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Eugenio Raúl Zaffaroni

Em busca das
penas perdidas
A perda de legítímidade
do sistema penal

Traduçâo:
Vânia Romano Pedrosa
Amir Lopes da Conceiçäo

.
Editora Revan

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Copyright © by Eugenio RaW Zaffaroni
Título original: Em busca de las peiias perdidas
Ediar Sociedad Anónima Editora Comercial,
Industrial y Finaoceira,
Buenos Aires. 1989

'lodos os direitos oeservados no B rasil pela Edìtora


Revan Ltda. Ncohutna patle desta Suniário
puhlieaçao poderti ser reproduzida, seja por lacios
trecünicos, clLtrûocos ou 'ja cópta
xerogritica seni a autorizaçúo prévia da editora.
ApresentaÇáO
Cooa/eriiuçdit editorial
Michel Elias Jorge
Parte I
Ciqa e ¡)t?)(/LiÇOo grcj 't'i, A deskgithnação do sistema penal e a crise dß discurso
Ricardo Gosi
jurídico-penal 9
........................................................................................

Capítulo Primeiro A situaçâo crítica do penalismo latino-


-

Rei'ixdo de pnn:s americano 11


...............................................................................................
Miguel Villela
Dalva M. Aparecida da Silveira Capítulo Segundo As fontes
- teóricas da deslcgitimaçäo
nospaíses centrais 45
...............................................................................

Iloxtraçt7o de copa
"A priso" de Claudio Tozzï, in "Obra em eonslritçio" Parte II
Editora Revan, 1989
Resposta à deslegitimaçáo e à crise 71 ..............................................

Capítulo Terceiro Teorias e atitudes centrais e marginais


-

C'a mpo.riçd n
como resposta à deslegitirnaçào e à crise 73 ....................................

Pixel Sislemas e Compulaço Gráflca


Capítulo Quarto Necessidade e possibilidade de urna
-

respostamarginal 117
..............................................................................
/rnpre.r.väo
Ehal

CIP-Brasil. Catalogaçäo-na-Foole Parte Ill


Sindicato Nacional dog Editores de Livros, RJ.
A construçáo do discurso jurídico-penal a partir do
Z22c Zaffaroni, Eugenio Raul. 927-
realisrnomarginal 179
.............................................................................

Ein busca da penas perdidas: a perda da lcgitiiisidadc do sistema emìall Capítulo Quinto - Um modelo construtivo para o discurso
Eugenio Raul Zaft'aroni: traduçao Vani:m Romnano Pedrosa. Aittir Lopci sIa Conceiçño.
Rio de Janeiro: Revan, 99l
jurídico-penal náo legitimante: o direito penal hurnanitário
5' ediço,janeiro de 2001
atualda política 181
.................................................................................

Capítulo Sexto A limitaçâo


- da violência seletiva pela
Traduço de: En busca de las penas perdidas.
chamada "teoria do delito" 245
...........................................................
ISBN 85 -7106 -032-0

I, Direimo penal - Filosofia, 2, Lcgitimidade (Direito pena». I. Titulo

97-0473 CDU -343.01

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Apresentaçáo da Ediçâo Brasileira

Aos professores latino-americanos de direito penal que


iniciavam sua carreira nos anos sessenta se consentia urna
pobre aventura intelectual, resumida no aprendizado - em
italiano e alemâo - da dogmática jurídico-penal, ao quai se
agregavam modestas excursòes a temas de filosofia do direito
que tangenciassem algum pilar de nossa torre de marfim.
Profligando o inimigo dócil das construçñes legislativas do
positivismo criminológico, que tanto influenciara o con-
tinente, incidíamos, pela via linear do tecnicismo jurídico à
Rocco, ou pelos caminhos mais elaborados do neo-kantismo à
Weizel, nurn outra positivismo reificador e alienante. Salvo
intuiçóes ou rebeldias bem circunstanciadas, ninguém acusava
frustraçöes teóricas: afinal, nosso afazer integrava outra
mundo, e se nosso mundo rendilbado e fantasmagórico servia
mais para afligir alunas do que para evitar penas sem prévia
cominaçäo, a culpa naturalmente era deste mundo. Ao ser o
que 6 do ser. O jurista era um fingidor de fa7er inveja n pneta
de Fernando Pessoa.
Enquanto isso, nossos sistemas penais funcionavam da
maneira mais irracional, bárbara e genocida. Adoutrina da
segurança nacional, que fundamentou as saninárias
ditaduras latino-americanas, convertiarn o_opositor político
em "inimigo interno" mediante urn processo de
desqualificaçao jurithca, técnica logo absKidïeutUuiidi

grupos informais da vigilância ao exniocçjaboram


mepqs eufemisticamente no formidy4pcesso de controle,
discriminaçâo e exclusáo em nossas sociedades.
Raúl Zaffaroni é nao apenas o mais destacado penalista
dessa geraçäo, corno o mais influente revisor daquela atitude
que introduziao jurista, por um buraco metodológico, no país
das maravilhas. Sen "Em busca das penas perdidas" contém
uâo só uma resenha crítica exaustiva de todas as direçóes

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teóricas que produziram a crise de legitimidade do discurso
jurídico-penal, mas também uma contribuiçáo absolutamente
brilhante, comprometida radicalmente corn a condiçäo de-
pendente e periférica da América Latina (concebida, perante
o processo original colonialista, como "instituiçäo de
seqüestro" em sentido foucaltianp). Percebendo o exercício
do poder penal como socialmente configurador e nao pura-
mente repressivo, Zaffaroni nos habilita a compreender
menos idealisticamente a funâo dos sistemas penais nas
sociedades de classe em geral, e nas latino-americanas em
par(ìcular. I.

Ocasionalmente afastado da universidade, como outros


conipanheiros chamados para um esforçode transformaçáo (e
o meihor exemplo é a notavel professora Lola Anlyar de
Castro, hoje Senadora na Venezuela), rejubilo-me por (er Para Louk Huisman
colaborado para que os juristas, criminólogos e cientistas
sociais brasileiros tivessem acesso ao mais criativo trabalho de
Rat! Zaffaroni.

Nilo Batista

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Apresentaçáo

urn panorama cra da desk-


sistema penal e urna proposta de
uLrelto penai. u jeitor 'ogo perecoera a enrase na iunuanientaçao
antropológica do discurso jurídico-penal exposta por nós em obras
aiteriorcs, incorporando agora dados da realidade social e encar-
regando-nos de críticas reveladoras do exercício de poder do sis-
terna penal. Este procedimento exige, é claro, o abandono da
preferência preventista especial antes mantida, desembocando em
outro tipo de análise que, apesar de nossa relutância a este tipo de
qualificaçöes, atrevenlo-nos a denominar de realismo jurídico-
penal marginal.
Portanto, estas páginas são urna espécie de ensaio de realismo
jurídico-penal a partir do ponto de vista de urna regiao marginal do
poder planetário, assumindo um itinerário de vários anos, cujas
etapas forant parcialmente expostas em trabalhos breves e disper-
sos que, em razáo dos equívocos derivados da limitaçáo temática
ou da imaturidade da idéia, sofreram aqui urna revisáo orgánica,
em forma de enaio, para desafiar o desuso deste estilo. Um desen-
volvimento posterior de nossa análise será realizado em urna apro-
xirnaçâo à criminologia1 e na reelaboraçáo de nosso Manual,
tarefas nas quais estarnos empenhados.
Nos quinze anos transcorridos desde que esboçamos a estru-
tura apresentada no Manual e no Tratado2, intensificou-se a crise
de legitimidade do sistema penal, refinaram-se os instrumentos
críticos e aprofundaram-se as contradiçóes e antagonismo na
realidade latino-americana3, o que - devido à experiência que nos
proporcionou a direçáo do programa sobre "Sistemas Penais" do

1. T.irnaversâo provlsória dos primeiros capítulos foi publicada cm 1988: CriminologIa.


Aproxñnación desde un margen, Ed. Temis, Bogotá.
2. ZAFFARONT, Eugenio Raúl. Manual de Derecho PenaL Pane Generai. Buenos Aires,
Ediar, 1986 e ZAFFARONT, E. Raúl.
IA Argentina contribuli, para este panorama corn sua tristíssirna quota de crueldade.
Também multo nos fez retletir o incendio do Palácio de Justiça de Bogotá.

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Instituto Interamericano de Direitos Humanos4 contribuiu notoria- a partir de urna perspectiva atual, rnarcaram nosso pensamento e
mente para nossa (re)análise do discurso jurídico-penal. atitudes de modo permanente6.
Com o ricorsi do organicismo (sob a roupagem de "funciona- Agradecemos ao Prof, Francesco Pallazzo, que nos hospedou
lismo sistémico") e do contratualismo (especialmente na versäo na Facoltà de Giurisprudenza, na Università di Firenze, em maio
anglo-saxônica), acreditamos que a tendência atual dirige-se ape- de 1988, facultando-nos, generosamente, o uso do material biblio-
nas à retomada de veihas ficçöes originárias em forma reiterativa. gráfico da Universidade.
-Diante desta situaçäo de extrema pobreza fundamentadora e Ja nos disseram pue. com este ensaio. escapamos do sistema
dis críticas ireveladoras que desacreditarn o prOprio saber jurídico,
pretendemos sustentappibilidade de reconstpçäpda dogma-
pário, o que, de certa forma, é verdade. Talvez seja este urn
ensaio crético, urna irreverência ou um atrevimento: estamos cons-
tica jurídico-penal de acordo corn as diretrizes de um direito penal cientes de que a descriçáo da realidade do exercício do poder dos
garantidor e ético, assurnindo plenamente a realidade de poderJo sistemas penais em nossa regiâo marginal latino-americana e a
jstemapj iideslegítimaçäo, ou seja, admitindo àiài[o tentativa subseqüente de reconstruir dogmaticamente a teoria
proveniente do abolicionismo Ipii do "minimalismo penal", se se penal a partir desta realidace levam-nos de encontro a postulados
p1firchamar"Direito Penal" ao remanescente). Aventuraiid- ampiamente reiterados do saber penal.! Somente o nível de violên-
nos por este caminho, depararno-nos com uñi modelo "iiifejiido" cia a que assistimos e sua trágica progressâo fazem-n,os tornar a
de direito penal e de criminologia de corte diferente, corn urna ética decisâo de "sair do sistema planetario". E possível pue nâo se trate
básica, da quai derivamos a tática doutrinária e jurídica, e corn de±sair" e, sim, de reconhecer que estäo nos deixando de fora. pp
elementos para urna cuidadosa reconstruçäo das garantias, na quai ajjlguer mancira, assumir conscientemente a condiçäo de mar-
nos utilizarnos do direito humanitario como fio condutor.iLogica-
gjl é pressuposto iniludível pentarsuasuperaçäo.
mente, náo afirmamos ter percorrido a totalidade deste caminho e,
talvez, nem mesmo se trate de urn caminho mas, apenas, da indica- Faculdade de Direito e Ciências Sociais.
çào do lugar por onde poderia iniciar-se a análise. Universidade de Buenos Aires
Embora possíveis erros sejam de nossa exclusiva responsabili- E.R.Z
dade, muito do que aqui apresentamos ¿ produto de diálogos corn
colegas contemporáneos5 e, também, de diálogos mais distantes
que, apesar de nào poderem, por sua circunstância, abordar o terna

4. Referirno-nos em especial às contribuiçöes de penalistas e crhninólogosiatino-arneiicanos


e de outras regiôcs que colaboraram, ou ainda colaborarn, corn este Programa, e que
estiveram presentes nos seminários de Sao José, 1983; Bogotá, 1987; Buenos Aires, 1985;
Rio de Janeiro, 1985; Salvador, Bahia, em 1988. Foram aqui retomadas algumas iddias
expostas no Sistemas Penales y Derechos Humanos en América Latina (Informe Final),
Buenos Aires, Ed, Depalma, 1986.
5. Toda mençâo seria injusta, porque as omissöes seriam inevitáveis, conquanto nao
possamos esquecer os fornes de Alessandro Baratta, Saarbrücken; Louk Huisman,
Roterda; Antonio Beristain, San Sebastian; Manuel de Rivacoba y Rivacoba, Córdoba;
Lola Aiyar de Castro, Maracaibo; Rosa dei Olmo, Caracas; Emilio García Méndez, 6. Guardaremos sempre, era nossa memóría, a lembrança de Alfonso Quirós Cuarón,
Buenos Aires; Eduardo Novoa Monreal, Santiago; e Elías Carranza, Sao José. Giuseppe Bettiol e dc Blasco Fernández de Moreda.

6 - 7

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FARTE I

A DESLEGITIMAÇÄO DO
SISTEMA PENAL E
A CRISE DO DISCURSO
JURÍDICO-PENAL

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u

CAPÍTULO PRIMEIRO

A S1TUAÇÂO CRÍTICA DO PENALISMO


LATINO -AMERICANO

I. AS "PEINES PERDUES" -.- II. LEGITLMIDADE E


LEGALIDADE I. A utópica legitimidade do sistema
penal. 2. A egitimidade nâo pode ser suprida pela lega-
lidade. 3. 0 sistema penal nao atua de acordo corn a
legalidade. 4. A legalidade neni mesmo & respeitada no
ambito do sistema penal Iorrnal. 5.0 exercfcio de poder
abertamente ilícito por parte do sistema penal -111. A
PERVERSAO IMOBILIZA O IDISCURSO JURÍDICO-
PENAL -IV. SIGNOS TEÓRICOS DA SITUAÇÁO
CRÍTICA NA AMÉRICA LATINA. 1. Crítica ao direi-
to. 2. Preocupaçao corn a lcgitimidade do poder. 3.
Preocupaçäo jus-humanista corn o sistema penal. 4.
Cínica criminológica.
PELOS PROPRIOS FATOS.
- -
V. A DESLEGITIMAÇÁO
VI. O DESPRESTÍGIO
DOS D ISCIJRSOS PENAIS LATINO-AMERICANOS
EM RA/AO DE SEOS VÍNCULOS IDEOLÓGICOS
GENOCIDAS. 1. O discurso jurídico-penal. 2. 0 dis-
curso criminológico.

I-As "Peines Perdues"

ponto de partida desta análise é a constataçáo de urna


O
situaçào crítica no sentido mais ou menos análogo ao de geistige
Situation1, ou seja, ao de urna situaçäo "espiritual", adjetivo que,
aqui, nao tern conotaçâo abstrata alguma, mas que se refere, mais
precisamente, ao conjunto dos aspectos intelectuais e afetivos (ou

1. Würtenberger, Thomas, Die gthtìge Siiucriwz der 4uj3chtn Strafrcchinvicsaachaft 1959.

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e nocionais) de una situaçäo cujo sintoma mais característico é a É bastante claro que, enquanto o discurso jurídico-penal ra-
J) rda de segurança de resposta corn que, há algurnas dócadas, cionaliza cada vez menos -
por esgotamento Øe seu arsenal de
l-t agia o penalismo da regiäo. Sern dúyida, este sintoma representa, ficçöcs gastas - , os orgaos do sistema penal exercem seu poder
l
ecisarnente, a manifestaçäo externa que nos permite reconhecer para controlar um marco social cujo signo é a morte em massa.
situaçáo crítica, nao se podendo, de rnodo algum, pretender Cálculos provenientes de fontes confiáveis estabeleceram que, em
má-lo como a causa -
como alguns pensam de maneira a - nossa regiäo morrem, anualmente, cerca de duzentas mil crianças
u gar-Ihes sua natureza de signo ou sintorna. durante o primeiro ano de vida, em conseqüência de carências
Como ern qualquer emergência, à medida que a situaçäo vai alimentares ou sanitárias básicas; um número igual ou major sobre-
:U tornando insustentável, começa a operar-se a
evasáo mediante
ï« ecanismos negadores que, ern
viverá, masjamais alcançará seu completo desenvolvimento biopsí-
nosso caso, aparentar!' conservar a devido às seqüelas provocadas por essas caréncias.
iitiga segurança de resposta, embora reconheçam-se "problemas" Os múltiplos poderes que sustentam esta realidade letal
:: ic costumam ser deixados de lado,
através de uma delimitaçâo apóiam-se, em boa medida, no exercício de poder dos orgaos dc
.;ì scursiva arbitrária que evita
confrontar a crisç. f05505 sistemas penais que, na maioria dos países da regiáo, ope-
No entanto, os mecanismos de negaçâo nao podem superar ram com um nível tao alto de violéncia que causam mais mortes do
;I.a essência e, por conseguinte, näo ocultarn a situaçáo crítica que
que a totalidade dûs homicídios dolosos entre desconhecidos prati-
it manifesta ern urna progressiva "perda" das "penas", isto 6, as cados por particulares.
nas como infliçáo de dor sem sentido ("perdido" no sentido de
Por outro lado, em relaçao a suas omissóes na tutela da vida,
:nrentes de racionalidade)2. é claro que o sistema penal mostrou-se totalmente incapaz de
Na criminologia de nossos dias, tornou-se comum a descriçäo conter os abortos3 comportando-se, ademais, com total indiferença
operacionalidade real dos sistemas penais em termos que nada a respeito dos homicídios de tránsito, mesmo que o número destes
a ver com a forma pela qual os discursos jurídico-penais su- seja tao elevado que se convertam na segunda causa de mortalidade
em que eles atuern. Em outros termos, a prograrnação normativa em boa parte da rcgiäo e na primeira em algumas faixas etárias
seïa-se em urna "realidade" que nao existe e o conjunto de órgäos jovesis4. Neste panorama, parece que as peines perdues náo re-
lie deveria levar a termo essa programação atua de forma corn- querem uma demonstraçáo apurada,
ì]etamente diferente: O discurso jurídico-penal revela-se inegavelmente como falso,
A verificaçäo desta contradiçâo requer demonstraçoes mais mas atribuir sua permanéncia à má f6 ou à formaçäo autoritária
itt menos apuradas em alguns países
centrais, mas, na América seria un simplismo que apenas agregaria urna falsidade à outra.
ù itina, esta verificaçäo requer apenas urna observaçäo superficial.
Estas explicaçñes personalizadas e conjunturais esquecem que
dor e a morte que nossos sistemas penais semeiam estào tao aqueles que se colocam em posiçöes "progressistas" e que se däo
»rd idas que o discurso jurídico-penal nào pode ocultar seu des- conta da gravidade do fenómeno tambérn reproduzem o discurso
mratamento valendo-se de seu antiquado arsenal de jurídico-penal falso -
uma vez que nao dispöem de outra alter-
acionalizaçöes reiterativas: achamo-nos, em verdade, fiente a um nativa que nao seja esse discurso em sua versâo de "direito penal
iscurso que se desarma ao mais leve toque corn a realidade.

