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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MOÇAMBIQUE

FACULDADE DE GESTÃO DE RECURSOS NATURAIS E


MINERALOGIA

DEPARTAMENTO DE DIREITO

CRISTINA PAULA FALUÇO SEVENE

ANÁLISE DA VIOLAÇÃO SEXUAL CONTRA


CRIANÇAS A LUZ DO NOVO CÓDIGO PENAL DE
MOÇAMBIQUE EM CONTRAPOSIÇÃO AOS
DIPLOMAS LEGAIS NACIONAIS E
INTERNACIONAIS SOBRE A PROTECÇÃO DAS
CRIANÇAS

Tete - 2016
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MOÇAMBIQUE

FACULDADE DE GESTÃO DE RECURSOS NATURAIS E


MINERALOGIA

DEPARTAMENTO DE DIREITO

CRISTINA PAULA FALUÇO SEVENE

ANÁLISE DA VIOLAÇÃO SEXUAL CONTRA


CRIANÇAS A LUZ DO NOVO CÓDIGO PENAL DE
MOÇAMBIQUE EM CONTRAPOSIÇÃO AOS
DIPLOMAS LEGAIS NACIONAIS E
INTERNACIONAIS SOBRE A PROTECÇÃO DAS
CRIANÇAS

Monografia apresentada ao Conselho


Cientifico da Faculdade de Gestão de
Recursos Naturais e Mineralogia, da
Universidade Católica de
Moçambique, como Requisito Parcial
Exigido para Obtenção do Grau
Académico de Licenciatura em
Direito, orientada pelo Msc. Jacques
Kabeya Kazadi

Tete – 2016
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MOÇAMBIQUE
FACULDADE DE GESTÃO DE RECURSOS NATURAIS E
MINERALOGIA

DEPARTAMENTO DE DIREITO

CRISTINA PAULA FALUÇO SEVENE

ANÁLISE DA VIOLAÇÃO SEXUAL CONTRA


CRIANÇAS A LUZ DO NOVO CÓDIGO PENAL DE
MOÇAMBIQUE EM CONTRAPOSIÇÃO AOS
DIPLOMAS LEGAIS NACIONAIS E
INTERNACIONAIS SOBRE A PROTECÇÃO DAS
CRIANÇAS

__________________, ____ de ______________ de _______.

Resultado
______________________________________________________________________

Membro de Júri
Presidente:___________________________________________________
Supervisor:___________________________________________________
Examinador:__________________________________________________
Estudante:____________________________________________________
DECLARAÇÃO DE AUTENTICIDADE

Eu, Cristina Paula Faluço Sevene, natural da Cidade de Maputo, residente em Tete,
declaro por minha honra que o presente trabalho que visa a obtenção do grau de
licenciatura em Direito é por excelência por mim apresentado, sendo autêntico e actual e
nunca foi abordado em moldes por mim seguidos. A investigação foi pessoal e resultou
na escolha da informação aqui apresentada.

Nome da Autora

_______________________________
Cristina Paula Faluço Sevene
Data:

DEDICATORIA
Dedico a Minha Familia,
Ao Meu Esposo Luciano Pedro
Sevene
Aos Meus Filhos: Elayne Sevene
Minha Mae Isabel Possumende
Fondo,
Aos Irmãos: Elicia Faluço,, Maria
Sabina, Anabela Faluço, Rui
Faluço, Clarice Isabel e Artemiza
Faluço

AGRADECIMENTOS
Antes de mais tenho a agredecer á Deus, Todo Poderoso, por ter me dado força
necessaria para enfrentar várias adversidades passadas durante os anos de academia e
tambem por ter ajudado a alcançar objectivos por mim traçados.
Agredecer aos meus pais, irmãos, filhos e a familia em geral pelo apoio, pois sabiam
eles que a melhor arma para se poder alcançar o sucesso na vida são os estudos.
De seguida, agredecer ao meu tutor, dr. Jacques Kabeya Kazadi pelo tempo
disponibilizado, na correcção de cada capítulo do trabalho e tambem pelos
ensinamentos dados durante a realização do mesmo.
Aos meus amigos e colegas com os quais criamos grupos de estudo, no qual iniciamos o
longo percurso académico até a presente data.
Agredeço aos docentes que durante os quatro anos tiveram a capacidade e competencia
necessaria para me ensinar e por ter me dado as linhas mestres a seguir para alcançar um
futuro próspero na carreira de jurista.

EPĺGRAFE
“ O menor violentado na sua sexualidade deixa de
poder ser sujeito do seu próprio destino, da sua própria
história sonhada, projetada ou construída. A história
que lhe vão impor ultrapassa-o em velocidade e
substância, deixa de ser “sua” para passar a ser
aquela que não lhe ensinaram, para a qual não
pediram sequer um assentimento seu que fosse. De si,
apenas um murmúrio surdo, um grito abafado na
calada do quarto dos fundos, no canto recôndito da
garagem mal iluminada, um “não” ouvido nas paredes
da sua alma que não tinha voz suficiente para soar. De
si, apenas uma imagem de um corpo usado como
vazadouro de néctares infelizes, numa toada de lamento
e dor, tantas vezes silenciada em nome de um amor
maior…”

In Paulo Guerra, 2002


RESUMO
O presente trabalho é uma monografia apresentada em cumprimento de um dos
requisitos exigidos para a obtenção do grau de licenciatura em Direito pela Faculdade
de Gestão de Recursos Naturais e Mineralogia. Este trabalho visa-se analisar
criticamente o preceituado no artigo 219.º do Código Penal em contraposição ao
superior interesse da criança menor de 18 anos nos termos da Convenção Internacional
dos Direitos das Crianças e outros diplomas legislativos internacionais. Foi apenas na
década de 70 que os abusos sexuais começaram a ser tratados como problemas de
interesse público. Resulta que a violência contra menores é um problema de saúde e de
dos direitos humanos ao nível global e de crescente preocupação na África Sub-
Sahariana. Na África Austral e em Moçambique em particular, mesmo com estudos
limitados sobre a violação sexual de menores, os dados disponíveis mostram que ela
constitui um dos problemas de saúde pública e social preocupante. Por consequente,
esta questao é um dos factores que mais priva o desenvolvimento socioeconómica dos
países a curto e longo prazo, acontece em todos os países, em todas as sociedades e em
todas os grupos sociais; a saber em casa, nas escolas, no trabalho, na rua, em todas as
faixas etárias, nas zonas rurais e urbanas e apresenta-se em diferentes formas como
sejam a violência física, psicológica, económica, doméstica, abuso sexual, tráfico,
exploração e negligência. Portanto, o Código Penal Moçambicano, aprovado pela Lei
35/2015 de 31 de Dezembro consagra nos seus artigos 219 e 220 o crime de violação de
menores, dando mais ênfase aos menores de 12 até 16 anos, excluindo assim os
menores de 18 anos, o que contrapõe a Lei de Promoção e Protecção dos direitos da
criança, que considera criança os cidadãos menores de 18 anos. Ai esta a nossa
problematica que pretendemos abordar neste estudo.

Palavras-chave: Violação sexual, Menoridade, Criança, e Convenção internacional.


INDĺCE
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 12
CAPITÚLO I: TEORIZAÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA
CONTRA MENORES............................................................................................................. 16
1.1. Conceito de Criança ......................................................................................................... 16
1.2. O Conceito de Violência .................................................................................................. 16
1.3. Características Associadas ao Abuso Sexual de Menores ................................................ 18
1.4. A relatividade das consequências da violação sexual em menores. ................................. 22
CAPITÚLO II: VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA EM MOÇAMBIQUE ...................... 24
2.1. Evolução histórica da Violência contra as Crianças menores em Moçambique .............. 24
2.2. Causas da violência contra menores ................................................................................. 26
2.2.1. Factores históricos e culturais ....................................................................................... 26
2.2.2. Factores Sócio económicos ........................................................................................... 27
2.3. Limites entre as relações afectivas e as abusivas ............................................................. 28
2.4. A vítima de abuso sexual em menores e as questões metodológicas ............................... 29
CAPÍTULO III: EFEITOS DA RECEPÇÃO DAS CONVENÇÕES
INTERNACIONAIS EM MOÇAMBIQUE ........................................................................... 32
3.1. Tratados vs Acordos Internacionais ................................................................................. 32
3.2. Fases para a Consumação dos Tratados face ao Direito Internacional............................. 33
3.3. Teorias Monismo e Dualismo .......................................................................................... 34
3.3.1. Teoria Dualista .............................................................................................................. 34
3.3.2. Teoria Monista............................................................................................................... 35
3.4. Tratamento das Convenções internacionais em Moçambique ......................................... 37
CAPITULO IV: VIOLAÇÃO SEXUAL CONTRA A CRIANÇA: ANALISE
CRITICA DO ARTIGO 219 DO NOVO CÓDIGO PENAL FACE AOS
INSTRUMENTOS NACIONAIS E INTERNACIONAIS SOBRE OS DIREITOS DA
CRIANÇA. .............................................................................................................................. 39
4.1. Instrumentos Legais de Protecção dos Direitos da Criança em Moçambique ................. 39
4.1.1. Lei de Promoção e Protecção dos Direitos da Criança .................................................. 39
4.2. Análise dos diplomas legais nacionais e internacionais sobre a protecção das
crianças .................................................................................................................................... 40
4.3. A Discordância entre o Código Penal e os demais Diplomas Legislativos em
Relação a Idade Limite para se Considerar Menor.................................................................. 42
CAPITÚLO V: DIREITO COMPARADO ............................................................................. 44
5.1. Portugala ........................................................................................................................... 44
5.2. Brasil ................................................................................................................................. 45
5.3. Moçambique ..................................................................................................................... 45
CAPITÚLO VI: ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DE DADOS .......................................... 46
6.1. CONCLUSÃO .................................................................................................................. 48
6.2. Recomendações ................................................................................................................ 50
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................... 52
INTRODUÇÃO
O presente trabalho é uma monografia apresentada em cumprimento de um dos
requisitos exigidos para a Obtenção do Grau de Licenciatura em Direito pela Faculdade
de Gestão de Recursos Naturais e Mineralogia da Universidade Católica de
Moçambique-Tete.
O trabalho vai cingir-se em torno da Análise da Violação Sexual Contra Crianças a
Luz do Novo Código Penal de Moçambique em Contraposição aos Diplomas
Legais Nacionais e Internacionais Sobre a Protecção das Crianças.
O termo criança significa todo ser humano com idade inferior a 18 anos de idade, nos
termos da Lei 7/2008 de 9 de Julho, que aprova a Lei de Promoção e Protecção dos
Direitos da Criança bem como ao nível das convenções ratificadas por Moçambique.
Neste contexto, a questão da violação sexual contra crianças em Moçambique tem sido
visto sob várias vertentes desde o particular até o judicial, isto é, desde ao facto de que a
violação ocorre em ambiente familiar até ao momento em que o caso é levado aos
tribunais. Poucas são as famílias que têm denunciado essa prática; quer seja para manter
a honra da família, preservar dignidade da menor violada e por vezes calam-se por
receio, de que venha- lhes acontecer uma retaliação em consequência da denúncia.
Ora, com a entrada em vigor do novo código penal, poderá de alguma forma favorecer
os prevaricadores deste tipo legal de crime, pois, este diploma legal não acautela a
menoridade no verdadeiro sentido da palavra bem nos termos consagrado ao nível dos
vários diplomas legislativos nacionais e internacionais ratificados por Moçambique.

Portanto, o trabalho será composto por cinco capítulos, sendo, que no primeiro capítulo
será abordado a Teorização e contextualização da violência contra menores, no segundo
capítulo faremos uma abordagem sobre violência contra a criança em moçambique; Já
no terceiro capitulo far-se-á uma análise crítica ao código penal moçambicano, no
concernente ao crime violação de menores, no quarto capítulo viajaremos ao direito
comparado para podermos perceber como é que os ordenamentos jurídicos de outros
países tratam o crime de violação de menores e por fim, no quinto e último capítulo
faremos a análise de dados e discussão dos resultados alcançados neste estudo.

