indivíduos em “uma maneira coletiva de viver e compreender o mundo,
na reprodução de um conjunto de significações graças às quais os homens dão forma a sua
existência”(NÓVOA, 1991, p.109), é possível conjecturar que os livros didáticos assumiram a
incumbência de serem os portadores dos valores e representações que uma determinada
sociedade reuniu em um momento histórico.
As disciplinas escolares transpassam assim os muros da escola e adentram na esfera
social fazendo parte de sua dinâmica, colocando em circulação o sistema cultural que se
encontrava vigente. Nesse ângulo, André Chervel (1990) admite que “uma disciplina escolar
comporta não somente as práticas docentes de sala de aula, mas também as grandes
finalidades que presidiram sua constituição e o fenômeno de aculturação de massa que ela
determina” (p.184). Desse modo, a Educação Moral e Cívica pode ser concebida como uma
disciplina que sistematizou padrões de civilidade reclamados pela sociedade, em saberes
escolares e o estudo de seus manuais possibilita descortinar as finalidades imbuídas à escola
pela sociedade no contexto da Ditadura Militar no que concerne ao inculcação de normas
comportamentais forjadas em tempos autoritários.

A trajetória da disciplina de Educação Moral e Cívica

A disciplina de Educação Moral e Cívica assumiu maior notoriedade no período


marcado pela Ditadura Militar nas décadas de 1960 a 1980 quando teve seu status de
reconhecimento reclamado nacionalmente. Ainda que tivesse recebido maiores holofotes
nesse momento histórico, essa disciplina não emergiu dessa periodicidade, seu
engendramento enquanto disciplina escolar derivou-se do contexto histórico do século XIX.
Os conceitos de moralidade, civismo e bons hábitos foram aspectos norteadores das bases
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teóricas da disciplina que podem ser observados desde o início do processo de educação
escolarizada brasileira.
A educação cívica e moral era a base da formação do cidadão republicano.
Consistia em localizar o cidadão em relação ao Estado e a organização
política. A moral abarcava elementos de civilidades e bons costumes. A
História e a Geografia se dedicavam a formação do caráter, por meio da
narração de grandes acontecimentos históricos do país, dos seus heróis, do
conhecimento de suas grandezas e riquezas naturais cuja finalidade era
cultivar o amor a Pátria (FILGUERAS, 2011 p.23)

Nos anos que seguiram o período republicano, os assuntos referentes aos pressupostos
de Educação Moral e Cívica foram se intensificando e assumiram contornos mais evidentes.
Segundo Márcia Regina dos Santos (2015), “no Programa de Instrução Pública de 1892 já era
possível perceber a presença da formação moral e cívica” na instrução dos alunos (2015, p.
48). A Educação Moral e Cívica então foi se delineando e se firmando no cenário educacional
brasileiro ao passo que no ano de 1925 através da Reforma “Rocha Vaz” passou a fazer parte
do currículo obrigatório do Ensino Secundário sob o título de Instrução Moral e Cívica, que
apesar da diferenciação de nomenclatura “não descaracterizava os objetivos de formação de
caráter que fundamentavam a disciplina” (SANTOS, 2015, p. 51). Posteriormente, no período
de 1931, essa disciplina sofreu uma substituição pela disciplina de Ensino Religioso,
ocasionada pela Reforma “Francisco Campos” e pela Constituição Promulgada em 1934.
Em 1931, o ensino de Educação Moral e Cívica foi retirado do currículo das escolas
secundárias, pelo então Ministro da Educação e Saúde, Francisco Campos. Em seu lugar foi
introduzido o Ensino Religioso nas escolas públicas de ensino primário, secundário e normal
de todo país. Francisco Campos identificava a Educação Moral com a Educação Religiosa,
pois para ele a doutrina católica deveria ser uma doutrina de Estado. A formação moral dos
estudantes deveria ser a formação de uma moral católica (FILGUEIRAS, 2011, p.26).
Com a sublevação do Estado Novo em 1937, a disciplina de Ensino Religioso tornou-se
facultativa e a Educação Moral e Cívica passou a assumir moldes de um instrumento que
favorecia a formação de um indivíduo condizente aos ideais governamentais. Contudo, não
assumindo ainda a figura de uma disciplina específica, mas integrada as demais, conforme
cita a Lei Orgânica de 1942, para o Ensino Secundário
A educação Moral e Cívica não seja dada em um tempo determinado,
mediante execução de um programa especifico, mas resulte, a cada
momento, da forma de execução de todos os programas e do próprio
processo de vida escolar que, em todas as atividades e circunstâncias, deve
transcorrer em termos de elevada dignidade e fervor patriótico. (Artigo 24)
(BAÍA HORTA, 1994, p.181).