3. Os cálculos sao dit ícieis, mas de acordo corn urna previsâo


arafraseamos o título do famoso livro de Louk fluisman e Jacqueline Bernat de Cells, otimista ocorre um aborto para
cada cinco nascirnentos; numa previsao pessimista, a taxa é de até um para cada trés.
'eùes Perdues. Le système pbwl en quesdon, Pañs, 1982, se bem que nele "peines" tenha 4. Calculam-se, aproximadamente, cern mil mortes anuais. A Argentina registra cinco mil;
caLido diverso de "penas" em castelbano. o
Brasil, em tomo de cinqüenta mil.

13
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;:
de garantia" (ou "liberal", se preferem) - para tentarem a defesa ihante, em quase tudo, ao caminho enpreendido pelos países
dos que caem nas engrenagens do sistema penal corn processados, centrais
cnminalizados ou vitimizados A critica social contemporânea, a crimtnologia da "reaçáo
D O discurso jurídico-penal falso nao é nem um produto de má social" - inclusive sua vertente mais prudente, ou seja, a chamada
"liberal' -, a experiencia do capitahsrno periférico dos últimos
: ,

fe nern de sirnples convcniôncia5, nem o resultado da elaboraçao


:
calculada de alguns gênios malignos, mas é sustentado, em boa cinco lustros, que acabou corn a teoi4a do desenvolvimento progres-
parte, pelaincapacidade de ser substituIdo por outro discurso em SiVO e ççntrífugo aniquilaram a ilusao de transitoriedade do fen-
,
:

razâo da necessidade de se defenderem os direitos de algumas meno Hoje, ternos consciência de que a reahdade operacional de
pessoas. Esta contradiço dá lugar à dificil situaflo "espiritual" do sistemas penais jarnais podera adequar-se à planificaçao do
:

penalismo latino-americano6, que mantén estreita vinculaçâo corn discurso jurídico-penal10, e de que todos os sistemas petals apre-
a trágica vivência do San Manuel d Unmuno3, pma vez que a sentam características estruturais próprias de seu exercício de po-
---- denúncia de seil discurso jûrídiço &om falso pode privá-lo do derque eancelam o discurso jurídico-penal e que, por constituírem
marcas de sua essência, näo podem ser eliminadas, sem a supressäo
i

único instrumento - precárìo, mas instrumento - disponível para a


-.
defesa dos direitos humanos de alguns segmentos soclais. dos ppñ0s sistemas penais7A seletividade, a reproduçáo da vio-
::
Na verdade, sempre se soube que o discursopenal latino-amen- lôncia, a criaçäo de condiçoes para maiores condutas lesivas, a
¡y cano éfalso. A diferença qualitativa neste momento crítico reside corrupção institucionalizada, a concentraçâo de poder, a verti-
:- fl fato de que nao o mais possível saìr deste impasse com o ar- calizaçäo sociai e a destruiçäo das relaçóes horizontais ou cornu-

.H-
-:
.

gurnento da fransitoriedade desta situaçáo e continuar apresentan-


do-a como resultado de meros defeitos conjuntuais de nossos
sistemas penais, defeitos produzidos por nosso subdesenvolvimen-
'0
nitánas nao são características conJunrais, mas estturais do
depoderde todos os sistemas penais.
A situaçâo assinalada impede-nos de emprear a palavra
.. ..
to e recuperáveis mediante um desenvolvimento progressivo, seme- "crise" como ponto de inflexáo do fenómeno de contradiçäo entre
o discurso juridico-penal e a reahdade operacional do sistema
-:
.
penal. Neste estudo, o sentido de "crise" refere-se a uma brusca
:: aceleraçáo do descrédito do discurso jurídico-penal. De modo
: S.Seria extremamente grosseiro afirniar que ele é sustentado pelos que detén a cátedra algum acreditamos que "crise' possa indicar, aqui, um momento a
partir do qual a reahdade operativa de nossos sistemas penais
System.AcomparthonoftheideasofHulsinan,MathLcsènandFaucaul em"Contemporary
comece a se aproximar da programaçäo estabelecida pelo discurso
y
Cnsis
Law Cnme and Social Police Dordrecht 1956 (10) págs 39 e se também The juridico-penal - o que seria absolutamente impossível por ser
.
.r CwwlJuthceSyst asasocialprobian abolifionSpspecdvç Medelingent bet "utópico" ( no sentido negativo da expressäo corno "nao reali-
].
.
Jundisch Instituut van de Erasmus Univcrsite,t Rotterdam, numeros 36 e 37 (no no. 36,
. .

págs. 27 e segs.).
.
6.Quando los referimos ao "penaCismo latino-americano", nAo ignoramos a existéncia dc
I,.-
:
urna minotia ínfima de nivel intelectual nulo que nAo se importa corn as mofles, e que s. Cf. Alessandro BaraEta Criminologia liberali e ideologia della difesa sociaiç cm "La
cresce Corn O poderque a sustenta Nao levamos pois em consìderaçao este reduz,d,ss,n,o Qsu,onc Criminale 1975 janeiro abril págs 7 e segs
guipo de empresános e empregados de ditaduras de agéncias corruptas que nâo chega a Cf Frebisch Rau! CapaalLsmo perifénco Cnszsy bansfornmciór, Mdxaco 1981 nosso
representar um modo dc pensar urna corrente trabaiho Cnrnmalzdady desatrollo enAménca Latina, in Ilanud' anoS, numeros 13 14
7 Refenmo nos no classico e discutidissimo conto cujo personagem centraI 6 um sacerdote
1982 págs 33e scgs
que se torna ateu, mas segue exercendo sau ministério como se Dcus existisse, por adiar 1O.lmaginarnos o que sucedena em qualquer pats ocidental desenvolvido, caso se
que assim ¿ melborparn todos (SwiManue!Bueno mártir em Antología México 1964 conseguisse elet,vamente punir com a pnvaçAo da liberdade conforme oprewsto em Leí
págs 59e todos os turtos a supermercados e todos os casos de posse de entorpecentes proibidos
)

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:;eI"); "crise" para nós, portanto, to momento em que a falsidade
O discurso jurídico-peúal alcança tal magnitude de evidéncia, que poder do sistema penal deve pressupor esta antropologia filosófica
i e desaba, desconcertando o penalismo da regiâo. básica ou ontologia regional do homem.'7
No momento atual, esta afirmaçäo no plano jurídico náo im-
plica urna remissäo livre ao pántano da metafísica e d? opinativo,
.Legitimidade e Legalidade : : embora subsista um enorme campo aberto à discussäo.)Aima deste
âmbito discutível, é inegável que existe urna positivaçáo jurídica
z 1. A utópica legitimidade do sistema penal; O sistema penal t mínima dessa antropologia, materializada nos mais importâMes
I a a complexa mani(estaçäo dopoder social. Por legitirnidade do documentos produzidos pela comunidadejurídica internacional em
5 ema penal entendemos a caracteri'nica outorgada por mattria de direitos humanos,/
j
sua racio-
I i2idade . O poder socialnäo t alp estático, que se "tern" mas algo A consagraçäo positiva de uma ontologia regional do homem
i II se exerce -
um exercício -
e o sistema penal quis mostrar- ( que hem pode chamar-se antropologiajur(dicajus-humanista) im-
O
CO!O um exercício de poder planejado racionalmente. pöe aconsideraçöo do honiem comopessoa.12
:* A construçäo teórica ou discursiva que pretende e*plicar esse
3 :Porpessoa deve-se entender a qualidade que provém da capa-
I knejamento é o discurso jurídïco-penal[î(que também pode cidade de autodeterminar-se em conformidade corn urn sentido7
c imar-se "saber penal" ou, mais formalmente, "ciôncia penal" ou
h. (capacidade que pode ser real ou potencial e, inclusive, pode
ciência do direito penal)JÏe esse discurso jurídico-penal fosse limitar-se à reuniäo dos caracteres físicos básicos dos que podem
t ional e se o sistema penai atuasse em conformidade corn o excrc6-la). Pessoa t o ator -
a máscara do teatro grego -, o
s.sema penal seria legítimo.'j Protaqonista central da tragédia que decide sobre o "hem" e o
No entaMo, a expressâo "racionalidade" requer sempre urna "mal"
icisáo, por ensejar uma alta margem de equívoco. O uso abusvo ' À fundamentaçao antropológica permite estabelecer um nível
sa expressâo obriga-nos a prescindir aqui da totalidade da dis- de crítica à coerência interna do discurso jurídico-penal; o outro -

C são a respeito,ira reduzir o conceito de racionalidade corn nIvel, obviamente, refere-se à nao-contradiçao de seus enunciados lì:

C Ui trabalhamos: entre silFica clara a negaçáo da coerência interna do discurso


a) à coerência interna do discurso jur(dico-penal; jurídico-penal quando se esgrimem argumentos tais como: "assim
b) ao seu valor de verdade quanto à nova operatividade social. diz a lei", "a faz pOrque o legislador o quer", etc. Estas- expressöes
O discurso jurídico-penal seria racional se fosse coerente e são frequentemente usadas ein nossa região e implicam a confissäo - -

vrladeiro.'7 aberta do fracasso de qualquer tentativa de construçáo racional e,


necessário esclarecer que nao acreditamos que a coeréncia por conseguinte, legitiiaadora do exercício de poder do sistema
i Erna do discurso jurídico-penal esgote-se em sua não-contradi- penal.
ç c ou complexidade lógica, mis, ao contrário, requer também urna
f ndamentaçäo antropológica básica corn a quai deve permanecer
e n relaçäo de náo-contradiçâo, urna vez que, se o direito serve ao
b nem -
e nao ao contrário -, a planificaçäo do exercíclo de
i2. Ver Vasak, Kamt, Lasdimensiones internacionales de losflerechos Ifumalios, Barcelona,
1984; nivel continental, Instituto Interamericano de Derechos Humanos, Daniel Zovatto
(comp.), LosDerechosHumanosen el Sistema interamericano, -insuumthtas básicos, 1987.
ii Etimologicamente, "persona" é a máscara do teatro grego. Corn oadvento do cristianismo
e do problema da Trindade surgiu a questäo da substancialidade da pessoa. A partir do
i Cf. Foucault, Michel, Microftsica del podo', Madri, 1979, pág. 144. século XVIII, passa a significar particularmente a relaçáo do hornet consigo mesmo e a
identidade pessoal (Abbagnano, N;, Dizionario di Filosofia Turim, 1980, pág. 666).

1.:
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Mas a racionalidade do discurso jurídico-penal nao pode es-
gotar-se em sua coerência interna. Embora pareça difícil imagiñar sivos de comunicaçAo social, etc. contemplam passivamente o homi-
- em razäo da interdependência recíproca dos extremos con- cídio de milhares de pessoas).
figuradores da racionalidade -, poder-se-ia pensar em um discur- .,
: nfvel "abstrato" do requisito de verdade social j,oderia
so jurídico-penal que, embora esteja antropologicamente chamar-se adequaçûo de mejo a fim, ao passo que o nIvel "con-
fundamentado e respeite a regra da nâo-contradiçäo, nao fosse creto" poderia denominar-se adequaçao operativa m(nima confor-
racional por ser sua realizaçäo social impossível ou totalmente me planificaçáo. O discurso jurídico-penal que nAo satisfaz estes
diferente de sua programaçáo14. A projeçáo social efetiva da plâni- dois níveis é socialmente falso, porque se desvirtua como piani-
ficaçáo explicitada no discurso jurídico-penal deve ser minima- ficaçào (deve ser) de um ser que attic/a nilo é para converter-se em
mente verdadeira, ou seja, deve realizar-se em alguma medida. um ser que nunca será, ou seja, que engana, ilude ou alucinai
discurso jurídico-penal é èiaboradq sòbre1um texto legal o discurso jurídico-penal nAo pode desentender-se do "ser'
explicitando, mediañie os enunciados da! "4ogmátìca', a justifi- e refugiar-se ou isolar-se no "dever ser" porque para que esse
cativa e o alcance de urna planificaçâo na forma do tdever ser", ou "dever ser" seja um "ser que ainda nAo 6" deve considerar o vir-a-
seja, como um "ser" que "nao é" mas qtie"deve ser", ou, o que.ó o ser possível do ser, pois, do contrário, converte-a em um ser que
mesmo, como, um ser "que ainda nAo é". Para que este discurso seja jamais será, isto é, num embuste. Portanto o discurso jurídico-
socialmente verdadeiro, são requeridos dois niveis de "verdade so- penal socialmente falso também é perverso1 torce-se e retorce-se,
:

cial":' -
tornando alucinado uns exercício de poder que oculta ou perturba a
«â) urn abstrato, valorizado em funçäo da experiência social, de percepçäo .0 verdadeiro exerc(cio de poder.
acordo com o quai a planificaçao crithinalizante pode ser con- -Em nossa região marginal, é absolutamente insustentávei a
siderada como o meio adequado para a obtençáo dos fins propostos racionalidade do discurso jurídico-penal que de forma muito mais
(nao seria socialmenté verdadeiro um discurso jùrídico-penal que evidente do que nos países centrais, nAo cumpre nenhum dos requi-
pretendesse justificar a tipiíicaçáo da fabricaçâo de caramelos sitos de legitimidade.
entre os delitos contra a vida); A quebra de racionalidade do discursojurídico-penal arrasta
f b) outro concreto, que deve exigir que os grupos humanos que consigo - corno sombra inseparavel -
a pretendida legitimidade
integrâm o sistema penal operern sobre a realidade de acordo corn do exercício de poder dos órgäos de nossos sistemas pen.ais.'Ä'tuai
as pautas planificadoras assinaladas pelo discurso jurídico-penal i mente, é incontestável que a racionalidade do discurso jurídico-
(nao é socialmente verdadeiro um discurso jurídico-penal quando penal tradicional e a conseqüente legitimidade do sistema penal
os órgäos policiais, judiciais, do rninistério público, os meios mas- tornaram-se "utópicas" e"atempórais": nao-se realizaräo em lugar
algum e em tempo algum.
14. Geralmente, quando o discurso jurídico-penal ¿ utilizado para encobrir graves problemas
sociais, gen indignaçäo, e ternos alo fenómeno em um caso típico, que tenta schar unis
2 - A legititnidade nao pode ser suprida pela legalidade.
soluçao corn base em casosparticulares arbitrariamente selecionadospelo sistema penal.
Em qualquerpafs podem-se encontrar exemplos deste tipo dc Icis que são produto de um "Legalidade" é palavra equívoca. Em sua acepçäo positivista ou
moderno pensamento mágico. "O pintor-caçador do paleolítico pensava que corn a formal refere-se à produçäo de normas mediante processos previa-
pintura possuía a coisa mesma, pensava que corn o retrato do objeto adquiria poder sobre mente fixados.
o mesmo objeto; acreditava que o animal da realidade soffia a mesma morte que o animal
retratado" (Arnold 1-lauser, Historia social de la literatura y del arte. Madri, 1971, tA, pág.
20). Nossos projetos de leis, mov{dos pco desejo de acalmar campanhas pela "lei e pela
IS. No puro sentido etimológico, "perverter" relaciona-se com "verter", isto 6,
ordern", ou corn fins "eleitoreiros", Iembnrn os caçadores paleolíticos.
"transformar", "alterar" dando voltas (cf. J. Corominas,Diccionario Crítico Ethnoló nico
de la Len,ua Castellana, Madri, 1976, W, pág. 716).