Entretanto, este trabalho visa-se analisar criticamente o preceituado no artigo 219.º do


Código Penal em contraposição ao superior interesse da criança menor de 18 anos nos
termos das Convenções Internacionais dos Direitos das Crianças e outros diplomas
legislativos internacionais.
Como objectivos específicos, o trabalho tem em vista: (i) Descrever os factores
socioculturais que favorecem a ocorrência da violência sexual contra menores em
Moçambique; (ii) Identificar os potenciais riscos e factores protectivos da violência de
menores; (iii) Ilustrar as consequências jurídicas do tratamento diferenciado a luz do
código penal, entre os menores de 12 e 18 vítimas de violência sexual.
A escolha em analisar o presente tema surge na sequência de, a violência sexual ser um
problema que afecta várias sociedades ou seja o mundo inteiro, sabendo que
Moçambique não é uma excepção.
As questões ligadas à sexualidade são vistas como assuntos privados, pelo que os
crimes cometidos neste âmbito, muitas vezes, ainda são tratados ao nível familiar ou
comunitário.
Frequentemente, os crimes sexuais são conhecidos como “crimes contra a honra” e não
são denunciados, sendo que muitas vítimas calam-se por medo de perder a sua “honra”
ou “reputação”. Em Moçambique, vários são os casos de violência sexual não
denunciado aos sistemas judiciais. Muitos casos são tratados de forma particular ou
informal.
A violência sexual contra menores ocorre em diferentes meios e ambientes sociais,
nomeadamente na família, nas escolas, em instituições como orfanatos e outros locais
de acolhimento, nas ruas, nos locais de trabalho e nas prisões. Ela é geralmente
motivada por uma acção conjugada de diferentes factores. Ela pode surgir em
consequência de crenças culturais, normas e práticas tradicionais, de factores
socioeconómicos e até fruto de causas políticas, em situações de conflito. Uma parte
não menos significativa da violência sexual contra as crianças resulta em morte mas a
maior parte dela nem sequer deixa marca visíveis.
Abordando concretamente sobre a questão da penalização somente da violação sexual
praticada contra menores de 16 anos, deixa o código penal de proteger todos os
cidadãos considerados crianças pela Lei de Promoção de Protecção dos Direitos da
Criança, protegendo deste modo somente os menores de 16 anos e ficando
“desprotegidos” por este diploma legal os maiores de 16 e menores de 18 anos, o que
não vai de acordo com o estipulado no n.º1 do artigo 47.º da CRM 2004, ao dispor que
“as crianças têm direito à protecção e aos cuidados necessários ao seu bem-estar” e de
outros diplomas legislativos internacionais.
Este aspecto pode fazer com que fiquem desprotegidos os direitos fundamentais das
crianças moçambicanas maiores de 16 e menores de 18 anos, propiciando assim aos
agentes infractores, isto é, violadores de menores tenham preferência por violar as
crianças desta faixa etária.
No entanto, a violência é vulgarmente percebida como a acção física com recursos ou
não de instrumentos para causar danos a uma pessoa ou grupos. As perspectivas
restritas de definição da violência dependem de cada disciplina que a estuda. Por
exemplo, as ciências penais e jurídicas a estudam de modo a punir o agressor, dando
importância por isso a agressão directa visível.
Entretanto, o n.º1 do artigo 47.º da Constituição da República de Moçambique de 2004
(CRM 2004) estabelece que as crianças têm direito à protecção e aos cuidados
necessários ao seu bem-estar. O n.º 3 do mesmo artigo acrescenta que todos os actos
relativos às crianças, quer praticados por entidades públicas ou privadas, devem ter em
conta o superior interesse da criança. É nosso entender que isso se estenda aos actos
legislativos.
Por outro lado, a Convenção Internacional dos Direitos das Crianças e a Carta Africana
sobre os Direitos e Bem-estar das Crianças, ambas ratificadas por Moçambique, bem
como a legislação nacional, definem como crianças todas as pessoas menores de 18
anos.
Para, além disso, o artigo 18 da CRM 2004 estabelece que os tratados e convenções
internacionais, uma vez aprovados, vigoram na ordem jurídica nacional. Tal é o caso da
Convenção internacional dos Direitos das Crianças e a Carta Africana sobre os Direitos
e Bem-estar das Crianças.
Assim sendo, o artigo 219.º do Código Penal, procurou qualificar o crime de violação
de menores, estabeleceu uma moldura penal mais pesada, por considerar mais gravoso
este crime quando praticado contra crianças menores de 12 anos, não incluindo os
menores de 18 anos.
Diante do acima apresentado, coloca-se a seguinte questão: Até que ponto a não
penalização pelo Código Penal das violações sexuais perpetradas contra as crianças
garante a protecção efectiva dos direitos das crianças menores de 18 anos?

Em termos da metodologia, a pesquisa é um processo de desenvolvimento de métodos


científicos com fim de descobrir respostas para problemas mediante o emprego de
procedimentos científicos, apresenta-se o tipo de pesquisa, universo, amostra e técnica
de colecta de dados”.
Quanto ao tipo de pesquisa, a pesquisa é explicativa pois pretende explicar o quão se
torna discriminatório o artigo 219.º do CP, pelo facto de penalizar com a pena mais
grave a violação praticada contra menores de 16 anos, ficando excluídos os menores de
18 anos e maiores de 16 anos deste dispositivo legal.
Esta ideia é fundamentada por GIL1, ao referir que a preocupação central deste tipo de
pesquisa é identificar os factores que determinam ou que contribuem para a ocorrência
dos fenómenos. É o tipo que mais aprofunda o conhecimento da realidade, porque
explica a razão, o porquê das coisas.
Quanto aos procedimentos técnicos, primeiramente a pesquisa será bibliográfica, sendo
desenvolvida com base em material já elaborado, constituído principalmente de livros e
artigos científicos e textos retirados da Internet, já na segunda fase, recorrer-se ao
estudo de campo.
No concernente ao método de abordagem, o trabalho seguirá o método indutivo, pois,
parte do estudo ou a abordagem dos fenómenos e caminha para planos cada vez mais
abrangentes, indo das constatações mais particulares às leis e teorias mais gerais.
Para a recolha de dados será usada a entrevista como a técnica que permitirá ao
entrevistado e inquiridos conversar sobre os tópicos seleccionados, havendo
possibilidades de abordar questões novas que surgirão como resultado da conversa e
inquérito. Escolheu-se estas técnicas tendo em conta o tamanho da amostra e à
abordagem da pesquisa.

1
GIL, A. C. Como elaborar projectos de pesquisa. 4. Ed. São Paulo: Atlas, 2002.
CAPITÚLO I: TEORIZAÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA
CONTRA MENORES
No presente capítulo faremos uma abordagem sobre o conceito de violência contra
menores, o enquadramento da violação de menores, principalmente a violação sexual
que constitui a base fundamental do nosso trabalho, a forma como esta se manifesta e as
consequências para as suas vítimas.
1.1. Definição e Teoria dos Conceitos
1.1.1. Criança
Nos termos da lei 7/2008 de 9 de Julho, Lei de Protecção e Promoção dos direitos da
Criança, considera-se criança toda a pessoa menor de dezoito anos de idade. Este
aspecto é corroborado pela Convenção dos Direitos da Criança Adoptada pela
Assembleia Geral nas Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989, ao referir que
“criança é todo o ser humano menor de 18 anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for
aplicável, atingir a maioridade mais cedo”.
Como se pode notar do preceituado acima, o conceito de criança é atribuído a „pessoa
que seja menor de dezoito anos, exceptuando-se os que, por força da lei do seu país, o
atribua a maioridade com idade inferior a dezoito anos.
Entretanto, Moçambique enquadra-se nos países que consideram crianças os menores de
dezoito anos, sendo-lhe assim aplicável o previsto na Convenção dos Direitos da criança
acima mencionado.
1.1.2. Violência
Existem várias abordagens teóricas e metodológicas que definem violência de forma
geral e a violência contra menores, de forma particular. Esta diversidade resulta da
multiplicidade de actores distintos que por sua vez fomentam uma variedade de
conceitos que se focalizam em realidades distintas buscando as especificidades de cada
uma delas.
A violência contra a criança é assim uma categoria específica que desperta atenção
particular sobretudo por ser praticada contra aqueles que não se podem defender dela.
A violência é vulgarmente percebida como a acção física com
recursos ou não de instrumentos para causar danos a uma pessoa ou
grupos. As perspectivas restritas de definição da violência dependem
de cada disciplina que a estuda. Por exemplo as ciências penais e
jurídicas a estudam de modo a punir o agressor, dando importância
por isso a agressão directa visível. 2

2
DIVEP. Vigilância epidemiológica das doenças e agravos não transmissíveis – dant and vigilância
epidemiológica das causas externas. A violência e a saúde, p. 2, 2013
Estabelece o artigo 219.º do Código Penal, que “Aquele que tiver coito com qualquer
pessoa, contra sua vontade, por meio de violência física, de veemente intimidação, ou
de qualquer fraude, que não constitua sedução, ou achando-se a vítima privada do uso
da razão, ou dos sentidos, comete o crime de violação, e será punido com a pena de
prisão maior de dois a oito anos.”
Como se pode ver, o excerto acima apresentado engloba a violação no geral, isto é, que
ocorre tanto com os menores como com os adultos ou idosos, sendo a questão da
violação contra menores vem expressa no artigo 20.º do diploma legal acima referido.
Entretanto, a violência contra menores ocorre em diferentes meios e ambientes sociais,
nomeadamente na família, nas escolas, em instituições como orfanatos e outros locais
de acolhimento, nas ruas, nos locais de trabalho e nas prisões.
Ela é geralmente motivada por uma acção conjugada de diferentes factores. Ela pode
surgir em consequência de crenças culturais, normas e práticas tradicionais, de factores
socioeconómicos e até fruto de causas políticas, em situações de conflito.3
Uma parte não menos significativa da violência contra as crianças resulta em morte mas
a maior parte dela nem sequer deixa marca visíveis.4
Entretanto, a Convenção Sobre os Direitos da Criança, definiu a violência contra criança
no seu artigo 19.º, “como todas as formas de violência física ou mental, dano ou sevicia,
abandono ou tratamento negligente, maus tratos ou exploração, inclusive violência
sexual, violência contra crianças e o uso intencional da forca”.
Como se pode ver, a violência sexual contra crianças também é protegida pela
convenção acima mencionada, demonstrando-se assim a tamanha relevância que esta
tem.
A Violação Sexual, abarca um conjunto diferenciado de manifestações de violência
contra as crianças, permitindo uma interpretação que suaviza o carácter violento do
abuso, e mais do que isso, que oculta a estrutura das relações sociais que têm o poder
como núcleo.
A violação sexual de menores é principalmente um dos fenómenos que preocupa cada
vez mais as autoridades moçambicanas. O reconhecimento (embora político e não

3
UNICEF, Protecção da criança: Manual para Parlamentares, n° 7, União Inter parlamentar, Suíça, p.
10, 2004
4
Idem
efectivo) da questão e a sua inclusão na agenda governativa é evidência desta
preocupação.5
A violação sexual de menores revela-se um fenómeno complexo na medida em que
muitas vezes crianças que sofrem tais violações não têm noção da situação de abuso ou
encontram-se numa posição de dependência em relação aos perpetradores a partir da
qual as vitimas têm dificuldade para expor os casos.
Entretanto, para RIBEIRO6,
A violação sexual de menores traduz-se no envolvimento do menor
em práticas que visam a gratificação e satisfação do adulto ou jovem
mais velho, numa posição de poder ou autoridade sobre aquele. Trata-
se de práticas que o menor, dado o seu estádio de desenvolvimento,
não consegue compreender e para as quais não está preparado, às
quais é incapaz de dar o seu consentimento informado e que violam a
lei, os tabus sociais e as normas familiares.
O bem jurídico protegido neste tipo de crime é a autodeterminação sexual, associada ao
livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual.
1.2. Características Associadas ao Abuso Sexual de Menores
O abuso sexual é considerado fenómeno universal e transversal a todas as classes
sociais, etnias, religiões e culturas7.
É porventura a sua universalidade que o torna tão complexo, logo nesta tentativa de
compreendê-lo, verifica-se o que a literatura afirma sobre a vítima, ofensor e as
consequências do abuso sexual em menores. Antes disso, opta-se por apresentar o
problema segundo o contexto familiar (extra ou intrafamiliar), situando-o
8
temporalmente em evento único, reiterado ocasional ou contínuo .
A família, agente de socialização e primeira forma de inserção social, proporciona a
formação individual, o desenvolvimento da personalidade, da comunicação e da
perceção do eu, do outro e do mundo, segundo os padrões culturais do grupo de
pertença 9.