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Com a implantação da Lei de Diretrizes e Bases 4024/1961, a Educação Moral e Cívica
passou a ser considerada uma prática educativa que consistia, no entender de Selva Fonseca
(1993, p. 36), em uma modalidade educacional que “visava a formação de hábitos de
educando de uma maneira abrangente, envolvendo os vários aspectos desta formação,
perpassando pelas várias disciplinas”.
No ano de 1962 foi criada a disciplina de Organização Social e Política Brasileira –
OSPB, como disciplina complementar obrigatória para o ensino secundário. De acordo com
Cléber Santos Vieira (2005), o documento que mais faz refletir sobre a necessidade da criação
dessa disciplina foi artigo do conselheiro Newton Sucupira registrado no terceiro número da
Documenta, publicada em março de 1962:
Ela tem como finalidade proporcionar ao aluno uma idéia adequada da
realidade sócio-cultural brasileira em sua forma e ingredientes básicos.
Deverá, pois apresentar o quadro geral das instituições da sociedade
brasileira, sua natureza, formação e caráter, bem como as formas de vida e
costumes que definem o modo de ser específico e a fisionomia característica
de nossa cultura. Será além disso, um estudo da organização do Estado
brasileiro, da Constituição, dos poderes da República, do mecanismo jurídico
e administrativo em suas linhas gerais, dos processos democráticos, dos
direitos políticos, dos deveres do cidadão, suas obrigações civis e militares.
(SUCUPIRA apud VIEIRA, 2005, p.63).

No contexto das décadas de 1960, 1970 e 1980 o Brasil viveu um período de


supremacia militar, sustentada por diversos grupos da sociedade que legitimavam sua
hegemonia através de uma prática autoritária e repressiva sustentadas pelo binômio
segurança e desenvolvimento. Os preceitos adotados por essa política de governo se
refletiram nas mais diversas esferas, incluindo a educação. Nesse sentido, os ensinamentos
previstos na disciplina de Educação Moral e Cívica “viriam ao encontro do projeto de
normalização de uma sociedade abalada pela instabilidade político-social” (SANTOS, 2015,
p.47). Entendendo então a necessidade desses conceitos para a disseminação de uma efígie
de cidadão civilizado sob os moldes do governo, a disciplina de Educação Moral e Cívica
passou a assumir caráter de obrigatoriedade através do Decreto lei 869/1969. Para Márcia
Regina dos Santos (2015), essa legislação revelava o que a elite dirigente tencionava enquanto
ideal de cidadão
O Decreto-lei sinalizava a institucionalização da disciplina como elemento de
base na formação de cidadãos que atendessem ao momento de mudanças na
sociedade: a ditadura militar. Todas as discussões para instaurar o projeto
foram amparadas pela necessidade de transmitir valores cívicos e morais
considerados apropriados às crianças em idade escolar, de forma que este
conjunto simbólico reverberasse em práticas condizentes à perspectiva de
ordem e disciplina demandada por aquele momento. (SANTOS, 2015, p.61)

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O Decreto lei Nº 68.065 de 1971, também previa que a disciplina de Educação Moral e
Cívica fosse estabelecida através de atividades extraclasses de maneira a atender “às
finalidades de natureza cultural, jurídica, disciplinar, comunitária, manualista, artística,
assistencial, de recreação, e outras, assemelhando, a escola a uma sociedade democrática em
miniatura”.
No mesmo ano da promulgação desse decreto, foi instaurada uma reforma no campo
educacional, através da Lei 5692/71, que fixava as leis de diretrizes e base do Sistema
Educacional Brasileiro, a qual além de outras atribuições oficializava a obrigatoriedade da
disciplina de Educação Moral e Cívica em todos os graus de escolaridade
Art. 7º Será obrigatória a inclusão de Educação Moral e Cívica, Educação
Física, Educação Artística e Programa de Saúde nos currículos plenos dos
estabelecimentos de 1° e 2° graus, observando quanto à primeira disposto no
Decreto-lei 869 de 12 de setembro de 1969. (BRASIL, 1971).