'Rl
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As Leonas que se esgotam na legalidade formal permanecem,
F entanto, como que suspensas no vazio, ao nequenerem um ponto
[)
sistema penal nao atua de acordo Coni a legalidade. Da
3 - Q
(![ apoio legitimador do proprio processo de produçäo normativa, pluralidade semântica da expressão "legalidade" pode-se extrair
3 MO que se tem procurado, quer na idéia de "soberano", quer na
outro sentido a operacionalidade real do sistema penal seria
ssuposta e inquestionável legitimidade da "norma fundamental" "legal" se os orgäos que para ele convergem exercessem seu poder
I
(:L1 ainda na regna última de reconhecimento'A busca tern sido, de acordo corn a programaçâo legislativa tal como a expressa o
J:ii eutanto, infrutifera e as Leonas da legalidade formal nao pude- discurso junídico-penalJDentro deste pressuposto, esse exercício
I mi eludir a legitimaçáo do poder mediante seu mero exercício.
de poder apresentaria o caráter de "legaiid.ade" e so entäo entra-
}ä0 se trata da teoria da "pleonexia"7, de acordo com a qual o riam em questáo os argumentos colocados no parágrafo anterior.
i is forte estaria legitimado pelo mero fato de sê-lo, mas sim de Na entanto, nao o neccssário aprofundar as superficiais consi-
(:u a legalidade formal também legitimaria o poder dos fracos deraçoes formuladas no parágrafo anterior porque nein sequer a
() ¡gados. este nIvel prEvio o exercício de poder do sistema penal e'" legal".
No mundo atual - e especialmente em nossa regiäo marginal "Legalidade", no sentido agora utilizado, é urn conceito do
qual o discurso jurídico-penal retira fundamentalmente dois
a insuficiéncia legitimadora da legalidade formal é bastante prin-
(tara, a ponto de nao existir no ámbito dos discursos juridico-pe- cipios; o de legalidadepenal e o de legalidadeprocessual (aos
quais
¡ s nenhuma tentativa séria de legitimar o sistema penal mediante
.a:.
poder-se-la sornar o de legalidade executiva, ainda insuficiente-
i.ra construçáo que exclua Ludo o que näo seja mera cornpletitude mente elaborado) . -

i gica. Oprincípio de legalidadepenal exige que o exercício do poder


Um discurso desta natureza somente poderia pretender punitivo do sistema penai aconteça dentro dos limites jreviamente
cit itir a pergunta sobre a legalidade do sistema penal ou desa- - estabelecidos para a punibilidade (com especial ênfase nos limites
-
cit dita-la como pergunta remetendo a sua desqualiflcaçao rele- da tipicidade, a ponto de se tentar urna distinçào entre
"tipo siste-
mático" e "tipo garantia")18. O principio de legalidade processual
al Oria à categoria pejorativa dos "pseudoproblemas". No entanto,
nportante lembrar que, embora nao existam construçöes acaba- (ou legalidade da açäo processual) exige que os órgäos do
sistema
a:, tIe discursos que pretendem supnir a legitimidade do sistema penal exerçam seu poder para tentar criminalizar todos os autores
j rial corn a legalidade do mesmo, deve-se reconhecer que, fre- de açoes típicas, antijurídicas e culpáveis e que o façam
de acordo
il antemente, realiza-se um emprego parcial e incoerente deste corn certas pautas detaihadamente explicitadâs9. Isto significa
nao
t'p de tentativa em nossa regiäo marginal latino-americana, con- apenas que o sistema penal semente exercia seu poder na medida
t xto no quai esta espécie de discurso mostra-se particularmente estrita da planificaçäo legal, como também que o sistema penal
Linante (estranho à realidade). sempre -
em todos os casos - deveria exercer esse poder.

is. Ver a bibliografia indicada em nosso livro Teoria del delito, Buenos
Aires, i973, pág. 179.
19. 0 "principio da oportunidade" limita esta obrigaçao, mas a
Iimitaçao está sempre
i. orrespondem às teses de John Austin, de Kelsen e de Hart, respectivamente (Kelsen, reguiada, nao flcando ao arbitrio total do órgao que a exerce; portanto,
mesmo sob uma
-L, Teoriapura dei derecho, Buenos Aires, 1974; Hart, LA.,Direito, liberdad4 moralidad4 legislaçao rígida, o principio de oportunidade processual, o exerckio da
açao, deve ser
rad, de G. Pereira dos Santos, Porto Alegre, 1987). sempre "legal", pois a única diferença consiste em que em um caso
a açâo correponde
4enzel, Adolf, Calicles. Contribución a la historia dc la teoría del derecho dcl n*jiiene, hipoteticamente, ¿ claro - a todas as informaçöes sobre um delito, aU
passo que, no
rad. de Mario de la Cueva, México, 1964. segundo caso, também corresponde à mesma suposiç5o, mas desde
que nao se enquadre
em nenhum dos casos em que se proibe ao órgao
impulsor exercer a açao.

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sendo a repressao punitiva apenas um limite ao exercício do
T No entanto, urna leitura atenta das leis penais permite corn-
poder20.
provar que a própria lei renuncia à legalidade e que o discurso
jurídico-penal (saber penal) parece nao perceber tal fatoAtravés Este ámbito, no quai a própria lei renuncia aos limites da
funçao garantidora dos
da nzinimizaçdo jurídica reserva-se ao discurso jurídico-penal, legalidade, em que desaparece qualquer
tipos penais e do qual se exclui a intervenção normal dos órgãos
supostarnente, os "injustos graves"; através da "administra- operar o verdadeiro
judiciais, é a base indispensável para que possa
tivizaçäo", consideram-se fora do discurso jurídico-penal as ins-
exercício de poder do sistema penal, ou seja, para que opere o
titucionalizaçôes rnanicomiais, inclusive as dispostas pelo próprio poder configurador dos órgâos do sistema penal e para que só
órgojudicial; através datutela são excluídas do discurso jurídico- eventualmente se possa exercer urna repressäo maior que a auto-
penal as institucionalizaçoes dos menores; atLravés do as- :

sistencialisnzo afasta-se totalmente do discurso penal a rizada ños casos supostamente reservados ao discurso jurídico-
institucionalizaçâo dos anciöes. penal.
A perversâc do discurso jurídico-penal faz corn que se recuse,
Mediante esta expressa e legal renúncia à legalidade penal, os
j
corn horror, qualquer vinculaçáo dos rnenores (especiairnente os
órgàos do sistema penal são encarregados de um controle social
militarizado e verticalizado, de uso cotidiano, exercido sobre a
abandonados), dos doentes rnentais, dos anciñes e, inclusive, da
grande maioria da populaçäo, que se estende alem do alcance
própria prostituiçâo corn o discurso jurídfco-penal, embora sub-
rnetarn-se todos esses grupos a institucionalizaçôes, aprisionanien- meramente repressivo, por ser substancialmente configurador da
vida social.
tos e rnarcas estimagtizantes autorizadas ou prescritas pelá própria
Este poder configurador nao se limita às funçöes que, dis-
lei quesâo, num todo, semelhantes - e, freqUentemente, piores -
cricionariarnente -
por discricionariedade legalmente outorgada
do que as abrangidas pelo discurso jurídico-penal.
ou de "fato" assumida -, exercem os órgáos executores do sistema
ro discurso jurídico-penal exclui de seus requisitos de lega-
penal e que pertencem exclusivamente aos mesmos, mas esses Or-
lidade o exercício de poder de seqüestro e estigmatização que, sob
gâos também atuam corno órgáos de execuçâo, recrufamento e
pretexto de identificaçao, controle migratório, contravençôes, etc.,
reforço de outras agéncias ou instâncias institucionais configu-
fica a cargo de órgàos executis'os, sern intervençâo efetiva dos
radoras, cujo poder é explicado por discursos diferentes, embora
órgâos judiciais IA lei permite, deste modo, enormes esferas de
corn recursos análogos ao aprisionamento, sequestro e estigma-
exercício arbitrario do poder de seqüestro e estigmatização, de
tizaçäo. Assim, os órgâos penais ocupam-se em selecionar e recru-
inspeçäo, controle, buscas irregulares, etc., que se exercem
tar ou em reforçar e garantir o recrutamento de desertores ou
cotidiana e arnplamente, à margern de qualquer "legalidade" puni-
candidatos a instituiçôes tais como manicômios, asilos, quartéis e
tiva contemplada no discurso jurídico-penal. 'O saber penal só se
até hospitais e escolas (em outras épocas, conventos). Este poder
ocupa da legalidade das matErias que o órgao legislativo quer deixar
também se exerce seletivamente, de forma idêntica à que, em geral,
dentro de seu ámbito e, enfim, de reduzidissirna parte da realidade
é exercida por todo o sistema penal.
que, por estar dentro desse âmbitojá delimitado, os órgoos executores
Os órgãos do sistema penal exercem seu poder militarizador e
decidem submeter-Ihe.
verticalizador-disciplinar, quer dizer, seu poder configurador, sobre
Na realidade social, o yerdadeiro e real poder do sistema
penal náo é o poder repressor que tern a mediaçâo do órgáo judi-
cial. O poder náo é niera repressâo (nao é algo negativo); pelo
contrário, seu exercício mais importante positivo, configurador,
20. Ct Foucault, M., op. cii., $g. 182.

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a 5etores mais carentes da populaçáo e sobre alguns dissidentes controlando qualquer conduta realizada em lugar público ou pri-
( ( 'J"diferentes") mais incômodos ou significativos. vado (como abraçar outra pessoa, vestir-se de modo diferente,
A disciplina militarizada tende a ser igual à do quartel: a beber corn amigos, caminhar na madrugada, passear com um ca-
UI lormidade do aspecto externo, o acatamento ao superior, a chorro, procurar um objeto sexual, recolher resIduos acumulados
sc iì açäo de que toda atividade prazerosa é urna concessäo da na via pública, sentar-se numa esquina ou num parque, usar cabelos
ai I.(ridade, etc., são evidentemente parte de um exercício de poder compridos, raspar a cabeça, usar barba, fantasiar-se, tocar um
c( L igurador e näo, meramente, repressivo. Trata-se também de um irstrumento musical ou cantar, expressar suas idéias ou discuti-las,
p An repressivo porque tende a interiorizar essa discipliná (a peticionar à autoridade, etc.).
to r á-la parte do próprio apareiho psicológico), atua em nivel » -
Praticamente, nao existe conduta nem mesmo as açôes mais
C( il ciente e -
talvez, principalmente -
inconsciente, elimina a privadas -
que náo seja objeto de vigilância por parte dos órgâos
es rntaneidade e configura urna sociedade de submetidos a urna do sistema penal ou daqueles que se valem de sua executividade
vi, ¿i2ncia interiorizada da autoridade.T para realizar ou reforçar seu controle, embora mostrem-se mais
Seria completamente ingênuo acreditar que o verdadeiro po- vulneráveis as açöes realizadas em público, o que acentua a sele-
th do sistema penal seja exercido, por exemplo, quando suas
r tividade da vigilância em razäo da divisáo do espaço urbano que
a ¿licias detêm, processam e condenam um homicidio. Esse poder, confere menores oportunidades de privacidade aos segmentos mais
qi e se exerce muito eventualmente, de mancira altamente seletiva carentes22.
e I
leada de ampia publicidade através dos meios de comunicçäo A circunstância de se perceber como a totalidade do poder do
so: il de massa, é ínfimo se comparado com o poder de controle
e os órgäos do sistema penal exercem sobre qualquer condula
sistema o que nao passa de mínima parcela do mesmo e exa- -
tamente aquela que serve de pretexto para um verdadeiro exercício
pCE ica ou privada através da interiorizaçâo dessa vigilância dis- de poder -
nAo deixa de ser um dos (raços perversos do discurso
ci] loar por grande parte da populaçâo? de justificaçao do sistema penai. Uma das facetas perversas do
Na introjeçâo da ordern verticaiizante é decisivo o papel dos discurso jurídico.penal consiste, portanto, em mostrar o exercício
m us de comunicaçáo social de. massa, que costumam amar desde total de poder d? sistema penal como esgotado sieste ínfimo e
ce w na vida das pessoas (especialmente a comunicaçäo de la- eventualíssimo exercício que configura o denominado "sistema pe-
ze )
l, embora nâo se deva descartar a
relevância da atuaçäo da nal formal".
es ola, de outros grupos prisnários, etc. neste processo. Em sintese, e levando-se em conta a programaçäo legal, deve-
A vigilância disciplinar, verticalizante e militarizada da socle- se concluir que o poder configurador ou positivo do sistema penal
da Ji. opera deforma camuflada, impedindo que seja percebida em (o que cumpre a funçâo de disciplinarismo verticalizante) é e-
nl' consciente, em toda a sua magnitude. Por isso, em nivel cons- xercido à margem da legahdade, de forma arbitrariamente seletiva,
o e, as mesmas pessoasvulneráveis ao sistema porque a própria Ici assim o planifica e porque o órgâo legislativo
penal (os setorcs
ca e .ites e os dissidentes incômodos), se por um lado nao sentem deixa fora do discurso jurídico-penal amplíssimos âmbitos de con-
tenr diante do exercício de poder do sistema penal quando este troie social punitivo:
ap !Irce com sua máscara de repressäo do "inimigo", percebem
co in. temível o exercício de poder dos órgáos do sistema penal

21. espeito da publicidade sobre diversuo na América Latina e da problemática gera! ria
:.

M iunicaçAo, Alcira Argumedo, Los laberintos de la crisis, Buenos Aires, 1984 22. CI. Dennis Chapman, Lo stereotipic del criminal; Turim, 1971.

24
.
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realmente o poder criminalizante programado, provocaria uma ca-
-A legalidade nein mesmo é respeitada no ámbito do sistema
tástrofe social.
penal formal. Embora o sistema penal "formal" nao seja mais do
I

s-f-- '

Ninguém compra um apartamento impressionado por urna


que o apêndice justificador do verdadeiro exercício de poder dos
bela maquete apresentada por uma empresa notoriamente insol-
Órgãos do sistema penal, a legalidade nAo é respeitada, nein mesmo
vente; no entanto, compramos a suposta segurança que o sistema
em sua operacionalidade sociaLj A estrutura de qualquer sistema
penal nos vende, que é a empresa de niais notória insolvência
penal faz corn que jamais se possa respeitar a legalidade proces-
suai. O disreurso jurídico-peual programaum número incrfvel de
estrutural em nossa civilizaçâo.
:

hipóteses cm que, segundo o "dcvcr ser", o istcma penal intervm


-
Diante da absurda suposição nao desejada por ninguém -
dc criminalizar reiteradamente toda a popuação, torna-se obvio
de modo "natural" (ou mecânico). No entanto, as
que o sistema penal está estruturalmente montado para que a lega-
agências do sistena penal dispoem apenas de uma capacidade lidade .processual nao opere e, sim, para que exerça seu poder com
operacional ridiculamente peqiiena se comparada à magnitude do
altissimo grau de arbitrariedade seletiva dirigida, natuTalmente,
planifica do
.
aos setores vulneráveis. Esta seleçao é produto de um exercíeio de
: Ç
A disparidade entre o exercício de poder programado e a
poder que se encontra, igualmente em mAos dos ÓrgAos executivos,
operativa dos órgäos éabissal, mas se por urna circuns-
de modo que tambérn no sistema penal "formal" a incidência sele-
tância inconcebível este poder fosse incrementado a ponto de che-
tiva dos árgaos legislativo e judicial é mínima.
gar a corresponder a todo o exercício programado legislativarnente,
Os órgàos legislativos, inflaeionando as tipificaçöes, nAo fa-
produzir-se-ia o indesejável efeito de se crirninalizar várias vezes
zem mais do que aumentar o arbitrio seletivo dos órgäos executivos
toda a populaçáo.
do sistema penal e seus pretextos para o exercício de um major
Se todos os furtos, todos os adultérios, todos os abortos, todas
poder controlador
as defraudaç5es, todas as falsidades, todos os subornos, todas as
Iesóes, todas as ameaças, etc. fossem concretamente criminaliza- -
A seletividade estrutural do sistemapenal que sópode exercer
seupoderregressivo legal em um número insignificante das hipóteses
dos, praticamente nao haveria habitante que nao fosse, por diversas
vezes, criminalizado.
de intervençöo planificadas - é a mais elementar demonstraçöo da
A realizaçäo da criminalizaçáo programada de acordo com o
falsidade da legalidade processual procthmada pelo discurso
discurso jurídico-penal é um pressuposto tao absurdo quanto a jurídico-penal. Os órgAos executivos têm "espaço legal" para exer-
cer poder repressivo so[ne quaiqt :r habiLa?.t, mas operam quando
acumulaçao de material bélico nuclear capaz de aniquilar várias
e contra quem decidem.
vezes toda a vida do planeta. Estes dois paradoxos são reveladores
O sistema penal formal nAo viola apen[as estruturaimente a
de um sintoma da civilizaçáo industrial levado a seu absurdo máxi-
legalidade processual; viola também a legalidadepena4 através de
mo pela atual - ou nascente - civilizaçäo "tecnocientífica". diferentes caminhos:
A difcrcnça mais importante cetre estcs dois extremos absur-
a) a duração ext raordinária dos processos penais provoca uma
dos reside no fato de que, enquanto o material bélico tern urn
distorçâo cronológica que tem por resultado a conversáo do auto
efetivo poder destruidor (é acumulado exatamente corn o discurso
de prisâo em flagrante ou dd despacho de prisAo preventiva em
justificador de que sua acurnulaçäo anula qualquer possível progra-
auténtica sentença (a prisAo provisória transmuta-se em-penal), a
mação de seu uso), o sistema penal 6 uni verdadeiro embuste:
conversão do despacho concessivo de liberdade provisórìa em ver-
prctcnde dispor dc um poder que nAo possui, ocultando o ver-
dadeira "absolviçáo" e a conversäo da deeisAo final em recurso
dadeiro poder que exerce. Alérn do mais, se o sistema penal tivesse
extraordinário. Considerando que a análise aprofundada dos limi-