5
FDC, Violência Contra Menores em Moçambique - Revisão da Literatura, Julho de 2008, acesso em 22
de Março de 2016, disponível em http://www.rosc.org.mz/index.php/documentos/doc_download/11-
violencia-contra-menores-em-mocambique.
6
RIBEIRO, C. A criança na Justiça, Trajetórias e significados do processo judicial de crianças vítimas
de abuso sexual intrafamiliar, Almedina, p. 52, 2009
7
DREZETT, J., CABALLERO M., JULIANO, Y., PRIETO, E. T., MARQUES, J. A., & FERNANDES,
C.E. Estudo de mecanismos e fatores relacionados com o abuso sexual em crianças e adolescentes do
sexo feminino. Jornal de Pediatria, pp. 413-419, 2001
8
CANTÓN-CORTÉZ, D. Prevalencia y características de los abusos sexuales a niños. Archivos de
Criminología, Criminalística y Seguridad privada, 2014
9
SANTOS, S. S., & Dell‟Aglio, D. D. Revelação do abuso sexual infantil: reações maternas. Psicologia:
Teoria e Pesquisa, 2009
No entanto, há diversos tipos de famílias com estruturas e dinâmicas diversas, com
maior ou menor vinculação, com problemas diversos.
O abuso sexual de menores em contexto intrafamiliar é o tipo mais
recorrente. Ocorre quando há laços de consanguinidade ou de
proximidade (tutor, cuidador, madrasta, padrasto, companheiros ou
substituto de uma figura familiar), com a presença da interacção e
afectividade mesmo que não bidirecional.10

O abuso sexual de menores intrafamiliar é mais suscetível à famílias com relações


assimétricas e hierárquicas (HABIGZANG11), nas quais a proximidade caracteriza a
relação e intensifica o impacto na vítima (RIBEIRO)12, sendo o incesto a forma
certamente mais conhecida. Incesto é a relação proibida com tabu implícito entre
pessoas do mesmo grupo de parentesco cultural ou legal entre as quais não é aceite a
relação de matrimónio (WALKER, 1980, citado em MONGE e OLMO13.
Pode-se, então, dizer que as questões de família ficam em família? Tratando-se do
abuso sexual de menores, na maioria dos casos, sim. Primeiro, porque o ambiente mais
recorrente é a própria residência do agressor/vítima e segundo, devido à síndrome do
segredo adiante caracterizada.
SANDERSON descreve os estágios do processo de aliciamento de menores,
Reportando-se à pedofilia desde a seleção, o recrutamento, a amizade,
a confiança, o estabelecimento de um relacionamento, a realização de
testes de confiança, o isolamento da criança, o desencadeamento da
ilusão de afeto, a iniciação de contatos físicos, a verificação das
defesas, a utilização de recursos para diminuir a inibição, a instigação
para que a criança pratique actos sexuais espontâneos, a manutenção
constante do assédio, o reforço do segredo até, por fim, o término do
relacionamento com o avançar da idade14.

Mas porventura, pretensiosamente, apresenta-se aqui os dados gerais sobre o abuso


sexual intrafamiliar sucintamente em forma de um ciclo. Essa organização baseia-se na
leitura de diversos autores e atenta para o fato de estarem mencionados apenas os
fatores coincidentes sem generalizar os casos. Desta forma, acredita-se que a dinâmica
ocasional ou continuamente segue as etapas seguintes segundo o ponto de vista do
ofensor.

10
FÁVERO, M. F. Sexualidade infantil e abusos sexuais a menores. Lisboa: Climepsi Editores, 2003
11
HABIGZANG, L.F., KOLLER, S.H., AZEVEDO, G.A., & MACHADO, P. X. Abuso sexual infantil e
dinâmica familiar: aspectos observados em processos jurídicos. Psicologia: Teoria & Pesquisa, pp. 341-
348, 2005
12
RIBEIRO, C. A criança na justiça. Coimbra: Almedina, 2009
13
MONGE, F., & OLMO, M. Niveles de abstracciones en el estudio del incesto. Revista Espanhola de
Antropologia Americana, 1986
14
SANDERSON. C. Abuso sexual em crianças: fortalecendo pais e professores para proteger crianças
de abusos sexuais. São Paulo: M Books do Brasil, 2005
Não é possível determinar exatamente como tudo começa nesta dinâmica. Contudo,
como o ponto de vista do ofensor não é o maior interesse deste relato, acredita-se que as
suas motivações possam ser as mais variadas possíveis, alicerçadas por falha moral,
social e até problemas orgânicos/clínicos.
Na sua dinâmica, o ofensor no contexto familiar sente-se excitado
pelo menor de tal forma que organiza um conjunto de situações que
favorecem a sua meta. Assim, premedita ações, estudando a vítima,
utilizando um conjunto de artefactos num verdadeiro jogo de sedução
o que inclui prendas, brincadeiras e recompensas 15.

Neste ponto, o ofensor já estabelece o controlo sobre a criança e explora-a sexualmente,


no entanto, a sua ação pode ser focada na violação, mas o mais recorrente é que siga
uma escalada gradual que começa com episódios de não contato e intensificam-se
conforme a aceitação/tolerância da criança e adequação do ambiente. Inicia-se, então, o
jogo de ameaças ou violência que sustenta o segredo do abuso debaixo da convenção
harmónica do lar doce lar.
Embora se admita alterações, esta sequência repete-se devido à síndrome da adição. O
ofensor depois ter cumprido com sucesso a sua meta e conseguido o alívio da tensão
sexual exercida em relação ao menor, volta a manifestar nova excitação. Este precisa
sempre de mais, por isso reforça as suas estratégias para ser bem-sucedido. GABEL16
Desta forma, a dinâmica utilizada para o abuso pode até ocorrer como
fato isolado, no entanto, uma nova fase com novo período de
excitação do ofensor pode desencadear novos ciclos e a fase da
sedução pode até deixar de existir, predominando o controlo. Por este
conjunto de situações, o abuso sexual de menores do tipo intrafamiliar
torna-se num evento frequentemente reiterado ocasional ou
continuado e com menos probabilidade de revelação, devido ao
contexto e ao ambiente que proporciona o (s) evento (s). BRAUN 17

Também denominada Síndrome da Compulsão refere-se à consciência do ofensor sobre


o crime e sobre os danos à criança, assim como à incapacidade deste impedir a repetição
da situação abusiva e consequentemente a ansiedade e irritabilidade que esta situação
lhe acarreta.
Por conseguinte, a revelação do segredo (o que nem sempre acontece) é a quebra do
ciclo e ocorre na maioria dos casos devido a sinais externalizados na vítima tanto

15
BAPTISTA, R. S., FRANÇA, C. I., COSTA, C. M. & BRITO, R. S. Caracterização do abuso sexual
em crianças e adolescentes notificados em um programa sentinela. Acta Paulista Enfermagem, pp. 602-
608, 2008
16
GABEL, M. Crianças vítimas de abuso sexual. São Paulo: Summus. 1997
17
BRAUN, S. A violência sexual infantil na família: do silêncio à revelação do segredo. Porto Alegre:
Age, Lda. 2002
comportamentais como fisiológicos. Fisicamente, as consequências do abuso como
gravidez, doenças sexualmente transmissíveis e lesões corporais derivadas de violência
denunciam a situação. AZAMBUJA18
Psicologicamente, os menores manifestam sinais comportamentais traduzidos num
grande leque de reações que variam consoante os fatores associados tanto à natureza do
evento quanto da vítima.
Depois de abordada a dinâmica do ponto de vista do ofensor, paralelamente àquela
descrição, apresenta-se as características do ponto de vista da vítima que também
podem ser transcritas como cíclicas conforme representa-se no esboço a seguir.
A situação de abuso sexual de menor é a princípio não proporcional
quanto ao tamanho, à força, à idade, à cognição e ao poder entre
outros aspetos. Portanto, a vulnerabilidade presente em todas as
crianças pode ainda ser agravada, como já mencionado, por
características da própria família e por especificidades da própria
criança entre as quais se pode citar as enumeradas por BUDIN &
JOHNSON19 tais como a introspecção, a submissão, a inquietação a
carência afectiva, a tristeza e a depressão.

Acrescentando-se ainda particularidades como as limitações físicas e cognitivas que


podem estar associadas.
A proximidade, factor que marca a dinâmica do abuso sexual intrafamiliar, é também
nutrida pela relação de confiança. Devido ao jogo de sedução do ofensor ou pela carga
afetiva exercida, o menor deposita confiança neste o que facilita a sua ação. Essa
característica nutre o acordo imposto e selado do segredo que é reforçado pela ameaça
tanto à integridade física à vítima quanto à integridade física de alguém de grande afeto
da criança.
Por conseguinte, o excesso de sentimentos contraditórios, que envolve a sedução, os
afectos e as ameaças podem levar a criança a um estado de confusão mental com o qual
desencadeia o medo, a fúria, o prazer, a culpa, o desamparo SIQUEIRA et all.20, a
ansiedade, o isolamento, a fraca vinculação e até a ideação suicida. É provavelmente
essa confusão mental que origina um conjunto de reações geralmente associadas ao
abuso sexual.

18
AZAMBUJA, M. R. Violência sexual intrafamiliar: é possível proteger a criança? Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006
19
BUDIN, L., & JOHNSON, C. F. Sex abuse prevention programs offenders: attitudes about their
efficacy. Child Abuse and Neglect, 1989
20
SIQUEIRA, A. C., ARPINI, D. M., & SAVAGNAGO, S. O. Família e abuso sexual na perspectiva do
adolescente em situação de vulnerabilidade. Aletheia, 2011
Por seu turno, o abuso sexual extra familiar ocorre quando o ofensor é estranho à vítima
ou é pessoa conhecida com acesso ao menor como professores, amigos, cuidadores,
conselheiros, assistentes sociais, polícias, pais de amigos, amigos dos pais, entre outros
BRAUN21. Esta tipologia distingue-se do abuso sexual intrafamiliar por ser
frequentemente perpetrada num único episódio. SANTOS & DELL‟AGLIO22
Logo diferem-se tanto na frequência como na intensidade do contacto e na intensidade
do vínculo afectivo. Assim, mesmo que os elementos representados no esboço estejam
presentes, na maioria das vezes o abuso sexual extra familiar não chega a ser cíclico.
Mais duradouro e, certamente, mais grave. Assim, o abuso sexual intrafamiliar
distingue-se do extra familiar, pois além desta particularidade aquele é considerado
menos violento fisicamente e menos intrusivo, porém mais grave emocionalmente,
apresentando menos evidências físicas e iniciado em crianças com menos idade o que
dificulta, portanto, a sua revelação e aumenta os danos23.
Todavia, não se exclui a possibilidade de grande intrusão, violência e gravidade mesmo
que nos episódios únicos.
Ressalta-se, contudo, como já foi salientado, que as dinâmicas não são todas tão
previsíveis, todavia, para melhor aprofundar essas representações, menciona-se a seguir
o que a literatura afirma acerca da vítima que neste relato assume a figura central.
1.3. A Relatividade das Consequências da Violação Sexual em Menores.
Antes de referir as consequências da violação sexual em menores é pertinente
referenciar as raras, mas existentes vítimas assintomáticas derivadas, entre outros
factores, da resiliência individual e da integração da experiência à vida da vítima24.
Àquelas pode estar associado o stress pós-traumático, a evitação ou mesmo a negação
de estímulos relacionados ao evento, a reencenação deste, a um comportamento
sexualizado, a depressão, a baixa autoestima, a ansiedade, ao comportamento disruptivo
e/ou a promiscuidade, enquanto a esta pode-se associar o agravamento dos sintomas e a
depressão crónica. DOMINGUEZ25.
É importante ainda referir que as consequências da violência sexual
em menores também podem ser agrupadas apenas em sintomas físicos