Com o fim do Regime Militar a disciplina de Educação Moral e Cívica ainda perdurou
no currículo escolar brasileiro até 1993, quando foi revogada pelo Decreto-lei No. 8.663
Art. 1º É revogado o Decreto-Lei nº 869, de 12 de dezembro de 1969, que
dispõe sobre a inclusão da Educação Moral e Cívica como disciplina
obrigatória, nas escolas de todos os graus e modalidades, dos sistemas de
ensino no País e dá outras providências.
Art. 2º A carga horária destinada às disciplinas de Educação Moral e Cívica,
de Organização Social e Política do Brasil e Estudos dos Problemas
Brasileiros, nos currículos do ensino fundamental, médio e superior, bem
como seu objetivo formador de cidadania e de conhecimento da realidade
brasileira, deverão ser incorporados sob critério das instituições de ensino e
do sistema de ensino respectivo às disciplinas da área de Ciências Humanas
e Sociais. (BRASIL, 1993).

Imagem de homem civilizado veiculada nos livros didáticos de Educação Moral e


Cívica

A premissa de civilidade entendida na visão de Elias como sendo um processo de longa


duração das transformações dos padrões psicossociais dos indivíduos, e como um processo
de autorregulação e retenção das pulsões naturais da espécie humana para o melhor conviver
em grupo, pode-se entender a disciplina de EMC não apenas como reflexo de um momento
histórico da sociedade, mas como um processo longitudinal das modificações de hábitos
cotidianos para uma transformação dos indivíduos e da sociedade.
O ideal de homem civilizado reclamado pelas sociedades ocidentais exigia aprendizado
de normas e regras que possibilitavam a distinção de superioridade de grupos específicos
entre os demais; a espécie de consciência de superioridade a partir do conceito civilização
constitui-se em uma fase primordial do processo civilizador.

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[...] no exato momento em que a consciência de civilização, a consciência de
superioridade de seu próprio comportamento e sua corporificação na ciência,
tecnologia ou arte começaram a se espraiar por todas as nações do Ocidente.
(ELIAS, 1994, p. 64)

Para Elias (1994, p. 221), “as estruturas de personalidade e da sociedade evoluem em


uma inter-relação indissolúvel” de modo que o enquadramento comportamental e
sentimental de um indivíduo dentro de padrões legitimados por um determinado grupo
acabam por consolidar o código de costumes que representam os ensejos de civilidade de
uma sociedade. De acordo com Elias, indivíduo e sociedade não podem ser pensados de
maneira dicotômica, a vista que se encontram inexoravelmente imbricados sendo
integrantes/constituintes da sociedade na qual se adaptam e a transformam. Na ótica
elisiana, toda atitude humana não seria natural, mas um constructo social resultante de todas
influências e intervenções modeladoras dos “adultos civilizados”
O que achamos inteiramente natural, porque fomos adaptados e
condicionados a esse padrão social desde a mais tenra infância, teve, no
início, que ser lenta e laboriosamente adquirido e desenvolvido pela
sociedade como um todo. Isto não se aplica menos a uma coisa pequena e
aparentemente insignificante como um garfo do que a formas de
comportamento que nos parecem mais importantes (ELIAS, 1994, p. 78).