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punibilidade ocorre apenas no momento da decisáo final, o
es da
Rido predominio dos "presos sem condenaçáo" entre a populaçäo basta rever qualquer. informe sério de organismos regionais ou
h toda a região23 nao implica sornente urna violaçáo à legalidade
mundiais de direitos humanos para comprovar o incrivel número dc
ocessual, mas também à legalidadepenal;
1
seqücstros, homicídios, torturas e corrupçáo cometidos por agên-
cias executivas do sistema penal ou por seus funcionários.
b) a carência de critórios legais e doutrinários claros para a
A estas violaçöes devem ser acrescentadas a corrupçáo, as
iantificaçäo das penas dá margem a apreciaçóes tao arnplas e
:. rentes de critórios reguladores que, praticamente, entrega esse atividades extorsivas e a participaçáo nos beneficios decorrentes de
atividades como o jogo, a prostituiçäo, o contrabando, o tráfico de
mpo à arbitrariedade, eliminando-se a chamada "legalidade das
E

drogas proibidas, dados geralmente nãc registrados nos informes


e n as"
dos organismos de direitos humanos, apesar de pertencerem à
e) a proliferaçäo de tipificaçoes com limites difusos, com
inquestionável realidade de nossos sistemas penais marginais.
:bmentos valorativos moralistas, corn referências de animo, com
Concluindo, pode-se, então, afirmar que:
.:iiissóes ou ocultamentos do verbo típico etc., são outras formas
a) a legalidade nao proporciona legitirnidade, por ficar pen-
it debilitar ou cancelat a legalidade penal;
dente de um vazio que só aficçao pode preencher;
d) as agências executivas frequentemente atuam à margem dos
b) o principal e mais importante exercício de poder do sistema
:.rttórios pautados para o exercício de poder pelos ôrgãos judiciais,
¡nodo que, quando se produz a intcrvençào destes, já se con-
penal se realiza dentro de um modelo de arbitrariedade concedida
:!Lmaram efeitos punitivos irreversíveis sobre a pessoa selecionada.
pela prOpria lei;
c) o exercicio de poder menos importante do sistena penal serve
de pretexto para o exercício de poder principa4 nao respeitando
exerc(cio de poder abertatnente ilícito por parte do sistema
s.ïò
tambéni, e nempodendo respeüar a legalidade;
unal. Conforme foi apalisado, o sistema penal nao respeita a
e atidade porque, para o verdadeiro e fundamental exercício de
d) além de o exercício de poder do sistema penal nao respeitar
:'tder (o exercício de poder positivo configurador disciplinante), a nein poder repeitar a legalidade, na operacionalidade social de
:'r Opria leise ocupa de renunciar à legalidade, concedendo amplIs-
,zossos sistemas penais, a legalidade é violada de forma aberta e
i:na margem de arhitrariedade a suas agências extrema, pelo altissimo número de fatos violentos e de corrupçäo
Conforme já assinalado, o exercício de poder menos impor- praticados pelos prOprios órgdos do sistema penal.
aite do sistema penal - correspondendo apenas a um pretexto
ra o exercício de poder verdadeiro - tambóm nao obedece,
E
III - A Per persäo Irnobiliza o Discurso Jurídico-penal
scruturalmente, à legalidade processual ou à legalidade penal.
Até aqui, examinamos violaçöes à legalidade que operam den- A perversáo do discurso jurídico-penal caracteriza-o como
T) da arbitrariedade ou renúncia planificada pela prOpria lei. No um ente que sc enrosca em si mesmo de forma envolvente, a ponto
ntanto, além destas violaçöes, verifica-se na operacionalidade so- de imobilizar freqüentemznte seus críticos mais inteligentes, espe-
id dos sistemas penais latino-americanos um violentíssimo exer- cialmente quando estes possuem alg:ima relaçäo com a-prática dos
íio de poder à margem de qualquer legalidade. Nette sentido, órgáos judiciais e corn a necessidade de defesa concreta e cytidiana
dos direitos humanos na operacionalidade desses órgaosCT Desta
3. - - -
Ver Elías cananza Luis Paulino Mora Maño Ohued E.R.Zaffaioni. El preso sin maneira, a perversáo 6 a característica que cristaliza a dinámica
condena al Ambica Latina, Sao Jost, 19ß3. A situaçâo descrita aeste trabalho discursiva do discurso jurídico-penal, apesar de sua evidente fat-
acentuou-se nos últimos anos, tendendo a agravar-se progressivamente. sidade.

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Embora o principal exercício de poder do sistema penal tenha ríamos infinitamente pela acidental presença da coruja. No entan-
ligar sem a intervençäo do.órgäojudicial (ao qual se limita o poder to, isso nao significa que começaríamos a acreditar que as corujas
dos juristas), quando, neste âmbito, devem ser defendidos os direi- são "almas penadas". O discurso jurídico-penal é tab perverso que,
tos humanos, seus defensores acabarn considerando verdadeiros os a partir da presença salvadora da coruja, faz corn que os juristas
pressupostos do discurso jurídico-penal que devem esgrimir e, corn relacionem seriamente as "almas penadas" com as corujas
1550, admitern, quase sem percebê-lo, a racionalizaçáo justificadora apaixonadas.
de todo o exercício de poder do sistema penal.
>- ?/5 FA crítica nao conjuntural ao sistema penai é percebida, por-
tanto, como urna arneaça aos direitos humanos no ambito do órgáo
IV - Signos Teóricos da Situa çáo Crítica
judicial e, diante disso, preocupados corn necessidades mais ur-
na América Latina
gentes, prefere-se ignora-la, coloca-la entre parênteses, deixa-la
Dentre os signos teóricos da situaçao crítica referida, que
em suspenso, atribuí-la a circunstânciai conjunturais (o que é ilma
podem ser percebidos em diferentes ámbitos, direçoes e interesses
forma de negaçâo) ou refugiar-se no contraditório argumento da
do saber, mencionaremos a crítica geral a6 direito (apesar de sua
"impotência-onipotência" que outorga ao discurso jurídico-penal
escassa repercussâo académica no ámbito penal), a forte preo-
um mero valor instrumental.
cupaçdo corn a legitimidade do poder manifestada em pesquisas
A aceitaçáo do discurso jurídico-penal pelos juristas, no limi-
jus-filosóficas realizadas na regiâo; a acentuada preocupação das
tado âmbito de seu órgáo judiciário, produz efeitos reais, embora
pesquisas jus-humanistas e dos organismos de direitos humanos pelo
seja falso o discurso, confirmando o conhecido mecanismo do teo- j

sistema penal; e, por último, e, talvez ode major importância como


rema de Thomas: "se os individuos definem as situaçêes como reais,
motor da situaçáo, a criminologia da reação socialdifundida na área
são reais suas conseqüências"4. Tais efeitos reais são as reaçöes
e o debate dela originado.
favoráveis dosórgâos judiciais (em reduzida e flexível medida) em
relaçáo aos direitos humanos. Definida a operatividade do sistema Crítica ao direito. Exernplo expressivo deste signo teórico é
1.
penal quanto à legalidade, em muitos casos o órgáo judicial reage a crítica ao direito elaborada por Novoa Monreal25 que, apesar de
conforme a legalidade. ser um dos mais destacados penalistas da regiào, orieflta sua crítica
Nao obstante, estes efeitos reais nao são conseqüência de em direçao a conceitos básicos do direito privadoiNovoa Monreal
nenhuma operatividade legal do sistema penal e, sim, do mero centraliza sua crítica na recusa de que "o" direito seja entendido,
efeito de se admitir urna legalidade utópica (irrealizável) no limita- unicamente, como o direito que responde apenas a uma concepçäo
díssimo ámbito do poder do órgäo judicial, ¡sto é, do poder rneùos "liberal-individualista", que parece identificar com urna idóia qui-
importante que o sistema penal exerce. ritária da propriedadePor isso, Novoa recusa ao jurista a funçâo
Se um grupo de pessoas estivesse a ponto de nos matar e nao de tutor de urn pretendido "diréito natural" que determine os
tivéssemos possibilidade alguma de defesa e, nesse exato momento, conteúdos do direito, tarefa que reserva à política, deixando para
o grito de urna coruja Ihes anunciasse a presença de urna "alma
o trabalho técnico do jurista uma atividade interpretativa à qual
penada", infundindo-ihes tal temor que, imediatarnente, nos libe- nega o caráter de "ciéncia". No entanto, nao se deve entender que
rassem, fugindo espavoridos, nao ha dúvida de que nos felicita-

25. Eduardo Novoa Monreal, El derecho como obstáculo al cambio social México, 1981;
24. Robert K Merton, Teoría y estructuras sociales, México, 1964, pág. 419.
Elementos para una crítica y desmistificación del derecho, Buenos Aires, 1985.

31
lÍ]

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:;ovoa Monreal caja em um simples positivismo ultrapassado e discurso que será usado para difundir as peines perdues. Se o
ronsagrador da onipoténcia legislativa, urna vez que subordina discurso é perverso, se é baseado em falacias acerca da realidade
(.Xl)ressamente o legislador aos limites das direitos humanos, con- operacional dos sisternas penais, se esta realidade é um verdadeiro
ideramos como conquista da cultura universal independente do :
genocidio em marcha e se o exercício de poder mais importante do
sistema penal fica fora do campo abrangido pelo discurso jurídico-
'direito natural", independência que fundamenta na gestaçäo his-
tórica do jus-naturalismo corno ideologia que aceitava e racio- penal, o penalista que limita sua função à rnera técnica nao fará
r alizava a escravidaot outra coisa senâo aperfeiçoar um discurso.que racionaliza a con-
A crítica jurídica de Novoa Monreal é irrefutável em seu tribuiçäo do árgäo judiciário a sernelhante empresa.
A tese de Novoa Monreal é adrnissível no ambito do direito
.

z specto central, isto é, no que se refere à negaçào do direito


como
ilcologia justificadora de um conceito quiritário de proriedade. privado, mas, ao menos nos termos em que está exposta, nao parece
poder estender-se facilmente ao âjnbito do direito penal, já que se
Lntreta1.tto, nao acreditamos que este signo técnico permita supe-
tar a situaçào crítica sobre o discurso jurídico-penal e a desle- mostraria sumamente contraditária ao converter o jurista em um
gitimaçâo do sistema penal como exercício de poder. Pelo menos, racionalizador da violaçäo de direitos humanos que consuma a
t o fica suficientemente claro o caminho pelo qual se possa realizar operatividade real de nossos sistemas penais. É muito provável que
esta superaçáo26. esta diferença provenha do fato de Novoa Monreat nao levar sMi-
Apesar de compartilharmos corn Novoa as dúvidas sobre o cientemente em consideraçäo alguns pressupostos quanto à
-
caráter de "ciéncia" do direito embora, para nãs, essas dúvidas operatividade real dos sistemas penais, nao percebendo uma con-
tradiçäo estrutural entre a ideologia dos direitos humanos e a
cao derivem tanto da problemática do direito, quanto do práprio
conceito de "ciência" enqianEo produto de uma rnanipulaçâo do ideologia justificádora do exercício de poder dos sistemas penais.
ç oder ao longo da historia
'
-, fica em suspense a funçao que esta
crítica geral do direito atribui ao penalista quando, ao descobrir a 2. FreocupaçUo corn a legiliniidade dopoder. Nos últimos tem-
f Usidade do discurso jurídico-penal, encontra-o, por sua vez, per- Pos, a questao da legitimidade do poder converteu-se em tema
vnso. Se o legislador deve respeitar os limites que the irnpöem os quase reiterativo na filosofia jurídica da nossa regiao marginal28,.
-
direitos humanos como postula corretamente Novoa Monreal - sendo impossível abordar aqui este fenomeno em toda a sua mag-
cabe perguntar como pode limitar-se o jurista à funçäo técnica que nitude e, menos ainda, analisar suas contribuiçóes.
the é destinada, se isso implic4 fortalecer a lógica interna de um A título meramente exemplificativo, devem ser mencionados
os trabalhos de Hernández Vega29, que recusa terminantemente
que a legalidade possa proporcionar legitimidade e conclui desqua-
b. Nao é nosso propósito, aqui, avahar toda a crítica jurídica de Novoa Monreal. Urna lificando qualquer pretensäo de isolar o direito e o exercício do
poss(veh hipótese a respeito dela ¿ que talvez siga o mesmo destino de outras tantas
tcorias, de diferentes sentidos, mas que resultaram nao aptas pan abarcar todo o direito poder de um marco ético Hernández Vega demonstra que o poder
penal, fenómeno possivelmente derivado,justamente, do fato deque o direiLo penal nao
"resolve" os coriflitos, isto é, nao é um "modelo" pan soluçâo de conflitos.
2 LFan nAo mencionar os autores contemporáneos
e, em particular, o tantas yeses citado
28. Por exemplo, a revista "Contradogrnáticas" (Faculdades Integradas de Santa Cruz do Sul
trabalbo de Foucault (La verdad y las fornas jurídicas), vale a reniissao a autores já -ALMED) Santa Cnn do Sul; M. Celeste C. Leite dos Santos,Poderjurldico evioténcia
distantes no tempo, comoWilhelm Wundt,Jnrrot a la filosofia, trad. de Eloy Luis André, sïmbólic4 Sáo Paulo, 1985; LuizEernando Coelho, Teoria crítica dodLreito, Curitiba, 1987;
Madri, 1911, t. 1, págs. 35 e segs. Na área penal, cabe recordar que em 1961 Luciano Luis Alberto Want, A pureza do poder. Urna análüe crítica da teoría jurídica
J'ettoelho Mantovani pos emdúvida ovalorda "ciencia penal", entendida, como dix-Camas, florianópolis, 1983; (autores divenos), Uniyersidade de Brasilia, Educaçâo â distancia,
em sentido "formal" ou "tecnocrático" (Za. ed., il valore problematico della scienza O direito adiado na rua Brasilia, 1988.
29. Raúl Hernández Vega, Problemas de legalidad y legitimidad del poder, Xalapa, Ver., 1986.
pcnalisxico,1961-1983. Contro dogmi ed empiris-n4 Milan, 1983).