21
BRAUN, S. A violência sexual infantil na família: do silêncio à revelação do segredo. Porto Alegre:
Age, Lda. 2002
22
SANTOS, S. S., & Dell‟Aglio, D. D. Revelação do abuso sexual infantil: reações maternas. Psicología:
Teoria e Pesquisa, 2009
23
ALMADA, H. R. Evaluación médico-legal del abuso sexual infantil. Revisión y actualización.
Cuaderno de Medicina Forense, 2010
24
FÁVERO, M. F. Sexualidade infantil e abusos sexuais a menores. Lisboa: Climepsi Editores, 2003
25
DOMINGUEZ, R. Z., NELKE, C.F., & PERRY, B. D., Child Sexual Abuse Encyclopedia of Crime and
Punishment, 1, 202-207, 2002
ou psicológicos. Fisicamente podem ocorrer as lesões no hímen,
escoriações, hematomas, despedaçamento do períneo, enquanto
psicologicamente podem ser desencadeados distúrbios emocionais,
ansiedade, depressão, dificuldade relacional (o que inclui a
agressividade, o isolamento), distúrbios do sono e do apetite.
REICHENHEIM26

Todavia, JIMENEZ27 organizaram as consequências a longo prazo manifestadas já na


vida adulta em cognitivas, emocionais, comportamentais, sexuais e interpessoais.
Nesta organização, são cognitivas a negação, as distorções cognitivas,
as desassociações, as amnésias, os pesadelos, as alucinações, os
sintomas psicossomáticos e as alterações do sono. Emocionais são,
então, consequências como a depressão, a baixa autoestima, a culpa, a
ansiedade, a compulsão e a ira. Quanto à conduta, há sequelas como
uso de substâncias, condutas autodestrutivas, automutilação e
transtornos alimentares.

Defende AZAMBUJA28 que “com a diversidade, a intensidade e a variação temporal


das sequelas os sintomas podem variar desde ligeiros a distúrbios psiquiátricos,
transtornos de humor e transtornos psicóticos”. As reações não são similares em todos
os casos porque a oscilação de factores determinantes como a duração da violência
usada, a proximidade entre vítima e o ofensor têm relação diretamente proporcional
entre estes e a severidade dos efeitos.

26
REICHENHEIM, M. E., HASSELMANN, M. H., & MORAES, C.L. Consequências da violência na
saúde da criança e do adolescente: contribuições para a elaboração de propostas de ação. Ciência:
Saúde Coletiva, 4 (1), 109-121, 1999
27
JIMÉNEZ, M. G., FERNÁNDEZ, M.S., & GARCIA, M. L. Abuso sexual infantil: credibilidade del
testimonio. Euphos, 5, 37-60, 2002
28
AZAMBUJA, M. R. Violência sexual intrafamiliar: é possível proteger a criança? Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006
CAPITÚLO II: VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA EM MOÇAMBIQUE

2.1. Evolução Histórica da Violência contra as Crianças Menores em Moçambique


A violência e o abuso sexual de crianças são violações sérias dos Direitos Humanos e
dos Direitos das Crianças, compromete que esta se possa desenvolver física, mental,
moral, espiritual e socialmente de forma saudável e harmoniosa, coíbe a sua liberdade,
dignidade e o seu direito ao amor, protecção e segurança. 29 A violência tornou-se, nos
últimos anos, matéria de saúde pública pelas graves implicações que pode ter na saúde
física e mental das vítimas/sobreviventes e das suas famílias.
Consequentemente a violência contra as crianças é um dos factores
que mais priva o desenvolvimento e prosperarão socioeconómica dos
países a curto e longo prazo, acontece em todo o lado, em todos os
países, em todas as sociedades e em todas os grupos sociais. Acontece
em casa, nas escolas, no trabalho, na rua, em todas as faixas etárias,
em todas as classes económicas, nas zonas rurais e urbanas do país e
apresenta-se em diferentes formas como sejam a violência física,
psicológica, económica, doméstica, abuso sexual, tráfico, exploração
e negligência.30

A nível global e apesar das consequências poderem variar de acordo com a natureza e
gravidade da violência infligida de uma maneira geral as repercussões a curto e longo
prazo são bastante graves e as suas implicações na saúde física e psicológica são
variadas. Quaisquer situações de violência extrema, ou mesmo pequenos actos de
violência e abuso diários podem ter efeitos muito prejudiciais e consequências
desastrosas no desenvolvimento saudável destas crianças.
Surpreendentemente a maior parte dos actos de violência contra crianças é realizada por
pessoas que eles conhecem e que eles deveriam ser capazes de confiar como sejam os
próprios pais, namorados (as), esposas e parceiros, colegas de escolar, professor e
empregadores. A violência contra crianças apresenta várias formas como sejam
violência física, violência psicológica (insultos, humilhação, etc.), discriminação,
negligência e maus-tratos31.
Há alguns grupos sociais que, pelas suas características de desenvolvimento e/ou
situacionais (expostas a dificuldades extremas), se encontram em maior risco à sujeição
de violência e abuso sexual e consequentemente apresentam maior risco de
29
Convenção dos Direitos da Criança (Resolução nº19/90)
30
Ministério da Saúde, Violência e Abuso sexual de menores em Moçambique, recuperado em 23 de
Janeiro de 2016, disponível em
https://www.google.co.mz/#q=viola%C3%A7%C3%A3o+sexual+de+menores+em+Mo%C3%A7ambiqu
e&start=10,
31
UN. Secretary General Study on Violence Against Children at http://www.unviolencestudy.org/, 2006
desenvolverem problemas físicos, perturbações mentais e distúrbios de comportamento.
As mulheres e raparigas são particularmente vulnerável à violência e ao abuso. Estas
são frequentemente o alvo de diferentes formas de violência e são sujeitas a sucessivas
discriminações e tratamento desigual, agravado quando vivem em condições de pobreza
extrema.
Em todas as sociedades as mulheres e raparigas são particularmente
sujeitas ao abuso físico, sexual e psicológico tanto na vida pública
como na privada. São vítimas de violação, abuso sexual, assédio e
intimidação no local de trabalho. Elas são particularmente vulneráveis
à violência sistemática em situações de guerra. Exploração sexual
para fins comerciais, gravidez forçada, esterilização e aborto forçado
são algumas das tantas formas de violência de que muitas mulheres e
raparigas são vítimas em Moçambique. Todos estes actos violam o
direito ao respeito e liberdade e comprometem o desenvolvimento
saudável destas mulheres e crianças, das suas famílias e da sociedade
em geral32.

Em Moçambique, embora os dados quantitativos sejam limitados, nos últimos anos,


foram realizados vários estudos que demonstram uma incidência significativa de várias
formas de violência e abuso contra crianças no país. A violência pode tomar formas
como sejam violência física, violência sexual, violência psicológica e violência
económica. São ainda comuns, o abuso sexual e exploração sexual, privação e
negligência, particularmente quando as crianças são do sexo feminino (raparigas).
Constata-se que também em Moçambique, ao contrário das famílias e das instituições
(orfanatos, escolas, instituições humanitárias) potenciarem o amor, a protecção e
segurança física e emocional como deviam nestes ambientes íntimos ocorrem as formas
mais atrozes de violência contra mulheres e crianças deixando-as mais vulneráveis a
desenvolver perturbações de ordem física e emocional. Destacam-se actos por parte dos
membros das famílias33 e dos membros das instituições a que as crianças pertencem,
ECPAT34.
A incidência da violência quer a nível doméstico quer a nível da comunidade, é um
fenómeno preocupante da sociedade moçambicana. Estima-se que a maioria das
mulheres e raparigas em Moçambique tenha sido vítima de violência e/ou abuso sexual
em algum momento da sua vida o que resulta em muitos casos de gravidez e casamento
precoce, alta incidência de abandono escolar e no actual aumento significativo do

32
MISAU Estratégia e Plano de Acção de Saúde Mental. República de Moçambique: Maputo. 2006
33
FDC, Violência contra menores em Moçambique: Revisão de Literatura. Maputo. 2008
34
ECPAT International, Confronting the Commercial Sexual Exploitation of Children in Africa.
Disponível electronicamente:
http://www.ecpat.net/EI/Publications/Journals/Confronting_CSEC_ENG.pdf, 2007
número de casos de infecções sexualmente transmissíveis, HIV/SIDA entre o sexo
feminino, particularmente raparigas menores de 18 anos35.

2.2. Causas da Violência Contra Menores


Existem diversas causas para a ocorrência da violência contra menores, que muitas
vezes agem entrelaçadas. Estas causas variam e possuem um peso diferenciado com o
contexto em que os indivíduos estão inseridos. Os principais factores são de natureza
cultural e socioeconómicos e estes incluem a pobreza, as crenças mágico religiosos,
estereótipos que conduzem a um contexto permissivo para determinadas práticas,
aspectos institucionais e factores de natureza transnacionais

2.2.1. Factores Históricos e Culturais


Os factores sócio históricos foram percebidos como causando violência através do
trabalho infantil, casamentos prematuros, abuso sexual, violência física e migração de
menores. BARROS e GULAMO36 salientam que “existem factores culturais, mas que
por si só não explicam a ocorrência do trabalho infantil, apesar de terem criado uma
porta, que conjugada a pobreza permitiram o incremento da violência contra menores”.
Para estes autores nas comunidades existe a tradição da distribuição de tarefas
consoante a idade que explica e parte a persistência da violência. Na actualidade este
fenómeno é associado a baixa renda das famílias e faz com que estas procurem
aumentar a sua renda familiar, distribuindo as tarefas já não apenas no espaço doméstico
mas também para o espaço público, especificamente no trabalho no sector informal, e
como consequência muitas das crianças acabam por abandonar a escola, devido a essa
ocupação.
Ainda no conjunto dos factores culturais os ritos de iniciação são
considerados um motivo à violência contra menores que ocorre a
nível comunitário pois estes agem como obstáculo à frequência dos
menores nas escolas. Estes afastam-nas do ambiente escolar para que
estas participem destas cerimónias. Para além disso quando os
menores regressam dos ritos de iniciação, muitos deles já não vão a

35
Ministério da Saúde, Violência e Abuso sexual de menores em Moçambique, recuperado em 23 de
Janeiro de 2016, disponível em
https://www.google.co.mz/#q=viola%C3%A7%C3%A3o+sexual+de+menores+em+Mo%C3%A7ambiqu
e&start=10,
36
BARROS, J. G de & GULAMO T. Prostituição, Abuso Sexual e Trabalho Infantil em Moçambique:
O Caso Específico das Províncias de Maputo, Tete e Nampula. Campanha Contra o Abuso Sexual de
Menores.
Terre des Hommes. Maputo, p. 24, 1999
escola, porque são considerados adultos pelas normas da comunidade,
procurando por isso exercer outras tarefas 37.
Cientes deste facto algumas campanhas em Namarrói procuram enquadrar os ritos de
iniciação nas suas actividades religiosas como a igreja Católica e num período em que
os alunos não estão a ter aulas, neste caso no mês de Dezembro.
Os factores sócios históricos também contribuem para a ocorrência do abuso sexual,
devido a permeabilidade que dão a reprodução de um tipo de relação que não sendo
prostituição como os praticantes o encaram e nem abuso, se situam nas categorias de
abuso sexual tendo em conta os conceitos de direitos humanos das crianças.38

2.2.2. Factores Sócio Económicos


Os factores económicos têm um grande contributo para a ocorrência da violência contra
menores, como o abuso sexual, o trabalho infantil o trafico interno e transfronteiriço,
entre outras formas. Apesar dos sucessos que vêm sendo propalados sobre o
crescimento económico moçambicano, parte significativa da população moçambicana
ainda é considerada pobre.39
As mudanças socioeconómicas ocorridas com a introdução do
programa de ajustamento estrutural remeteram parte da população
moçambicana à pobreza. Como resultado das políticas sucessivas
adoptadas, o índice de pobreza absoluta que se situava à volta de 69,4
em 1997 tinha baixado para 54,1% em 2003. Apesar desta melhoria, a
incidência da pobreza continua bastante elevada, sendo de destacar as
diferenças entre o campo e a cidade. Com efeito, ao passo que nas
áreas rurais o índice de pobreza se situava à volta de 55,3%, nas áreas
urbanas rondava 51,5%.40