Na obra O Processo Civilizador, Elias entende que os comportamentos considerados


civilizados do homem ocidental são provenientes de uma perspectiva longitudinal, ou “curva
de civilização”. No seu entendimento os modos de viver e de agir dos indivíduos e da
sociedade são advindos de uma sociogênese e de uma psicogênese provenientes de gerações
passadas que foram cristalizando esses conceitos ao longo do tempo. Nesse sentido, o
processo civilizador consistiria “no modo pelo qual se estrutura uma rede de censuras e
proibições que transforma, de forma muito lenta e em conjunto, os comportamentos, as
emoções individuais e a visa coletiva” (LEÃO, 2007, p. 20).
A Educação Moral e Cívica pode ser considerada como uma disciplina que sistematizou
os padrões de civilidades em saberes escolares, de modo a disseminar a nova geração certos
“tipos de comportamentos considerados típicos de um homem civilizado” (ELIAS, 1994,p.14).
Nesse ponto de vista, a disciplina de Educação Moral e Cívica pode ser entendida como um
ângulo para se observar um estágio civilizatório brasileiro. Destarte, o livro didático de EMC
pode ser representado como um porta-voz da sociedade no que se remete a sua idealização de
Homem, uma vez que a disciplina representou um significativo veículo de disseminação de
padrões de civilidades propalados pelos grupos com maiores gradientes de poder.
Para indagar acerca da imagem de homem civilizado veiculada nos didáticos de
Educação Moral e Cívica utilizou-se como fonte empírica os livros: Princípios de Educação
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Moral e Cívica de Amaral Fontoura publicado pela Editora Aurora em 1970; Moral e Civismo
de Felipe N. Moschini e Otto Costa e Victor Massumeci (1970); Educação Moral e Cívica de
Benedicto de Andrade publicado pela Editora Atlas em 1970; Educação Moral Cívica e
Política de Douglas Michalany publicado em 1971 pela Editora Michelany e Educação Moral
e Cívica de Theobaldo Miranda dos Santos publicado em 1974 pela Companhia Editora
Nacional.
Pensando o livro didático de Educação Moral e Cívica como um portador do savoir-
vivre da sociedade brasileira no contexto Regime Militar, constatou-se através da análise e
apreciação dos livros didáticos compilados, que a imagem de Homem Civilizado veiculada
induzia a noção de homem pacífico, ordeiro, trabalhador, patriota, urbano, religioso, asseado
e cumpridor de seus deveres cívicos.
Os conteúdos curriculares designados à disciplina de Educação Moral e Cívica
evidenciavam quais eram as principais prerrogativas que se pretendiam incutir na nova
geração no que se remete aos comportamentos refinados e aos modos de viver inerentes a um
país civilizado. Os saberes escolares presentes na disciplina de EMC almejavam disseminar
através de modos específicos de sentir e agir, uma autoimagem de Homem Civilizado. Assim,
o Programa Básico para a disciplina de EMC apontava os seguintes eixos de ensino:

QUADRO 1: PROGRAMA BÁSICO DA DISCIPLINA EMC


Unidade I : O Homem - seus atributos pessoais
1.1 Dimensão psicobiológica: “animal racional” análise da personalidade como dinâmica de valores e atributos
individuais.
1.2- Dimensão Ética:
1.2.1- Consciência
1.2.2 – Caráter
1.2.3- Moral
1.2.4- Valores
1.3 - Dimensão Social: Indivíduo = Cidadão
1.4 – Dimensão Espiritual:
1.4.1 – Fé
1.4.2 – Crenças
1.4.3- Tradições
1.5 - Dimensão Cultural
Indivíduo ---- Determinada cultura;
Unidade II: O Homem Comunitário: Seus atributos sociais:
2.1- Importância da família, da escola e da comunidade, na formação e no fortalecimento dos princípios morais,
sociais e culturais e do homem comunitário;
2.2 – Definição sadia de Homem Comunitário, levando os alunos a não confundi-lo com grupos de pressão que
procuram desenvolver atividade política contestatória;
2.3 – As diferentes formas de atividades Humanas:
2.3.1 – O trabalho – Principais formas e Setores:
2.3.2 – Atividades agropastoris
2.3.3 – Comércio
2.3.4 – Administração
2.3.5- Serviços
2.3.6- Lazer