F
- 33

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apresenta-se nao apenas como um fato social, mas também, como no qual se foi eclipsando a ingênua confiança -
que alcançou sua
urna realidade moral (idealidade ético-racional), o que na verdade, expressào ideológica máxima corn o chamado "Código Penal tipo
nao poderia ser diferente, urna vez que o poder se exerce mediante latino-americano", elaborado na década de sessenta nos resul- -
açöes humanas. Nesta duplicidade, na permanente tensào entre tados operacionais de um mero aperfeiçoamento técnico-legisla-
real e ideal, que procura expressâr mediante urna lógica dialética,
está a raiz, pata Hernández Vega, do "enigma" do poder, sua : Corn o aparecimento da criminologia da reaçào social na
"afona" América Latina, manifestou-se -
coni maior evidência do que nos
países centrais, em razào da violência operativa mais forte ou
3. Freocupaçöo jus-hunianista corn o sistema penaL Os grupos menos sutil de nossos sistemas penais marginais -
a falsidade do
e iniciativas civis latino-americanos manifestam crescente preo- discurso jurídico-penal. Por outro lado -
e, talvez esta tenha sido
L
cupaçäo corn o sistema penal.Muitos desses zúcleos apareceram sua contribuiçao mais importante -
esta criminologia neutralizou
como resistência civil ao terrorismo de estado e, ños países onde por completo a ilusão do suposto defeito conjuntural, superável
essa etapa parece superad, nao se pode deixar de perceber a num nebuloso futuro. -

permanência quase intacta dos órgâos que executaram esse ter- :


Se nos países centrais, o discurso jurídico-penal pôde susten-
rorismo, corn seu próprio poder administrado e forma mais pru- tar-sc por certo tempo scm maiores variantes, ignorando a crítica
dente ou dirigido para outros setores sociais. O assombro, ou a criminológica ou sociológica, para o penalismo latino-americano
busca de explicaçöes conjunturais face à caréncia de um marco essa situaçäo revelou-se particularmente insustentável, em razão
teórico, costuma ser a primeira reaçâo ingênua, à qual, paulatina- da gravidade dos resultados práticos da violentíssima operacio-
mente, vai sucedendo um forte interesse pelo sistema penal. nalidade dos sistemas pcnais.
Atéstando esse interesse no plano institucional regional, cxc- -Somente o próprio exercício do poder pode tentar neutralizar
cuta-se pela primeira vez um programa especial na regiâo con- a situaçäo crítica na América Latinamas nao pode fazé-lo gerando
vocado por um organismo hemisférico que reúne penalistas e unI "saber" prOprio porque, também neste caso, trata-se de um
criminólogos latino-americanos30. Mais do que qualquer proposta fenômcno derivado do poder planctário ou enxertado na sua rede
concreta, essa investigaçáo demonstrou, de forma consideravel- em posiçào marginal.O saber das fábricas ideológicas centrais, ao
mente circunstanciada, a disparidade éntre o discurso jurídico- transnacionalizar-se, torna-se disfuncional para o exercício do po-
penal ea realidade operacional do sistema penal. der dos sistemas penais marginais, restando, como único caminho
para que suas agências escamoteiem seu poder, a desinformaçdo
4. Critica criminológica. Os signos teóricos da situaçäo crítica teóricìJ'Nao é em- väo, portanto, que os órgaos dos sistemas penais
referida sâo, sem dúvida, importantes, mas à sacudida teórica mais latino-americanos favoreçam a reiteraçáo de discursos
formidável - e praticamente precipitadora desta situaflo - recul- criminológicos administrativos, do discurso jurídico-penal mais
tou da difusào da criminologia da reaçäo social na região, prota- tradicional e da estigmatizaçâo como "estrangeinizantes" dos dis-
gonizada por numerosos autoresTM, que pôs fim a um lento processo

apresentados teoricamente, vale citar Lola Aniyar de Castro, Rosa dcl Olmo, Roberto
3OE Inst. lot, de Derechos Humanos, Sistemapena/es, cit.; entre os trabathosparticularcs, cabe Bergalli, n malogrado Emiro Sandovatllucrtas,Emilio García Méndez, etc. Uminteressante
mencionar, dentre os mas recentes, o de Contalo D. Femnándcz, Derecho Penal y debate que também sintetiza a história do movimento pode ser acompanhado em "Doutrina
Derechos Humanos, Monteviddu, 1938. Penal" (1985-1986). Os trabaihos de que participaram (Novoa Monrcal, Aniyar de Castro,
M.A bibliografia critica latino-americana é consideravelmente extensa. Entre os mais Rosa del Olmo, Roberto Bergalli) estAo reunidos em "Criminalià", 1987, págs. 7-á7.

34 -
35

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( centrais, em funçao de um ¿hauvinismo "científico" que
ii SOS
ficativos que se esvaziam de conteúdo semântico para exercerem
I ete discursos seculares, etc! um mero papel instrumental, em razäo de sua variável eficácia
!

Um dos caminhos mais eficazes para conseguir a desliz- delatória: "fascista", "burguês", "liberal", etc.).
f maçäo teórica é a "satanizaçáo" de qualquer crítica des-
:r
Como nao podia deixar de ser, acríLica social ao sistema penal
i gitimante do sistema penal como "marxista". Nos países centrais, .-
r
T foi "denunciada" como "marxista". Em hoinenagem ao mínimo de
C SC qualificativo tem urna conotaçäo consideravelmente ampia e seriedade que merece a análise de qualquer ideologia, torna-se
C s;utida pelas diferentes vertentes que pretendem instituírem-se necessário precisar: a) que a deslegitimaçào teórica do sistema
DILIO as verdadeiras intérpretes de Marx. fÑa América Latina, penal e a falsidade do discurso jurídico operam de modo irrever-
-J C
no
Cnl auto, o termo "marxista" sofre urna transformaçäo que ignora a sível através da teoria da rotulaçáo que responde ao interacionismo
gaiia de cores e matizes dos países centrais32, ampliando-se seu simbólico: b) que a pertinência da crítica à teoria da rotulaçäo, por
Sn tido até limites absurdos de forma a designar-se como "marxis- parte daqueles que a consideram limitada33, em nada diminui seu
t V' tudo o que constituí ou ameaça constituir uni contrapoderpara a valor deslegitimante e demolidor do discurso jurídico-penal, con-
V r icalizaçao militarizada de nonas sociedadesperiféricas. De for- signando-se que o interacionismo simbólico e a fenomeno1gia
na sucinta, "marxista" representa, na América Latina, qualquer nada tém a ver corn o marxismo e, sim, com o pragmatismo/ -
p isamento ou conduta que, tendo ou nao relaçäo corn o discurso -
particularmente de Mead34 e com Husserl35.
d N{arx ou corn qualquer dasmúltipias versóes que se pretendani Esta explicaçäo seria obviamente ridícula nos países centrais,
d r ivar de seu pensamento, é percebido como urna ameaça para seu onde se trabaiha corn um conceito de "marxismo" que, apesar de
p.:Ler pelos órgaos locais de controle social ou como disfuncionais confuso e discutível, pretende referir-se ao nível ideológico. Da
pita o exercício do poder periférico, pelas agéncias do poder mesma forma, esta explicaçáo resultará completamente inútil em
c iftral. nossa regiâo; nela, a crítica criminológica continuará vendo-se en-
Este to conteúdo minimo da constataçdofuacjonal-delagórja volvida no couccito de "rnarxismò jue conscrvará scu valor deja-
d 'marxismo", mas este conteúdo pode obviamente, ampliar-se tário enquanto o- poder näo encontrar outro instrumento de
s g indo o grau de terrorismo de Estado que impere e segundo as delação mais idoneo.
c nunstâncias que possam permitir a qualquer inimigo pessoal De qualquer maneira, os esforços do poder do sistema penal
ii ioduzir variáveis ainda mais insólitas, de maneira a convencer nao conseguiram evitar a situaçäo crítica -
que se sobrepöe a estes
a g ima agéncia contro1adorj Desta forma, "marxista" abrange, esforços -como um impulso ético que, a partir da autenticidade
p aLicamente, todo o varidvel campo do suscetível de delaçao, con- do ser humano em qualquer emergência negativa, tenha conseguido
sig undo-se assim separar em nossa regiäo por mais discutiveis que transpassar a força de todo o exercício genocida do poder.
si rn estes limites nos países1centrais sua funcionalidade delatária
d eus limites ideológicos.JEm outros termos, o conceito "rnarxis-
t" converte-se num instrumento funcional de delaçao, que nao é
sl::;etível de qualquer delirnitaçäo ideológica e cujo conteúdo varia 33Um dos seus críticos mais irnplacáveis é Alvin W. Gouldner, Crisis de la sociología
a eaas em funçáo de sua eficacia delatória conjuntural. (Em outros occidenta Buenos Aires, 1979.
ci uLextos, funçoes análogas podem ser cumpridas por outros quali- 34. George Herbert Mead,Esplritrg, persona y sociedad desde el punto de vista del conductismo
socïa trad. dc Floreal María, Barcelona, 1982.
35. Como fonte direta desta vertente, em sociologia, Peter Berger-Thomas Luckman, La
32 S tie este fenómeno, Constantino Láscaris, Deganollo de ¡as ideas filosóficas en Costa constnacción social de ¡a realida4 Buenos Aires, 1986; Alfred Schutz, El problema de la
realidad socíal Buenos Aires, 1974.
R ca, San J0&é, 1983.

37

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V- A Deslegithna cáo pelos Próprios Falos No ámbito do controle da sexualidade nao
existe um saber
especia' institucionalizado capaz de normatizar a
Näo existe "teoria que, por si mesma, tenha força suficiçnte questâo corn o
mesmo grau de prestigio e confiança do sistema
penal. Por mitro
para vencer urna estrutura que se interioriza, dçsde cedo, na vida lado, os que denunciam a realidade neste ámbito
náo se acham de
das pessoas, se nao vier acompanhada de urn fato de particular maos atadas por uma perversäo que faça temer urna
evidência, que opere como "choque" corn a reaidade. A percepçäo percepçáo mais
adequada e crítica que aumente a repressäo.
de determinados fatos notórios pode ser perturbada,
mas nao pode Apesar de formidávcl, o esforço de invençäo da realidade,
ser negada:Desta maneira, estes fatos atuam como curto-circuitos que
parece ter muito êxito nos países centrais, em nossa
do mecanismo inventbr da realidade, iluminando-a corn relâm- área nao
consegue ocultar completamente a realidade
que, frequentemente, kvam à açáo como opçâo de cons- operativa dos sis-
ternas penais.
ciôncia aberta. o número de mortes causadas por nossos
Entre;sses fatos, o mais notózio,e.rn noss regáo marginal, e sïstern Denais, an
aproximar-se e,: às vezes, superar o total de homicidios
do qual pode derivar-se toda urna ética' deslegitimanté, é a morte. de "ini-
ciativa privada"; o já mencionado fenomeno de
Trata-se de urna dcslegitimaçäo qUe está além dos mortes culposas
limites teóricos pelo tránsito e a indiferença do sistema; a mesma
porque atinge diretamente a consciência ética, näo requerciido indiferença pelos
abortos e pelas mortes por carências alimentares e
qualquer dernonstraçâo científica porque é "perccptível": ninguém assistenciais; os
processos de deterioraçao de pessoas, rnobilidade e
seria tolo a ponto de negar que os mortos estäo rnortos. A tdcnìca condiciona-
mento para posterior morte violenta; a morte
te-rrorista do Estado de desaparecimento forçado de pessoas, ao violenta direta nas
invés de ocultar o fato à consciEncia ética, nao fez mais do que
prisôes e entre o próprio pessoal de algumas agências
tudo isso torna claro que a magnitude dofato da
executivas -
niorte, que carac-
apresentá-lo, em cores mais vivas, pois, ao evitar o ritual da morte teriza o exercício de poder de nossos sistemas penais, pode
e do luto, tornou mais incerta a auséncia da morte, rebaixando a ocul-
tar-se das instâncias conscientes mediante algunas
incerteza do nivel das escatologias religiosas ao nivel da escatologia resisténcias e
negaçöes introjetadas. No entanto, náo é possível impedir
intramundana. total-
mente sua captação, por mais intuitiva e defeituosa
Os esforços do saber jurídico e da cornunicaçäo de massas
que seja, ein
nivel de consciéncia ético.
para inventar uma realidade que evite a deslegitirnaçäo provocada
pela percepçäo direta dos fatos, e que opere de forma imcdiata
Diante desta constataçáo -
à quai se acrescenta o enorme
volume de violéncia provocada pelos órgáos do sistema
sobre a consciência ética, são cpnsideráveis, podendo-se afirmar penal na
forma de corrupçâo, degradaçao, morte violenta de seus
que dificilmcnte se encontra um esforço semeihante na civilizaçAo prOprios
integrantes, privaçôes de liberdade, cxtorsöes, etc. -,
tecnocientífica, apesar da insistência de alguns em comparar aque- costuma-se
sustentar ser esta violéncia preferível a urna suposta eclosäo incon-
les esforços corn os realizados pelo poder no campo do controle da tida do delito de "iniciativa privada" e da "justiça pelas
sexualidade. No entanro, embora admitam certo grau de coinpa- próprias
máos", resultante da ineficácia do sistema penal. Adiante,
raçäo - considerando-se, mesmo, que nao são, em verdade, abso- analisa-
remos pormenorizadamente essas respostas36,
lutamente independcntes -, nao se pode negar que, quanto ao interessando-nos
por enquanto assinalar que stes argumentos implicam
poder do sisterna penal, a clicácia dusses esforços na invenção da várias confis-
sOcs scm subterfúgios:
realidade, apresenta-se mai01, pois, cte alguns niveis, causa a im-
pressào de perturbar a percepçâo de fenômenos a ponto de supri-
mir, eventualmente, a prOpria senso-petcepçáo. 36. Ver infra, págs. 95 e segs.

38 .
39

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a) admite-se implicitamente que já nao se pode afirmar que o
rwuopólio da violéncia pertença ao Estado, sendo mais adequado Nao obstante, nunca foram aprofundadas as conseqüências
al: mar que seus órgaospretendem o monopOlio do delito; teóricas das teorias da estrutura lógico-objetivas no campo jurl-
b) admite-se epressamente que a legalidade é u,naficçäo; dico-penai, dirigindo-se as poucas tentativas de aprofundamento
c) o sistema penal converte-se em urna espécie de "guerra da filosofia do direito no sentido de se criticar e descartar esta
sijs" do momento da política, na quai ofim justifica os meios; teoria38. Desta maneira, a tendência dos últimos anos caminha na
d) em razáo da seletividade letal do sistema penal e da conse- direçáo de se adotar um "finalismo" formal por assim dizê-lo - -
c úr:nte impunidade das pessoas que nao lhe são vulneráveis, deve centrado quase que exclusivamente em requerimentos de corn-
a Juiitir-se que seu exercício de poder dirige-se à contençáo de pletitude lógiça da construção teórica do delito.
pos bem determinados e nao à "repressào do delito". Em um marcojurídico mais ampio, o neokantismo foi o recur-
Na verdade, nao existe uma formulaçào teórica latino-ame- o mais eomúmente utilizado, na América Latina, para legitimar os
r ma que torne pública, de maneira séria, esta confissâo, embora regimes "de fato", sua legislaçao (inclusive a penal) e os próprios
s: costume expressar corn sinceridade, em voz bain, em quase "atos institucionais" dos poderes de "fato". Da mesma forma, a
t c os os círculos académicos, numa espécie de funcionalismo teori- América Latina conhece, há muito, o fenomeno de constitucio-
cii iente subdesenvolvido; "a lei é boa para conter os excessos, mas nalismo formal com ditadura real; cujas modalidades de terrorismo
s a lei náo nos leva a nada porque nao se pode acabar corn os de Estado também apelam à ruptura provocada pelo neokantismo
nros"; o inquestionável mérito da sinceridade desta formulaçao entre realidade e normatividade,
C!I( outra-se ainda "à procura de autor". Esta particular preferéncia pela rnanipulaçào heterodoxa do
neokantismo nao é de se estranhar. A ruptura que, com maior ou
menor intensidade -
segundo suas variáveis ou escolas o neo- -
Ji - O DesprestIgio dos Discursos Penais kantismo permite ou impöe, faz com que o discurso jurídico-penal
Latino-a inericanos em Razâo de seus V(ncu los se separe cuidadosamente da realidade, podendo-se, portanto, ad-
Ideológicos Genocidas mitir um "realismo transcendente", no sentido de que as coisas se
situam fora do sujeito, sendo independentes de seu conhecimento.
1. 0 discurso jurídico-penal. Durante muitas décadas, o dis- No entanto, como o conhecimento só pode ter acesso às coisas
c .i so jurídico-penal predominante foi o positivista-periculosista, através do valorjuríd.ico, que atua como único ordenador que torna
i: i :grado om a criminologia positivista. Superada esta fase, o o conhecimento acessível à razäo, é o valorjurídico que em nossa -
d s:urso jurídico-penal passou a asscntar-se numa base neokan-

t a:ìa super-heterodoxa, que toma elementos de todas as variáveis


razäo é sempre um ato de poder, por mais arbitrario que seja -
que nos diz "como são" as coisas39.
d' neokantismo, na medida em que lhe são úteis. Apenas nas duas Esta manipulaçao da heterodoxia teórica, que caracteriza as
U i mas décadas, com grande resistência e admitindo mais as conse- decisöes judiciais, com implicaçao política em nossa regiäo mar-
q :uncias dogmáticas do que a base realista, este discurso sofreu ginal, tern como resultado um verdadeiro renaseimento da teoria
u ma relativa fragrnentaçao com a introdução do finalismo37.