Segundo ELDRING41 o resultado do ajustamento estrutural, apesar de ter tirado a


economia do marasmo, também generalizou a pobreza, porque implicou que
aproximadamente 500 empreendimentos estatais de pequenos e médio porte fossem

37
FDC, Violência Contra Menores em Moçambique - Revisão da Literatura, Julho de 2008, recuperado
em 22 de Março de 2016, disponível em
http://www.rosc.org.mz/index.php/documentos/doc_download/11-violencia-contra-menores-em-
mocambique.
38
FDC, Violência Contra Menores em Moçambique - Revisão da Literatura, Julho de 2008, recuperado
em 22 de Março de 2016, disponível em
http://www.rosc.org.mz/index.php/documentos/doc_download/11-violencia-contra-menores-em-
mocambique.
39
Rádio da Nações Unidas. www.un.org/radio/por/detail
40
MACHAVA, J., A situação da pobreza em Moçambique: Diferenciações regionais e principais
desafios. Rio Claro: UNESP, 2007
41
ELDRING, Child Labour in the Tobacco Growing Sector in Africa. Report prepared for the
IUF/ITGA/BAT
Conference on the Elimination of Child Labour, Nairobi 8-9th October, p. 48, 2000
privatizados. Também se verificou perdas de empregos de aproximadamente 90.000
trabalhadores dos quais 11 000 no sector agrícolas.
A guerra civil contribuiu com o resto das moléstias para fragilizar ainda mais a
economia. Este cenário criou fragilidades para o emprego generalizado da mão-de-obra
infantil. Segundo BARROS e GULAMO42 tendo em conta o cenário do desemprego e
carestia de vida a instabilidade familiar que daí adveio é um esteio para a criança
procurar meios para a sobrevivência.
Para ELDRING43,
Devido a limitada oportunidade económica muitas famílias em
Moçambique trabalham no sector agrícola que tem baixos salários.
Em tais circunstâncias as crianças são usadas como força de trabalho
para ajudar a completar a renda familiar que não é adequada para
sobreviver. Em áreas rurais, crianças trabalham às vezes ao lado dos
pais ou independentemente em colheitas sazonais em plantações
comerciais. O mesmo autor frisa que os menores normalmente não são
pagos em salários, mas ao invés, os empregadores lhes compram
livros e pagam outras necessidades escolares.

O mesmo autor salienta que em alguns casos as famílias fazem trabalhar as crianças
para resolverem dívidas. Crianças regularmente trabalham em machambas familiares ou
no sector informal urbano onde executam tarefas como vigiar carros, coleccionar sucata,
ou vendendo quinquilharias e comida nas ruas. As Crianças também são empregadas
como Domesticas.

2.3. Limites entre as Relações Afectivas e as Abusivas


Para uma boa compreensão deste tema é necessário conseguir fazer uma nítida distinção
destes dois tipos de relações.
Este é um critério que gera muita dúvida porque tanto a perspectiva da vítima como a do
observador é influenciada por muitos aspectos internos e externos à pessoa.
O importante é compreender o que o observador e a criança avaliam como relação
abusiva ou como relação afectiva. Neste campo as opiniões estão divididas. Por um
lado, autores como Lamb e Coakley 1993 (citados por FÁVERO)44 afirmam que uma
criança pequena não está em condições de distinguir determinados comportamentos que
podem ser abusivos. Por outro lado, existem opiniões contrárias que não estão de acordo
42
BARROS, J. G de & GULAMO T. Prostituição, Abuso Sexual e Trabalho Infantil em Moçambique:
O Caso Específico das Províncias de Maputo, Tete e Nampula. Campanha Contra o Abuso Sexual de
Menores.
Terre des Hommes. Maputo, p. 25, 1999
43
ELDRING, Child Labour in the Tobacco Growing Sector in Africa. Report prepared for the
IUF/ITGA/BAT Conference on the Elimination of Child Labour, Nairobi 8-9th October, p. 48, 2000
44
FÁVERO, M. F., Sexualidade infantil e abusos sexuais a menores. Lisboa: Clempsi, 2003
com esta informação. Nesta perspectiva, a criança é capaz de diferenciar estas acções
porque elas aprendem desde pequenas o que é socialmente aceitável no que se refere aos
seus genitais e aos dos outros, como explica o autor Finkelhor 1979 (citado por
FÁVERO)45.
Quando a criança é suficientemente grande para relatar o que lhe aconteceu, romper o
silêncio é mais fácil, mas ao contrário quando a criança ainda é pequena é incapaz de
avaliar a situação ou falar sobre ela. Por isso, o importante é a intenção do adulto no
acto.
Em algumas culturas é perfeitamente normal e aceitável tocar em crianças, mas desde
que a intenção do adulto é a sua própria gratificação sexual estes actos tornam-se de
imediato actos abusivos.
As estatísticas apontam que uma percentagem significativa de abusos sexuais a menores
é perpetrada por pessoas da família ou por pessoas do meio muito próximos das
crianças. 46
Os abusos sexuais a menores, segundo alguns autores, é um acto através do qual um
adulto obriga um(a) menor a realizar uma actividade sexual que não é própria para a sua
idade e que viola os princípios sociais atribuídos aos papéis familiares. O abuso sexual
também pode ocorrer entre menores.

2.4. A Vítima de Abuso Sexual em Menores e as Questões Metodológicas


Durante anos a figura da vítima foi negligenciada nos estudos de Criminologia. A sua
relevância evidenciou-se quando para melhor compreender o ofensor, foi necessário
também analisar a vítima.
Entretanto, a sua notoriedade tornou-se inquestionável após a Segunda Guerra Mundial
quando a Vitimologia tornou-se ciência autónoma, dedicada a agrupar e sistematizar o
saber empírico relativo a esta importante interveniente na acção criminológica.47
No estudo da vítima em casos particulares é comum traçar um perfil
para melhor compreendê-la. No entanto, determinar um perfil
universal da vítima de abuso sexual não é possível, nem almejado.
Importa, então, verificar o que a literatura assume como consensual
no estudo deste tema, considerando-se que o conhecimento acerca do
abuso sexual provém geralmente de estudos realizados com vítimas e

45
Idem.
46
FÁVERO, M. F., Sexualidade infantil e abusos sexuais a menores. Lisboa: Clempsi, 2003
47
RIBEIRO, C. A criança na justiça. Coimbra: Almedina. 2009
ofensores de casos identificados, o que pode corresponder à ponta do
iceberg. Logo pode haver muita informação ainda por ser descrita. 48

A respeito do que está descrito é necessário pelo menos ponderar as informações, não as
estabelecendo como verdades absolutas, uma vez que o saber é mutável. Cada estudo
atende a requisitos próprios como desenho, selecção da amostra, tratamento e
discussões e esses podem apresentar inconsistências quanto ao limite de idade, à
selecção da amostra, ao tipo de instrumentos utilizado, ao período histórico entre
outras.49
Assim, observa-se nos estudos de alguns autores, maior prevalência do abuso sexual na
infância em vítimas do sexo feminino é no contexto intrafamiliar50. Porém, algumas
informações devem ser acompanhadas de algumas notas de esclarecimento.
FÁVERO51 frisa que
os estudos baseiam-se quase sempre em amostras clínicas que apontam
para dados relevantes como: os menores do sexo feminino estão mais
susceptíveis ao abuso sexual intrafamiliar; os menores do sexo
masculino estão mais vulneráveis no contexto extra familiar; e as
meninas têm maior facilidade em relatar episódios de vitimação,
enquanto os meninos têm a tendência a ocultar as suas experiências e
adaptarem-se melhor a situação traumática, uma vez que geralmente
são treinados para serem fortes.

Porém, relativamente a esta última informação tanto a autora acima referida quanto
SANDERSON52 acreditam que a verdadeira questão esteja no tabu relacionado ao
evento, no medo da noção de vulnerabilidade e da conotação homossexual como
estigmas para a vítima do sexo masculino. A esta propositada celeuma acresce-se a
individualidade de cada criança, o que dificulta generalizações.

48
ALVES, M.S. O Abuso sexual de menores em Luanda: Percepções e concepções do sistema acerca da
protecção social e do ordenamento sociojurídico, recuperado em 23 de Maio de 2016, disponível em
http://bdigital.ufp.pt/bitstream/10284/4845/3/TESE%20-%20%20MARILENEALVES.docx.pdf
49
CUNHA, O., Peixoto, J., & Antunes, C. Abuso sexual na infância e na adolescência: Intervenção com
a vítima e os seus cuidadores. In M. Matos (Coord.), Vítimas de crimes e violência: Práticas de
intervenção. (pp. 27-44) Braga: Psiquilíbrios. 2014
50
ALMADA, H. R. Evaluación médico-legal del abuso sexual infantil. Revisión y actualización.
Cuaderno de Medicina Forense, 16 (1-2), 99-108. 2010
51
FÁVERO, M. F., Sexualidade infantil e abusos sexuais a menores. Lisboa: Clempsi, 2003
52
SANDERSON. C. Abuso sexual em crianças: fortalecendo pais e professores para proteger crianças
de abusos sexuais. São Paulo: M Books do Brasil. 2005
CAPÍTULO III: EFEITOS DA RECEPÇÃO DAS CONVENÇÕES
INTERNACIONAIS EM MOCAMBIQUE
O Direito nacional ou interno é aquele cuja principal fonte é a lei editada pelo Estado,
conforme procedimentos específicos, que têm vigência e eficácia nos limites do
território nacional e através do qual se busca um controle social.53

Actualmente, é possível afirmar-se que o direito internacional público está, mais do que
nunca, aberto às influências valorativas do exterior, pelo que não se pode admitir que
seja alheio a princípios fundamentais à Ordem Jurídica, consagrados na Constituição de
cada Estado.54

Assim, é perfeitamente normal, e até necessário, que o direito internacional público de


cada Estado e, mais concretamente, o sistema de normas de conflitos vigente em cada
Ordenamento Jurídico, se encontre imbuído por aqueles que são os valores e princípios
constitucionais fundamentais desse sistema.

SANTOS sublinha que: “a tese da primazia do tratado internacional no ordenamento


jurídico deixou de ser adotada, uma vez que um sentimento de soberania, aliado à
preservação da pacta sunt servanda, e de sobrevalorização do princípio da supremacia
da Constituição, impedia que se reconhecesse caráter especial ao tratado no complexo
hierárquico do direito interno”55

Acordos internacionais resultam de um acordo de vontade entre a União Europeia e um


país terceiro ou uma organização Terceira. Convenções Internacionais é um conjunto de
acordos, padrões estipulados ou geralmente Inconstitucionalidade envolve um juízo de
valor a partir dos critérios constitucionais, seja estes quais forem.

3.1. Tratados vs Acordos Internacionais


A distinção entre “tratados” e “acordos internacionais” não é específica da ordem
jurídica moçambicana e pode ser encontrada no Direito Internacional e nas ordens
jurídicas internas dos diversos sujeitos de Direito Internacional.Tem na sua base a
utilização de um procedimento de vinculação internacional distinto.
No caso dos tratados, de um procedimento longo, com a previsão de uma confirmação
da manifestação do consentimento a estar vinculado expressa através de um acto solene

53
BOBBIO, Manual de Direito Internacional, p. 2.
54
FREITAS, Das Inconstitucionalidades do Direito Internacional privado, p.4
55
SANTOS, C. F. Tratados Internacionais de Direitos Humanos, p.16
posterior à assinatura, como a ratificação. No caso dos acordos internacionais, de um
procedimento simplificado, em que a assinatura traduz a manifestação do consentimento
do Estado a estar internacionalmente vinculado.