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2.4- Regras de Convivências Democráticas:
2.4.1- Direitos e deveres morais e cívicos
2.4.2- Igualdade de oportunidades
2.4.3- A Responsabilidade do Homem na Sociedade
2.4.4 – Legislação.
2.4.5- Governo
Unidade III: A Terra e o Homem Brasileiro
3.1- As disparidades regionais, estratégias de integração nacional;
3.2- Raízes étnicas e culturais:
3.2.1- Elementos formadores: Branco, Negro e o índio;
3.2.2- O papel sócio-econômico cultural do imigrante.
3.3- Eventos e vultos Históricos
3.4- Tradições Religiosas
3.4.1- A Igreja, a influência de outros grupos religiosos
3.4.2- O espirito religioso no complexo cultural brasileiro
3.5- Tradições culturais
3.5.1- O folclore e a cultura popular;
3.5.2- Preservação e expansão das diversas formas de expressão cultural
Unidade IV: A atual organização político-administrativa
4.1- A organização Constitucional Brasileira
4.2- A organização política: Elementos Básicos;
4.2.1- Conceitos, bases e funções:
- Governo
- Pátria
- Nação
- Estado
Unidade V: Instituições e Símbolos Nacionais:
5.1- Forças Armadas – Serviço Militar
5.2- Forças Auxiliares
5.3- Os símbolos Nacionais; o hino; a bandeira; o selo e o escudo.
Unidade VI: A realidade Brasileira
6.1 – O trabalho e o desenvolvimento nacional
6.1.1- Fatores condicionantes do desenvolvimento dos setores primários, secundário e terciário.
6.1.2- Formas de ocupação produtiva da terra.
6.1.3- Exploração dos recursos minerais e dos potenciais de recursos hidráulicos.
6.2 - Expansão das oportunidades de emprego
6.2.1- O trabalho como um direito do homem e um dever social
6.2.2- A harmonia como solidariedade entre as categorias sociais de produção.
6.3- Relação entre a Produção e a Educação
6.3.1- A Educação como investimento
6.3.2 – A educação x desenvolvimento do homem em todos os aspectos: econômicos, sociais, políticos,
religiosos, culturais e psicológicos.
6.4- Projetos, entidades e organismos que atuam na solução/minimização dos principais problemas brasileiros:
- Previdência Social
- COBAL e CEASA
- MOBRAL
- Minerva.
-Projeto Alfa
-Operação Mauá
- Projeto Randon

Fonte: Contribuições para o desenvolvimento da Educação Moral e Cívica e de Organização Social e Política nos
Currículos de 1º e 2º graus (1984) que reafirma o Parecer Nº94 de 1971.

O arquétipo de Homem Civilizado disseminado pelos livros didáticos em tela refletia o


que a sociedade brasileira almejava em termos de padrões morais e comportamentais que os
indivíduos deveriam possuir para o bom exercício em sociedade, pelo menos por parte das
frações sociais ocupantes de lugares privilegiados de poder. O Homem Civilizado,

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caracterizado pela figura do “Bom Cidadão”, precisaria estar condicionado ao conjunto de
regras e condutas legitimadas pela sociedade representada naquele contexto pelos ideais
militares.
Segundo Massumeci, Costa e Moschini (1970), autores da obra Moral e Civismo, o
indivíduo podia ser considerado um bom cidadão quando fosse um ser moral e cívico. O
homem moral seria aquele que desenvolvesse o continuo exercício das virtudes e o Homem
Cívico seria aquele que fruiria de um bom convívio social, respeitando a autoridade política,
obedecendo às leis, sendo fiel ao Estado.
Esse conjunto de normas de viver e conviver em sociedade, dispensado pela disciplina
de EMC, demonstra um padrão de valores, emoções e hábitos que foram sendo prescritos e
construídos em um processo longitudinal pela sociedade brasileira visando o horizonte da
civilização.