38. For esempIo: Ernesto Garzón Valdez, Derecho y naturaleza de las cosas, córdoba, 1970;
Luis Recaséns Siches, Experiencia fun'dic4 r:aaualeza de la cosa y Lógica "razonable",
3 .1 [ans WeIzel, Kausalität und Handlung m "Abhandlungen zum Strafrecht und zur México, 1971.
Rechtsphilosophic", Berlim, 1975 (como trabalho pionciro). Mais especiflcamentc: 39. A descriçao nao resulta igualmente válida para todas as versöcs do neokantismo em
Ifacht widliechç idem, pág. 288; Natwrechl und Rechtspasitïvismus, idem, pág. 274. filosofiajurídica. Nao obstante, mesmo o idealismo moderado abre caminho para realçar
o idealismo.

41
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medieval da "dupla verdade", permitindo urna estranha esquizo- cluída conforme os postuladores do discurso penal tradicional43, o
frenizaçáo do saber jurídico, que se erige nurn campo esotérico que, em outros termos, classificava a major parte da populaçäo
carente de contato corn a realidade e que se inventa até limites nos brasileira como em "estado perigoso". No último pós-guerra, urna
quais o jurista fica reduzido a um racionalizador dos conteúdos discussao semelhante teve lugar na Bolivia, a respeito do Indio,
verdadeirarnente delirantes do legislador40. tentando-se igualmente considerar em "estado perigoso" a maioria
Torna-se óbvia a impossibilidade de os setorcs populares e dos segmentos populares44.
despossuldos de nossa regiäo marginal depositarem algurn nivel de Desde o final da última guerra mundial e apesar dos tardios-
confiança nuÑ direito assirn concebido de acordo corn antiga tradi- surtos racistas, como o boliviano e alguns outros o discurso -,
çáo consagrada ampiamente no folclore de nossos poyos41. criminológico moderou suas expressöes abertamente racistas, man-
tendo-se numa linha "etiológica" que, apesar de pretensamente
2. 0 discurso criminológico. Até anos muito recentes, o discur- niais "científica", nao oculta, de forma alguma, sua raiz positivista
so criminológico latino-arnericano nasceu e se rnañtcve estrita- e periculosista. Prova dessa tendôncia é a ampIa accitaçäo, em
mente vinculado ao positivismo criminológico, particularmente nossa regiâo marginal, da traduçäo da obra de Exner45, na qual o
italiano, sendo seus vínculos ideológicos genocidas muRo mais es- autor sustenta que a crirninalidade negra nos Estados Unidos deri-
tremecedores do que os do próprio discurso jurídico. va da exigéncia pela soeiedade branca de um esforço dos negros
O fundador da criminologia argentina, confrontado durante para o qual estes nao estâo biologicamente preparados.
urna de suas viagens à Europa corn os habitantes de Cabo Verde, ao O periculosismo criminológico receben um novo impulso eom
mesmo tempo em que afirmava que cstes cram "farrapos dc carne a chegada à América Latina -
e, especialmente, a Cuba da -
hurnana" mais próximos dos antropóides do que do homnem, defen- criminologia soviética que, ao menos em suas versöes traduzidas46,
dia a escravidáo como instituiçäo tutelar, submergindo o exercício perfila-se nesta corrente, coincidindo com a longa tradiçäo peri-
dos dircitos civis ao prévio alcance de um grau suficiente de evo- culosista do pensamento penal cubano.
luçào biológica42. Enquanto isso, seu colega brasileiro afirmava na Tendo sido primeiramente racista (o discurso sob medida das
Bahia -
de acordo corn a linha da psiquiatria racista francesa de minorias proconsulares das repúblicas oligárquicas, que entram em
Monrcal -
que os mulatos cram desequilibrados morais e que a
responsabilidade penal deste grupo deveria ser diminuída ou ex- 43. Raimundo Nina Rodrigucs,Asraçashumanasearesponsabilidadepena1noBrari Babia,
1957; Os africanos no B,-asi4 1982. Fo professor de Medicina Legal na Universidade da
Babia e considerado o pioneiro da criminologia brasileira (1862-1906).
40- Um born exemplo deste tipo de "delirio legislativo" a pretensSo deque os subordinados 4-4, 0 debate acha-se resumido em Criminologia, de lluáscar Cajías IC, La Faz, 19M; seus
no realizam "açöes" nos casos em que a obediéncia é de'4da. - protagonistas (omm Lìbpez-Rey Arrojo e Medrano Ossio, este últïrno. corn a tese
41. E clássica a passagem do lino "Martín Fierro': "A lei é leita para todos/mas só so pobre perigosista; participaran do debate outras famosos penalistas da década, tantobolivianos
obriga/A lei é teia de aranha/em minha ignosSncia tcntarei explicar.Jnào a temam os quanto de outros países.
ricos,/nem jamais os que mandam/pois o bicho grande a destr6iìe s6 aos pcqueninos 45. Exner esteve nos Catados Unidos na década de 30 e regressou à Alemanha satisfeito corn
aprisiona./A lei como a chuva,/nunca pode Ser igual para todos./Quem a suporta se os estudos dos colegas norte-ameticanos, cujas teorias nAo diferiam muito dobiologisrno
queixa,/mas a explicaçao ¿ simples;/a lei ¿como a faca que nao fere quem a empunhai'Nao dos nazistas, 56 que aplicadas à polftica imigratória e corn leis para esterilizaçao de
rnenos eloqüente L o tradicional texto equatoriano: 'Urna belesa o meu chefe;/parece-se delinqüentes recém-admitidas pela justiça (a respcito, Stephan-L Chorover, Del gEneric
corn aquele cao,/quesó morde o ponchojmas a casaca,jamais" Ou ainda: "Se nasentença al genocidia, Madri, 1985; Franz Exner, Biologia crimina4 trad. de Juan del Rosal,
dosjuízes/percebes algurnajustiça,!v ospés do delinqüentele descobrirás que usa botas" Barcelona, 1957).
(Juan León Mera, Cantares de/pueblo ecuatoriano, Quito, ed. facs., s.f. [1980?I). 46. G. Avasenov, Fundamentos de la criminologia, Moscou, 1985; geralmente nao difere
42-E José Ingenieros, Las razas inferiores, em "Crónicas de viaje (Al margen de la ciencia) multo da criminologia da República Democrática Alerna (Sozialistiche Kriminologie,
1905-1906", "Obras Completas", vol. V, Buenos Aires, 1957. Berlim, 1971).

42 43

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partir da Revoluçáo Mexicana), a criminologia etiológica
-ise a
L tino-americana, sem deixar de ser positivista, converteu-se logo CAPITULO SEGUNDO
n complemento ideal de direito penal mais ou menos neokantiano.
)

Enquanto o direito penal ocupava-se apenas do "deve ser", corn o


q ial o poder assinalava os limites do saber criminológico, a crimi-
n )!ogia ocupava-se da "etiologia" das açôes das pessoas selecio- AS FONTES TEÓRICAS DA DESLEGITIMAÇÄO NOS
n tdas pelo poder do sistema penal; no entanto, acm o direito penal, PAÍSES CENTRAIS
n m a criminologia ocupavam-se da realidade operacional do sis-
Ltma penal, cuja legitimidade nao era questionada. O discurso
A SITUAÇAO FAVORAVEL OBRADA POR UM
ridico-penal neokantiano nao corna risco algum, e até sala for- DISCURSO EMPOBRECIDO. I. As antropologias
lccido corn o aparente escoramento dos dados dc uma "clência anacrónicas. 2. O jogo das ficçóes - II. A
nìtural". DESLEOITIMAÇÀO DO SISTEMA PENAL NO
MARCO TEÓRICO MARXISTA. 1. Dificuldades para
delimitar o marco teórico marxista. 2. A deslegitimaçáo
de Pasulcanis e a relegitiniaçao stalinista. 3. A teoria
crítica da sociedade. 4. A verso dcslegitimante de
Quinncy. 5. O "minimalismo' penal de Alessandro
Baratta. 6. Pavarini e a m consciencia do born
criminólogo - ITT. A DESLEGITIMAÇÄO PELO TN-
TERACIONISMO SIMBÓLICO E PELA
FENOMENOLOGIA- IV. A DESQUALIFICAçÂO
FOUCAULTIANA - V. O PARADIGMA DA
- DEPENDENCIA - VT. BALANÇO DA
DESLEOITTMAçÀO TEÓRICA CENTRAL.

I - A Situaçáo Favorável Gerada


Por Um Discurso Empobrecido
2

As antropologias anacrônicas. A deslegitimaçao dos sis-


1.
temas pcnais e o desprestigio dos discursos jurídico-penais náo se
produziram abruptamente no marco teórico dos países centrais,
mas resultaram de umlongo processo de rcvelaçäo de dados reais,
acompanhado de um paralelo empobrecimento filosófico do dis-
-
curso jurídico-penal, que permitiu asobrevivência quast intactas
ueste discurso - de concepçöcs do homem ou de antropologias

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j
filosóficas ha mullas décadas desaparecidas das correntes gerais do neutralizantes façam as vezes -
"vicariantemente" das penas -
pensamento. restributivas (hegeliano) ou que permitem acumular penas retri-
o penalismo de nIvel médio foi abandonando sua veiha pre- butivase medidas nejitralizantes em um "duplo binario" (gen-
tensäo de coeréncia filosófica e empobrecendo seu discurso até tiliano).
tornar comum a mistura arbitrária de elementos de ideologias in- Recordemos que o positivismo de Spencer, Haekel ou Moles-
compatfveis. Cabe assinalar que os suplementos oferecidos ao pe- chou foi a expressão do discurso racista neocolonialista do século
nalista a partir do próprio campo filosófico foram menos XIX1, que o criticismo kantiano do século XVIII foi uma expressão
significativos na medida em que muitos des cultores da filosofia do despotismo ilustrado2, que o idealismo dialético hegeliano foi o
renunciavam às perguntas fundamentais através do cientificismo equivalente alemáo do etnocentrismo colonialista e neocolonialista
reducionista. Assim, enquant o discurso jurídico-penal empobre- inglés de Spencer3 e que o neo-idealismo gentiliano foi ou preten-
cia-se, a filosofia descuidava-se de sen tradicional objeto de inte- deu ser a filosofia oficial do fascismo italiano4.

o discurso jcotl,
resse-' Consthqüentemente, nao foi afilosofla que col'ocou em crise
porque nao dispunha de urna atalaia a
partir da qual fazô-lo; mas a dcslcgutimaçáo dcste discurso foi obra,
Parece-nos bastante claro que um discurso jurídico-penal
que, neste momento, pretenda exibir, como garantia antro-
pofilosófica, Cesare Lombroso, Inn,anuel Kant, Goerg Friedrich
principalmente, do saber sociológico. Wilhelm Hegel ou Giovanni Gentile, pode ser qualificado como
De qualquer maneira, ao operar-se a deslegitimação, a debi- filosoficainente anacrônico, anacronismo qUe näo se pode dissimu-
lidade antropofilosófica do discurso jurídico-penal - convertido lar sob urna ignorância filosófica que amontoe arbitrariamente
ein verdadeira reserva de sobrevivência de espécies extintas do elementos tomados das quatro antropologias filosóficas e que, me-
-
pensamento facilitou consideravelmente esta tarefa. nos ainda, pode renunciar a qualquer aproximaçâo filosófica.
As antropologias filosóficas (ou ontologias regionais
humanas) que dominam o discurso jurídico-penal sáo, basicamen-
te, as seguintes: a) apositivista (ou seja, a reducionista-biologista
ou grosseiramente materialista), que nutre o discurso racista-peri-
culosista; b) a kantiana, que dá fundamento a todas as formas de 1. Esta característica está muflo bern explicadaporMarvin 1-Inris no estudo que ele faz sobre
retribucionismo; c) a hegeliana, que limita o retribucionismo aos Spencer ein El desarrollo de la frotta antropológica Historia de las teorías de la cuirurc
Madri, 1983.
setores sociais "incorporados" aos valores que o poder consagra; e 2. A recusa kantiana a toda possibilidadc de resistencia
à autoridade, qe faz revíca- c
d) a neoidealista (gentiliana), que oferece a base para a super- fantasma de Hobbes em scu túmulo, é bastante clara neate senUdo, cOr. .0 Se fOgtUmC
-i'

posição do retribucionismo corn a neutralizaçäo periculosista. esqucc-lo, prcferindo conferir a Kant o papel dc garante do liberalismo renal. O
verdadeiro "garante" do liberaUsmo penal foi Feuerbach, que rebateu a tese kantiana em
Para a antropologia positivista, o hornem é um ente deter- seu "Anti-Ilobbes", na realidade um anti-Kant, como bem o assinalou Cattanco (Mario
minado causairnente; para a kantiana, é sempre um ente livre que Cattaneo.Fnacrbach:Jilosofo egiuthta liberatç Milo, 1970; o "Anti-I-Iobbes" pode serlido
escoihe conforme sua consciEncia; para a hegeliana, é livre sempre em italiano: ,4nti-lfohbcs oncro i limiti delpotcre supremo e il thritto coattivo dei cittadini
contro ¡1 sò vrai, o, Milâo, 1977).
que nao deva ser considerado "diferente", em cujo caso a liberdade 3. Georg Luka, t1 asalto a la razón. La trayectoria dei irracionalismo desde
Sc/telling hasta
é apenas potencial; para a gentiliana, sempre está em certa medida Hitler, México, 1983.
determinado e, em certa medida, é livre. 4.É sabiCa que o idealismo atual ou neoidealismo italiano teve duas correntes principais: a
Estas antropologias deram lugar a discursos jurídico-penais de Beneirtto Croce cade Giovanni Gentile, sendo este último ministro dc Mussolini e
considerado o filósofo do fascismo. Gentile foi ministro da república títere instalada na
que só admitem medidas neutralizantes (positivista), que sá ad- Itália pelos alemA e morreu assassinado em 1944, cm Florença (Abbagnano, Nicola,
mitem penas renibutivas (kantiano), que permitem que as medidas op.eit., 111, pág. 428; Ugo Spirito, Giovanni Gentile, Plorença, 1969).

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Obviamente, a debilidade filosófica destes discursos nao ofe-
Na verdade, o discurso jurídico-penal sequer se incomodou
rice a menor resisténcia ao embate mais elementar levado a cabo
em incorporar urna gama mais variada de elementos, valendo-se
ri ediante qualquer dado deslegitimizante.
apenas de suas figuras ou imagens para a fundamentaçâo, que
podemos charnar de "positiva" e de urn fantasma para a funda-
2. 0 jogo das fieçoes. Urna "ficçáo" é urna invenção. Se, por
rnentaçäo que pode denominar-se "negativa"; o contrato e a orga-
n lado, é muito respeitävel e prornissora a corrente que pretende
nizaçao justificaram alternadamente sistema penal
.0
o e
ci wa o saber humano expressar-se por "metáforas"5, levando-se em

(i)nta que urna metáfora é um transporte (um uso "como se"), por "expiicaram" sua mecánica e extensäo; quando falhavam, ou eram
i.) 1tro lado, quando nurn discurso só se encontrarn ficçöes e me- insuficientes, o fantasma -
muito intimamente vinculado ao con-
foras, isto ê, invençôc: e transportes, significa que algo está fai-
E
tratualismo, mas usado pelo autoritarismo -
erao da arneaça de
urna suposta livolta à natureza" (entendida corno selvagem, primi-
t ndo.
o saber por
Urna coisa é afirmar que é rnuito meihor expressar tiva, animal), através de uma irnaginária guerra de todos contra
metáforas, por nunca poderrnos alcançar a realidade, em razão da todos.
rnorme inter-relaçáo de "tudo" (perspectiva "holística")6 corn - paradigma de maior vigência temporal é o do organicismo:
O
o discurso jurídico-penal fundamentado na idéia de sociedade
o que o saber se faz muito mais prudente e menos autoritário e - como organismo imperou teocraticaniente7, restabeleceu-se como
oitra coisa multo diferente é usar a metáfora, combinada corn
o positivismo e volta agora corn o funcionalismo sistêmico8.
ficçôes (invençoes), para extrair conscqüôncias asscrtivas e
ri finitivas sobre uma realidade à qual näo se presta a menor
A idéia de "organismo social" é, por sua esséncia, antiderno-
ir ençäo. j
crática, pois o que interessa é o organismo, e nao suas células. As
A primeira atitude éa de quern, diante de urna massa pletórica decisóes são tomadas apenas pelas células preparadas especial-
d realidade, comporta-se corn prudência, enquanto a segunda mente para decidfr e nao pela maioria indiferenciada delas. O
ar itude -
que caracteriza o discurso jurídico-penal éa de quem, - paradigma oiganicista é idealista, nao suscetível de verificaçáo, e
sua adoçäo pelo positivismo nao foi mais do que um recurso do
cl ante de um vazio da realidade, preenche-o corn sua imaginaçáo.