Em contraponto, a expressão “convenção” não traduz a existência de um tipo de


compromisso internacional autónomo em relação aos anteriormente referenciados. Com
efeito, ao nível da prática internacional a denominação convenção é muitas vezes usada
em compromissos multilaterais, sem que haja lugar a qualquer especificidade no que
concerne ao procedimento de celebração. Na Constituição da República Portuguesa de
1976, a expressão convenção” é uma designação que pretende abranger todos os
compromissos internacionais, de modo a cobrir tratados e acordos internacionais.

3.2. Fases para a Consumação dos Tratados face ao Direito Internacional


No que especificamente respeita ao procedimento de vinculação internacional do Estado
moçambicano, em consonância com a prática internacional, podem ser autonomizadas
três fases: a negociação, a manifestação internacional do consentimento a estar
vinculado, e a confirmação interna do consentimento a estar internacionalmente
vinculado.
A negociação surge dividida entre o Presidente da República e o Governo. Ao Governo,
através do Conselho de Ministros, compete “preparar a celebração de tratados e celebrar
(…) acordos internacionais, em matéria da sua competência governativa”, nos termos da
alínea g) do nº 1 do artigo 204. Ao Presidente da República, por seu turno, compete
“celebrar tratados” no domínio da defesa e da ordem pública, em conformidade com a
alínea b) do artigo 161, e “celebrar tratados internacionais” no domínio das relações
internacionais, nos termos da alínea b) do artigo 162.

A manifestação internacional do consentimento do Estado moçambicano a estar


vinculado encontra-se partilhada entre o Presidente da República, Governo e a
Assembleia da República. No seguimento das normas dos artigos 161, 162 e 204
anteriormente citadas, é possível depreender que o Presidente da República e o Governo
têm competência para assinar a totalidade dos tratados e dos acordos internacionais. É o
resultado útil que pode ser retirado da repetida utilização da expressão “celebrar”,
entendida como a autorização da expressão do consentimento internacional da
República de Moçambique a estar internacionalmente vinculada. Isso significa que para
a Assembleia da República fica reservada a tarefa da confirmação da manifestação do
consentimento das vinculações designadas como tratados, nos termos das alíneas t) e u)
do nº 1 do artigo 179, ao ser previsto que é da “exclusive competência da Assembleia da
República” “ratificar (…) os tratados internacionais” e “ratificar os tratados de
participação de Moçambique nas organizações internacionais de defesa”.

Este esquema de repartição de competências de negociação e de manifestação do


consentimento entre os órgãos de soberania é o mais adequado à distinção entre tratados
e acordos internacionais adoptado pela Constituição da República de Moçambique de
2004. Isso significa que deverá ser feita uma interpretação correctiva da alínea g) do nº
1 do artigo 204, no que concerne à atribuição de competência ao Governo para “ratificar
(…) acordos internacionais”, no sentido de a reduzir a um acto com efeitos estritamente

Ratificação é considerada a fase mais importante do processo de conclusão do tratados,


pois confirma a assinatura e dá validade a ele ou seja o acto pelo qual a autoridade
nacional compete informa as autoridades correspondentes dos Estados cujos
plenipotenciários concluíram, com os seus, um projeto de tratado, a aprovação que dá a
este projecto e que o faz doravante um tratado obrigatório para o Estado que esta
autoridade encama nas relações internacionais.

3.3. Teorias Monismo e Dualismo


3.3.1. Teoria Dualista
Segundo TRIEPEL:” Os sistemas jurídicos internacional e interno são esferas
separadas, tratando-se, dessa forma, de uma ordem dual, daí porque se chamar
"dualismo".56

O autor italiano admitiu que o Direito internacional poderia ser aplicado em alguns
casos de Direito interno, sem que ocorresse a transformação da norma em direito
interno, incorporando-a ao seu ordenamento.

Para Anzilotti, o Direito Internacional é superior ao Estado. Os ordenamentos jurídicos,


pelo contrário, por se originarem de normas independentes, são diferentes.57

O que determina as regras que compõem o ordenamento jurídico internacional é a


norma advinda do que convencionaram os Estados. Essa norma internacional só poderá
ser alterada pela vontade daqueles Estados que a convencionaram, já que são
obrigatórias, de acordo com o princípio da "pacta sunt servanda".

56
QUADROS A. G,P,F. Manual de Direito Internacional Público, editora almedina Coimbra 3 edição,
p.84, 2009
57
Ibdem.
Pelo contrário, as normas internas são passíveis de modificação pela vontade única que
as constitui, vale dizer, a vontade do legislador. Essa distinção entre os dois
ordenamentos consiste no facto de que cada norma terá sua validade no âmbito do seu
respectivo ordenamento. É preciso ressaltar que, de acordo com a teoria dualista de
Anzilotti, não é admitida a possibilidade de conflito entre a lei interna e o tratado
internacional, já que são distintas.

Dessa forma, um acto poderá ser válido na ordem interna e inválido na ordem
internacional. Nessa visão dualista, não há possibilidade de haver conflito entre a lei
interna e o tratado internacional, a não ser que a norma internacional se convertesse em
norma de direito interno, caso em que o conflito seria resolvido pelo princípio "lex
posterior derrogat priori".

Portanto, Anzilotti encontrou a justificativa do dualismo no facto de uma norma


posterior derrogar uma norma que introduz um tratado internacional na esfera do direito
interno, sustentando, ao mesmo tempo, a supremacia do direito interno.

3.3.2. Teoria Monista


A teoria monista surge como reação ao ideia defendida por Triepel. A teoria monista
não aceita a existência de duas ordens jurídicas distintas e autônomas. Os monistas
sustentam a tese da existência de uma única ordem jurídica, isto é, de um sistema
universal. Para os adeptos dessa teoria, tanto o direito internacional como o direito
interno constituem um único sistema jurídico, sendo que uns defendem a primazia do
ordenamento interno, e outros defendem a primazia do ordenamento internacional.
Na perspectiva de HEGEL” que considera o Estado como tendo uma soberania absoluta
e incontestável o monismo foi elaborado sobre o princípio da subordinação, em que as
normas jurídicas se acham subordinadas umas as outras”58.

É a partir dessa teoria que Kelsen formulou em sua Teoria Pura do Direito a conhecida
pirâmide de normas”. Pode-se resumir a lógica da pirâmide dizendo que uma norma tem
a sua origem e se válida pela norma que lhe é hierarquicamente superior, onde a norma
que está no topo da pirâmide é denominada grundnorn a norma fundamental.

A doutrina monista contradiz todas as premissas defendidas pelos dualistas. Cabe aos
monistas negar que os sujeitos dos dois ordenamentos jurídicos, Estado – indivíduos,

58
____Manual de Direito Internacional público, p. 85, 2009.
sejam distintos. A teoria monista é considerada actualmente pela grande maioria dos
internacionalistas como a doutrina predominante, sendo adotada por algumas
Constituições.

Dentro da doutrina monista, apesar de existirem algumas variações, a maior parte dela
advém da escola de Viena, chefiada por Kelsen. O Monismo, no entanto, se subdivide
em duas principais posições. São eles, o monismo com a primazia do direito
internacional e o monismo com a primazia do direito interno; A primeira corrente ainda
é dividida em monismo radical e monismo moderado. Na verdade, o monismo pode
possuir três posicionamentos diferentes: O primeiro determina que ambos
ordenamentos, Estatal e internacional, estão em níveis iguais. O segundo defende a
anterioridade e a primazia do direito interno e o terceiro, sustenta a primazia do direito
internacional.

Resulta que monismo com primado no direito interno surgiu com a filosofia Hegeliana
do Estado, onde este possuía uma soberania absoluta, não admitindo a possibilidade de
ficar submisso a qualquer outro sistema jurídico. Para os seguidores dessa corrente, o
Direito internacional público seria uma espécie de Direito estadual público externo,
sendo parte do direito do Estado, ou ainda.

Dessa forma, o Direito internacional tem origem nas leis internas dos Estados a que se
vincula, subordinando-se a elas. Sendo a lei interna definida conforme a vontade de
cada Estado, as normas internacionais também serão válidas de acordo com a sua
vontade.

Portanto, a teoria monista com primado no Direito internacional foi desenvolvida pela
escola de Viena através de vários autores.

Para KELSEN… “essa teoria representa actualmente a corrente doutrinária dominante,


defendendo a unidade da ordem jurídica nacional e internacional”59.

Todavia, nessa teoria, a ordem jurídica interna está subordinada à ordem jurídica
internacional. Portanto, as normas internacionais acabam determinando a competência
das normas internas, prevalecendo sobre estas, cabendo tão somente ao legislador
averiguar se há conflito entre as duas.

59
___ Manual de Direito Internacional público, p. 85, 2009
Ainda assim, o monismo, com primado no Direito internacional, dividiu-se em duas
correntes: a primeira denominada monismo radical e a segunda denominada monismo
moderado. Para o monismo moderado, se houver conflito entre normas internas e
normas de Direito internacional, esta divergência não implicará na invalidação daquelas,
podendo apenas gerar sua ineficácia ou uma responsabilidade internacional para o
Estado. Para essa corrente, não há uma relação de validade, o que traz ao legislador uma
maior liberdade de actuação. Pelo contrário, para o monismo radical, as normas de
Direito interno somente serão válidas se respeitarem as normas de Direito Internacional.
Se uma norma interna entrar em conflito com uma norma internacional, ela será
considerada nula de pleno direito. Segundo os defensores do monismo radical, existe
uma ordem jurídica que delimita a soberania dos Estados, que passam a possuir uma
ordem parcial.

3.4. Tratamento das Convenções internacionais em Moçambique


Nos termos do n.º1 do artigo 18 da CRM 2004, “os tratados e acordos internacionais,
validamente aprovados e ratificados, vigoram na ordem juridica moçambicana após a
sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado
Moçambicano”
Em comparação ao n.º 2 do mesmo artigo que prevê que “as normas do direito
internacional têm na ordem juridica interna o mesmo valor que assume os actos
normativos infraconstitucionais emanados da Assembleia da República e do Governo,
consonante a sua respectiva forma de recepção”.

Resulta que este artigo e uma concretização do artigo 4 n.º2 da CRM ao determinar que
“o Estado reconehece os vários sistemas normativos e de resolução de conflitos que
coexistem na sociedade moçambicana, na medida em que não contrariem os valores e os
principios fundamentais da Constituição”.

Isso mostra que o legislador estava intencionalmente a determinar a subordinação ao


texto constitucional de todas as fontes de direito internacional capazes de produzir os
efeitos no nível interno. Esta posição do legislador representa uma opção surpreendente,
pois e incompatível com as as características do direito internacional e inadequada a
inserção da republica de Moçambique no concerto das Nações.

Conjugado o artigo 18 n.º 2 com artigo 144 n.º 1 al. f), resulta que a imposição de
publicidade interna: por um lado textos dos compromissos internacionais; por outro lado
os actos internos praticados no âmbito da confirmação interna do consentimento da
Republica a estar vinculdada internacionalmente.

Nota se que a publicação oficial das convenções internacionais que tenha sido
assumidas pelo Estado moçambicano pode não determinar, contudo, uma produção de
efeitos em termos equivalentes as das fontes de direito de producacao interna.

Com efeito um tratado internacional ou um acordo em forma simplificada so estão em


condições de começar a produzir internamente efeitos quando tiverem começado a
produzir efeitos internacionalmente, em conformidade com o que estiver estipulado no
compromisso em questão. Esta prevenção e particularmente relevante no que concerne
ao s tratados multilaterais, em que as reuniões de ratificação necessária a entrada em
vigor internacional ainda pode estar a decorrer na ocasião em que seja feita a sua
publicação nas ordens jurídicas de algumas das partes.
CAPITULO IV: ANALISE CRĺTICA DO ARTIGO 219 DO NOVO CÓDIGO
PENAL FACE AOS INSTRUMENTOS NACIONAIS E INTERNACIONAIS
SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA
4.1. Instrumentos Legais de Protecção dos Direitos da Criança em Moçambique
Com as três importantes leis para a protecção da criança aprovadas em 2008,
Moçambique torna-se em um dos poucos países de África com um quadro-jurídico
legal, de protecção da criança. Trata se da Lei de Promoção e Protecção dos Direitos da
Criança, a Lei de Prevenção e Combate ao Tráfico de Pessoas e a Lei da Organização
Tutelar de Menores, vêm reforçar e diminuir as lacunas existentes no quadro jurídico
moçambicano, que colocavam a criança numa situação de vulnerabilidade. Mediante as
três leis acima enumeradas, iremos dar mais ênfase a Lei de Promoção e Protecção dos
Direitos da Criança porque esta vai ao encontro do nosso trabalho.