Considerações Finais

Os modos como os indivíduos vivem e agem são aquisições intencionais que foram
sendo construídas ao longo da história de uma sociedade como mecanismo de distinção e
sublevação em relação a outros grupos considerados não-civilizados. Os indivíduos foram
sendo condicionados e corporificados a um o padrão social reconhecido e “legitimado pelo
grupo vigente a qual foram inicialmente obrigados a se conformar por restrição externa” e
acabaram por reproduzir, “mais suavemente ou menos, no seu íntimo através de um
autocontrole que opera mesmo contra seus desejos conscientes.” (ELIAS, 1993, p. 129). O
indivíduo ao mesmo tempo que incorpora um conjunto de regras de vivências, passa a
reproduzir em forma de habitus de maneira inconsciente o savoir-vivre de sua época.
A disciplina de EMC representou um mecanismo de reprodução dos padrões
socialmente idealizados de viver e pensar na sociedade brasileira no contexto do Regime
Militar. Os livros didáticos de EMC apresentavam à nova geração um padrão específico de
emoções e comportamentos que a sociedade pretendia alcançar, demonstrando assim um
modo de distinção e superioridade das outras culturas e sociedades ditas “não civilizadas”. Os
manuais aproximavam os hábitos culturais, intelectuais e comportamentais do povo
brasileiro com savoir-vivre europeu e norte-americano, considerados na visão dos autores
como ápice da civilidade.
O homem civilizado representado nos manuais representava a efígie do modelo
urbano-progressista de nação, na qual seus representantes apresentariam um padrão elevado
de comportamentos pessoais. As características inerentes a esse arquétipo de Homem
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civilizado seriam provenientes de “mudanças estruturais ocorridas em pessoas na direção de
maior consolidação e diferenciação de seus controles emocionais e por conseguinte de sua
experiência e de sua conduta” (ELIAS, 1994, p.216). O Bom Cidadão representado nos livros
didáticos de EMC apresentava as características da “tradição institucionalizada e da situação
vigente” (ELIAS, 1994,p. 49) no que se remete aos padrões de civilidade.

Referências

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Teoria e Educação, Porto Alegre, v.2, 1990.

ELIAS, N. O processo civilizador: Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
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FILGUEIRAS, Juliana Miranda. A Educação Moral e Cívica e sua produção didática. Dissertação de
Mestrado, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2006.

____ . Os processos de Avaliação dos Livros didáticos no Brasil (1938-1984). Dissertação de


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João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
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Fontes

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Cívica como disciplina obrigatória, nas escolas de todos os graus e modalidades, dos sistemas de
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_________.Lei n° 5.327, de 2 de outubro de 1967. Dispõe sobre a criação da Fundação Nacional do


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_________.Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961. Fixa as Diretrizes e Bases da Educação


Nacional.

________.Decreto-Lei nº. 869, 12 de setembro de 1969. Dispõe sobre a inclusão da Educação Moral
e Cívica como disciplina obrigatória, nas escolas de todos os graus e modalidades, dos sistemas de
ensino no País, e dá outras providências

________. Parecer N° 94, 04 de fevereiro de 1971. Dispõe: Normatização da disciplina de Educação


Moral e Cívica e Estudo dos Problemas Brasileiros.

________. Lei Nº 68.065 de 14 de fevereiro de 1971: Dispõe: A inclusão da Educação Moral e Cívica
como disciplina obrigatória, nas escolas de todos os graus e modalidades dos sistemas de ensino no
País, e dá outras providências.

_______.Parecer N° 554, 08 de junho de 1972. Dispõe: A formação do professor de Educação Moral e


Cívica.

_______. Contribuições para o desenvolvimento da Educação Moral e Cívica e de Organização


Social e Política nos Currículos de 1º e 2º graus, 1984

Livros didáticos

ANDRADE, Benedito de. 1971. Educação Moral e Cívica. São Paulo, Editora Atlas. Curso médio. 4ª
edição Revista e aumentada.1971

FONTOURA, Amaral. Princípios de Educação Moral e Cívica. Editora Aurora, 1970.

MICHALANY, Douglas. Educação Moral e Cívica. Editora Michalany. 1970

MOSCHINI, Felipe N; COSTA, Costa; Massumeci, Victor. Moral e Civismo. Editora Brasil EBSA, 1970.

SANTOS, Theobaldo Miranda dos. Educação Moral e Cívica. Companhia Editora Nacional .1974.

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