Desde o século XIII, quando, definitivamente, deixou de ser um poder para "mostrar como "científico" aquilo que sempre cons-
j Igamento de partes corn mediaçäo da autoridade para converter- tituiu urna metáfora antidemocrática9.
si em urn exercício de poder no qual a autoridade suprimiu urna
O paradigma contratualista, por seu lado, representa clara-
cl ìs partes (a vítirna), e mais ainda, desde sua reformulaçáo moder-
mente urna ficçáo e nem mesmo seus sustentadores foram ingênuos
aiïpartir de século XVIII, o discurso jurídico-penal sempre se a ponto de afirmar sua realidade antropológica: sempre o esgri-

b iseou em ficçoes e metáforas, ou seja, em elementos inventados ou


miram, esclarecendo que se tratava de urna figura'0.
ri azidos de fora, sem nunca operar corn dados concretos da rea-
dade social. 7. (:uiomente, trata-se de urn julgamento aprcssado de Aristóteles tC-lo, como garante,
Corn base em suaaflrmaçso da natureza social do homem, o que, evidentemente, nada tern
a ver corn o organicismo. -

8. Coni razIo Martindale, ao afirmar que nada de novo dizern os funcionalïstas quejá nao

tenha sido dito pelos organicistas (Don Martindale, La teoría sociol6gica Naturaleza y
5. Ver, por exemple, Bateson (a respeito, F. Capra, Verso una nuova saggezza, Muso, 1982, escuelas, Madri, 1979).
pág. 66). 9. Cf. Martindale, opcit. O Geist hegeliano, como vimos, é manifestaçäo do organicisrno, que

5. Sobre o assunto, ver F. Capra, O ponto de muta çño, São Paulo, 1987; Erwin Lazio, The compreende a hurnanidade corno um organismo.
Systems view of the wora!4 Nova bique, 1972. 10. Nenhum contratualista, seja filósofo ou penalista, concebeu-o corno verdade histórica, e

sim como figura imaginária pam explicar as relaçoes sociais.

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Em relaçäo às idéias da guerra de todos contra todos e da dificuldades para delimitá-la e, em conseqüência, para estabelecer
volta ao estado de natureza selvagem, os adeptos dessa teoria forain sua contribuiçáo teórica à deslegitimaçâo do sistema penal.
mais cuidadosos, já que estas idéias traduziam um argumento, de o marxismo nasceu deslegitimante. Karl Marx foi testemunha
"medo" que era preciso passar como real (e como possível arneaça de urn genocidio turopeu. A civilização industrial nao foi apenas a
de urna regressao), valendo-se de um recurso muito frequente na mais agressiva e predatória da história12, em sua projeçäo sobre a
época: a "natural" inferioridade latino-americana. Assim, a "guer- área marginal ou periferia planetária, mas, também, no que diz
ra de todos contra todos", que servia como fundamentaçào ne- respeito à vida e dignidade humana no próprio centro.
gativa, era considerada como real entre os "selvagens" da Diante da visão do genocIdio europeu, sacrificando massas
América11. -
humanas no altar da acumulaçào originária do capital produtivo,
Estes são os elementos inventados e iransportados para edi- Marx levou a cabo urna análise da história que procurava capacitar
ficar corn o organicismo todos os discursos jurídic.ò7penais trans- os marginalizados europeus de seu tempo corn um instrumento de
cendentes, transpersonalistas ou meta-humanos; corn o compreensäo e corn urna fronteira ideológica de luta. Embora Marx
contratualismo, os discursos intranscendentes, personalistas ou hu- náo tenha analisado em profundidade o sistema penal, ao qual
manos; e como fantasma da volta à guerra civil permanente, os que, forain dedicados escassos e dispersos parágrafos13, sujeitos a inter-
mesmo admitindo o contratualismo como ponto de partida, jus- pretaçöes multo controvertidas'4, ¿onsiderava, obviamente, que
tificavarn o status quo penal comb "ineihor que" ou "menos ruirn para tanto seria necessário deslegitimar todo o direito, especial-
que". Semelhante pobreza de sustentaçäo na realidade social çvi- mente o direito penal, relegando-o à categoria de "superestrutura
dencia que, nos dois últimos séculos, reincidiu-se em urn jogo de ideológica".
ficçôes recorrentes, que apenas acentuou a debilidade do discurso Desaparecido Marx, surgiram os "marxismos" e, com eles,
jurídico-penal, precipitada agora em crise. várias linhas de pensarnento deslegitimante -
e algumas tele-
gitimarites -
do sistema penal. A mais usual das versöes rele-
gitimantes na variável positivista e, às vezes, idealista, aceita urna
II - A Deslegitima cáo do Sistema Penal
concepçäo ontológica do delito e etiolégica da criminalidade atri-
no Marco Teórico Marxista
buida, exclusivamente, à pobreza, miséria, etc. Tais concepçóes
1. Dificuldades para delimitar o marco teórico mandsta. Dei-
implicam a construçâo de um círculo fechdo, pois supôe-se que,
xando de lado o etnprego da palavra "marxista" corno instrumento suprimidas a pobreza e outras "causas" semelhantes, o delito que
subsistir derivará de livre decisáo do autor, relegitimando-se, as-
-
delatório ou seja, o uso latino-americano do mesmo e limitan- - sim, um direito penal retributivo'5.
do-nos ao seu sentido ideológico, isto é, ao uso habitual nos países
centrais do poder mundial, cabe advertir que existem grandes
12. Cf. Roger Garaudy,Prornesasdellslan,, Madri, 1982.
13. Quiçá os mais importantes se encontrem nos seguintes trabalhos: Debate sobre lal'
contra el hurto de ¡nia (1842); Manuscritos económico-filosóficos (1844); (Manc-Engels),
11.Muitos autores europeus julgaram-nos inferiores por nao aceitarmns suas formas La sagradn familia (1845); Las luchas de clases en Francia de 1848 a 1850 (1850); El 18
"racionais" de governo. Por isso, John Locke considerava-nos em "estado de naturen" Brumario de Luis Bonaparte (1852): CapitalPunishment (no "New York DailyTribune",
(Ensayo sobre el gobierno civi4 parágrafo 102), e Thomas Hobbes admitia que sua guerra 1853); (Marc-Engels), Teorías sobre laplus-val&
civil continua "nunca foi exatamente assim em todo o mundo"... 'mas existem muitos 14.Vejam-se as multo diversas interpretaçöes, dos Schwendinger, dc Hint, t1e
lugares onde se vive assim ainda hoje, pois os poyos selvagens de diversos lugares da Taylor-Walton-Young, etc.
Amtica, caja harmonia depende da 1urria natural, nao tm governo algum, vivendo 15.Esta parecia ser a tese defendida pelos primeiros teóricos socialistas, cabendo ainda
hoje em dia da maneira brutal a que antes me refer?' (Levi atán, Madri, 1983, cap. XIII). assinalar as divergéncias entre flonger. Ferri, Turati e Vaccaro, por exemplo.

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No plano político genl, os "marxismos" constituem diferentes
radamente, que deixamos muitos outros autores de lado por näo
iiterpretaçöes - urna gama que vai do revisionismo de Beristain
pretendermos efetuar aqui urna exposiçäo detalhada da matéria16.
z o ativismo de Lônin, passando, em crítica a ambos, por Rosa
I utemburgo - que pretendem basear-se no pensamento de Marx,
2. A deslegitimaçao de Fasukanis e a relegitimaçao stalinista.
C L ;envolvendo-o e aprofundando-o.
Nos primeiros anos da revoluçao, produziu-se -no âmbito do
A reproduçáo dos "marxismos" foi favorecida por sua ins-
t Lucionalizaçao na Uniáo SoviEtica, pelo desencanto que produziu
-
marxismo institucionalizado uma deslegitirnaçao geral do discur-
so jurídico, tendo como teórico mais importante Pasukanis, que
t t inuitos intelectuais a ditadura stalinista, pelo fracasso revo-
lnionário alernao e posterior triunfo do nazismo, pelo escasso eco desapareceu pouco antes da última guerra mundial, perseguido
pelo stalinismo.
t Lt teorias revolucionarias entre os trabaihadores dos países capi-
tìl.stas centrais, pela extensão da institucionalizaçäo do marxismo Para Pasukanis, o direito era urna mera forma jurídica, pro-
utros países europeus, asiáticos, africanos e latino-americanos
C
duto exclusivo da sociedade capitalista, gerado pelas relaçôes de
pecialmente Cbina, Cuba, Albânia, etc.), por seu fracasso em troca que the são próprias. Corno o advento do socialismo nao
(

C liros países marginais do poder mundial onde foi superado por extinguiria automaticamente as relaçôes de troca, que continua-
riam a existir Como vestigio da sociedade burguesa, tambérn nao se
I K vimentos populares diferentes, pelas dificuldades econômicas
5 'LU gidas em alguns países de marxismo institucionalizado, etc. extinguiria a "forma jurídica"17, que desapareceria somente em
urna etapa mais avançada, quando essas relaçöes fossem superadas.
Corno resultado deste complexo panorama, iniciado hi mais
Diante da objeçâo de que sempre permaneceriam alguns de-
t e urn século pelo proprio Engels - ao aproximar-se do positivis-
litos contra a vida e outros delitos semelhantes, Pasukanis contes-
I -
ft cam sua "dialética da natureza" , seguir a pista dos marxismos
tava afirmando que, nessa etapa final, estes fatos seriam
t (.0 neornarxisrno torna-se tarefa sumamente ardua, que se com-
Liza ainda mais, tanto porque muitas correntes vâo se separando
considerados problemas médico-pedagógicos, de modo que "para
co pensameñto de Marx até tornarem discutível sua filiaçäo, como resolvê-los no se toinaria necessário recorrer ao jurista e a seus
tipos legais, a seus códigos, a seu conceito de culpabilidade, de
]iC as frequentes disputas dos países centrais pelo monopolio do

uìlificativo e pelas conseqüentes imputaçöes de heterodoxia. responsabilidade plena e reduzida, a suas sutis distinçóes entre
Diante destas dificuldades e corn as adverténcias precedentes, cumplicidade, favorecimento, instigaçäo, etc. O fato de este con-
Iniitamo-nos aqui a recolber alguns dos caminhos de vencimento nao ter conduzido, até agora, à aboliçao dos códigos
e. legitirnaçöo teórica do sistema penal co,numente considerados no
penais e dos tribunais, derivaria, naturalmente, deque a eliminaçáo
da forma jurídica nao se operaria corn a mera salda da sociedade
j no teórico do marxismo, scm tomar partido na disputa central
i
burguesa e, sim, corn a radical eliminaçao de todas as suas sobre-
o monopolio do qualificativo (ou na absurda disputa para se
var dele, em nossa regiäo marginal). Embora possamos ser vivências".
triticados por arbitrariedade seletiva, tentaremos fazer breve refe-
leitcia às interpretaçöes que consideramos mais demonstrativas.
(cm este objetivo, escolhemos para análise do marxismo institu- i6. É Obvio que excluimos deste trabaiho, que pretende Ser apenas
demonstrativo, autores
cic nalizado a versäo de Pasukanis e a polômica que desencadeou como os já mencionados (notai) e outros como Pearson, Chambliss, Platt,
Kxïsberg, etc.,
bem como o debate e as diferenças entre eles.
o scu tempo; para o marxismo nao institucionalizado, a crítica
17. Pasukanis, Bugenij B., La teoria generale del diritto ei)
marxismo, in Guastini, Riccardo,
cia1 da Frankfurt; e para o marxismo criminológico, as versóes Marxismo e teoria dei diritto. Antologia di scritti giuridici a cura dt..,
Bolonha, i980;
inticas de Quinney, Baratta e Pavarini, advertindo, talvez reite- LambS em Umberto Cenoni, Stucka-Fasukanis- VysinskiJ-SIroovic, Teoriesovieti che del
dìn#o, a cura dt Milso i964 pag 75

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53 1:
Corn todas as suas limitaçöes e irnprecìsöes, esta crítica ao
ficar o direito como urna forma capitalista, degradava-o
direito conservava a originária confiança romántica de Marx no como "bur-
gués", desqualificando, consc,qüentemente, a
desapatecimento do direito. A rnudança dc sociedade produziria autoridade do direito
novas relaçöes nao definidas na forma de
jurídico face ao proletariado, que se via assim privado de
perden- urna de
suas mais potcntes armas para lutar contra os
do sentido, deste modo, a sustcntaçäo da "forma jurídica" gerada inirnigos cl.o socialis-
mo21.
das necessidades das relaçöes assim assentadas.
Como se pode ver nesta polérnica e ern seu
Corno toda revoluçäo violenta concentra poder, que logo se autoritario des-
torna difícil dtscentralizar, particularmente se sobrevivem graves fecho, gerado pelo fiscal das purgas stalinistas22, o
poder soviético
ameaças externas, a verticalizaçáo soviética náo podia endossar institucionalizado e, particularrnente, o poder de suas
agências
urna tese como a de Pasukanis, especialmente corn a Nova Política executivas jurídicas nAo tolerararn a deslegitirnaçao de
seu exer-
cício e o desprestígio de seu saber. Esta reação
Econôrnica e o subsequente reforço verticalizador do Estado auto- estatal ressentiu-se
ritário18. de qualquer vôo teórico, reduzindo-se o discurso
jurídico rele-
H
A tese ¿ontrária foi sustentada por Stucki, qup polernizou
gitirnante stalinista a urn conjunto de afirrnaçóes
dogmáticas e
corn Pasukanis, postulando urna relegitirnaçäo do direito mediante
expressóes pejorativas, que interpretava cada crítica
deslegitiman-
te como urna denúncia de inirnizade ao Estado
a necessidade de urn direito revoluciionário, ao Qual nao poderia e à sua ordern.
Tratava-se, assim, de urna alteraçao rnuito similar ao
renunciar o poder soviético sern privar o proletariado no poder ¿le discurso jurí-
dico de "segurança nacional" de nossa regiao
um inestirnável e insubstituível instrurnento de luta, rnarginal. latino-
americana, corn argumentos periculosistas que, de
Esta polémica - e a evidéncia dos acontecimentos - levou certa forma,
Pasukanis a rever parcialmente seus pontos de vista19.
perduram até hoje no penalisrno soviético23.
A polémica entre Pasukanis e Stucka revela a contraposição
entre urna formulaçáo teórica, que nao considera as necessidades A teoria crítica da sociedade. Elaborada pelos
3.
autores da
de urn exercício efetivo de poder e os dados reais relativos a urna conhecida "escola de Frankfurt", a teoria crítica da
sociedade
considerávcl verticalizaçäo social derivada de urna luta armada nasceu filosoficarnente corno urna reaçäo antipositivista
dentro do
concentradòra de poder (ao qual agéncia alguma renuncia espon- marxismo (negadora da "dialética da natureza"),
apesar de seu
tanearnente), e a conseqüente forrnulaçáo de urn jurista que tentava carMer "marxista" ser, frequenternente, colocado
en dávida, [!c4

verdade, apesar das notOrias diferenças existentes


legitirnar o exercício de poder das agéncias. Nao cibstante, a polé- cnta seìts roas
mica conservava certo vôo teórico que se perdeu completamente destacados autores24, paulatinamente a escola mudo suas
posi
corn a intervenção direta do poder, através de Vysinskíj (o pontífice
çáes originais, afastando-se da ortodoxia marxista.
máximo do aparelho jurídico stalinista) que, em nivel de deleçäo20,
qualificou a tese de Pasukanis de "antimarxista" e 21.Vysinskij, in Guastin4 cit., páp 231 e sc.
22. Vysinskij, Problemi del diritto e dei Stato in Man
"pseudocieñtífica" e seu autor de "sabotador" porque, ao quali- in rronj, pág. 239.
23. Cf. Tornaso Napolitano, Delitti epate nella società
sovietica, Milao, 1981.
24. Os mais conhecidos forani Max llorkheimer
(Teoria critica, Scritti, 1932-1941, Turim,
18.Ver Giuseppe Boffa, Storia dell'Unione Sovietica MiMo, 1976, 1, pág. 430; Alec Nove, 1974; Studusull'autorità eiafamiglia, Turim, 1968),
Th. Wiesengrund Adorno (sobre este
Historia económica de la Unión Soviétic4 Madri, 1973. dltinio, a biblïografia e o estudo detathado de
Carlo Pettazzi, Iii. WierengrwzdAdomo.
19. P. 1. Stucka, La funzione ri voluzionaria dei diritto e dello Stato, in Cerroni, op. cit., pág. 3; Linee di ori#ne e & n'iluppo del pensiero, Florença,
1979). Mencionem-se, ainda, E.
também em Guastini, pág. 111. Fromm eH. Marcuse. Jürgen 1-labennas é considerado
o ditimo e tardio representante,
20. Recorde-se que Vysinskïj foi promotor nos tristemente fattosos processos dos anos 30,
ainda que tal filiaçao seja multo discutida (Cienciaytécnica
como ideología, Madri, 1984;
nos quais Stálin elirninou todos os seus adversárïos da veiha guarda leninista. Problemas de legithnación en e/capitalismo tardío,
BuenosAires, 1986; Teoría de/a acción
comunicativa, Madri, 1987).