4.1.1. Lei de Promoção e Protecção dos Direitos da Criança


A Lei de promoção e protecção dos direitos da criança (Lei nº 7/2008 de 9 de Julho)60,
no seu artigo 1, estatui que, a tal lei, tem por objecto a protecção da criança e visa
reforçar, estender, promover e proteger os direitos da criança, tal como se encontram
definidos na constituição da República, na Convenção sobre os Direitos da Criança, na
Carta Africana sobre os Direitos e o Bem-estar da Criança e demais legislação de
protecção a criança.
De acordo com o artigo 3 da Lei acima citada, considera-se criança toda a pessoa menor
de 18 anos de idade e assim, de acordo com esta Lei, a criança goza de todos Direitos
Fundamentais, inerentes a pessoa humana, assegurando-lhes todas as oportunidades e
facilidades, a fim de lhes assegurar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual,
e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Assim, relativamente ao tratamento negligente, discriminatório, violento e cruel, o
artigo 6 da Lei n.º 7/2008 de 9 de Julho, estabelece que, nenhuma criança pode ser
sujeita a tratamento negligente, discriminatório, violento e cruel, nem ser objecto de
qualquer forma de exploração ou opressão, sendo punidos por lei, todos os actos que se
traduzam em violação, o artigo 64 da presente Lei, acrescenta que o Estado deve
adoptar as especiais medidas legislativas e administrativas com vista a proteger a
criança contra qualquer forma de abuso físico ou psíquico, maus tratos e tratamento

60
Idem
negligente por parte dos pais, tutor, família de acolhimento, representante legal ou
terceira pessoa.
Sendo, dever da família, da comunidade, da sociedade e do Estado, assegurar a Criança,
a efectivação dos Direitos referentes a vida, a saúde, a segurança alimentar, a educação,
ao desporto, ao lazer, ao trabalho, entre outros, assim, o artigo 48 da Lei 7/28 de 9 de
Julho, diz que, todo o cidadão e as instituições em geral tem o dever de prevenir a
ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança.

4.2. Análise dos Diplomas Legais Nacionais e Internacionais Sobre a Protecção das
Crianças
Nos termos do n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 7/2008 de 9 de Julho, que aprova a Lei de
Promoção da Protecção dos Direitos das Crianças, considera-se criança toda a pessoa
menor de 18 anos de idade.
Este conceito de criança é também estabelecido nos demais diplomas internacionais de
protecção dos direitos da criança, tal como na Convenção sobre o Direito da Criança,
Carta Africana sobre os Direitos e o Bem-Estar da Criança e demais legislação de
protecção à criança.
Neste contexto, a violência contra menores será aqui entendida como todas as formas de
violência física ou mental, dano ou sevicia, abandono ou tratamento negligente, maus
tratos ou exploração, inclusive violência sexual, violência contra crianças e o uso
intencional da força, aplicadas a todo o ser humano ou indivíduo menor de 18 anos. Esta
definição para além de explorar diferentes dimensões do problema, está em consonância
com os dispositivos normativos internacionais e nacionais.
Ainda, o n.º1 artigo 47 da Constituição 2004 estabelece que as crianças têm direito à
protecção e aos cuidados necessários ao seu bem-estar. O n.º 3 do mesmo artigo
acrescenta que todos os actos relativos às crianças, quer praticados por entidades
públicas ou privadas, devem ter em conta o superior interesse da criança. É nosso
entender que isso se estenda aos actos legislativos.
Por outro lado, a Convenção Internacional dos Direitos das Crianças e a Carta Africana
sobre os Direitos e Bem-estar das Crianças, ambas ratificadas por Moçambique, bem
como a legislação nacional, definem como crianças todas as pessoas menores de 18
anos.
Para além disso, o artigo 18 da Constituição 2004, estabelece que os tratados e
convenções internacionais, uma vez aprovados, vigoram na ordem jurídica nacional. Tal
é o caso da Convenção Internacional dos Direitos das Crianças e a Carta Africana sobre
os Direitos e Bem-estar das Crianças.
No entanto, no Código Penal aprovado, algumas disposições relativas a protecção das
crianças violam os princípios acima apresentados, senão vejamos:
O artigo 219 do Código Penal estabeleceu uma moldura penal mais pesada, por
considerar mais gravoso o crime de violação de menor quando praticado contra
crianças. Entretanto, a infelicidade deste artigo consiste em considerar crianças apenas
os menores de 12 anos, em violação às disposições da Lei n.º 7/2008 de 9 de Julho, que
aprova a Lei de Promoção da Protecção dos Direitos das Crianças e das Convenções
acima referidas, que consideram crianças os menores de 18 anos.
Ainda, o artigo 220 do Código Penal apesar de dar importância a outras formas de
violência sexual contra menores, peca por só proteger as crianças até aos 16 anos,
ficando novamente excluídos os menores até os 18 anos.
Como se pode ver, no concernente a protecção dos direitos da criança, o Código Penal
moçambicano viola de forma clara a Constituição da República e os diplomas legais
internacionais sobre a protecção das crianças, protegendo somente as crianças menores
de 16 anos, sendo excluídos os menores de 18 anos.
Referir ainda que, outro aspecto em que se nota a (discriminação) na protecção dos
direitos dos menores até aos 18 anos, é o previsto no artigo 223 do Código Penal ao
considerar que nos crimes de atentado ao pudor e violação, excepto nos casos de
violação de menor de 16 anos (casos em que a denuncia pode ser feita por qualquer
pessoa), os procedimentos criminais tenham lugar após denúncia prévia do ofendido,
salvo nalgumas circunstâncias.
A gravidade dos crimes contemplados nesta secção justifica que o Estado intervenha
para garantir a punição do agressor, tendo em conta o bem jurídico a proteger (a
dignidade e integridade física e moral do ofendido), daí que se justifique que este crime
seja passível de denúncia por qualquer pessoa (crime público) e não apenas por algumas
pessoas (crime semi-público).
Pensamos que esta disposição é discriminatória não só em função do género (homem e
mulher), mas também discriminatória em termos de direitos das crianças, ou seja,
protege apenas uma parte deste grupo vulnerável deixando de fora outras crianças.
Ao declarar a natureza pública do crime apenas para as crianças menores de 16 anos,
este artigo discrimina de forma flagrante as crianças maiores de 16 anos e menores de
18 anos, ao referir que a denúncia neste caso apenas poderá ser efectuada pelas pessoas
indicadas na lei (refere-se a lei n.º 8/2008, de 15 de Julho, lei da Organização Tutelar de
Menores; lei n.º 7/2008, de 9 de Julho, lei de Promoção e Protecção dos Direitos das
Crianças).
É que as pessoas indicadas na lei, ou seja, os pais, tutores e outros responsáveis pelos
menores nem sempre têm em conta o superior interesse da criança, pelo que o ónus da
denúncia não pode ficar somente a seu cargo, uma vez que se verifica, não poucas
vezes, que essas pessoas quando não sejam elas próprias perpetradoras destes crimes de
violência sexual, são muitas vezes coniventes, tendo em conta uma situação de
dependência económica ou até emocional em relação ao perpetrador.

4.3. A Discordância entre o Código Penal e os Demais Diplomas Legislativos em


Relação a Idade Limite para se Considerar Menor
O Código Penal61 no seu artigo 218,
estabelece de uma forma geral, que aquele que tiver coito cm
qualquer pessoa, contra sua vontade, por meio de violência física, de
veemente intimidação, ou de qualquer fraude, que não constitua
sedução, ou achando-se a vitima privada do uso da razão, ou dos
sentidos, comete o crime de violação, e será punido com a pena de
prisão maior de dois a oito anos.

Já o artigo 219 do mesmo diploma legal, aborda sobre a violação de menores de doze
anos, dizendo que, aquele que violar menor de doze anos, posto que não se prove
nenhuma das circunstâncias declaradas no artigo antecedente, será punido com a pena
de vinte a vinte e quatro anos de prisão maior.
Consequentemente, o artigo 220 do Código Penal, estabelece que quem praticar
qualquer acto de natureza sexual, com menor de dezasseis ano, com ou sem
consentimento, que não implique cópula, è punido com pena de prisão de dois a oito
anos.
Assim, o crime de violação de menor, deveria ter em conta a definição de criança
presente na lei moçambicana e em outros diplomas legais. Pois de acordo com os
artigos acima citados a criança ou adolescente, maior de 16 anos e menor de 18 anos,
fica em situação de vulnerabilidade por a lei penal não dar o devido tratamento a ela.
A nossa Constituição no seu artigo 47, estabelece que as crianças têm o direito a
protecção e aos cuidados necessários ao seu bem-estar e todos os actos relativos as

61
Lei n.º 35/2014 de 31 de Dezembro, que aprova o Código Penal
crianças, quer praticados por entidades públicas, quer por instituições privadas, tem
principalmente em conta o superior interesse da criança62.
Por conseguinte, alguns diplomas legais que abordam sobre a criança, definem quem
pode ser considerado criança, para a Carta Africana dos Direitos e Bem-Estar da
Criança, para os propósitos julgados importantes na Carta, ser uma criança significa,
todo o ser humano com uma idade inferior a 18 anos de idade.
Para a Convenção sobre os Direitos da Criança, no seu artigo 1, criança é todo o ser
humano menor de 18 anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a
maioridade mais cedo63.
A Lei de Promoção e Protecção dos Direitos da Criança estatui que considera-se
criança, toda a pessoa menor de dezoito anos de idade64.
Ao analisar as diferentes legislações parece nos claro que a criança pode ser
considerada como uma pessoa que ainda não completou 18 anos de idade que tem
direito de participar na vida social.

62
Constituição da Republica de Moçambique, Maputo: Plural-Editores, 2004
63
Convenção sobre os Direitos da Criança. Portugal. 1990
64
Colectânea de legislação nacional de protecção da criança. Projecto de Promoção dos Direitos da
Criança. Divulgação da Lei de Protecção da Criança, 2-10. 2009
CAPITÚLO V: DIREITO COMPARADO
1. Portugal
Segundo FAVERO:
Até 1995, os crimes sexuais eram considerados crimes contra os bons
costumes (código penal de 1886) ou crimes contra os valores e
interesses da vida em sociedade (código penal de 1982) passaram a
integrar um capítulo autónomo desde a revisão de 1995. O bem
jurídico que pretende defender a revisão do código penal de 1995 é a
“liberdade sexual”. Os crimes sexuais passaram a integrar duas
secções do capítulo V. A secção I dos crimes contra a liberdade
sexual e a secção II dos crimes contra a autodeterminação sexual, mas
que se trata mais especificamente dos crimes sexuais contra
crianças65.

Assim, a novidade do Código Penal Português, sobre o actual em relação aos anteriores
é a criação de um artigo específico sobre os abusos sexuais de crianças em concreto o
artigo 172.º do Código Penal66 a baixo transcrito:
1-Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a
praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8
anos.
2- Se o agente tiver cópula, coito anal ou coito oral com menor de 14 anos é punido
com pena de prisão de 3 a 10 anos.
3- Quem: a) Praticar acto de carácter exibicionista perante um menor de 14 anos; ou
b) Actuar sobre menores de 14 anos, por meio de conversa obscena ou de
escrito, espectáculo ou objectos pornográficos; c) Utilizar menor de 14 anos em
fotografia, filmes ou gravações pornográficos, ou d) Exibir ou ceder a qualquer
título ou por qualquer meio os materiais previstos na alínea anterior; ou e)
Detiver materiais previstos na alínea c), com o propósito de os exibir ou ceder; é
punido com pena de prisão até 3 anos.
4- Quem praticar os actos descritos nas alíneas a), b), c), d) do numero anterior com
intenção lucrativa é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.
No artigo 174.º o estupro e no artigo 175º os actos homossexuais com menores.
No código penal português, é menor todo aquele cidadão menor de 14 anos de idade,
sendo que, a violação praticada contra este é punido nos termos do artigo 172 acima
referido.

65
FÁVERO, M. F. Sexualidade infantil e abusos sexuais a menores. Lisboa: Clempsi. 2003
66
Código Penal e legislação complementar. Lisboa: Quid Juris. 2004.
Entretanto, a Convenção sobre os Direitos da Criança adoptada pela Assembleia Geral
nas Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de
Setembro de 1990, consagra no seu artigo 1 o seguinte, “nos termos da presente
Convenção, criança é todo o ser humano menor de 18 anos, salvo se, nos termos da lei
que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo”. Logo percebe-se que no
ordenamento jurídico português, é menor aquele cidadão que tiver idade até os 18 anos.
2. Brasil
No concernente ao ordenamento jurídico brasileiro, menção faz-se ao artigo 213.º do
Código Penal Brasileiro, concretamente no crime de estupro, onde se refere que,
“Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a
praticar ou permitir que com ele se pratique outro acto libidinoso” podendo ser
sancionado com um pena que varia entre 6 a 10 anos de prisão.
Já o parágrafo único do mesmo artigo faz menção a questão da idade mínima de 18 anos
para agravar a pena do crime de estupro, ao consagrar que “Se da conduta resulta lesão
corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14
(catorze) anos” será sancionado com a pena de 8 (oito) a 12 (doze) anos de prisão.
Portanto, nota-se que no Brasil a idade de dezoito anos como condição para se
considerar menor é respeitada pelo Código Penal Brasileiro, tanto que agrava a pena
quando o crime de estupro é praticado contra este menor.

3. Moçambique
No Código Penal Moçambicano, como já se fez referência ao longo do trabalho, a
criminalização da violação de menores simplesmente abrange aos menores de dezasseis
anos, agravando-se a pena do mesmo quando for praticado contra menores de 12 anos,
excluindo-se assim e menores de dezoito anos, contrariando deste modo o vertido nos
diversos diplomas nacionais de protecção da criança e internacionais, que consideram
menores as pessoas com até dezoito anos de idade.
CAPITÚLO VI: ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DE DADOS

Definidas as questões e objectivos deste estudo, elaborou-se o corpus de análise com a


respectiva categorização e a definição de unidades de análise. Esta fase se traduz no
trabalhar de todo o material recolhido no decorrer da pesquisa, ou seja, na organização
da informação, de modo à obtenção de respostas ao problema proposto pela
investigação. No que concerne aos dados obtidos através das entrevistas feitas a alguns
juristas da Cidade e Província de Tete.
As questões feitas visavam saber até que ponto os factores socioculturais contribuem
para a ocorrência da violação sexual. Pergunta esta que teve como maior parte de
respostas a de que, os factores como as baixas condições de vida, o fraco grau de
escolaridade por parte da população, os casamentos prematuros, são alguns dos aspectos
mais levantados como sendo os que contribuem para a ocorrência da violação sexual do
menor.
Deste modo ficou claro que os factores socioculturais contribuem sim para a ocorrência
da violação sexual de menores, facto este que causa um grande constrangimento na
sociedade, visto que os menores vítimas de violação sexual tem sido pessoas com
condições de vida difícil e que por vezes a família é obrigada a sujeitar o menor a casos
de violação sexual para poder ter vida melhor. Ainda mais, as famílias obrigam os
menores casarem-se enquanto ainda são menores, por forma a servirem de fonte se
sustento para as famílias.
No entanto, violação sexual contra menores raramente é objecto de denúncia,
mantendo-se a impunidade dos agressores, principalmente quando ocorre no seio
familiar e escolar. Por outro lado, o trabalho revela que os artigos que descrevem o
abuso sexual contra crianças privilegiam os espaços públicos, conferindo pouco
destaque aos que são perpetrados em contexto familiar.
Assim, a violação sexual intra- familiar como o mais comum, o estudo revela que,
muitas vezes, este é secundado pelo abuso sexual nas escolas, sendo as raparigas o
grupo mais atingido. Mais uma vez estamos perante uma grande ambiguidade
conceptual, pois se, por um lado, a amplitude na definição de abuso sexual implica que
toda e qualquer forma de ofensa tendo como alvo o sexo cabe dentro dessa definição,
por outro lado, quando se analisa a prática do abuso sexual ele aparece sempre
relacionado com violência ou mesmo violação sexual.
Outro aspecto questionado aos juristas consistia em saber, que implicações existem pelo
facto do Código Penal apenas considerar crime a violência praticada contra menores de
16 anos, estando excluídos desta disposição legal os menores de 18 e 17 anos.
Quanto a esta questão, os nossos entrevistados foram unanimes em afirmar que, este
dispositivo é ilegal e discriminatório, visto que, viola a Declaração Universal dos
Direitos da Criança, a Convenção Internacional dos Direitos da Criança (ratificados por
Moçambique) e os diplomas legislativos nacionais que versam sobre os direitos das
crianças, visto que, a legislação retro mencionada refere que, considera-se criança todo
aquele cidadão que tiver menor de 18 anos, logo, o Código Penal ao proteger apenas as
crianças menores de 16 anos, está a deixar os menores de 18 e maiores de 16 anos a sua
sorte, pois, deixa de ser crime a violação sexual praticada contra estas pessoas, fazendo
deste modo com que estas pessoas estejam em alto risco de ser vitimas deste crime.
Concretamente pode dizer-se que, o artigo 219 do Código Penal estabeleceu uma
moldura penal mais pesada, por considerar mais gravoso o crime de violação de menor
quando praticado contra crianças. Entretanto, a infelicidade deste artigo consiste em
considerar crianças apenas os menores de 12 anos, em violação às disposições da
Constituição da República e das Convenções acima referidas, que consideram crianças
os menores de 18 anos.
Ainda, o artigo 220 do Código Penal apesar de dar importância a outras formas de
violência sexual contra menores, peca por só proteger as crianças até aos 16 anos,
ficando novamente excluídos os menores até os 18 anos.
Como se pode ver, no concernente a protecção dos direitos da criança, o Código Penal
moçambicano viola de forma clara a Constituição da República e os diplomas legais
internacionais sobre o direito das crianças, protegendo somente as crianças menores de
16 anos, sendo excluídos os menores de 18 anos.
Nestes termos, fica claro que há uma necessidade intrínseca de que deve os artigos
acima referido do código penal devem ser alterados, por forma a poder englobar-se na
protecção contra a violação sexual todos cidadãos considerados menores, sem distinção
nenhuma, podendo só assim os artigos acima referidos exercerem o seu papel de garante
ou protecção dos menores.
CONCLUSÃO

A questão da violação sexual contra crianças em Moçambique tem sido visto sob várias
vertentes desde o particular até o judicial, isto é, desde ao facto de que a violação ocorre
em ambiente familiar até ao momento em que o caso é levado aos tribunais. Poucas são
as famílias que têm denunciado essa prática; quer seja para manter a honra da família,
preservar dignidade da menor violada e por vezes calam-se por receio, de que venha-
lhes acontecer uma retaliação em consequência da denúncia.
Ora, com a entrada em vigor do novo código penal, poderá de alguma forma favorecer
os prevaricadores deste tipo legal de crime, pois, este diploma legal não acautela a
menoridade no verdadeiro sentido da palavra bem nos termos consagrado ao nível dos
vários diplomas legislativos nacionais e internacionais ratificados por Moçambique.

No concernente aos pressupostos estabelecidos nos objectivos previamente


determinados, foi possível conhecer um pouco mais sobre o tema, tendo- se percebido
que, os factores socioculturais são uma das principais causas da violação sexual, tanto
que foram percebidos como causando violência através do trabalho infantil, casamentos
prematuros, abuso sexual, violência física e migração de menores.

Entretanto, os efeitos dos factores socioeconómicos para a ocorrência da violência são


reconhecidos pela OIT para o qual o trabalho infantil em Moçambique ocorre em
função das dinâmicas das relações de género e pode ser identificada a partir de
categorias de análise como idade, sexo e tipo de actividade em que se envolvem e
escolaridade que possuem, a condição social das famílias onde as crianças vivem
(pobreza e HIV e SIDA) e as regiões (Sul, Centro, Norte) onde vivem. Para este estudo,
em Moçambique, os valores culturais não só encorajam o trabalho infantil, como
permitem encarar com normalidade a realização de actividades laborais por crianças
mais novas.
Ainda no conjunto dos factores culturais os ritos de iniciação são considerados um
motivo à violência contra menores que ocorre a nível comunitário pois estes agem como
obstáculo à frequência dos menores nas escolas. Estes afastam-nas do ambiente escolar
para que estas participem destas cerimónias. Para além disso quando os menores
regressam dos ritos de iniciação, muitos deles já não vão a escola, porque são
considerados adultos pelas normas da comunidade, procurando por isso exercer outras
tarefas.
Ainda, os números oficiais existentes quanto ao abuso sexual de menores na
comunidade moçambicana podem estar muito distantes dos reais, visto os aspectos
negativos associados ao sistema judicial, nomeadamente, a vitimação secundária, o
estigma social, as lacunas legislativas e o familiarismo marcam a realidade
moçambicana.
No que concerne aos factores de risco e protectivos da violação contra menores, tem-se
a dizer que, as escolas constituem outros espaços onde ocorre a violência. Os ambientes
educacionais expõem muitas crianças à violência e podem ensiná-las a praticar actos de
violência. A violência nestes ambientes é cometida por professores e outros
funcionários de escolas e pode incluir castigos corporais, formas cruéis e humilhantes
de punição psicológica, violência sexual e baseada no género e intimidação. Embora
haja evidências das outras formas de violência mencionadas, em Moçambique a forma
de violência na escola mais documentada é a violação e/ou abuso sexual, dado as suas
implicações para a preservação e garantia de direitos das crianças.
A comunidade constitui fonte de protecção e é ambiente de violência contra menores. A
violência na comunidade pode assumir a forma de violência física e sexual, raptos e
tráfico. Crianças mais velhas ficam expostas a um risco maior de violência na
comunidade e as meninas ficam expostas ao risco da violência sexual e da violência
baseada no género também. Em contextos de Moçambique as crianças são vulneráveis a
violência sexual e exploração por parte de membros da comunidade. A violência sexual
é mais cometida por alguém que a criança conhece, como familiares ou adultos em
cargos de confiança mas ela também pode ser cometida por pessoas que a criança não
conhece. Ela assume outras práticas como a prostituição infantil, os casamentos e
gravidezes precoces.
O trabalho infantil é outra forma de violência identificada. O problema está associado,
embora não esteja restrito, à pobreza, à desigualdade e à exclusão social e outros
factores de natureza cultural, económica e de organização social de produção das
comunidades.
Entretanto, através do presente trabalho podemos também constatar que, estabelecendo-
se como crime no ordenamento jurídico moçambicano, apenas a violação praticada
contra menores até 16 anos, estar-se-á a desproteger os menores entre os 17 a 18 anos,
violando-se deste modo os seus direitos, previsto, tanto na CRM 2004 como nos
diversos diplomas legislativos internacionais, ratificados por Moçambique.
Ainda mais, com esta violação, os menores entre os 17 e os 18 anos ficam mais
vulneráveis e sujeitos a todos riscos de serem vítima de violação, pois, sendo do
conhecimento dos malfeitores que o código penal não sanciona a violação praticada
contra as crianças entre os 17 e 18 anos, pode impulsionar cada vez mais a prática deste
tipo de crime.

:
Recomendações
Em forma de recomendações para as constatações acima apresentadas, temos a
apresentar as seguintes:
 Que sejam alterados os artigos 219 e 220 do Código Penal, de forma a poder
acolher-se a questão da idade de 18 para considerar-se criança no crime de
violação de menores;
 Continuar os esforços na criação de procedimentos de justiça que não vitimizam
as todas as crianças vítimas de violência e abuso sexual;
 Que seja criado um sistema de serviço especializado de protecção e
aconselhamento legal para casos de violação sexual de crianças;
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