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Segundo a versáo mais difundida de suas teses, a crítica mos- última instância, falsa, ao náo levar suficientemente em conta o
trava-se incapaz de mobilizar a sociedade, de preencher o vazio aspecto de disciplinamento, questao que seria desenvolvida por
entre o presente o futuro, cm razäo da perda da capacidade revo- autores muito posteriores29. No entanto, além do mérito pioneiro,
licionária da classe operária dos países centrais, o que levou a esta obra apresenta considerável grau de aeerto no que diz respeito
blar-se de urna "crítica negativa". A constatação de que já nao ao discurso jurídico-penal, ao mostrar como falsa a pretendida
funçáo manifesta da prisao e da pena.
r odia se produir a mudança social pelos meios tradicionais, a nao

sr por alguma intervençäo misteriosa e imponderável25, provocou


versao deslegiümante de Quinney. O "último Ouinney"30
4. A
ì_ ma crítica sumamente deslegitimante, no entanto, importante, que
afirma de forma rotunda que para a eompreensao do delito torna-se
r arece terminar mima traurige Linke26. Executa-se desta linha

Itabermas que, além de ser considerado o último dos expoentes da neeessário primeiro reconheeer nao ser este o fenômeno decisivo,
escola e de se encontrar bastante afastado do marxismo, utiliza a mas sim "o desenvolvimento histórico e a forma como atua a socie-
sociologia sistémica opondo a Luhmann um conceito de "racio- dade capitalista"31.
r alidade" que procura fundamentar numa ética e numa antro- Lembrando, em certo sentido, Pasukanis, Quinney sustenta
ologia racionalistas, relacionando-as corn as possibilidades de que a crise do direito penal só pode ser entendida como um sinai
sobrevivência do capitalismo e com o desempenho de um papel da crise do capitalismo. O direito penal desapareceria com o
r mito secundario pelas classes sociais27. desaparecimento do capitalismo e o conseqüente advento do
É necessário lembrar que o Instituto de Frankfurt, ao trans- socialismo, pois, frente à crise de legitimidade de seu poder, o
f rir-se para os Estados Unidos, publicou seu primeiro livro, rela- capitalismo enfrentaria um conflito que provocaria o seu colapso.
cionado diretamente corn a prisâo e o problema penal. Trat-se de Ouinney observa a existência de urna política eeonômica do
ma obra precursora -
cuja primeira parte foi escrita por Rusche direito penal corn eustos astronômicos que recaem sobre a popu-
laçao excedente. Definitivamente, sua proposta dirige-se a um so-
e completada nos Estados Unidos por Kirchheimer28 aberta- -, cialismo religioso, que valoriza o diálogo do marxismo com a
r1ente deslegitirnante do sistema penal. Este trabalbo sustentava
ue os castigos variarn segundo o sistema de produçäo a que cor- teologia e que transformará o direito penal no curso da revoluçAo
nspondem: que recaem sobre os pobres, reduzindo mais ainda suas socialista, dando lugar a uma sociedade que deixe de fabricar
j î miseráveis condiçôes de subsistencia; e que a eficácia intimi-
delinqüência. A meta de Quinney parece ser, portanto, a aboliçäo
ante dos mesmos depende da situaçâo do mercado de trabalho (à do sistema penal.
bundância de oferta corresponderia maior crueldade nos castigos. Os capítulos dedicados por Quinney ao custo do delito, à
j ois em caso de dirninuiçáo de oferta, operar-se-ia um maior apro-
política econômica do direito penal e ao enorme número de pessoas
citamento da mao-de-obra, inclusive prisional). institucionalizadas nos Estados Unidos são altamente desle-
Indubitavelmente uma vinculaçäo tao direta entre pena e mer- gitimantes, embora nao apresentem inovaçöes espetaeulares no
(ado de trabaiho, como pretende Rusche, torna-se simplista e, em

29. Porexeniplo, Michel Voucault, Suneiller et punir. Nokvancedc la prison, Paris, 1975; Dario
:5. Ver Marcuse, criticado por Haberinas. Melossi-Massimo Pavarini, Carcere e fabbrica Alle origine del sistema penisenziario
6. Cf. Zoltan Tar, A escola de Francoforte, Lisboa, 1983.
(X VI-XIX secolo), Bolonha, 1979.
30. Esta refer6ncia se justifica, pois Quinney chegou ao marxismo spés decepcionar-se
7. Hab etnias, Problemas ,.., cit. corn
os anos 60 e corn os protestos estudantis.
8. Georg Itusche-Otto Kirchheimer, Pena y estructura socia4 trad. de E. García Méndez,
31. Richard Quinney, Clases, estado y delincuencia, México, 1985.
Bogotá, 1984.

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I
plano teórico e tanipouco expliquem claramente como se operaria
muito útil a obra de Marx, desde que considerada como um edifício
essa aboliçao do sistema penal.
teórico "aberto", excluindo-se toda forma de dogmatismo marxis-
ta32.
5. 0 "minimalismo "penal deAlessandro Baratta. Para Baratta,
deslegitiniaçâo do sistema penal e a crise do discurso jurídico-
Recentemente, Baratta explicitou melhr a idéia de "marxis-
a
penal operam atravós de várias correntes: as teorias psicanalíticas,
mo aberto" -
ou nao dogmático -
como urna construção teórica
afastada do reducionismo economicista, através de urna teoria do
que negam o principio da legitimidade; as teorias estrutural-fun-
conhecimento próximo à de Sartre, que permitiria combinar o
cionalistas, que negam o principio db bem e do mal; as teorias das
interacionismo corn um panorama macrossociológico que engloba
subeulturas criminals, que negam o principio da eulpabilidade; as
as relaçoes de produçáo
teorias da rotulaçáo, que negarn o principio da prevcnção alem da
rotu1aço, que nega o principio da igualdade; ç a "sociologia do
Favarini e a nid consciêncía do born ci-iìninólogo. Para Mas-
6.
confuto", q'ue nega o lrincíio do inferesse social e do "délito
sinio Pavarini, desde o inicio da crise da criminologia etiológica, o
natural".
criminólogo se eneontra nunia situaçäo que evidencia a falsidade
Corn toda razäo, Baratta assinala nao ter sido a eriminolbgia
do discurso jurídico-penal, obrigando-o a justificar o status quo
"radical" (denominaçäo normalmente reservada para a ct-i-
legal, nao como o melhor, mas corno o "menos pior".
minologia crítica marxista) a responsável pela crise do discurso
Pavarini nao se refere a esta atitude apenas em relaçäo à
jurídico-penal, mas que, na verdade, essa crise foi produzida pela criminologia do conflito e da reaçáo social nao marxista, mas
própria criminologia "liberal" (conceito reservado para a
tambérn em relaçào à própria criminologia marxista, afirmando que
criminologia da reaçäo social de vertenté interacionista e feno-
esta última nao apenas supera as anteriores vinculaçoes dos feno-
menológica).
menos que a prirneira descre-,e como conflitos entre capital e
Baratta postula a adoção do ponto de vista das "classes subal- trabalho, como também "permite tornar óbvio o ceticismo dos
ternas" como garantia de urna práxis teórica política alternativa,
criminólogos radicals com urn ato de fé numa cada vez mais im-
afirmando que, enquanto as classes hegemônicas pretendem conter provável palingenesia social"3'4. Mas quando os caminhos, nesta
o desvio dentro delimites nao muito pertubadores, as classes subal-
sociedade, se fecharern ao "born criminólogo", nao Ihe restará
ternas estäo empenhadas numa luta radical contra os compor- outro recurso senáo continuar fazendo criminologia, ainda que com
tarnentos socialmente negativos (por comportamentos negativos "má consciência".
entendem-se a criminalidade econômica, a poluiçào, a criminali-
Pavarini apresenta urna disjur'tiva: carre-gar sua m conscién-
dade do poder, a máJia, etc.). cia ou enfrentar politicamente o poder, usando os instruméntos de
Para tanto, Baratta reclama urna ciência que nao se limite à urna criminologia alternativa, embora considere que náo exista
descriçao da niera desigualdade jurídica no campo penal, mas que muito espaço para esta segunda atitude.
compreenda a Iunçäo real do sistema penal na sociedade tardo-
capitalista, como reprodutor das relaçöes soeiais dedesigualdade,
e que explicite que estas relaçôes náo se baseiam na distribuiçâo
desigual de bens e valores, mas nas próprias relaçöes de produçao.
Segundo Baratta, as relaçôes económicas (de propriedade) pode- 32. Alessandro Baratta, Criminologia critica del diritto penale, Bolonha, 1982.
räo assim conectar-se às políticas (de poder), e náo ser colocadas 33. Baratta, Desarrollos reciernes de la criminologia crítica y el ,narrthno (rcpmduçao),
Saarbrücken, 1988.
como urna alternativa. A partir dessa perspectiva, reconhece ser 34. Massimo Pavarini, Introduzione a la criminologia, Fiorença. 1980.
...

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Corn esta descrição, discurso jurídico-penal ficou irreme-
o
IL! A Deslegitima cáo pelo Interacionismo Simbólico de
diavelmente desqualificado pela demonstração incontestável
-
e pela Fenomenologia teórico sus-
sua falácia e a criminologia etiológica, complemento
tentador desse discurso, viu-se irrcvcrsivelrnente desmentida.
A
Em nossa opiniào, a funçáo deslegitimante mais importantce podia
reversível do discurso »1rídicopenal 1cm sido realizada pelo in- partir dessas contribuiçöes teóricas, o sistema penal já nAo
i
criminologia, convertendo-se em
iracionismo simbólico que fundamentou a criminologia da permanecer fora dos limites da
seu objeto necessário ao revelar-se como mecanismo
reprodutor da
-
raçäo social nutrida pelo pragmatismo norte-americano e pela
realidade "criminal". Por isso, afirmarnos que as investigaçóes in-
sicologia social de George Mead36 -,
dando lugar à crítica das
teracionistas e fenomenológicas constituera o golpe deslegitimador
i istituiçöes totais de Goffman37, à rotulaçäo de Becker38 e aos penal, do
esenvolvimentos de outros autores que completaram a descriçäo mais forte recebido pelo exercício de poder do sistema
qual o discursojuridico-peflal nao mais poderá recuperar-se, a nAo
ca operacionalidade do sistema penal, como Schur39, Chapman4° realidade, por
c u Lemert41.
ser fechando-se hermeticamente a qualquer dado de
A tese central desta corrente pode ser definida, em termos menor que seja, isle é, estruturando-se como um delirio social.
nuito gerais, pela afirmaçäo de que cada um de nÔs se torna aquilo Muitos autores critieam o interacionismo43, principalmente
cue os outros vêem em nOs e, de acordo com esta mecânica, a prisào por ser urna teoria de "médio alcance" e, por conseguinte, incapaz
por
cumpre urna funçäo reprodutora: a pessoa rotulada como delia- de traduzir-se numa critica rnacrossociolágica. Ohjetou-se-lhe,
cüente assume, finalmente, o papel que Ihe 6 consignado, compor- exemplo, que a crítica institucional -
em nosso caso, a crítica à
pessoal
tando-se de acordo corn o mesmo. Todo o aparato do sistema penal prisâO - nAo é capaz de superar o nivel de crítica ao
procedente44, porém
penitenciArio. Scm dúvida, esta observaçAo é
stá preparado para essa rotulaçáo e para o reforço desses papáis. deslegitimaçAo realizada
A teoria da rotulaçäo e, em geral, as contribuiçöes do intera- tallirnitaçAo nAo consegue subtrairvalor à
ionismo e da fenomenologia4, apresentam a inquestionável van- pelo interacionismo. Em outros termos, nAo resta dúvida de ser o
lagern de descrever detalhadarnente -
corn um arsenal ao qual nAo interacionismo urna teoria de mádio alcance, corn todas as limi-
e pode imputar nenhl1m enfeite teórico -.- o processo de produçAo taçóes que Ihe são préprias: no entanto, isso significa, unicamente,
que
reproduçâo da "delinqüência". que esta teoria deve ser completada, por ser insuficiente, e nAo
seus resultadas sejam falsos. Do ponto de vista da desqualificaçäo
discutível,
do discurso jurídico-penal, a "rotulaçäo", por ser menos
5. Cf. Baratta, op. ciL, pág. 110.
6. George Herbert Mead, Espíritu; persona y socieda4 cit.
tern maior poder desqualificante.
7. Envin Goff rnan,La presentación de la persona en la vida cotidiana, Buenos Aires, 1971;
Manicomios, pris5 es e conventos, So Paulo, 1974; Estigma: notas sobre a manipula çSo da
identidade deteriorad4 Rio de Janeiro,1978.
IV - A Desqualifica cáo Foucaultiana
& Howard S. Becker, Outsidcs Studia in the sociology of deviancç Nova lorque, 1973; ¿Dc
Urna das contribuiçöes mais ricas à crítica do saber em geral
qué ¡ado estamos.'; in Rosa del Olmo, "EstigmatizEación y conducta desviada",
Maracaibo, s.f., pág. 19, e a sua íntima vineulaçAo com o poder foi desenvolvida por Michel:
9. EdwinM. Schur,DieNotwendigkeir einer besonnen en Betrachtung in FritzSack, Seminar:
abweichendes Verhalten', 1982, t. pág. 52.
1,
43.Também Gouldner, op. cit.
'O. Chapman, Lo stereotipo ..., cit. aprcscntaçäo de Chapman,
44. Conforme a crítica de Vittoilo Capccchi e Giovanni Jervis na
1. Edwin M. Lemert, Estructura social, control socialy desviación, in Marshall B. Clinard, para nás que, da nossa regiäo
op. cit. Entretanto, essa análise é muito importante
"Anomiayconducta desviada", Buenos Aires, 1967; Devianza problemi sociali eforme di deterioraçâO da conduta
marginal, concebemos o fato como produto de um processo de
controllo, Miläo, 1981. policial do burocrata.
tanto do delinqüente quanto do e
2. Berger-Luckman, op. cit.; Schutz, op. cit.

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Foucault, em um pensamento que nao esgota sua riqueza nas contri- sujeito, ou seja, a subjetividade cognoscível. O capitalismo - a
buiçoes efetivamente realizadas, mas que se projeta ainda mais
ampiamente em tudo o que sugere, inclusive sem necessidade de
sociedade industrial ou a tecnocientufica, como preferimos dizer -
estada muito mais profundamente dentro da pessoa do que supôs
compartilhar todos os sens pontos de vista. Por esta característica Marx e essa seria a explicaçáo das instituiçôes de seqüestro ver-
e pelo fato de seu desenvolvimento encontrar-se notoriamente afas- ticalizantes e militarizantes, apesar das grandes mudanças sociais
tado do que se costuma considerar como modelo de urna exposiçâo revolucionárias.
sistemática de filosofia acadêmica, torna-se quase impossível resu- Esta "microfísica" do "saber-poder" (ou do "poder-saber")
mi-Io como-conjunto. nao se modifica com a simples troca de governo, por mais revolu-
pois, a assinalar os aspectos mais importantes cionário que seja, já que Foucault náo admite a presença de um
nosso objetivo, podemos afirmar que a deslegitimaçäo radical "sistema" no sentido "sistémico" e, sim, de uma "guerra política":
do próprio saber, isto é, das "ciencias humanas" configura um dos a política seria a continuaço da guerra ou a guerra a continuaçäo
pontos mais importantes no pensamento de Foucault, da política. Esta luta; em seu conjunto, proporciona uma visáo que
Em um de sens trabaihos mis difundidos, Foucault parté da leva a enganos e que faz crer na existência de um "sistema" que nao
: afirmaçâo de que a forma de estabelecer a verdade no processo existe como tal, já que é simples alinhamento ou composiçäo dos
--- penal'é um modelo de saber que nutre todo o conhecimento. Assim, diferentes poderes em luta. Esta também é a explicaçáo dos impon-
exemplo, o processo germânico estabelecia a verdade por mejo deráveis históricos.
de uma luta ou combate entre! as partes. Foucault desdobra este As principais teses de Foucault sobre a relaçäo de saber e
modelo como paradigma de toda a "ciência" desse tempo, especial- poder são sumamente importantes para nosso campo e nossa regiäo
mente a alquimia. marginal, o que nos obrigará a retornar a algumas delas em outras
O modelo muda corn o advento dos estados nacionais, isto é, ocasiöes. Sua epistemologia institucional é quase indiscutível e
com a transformaçäo trazida pela revoluçâo mercantil, onde a ver- explica, em grande parte, tanto a natureza das respostas à desle-
dade passa a ser estabelecida pelo poder de um terceiro "acirna" gitimação em nossa regiáo marginal latino-americana, como tam-
das partes. A sociedade militariza-se e o delito passa a ser con- hóm algumas contradiçñcs positivas entre um saber gerado por
siderado um dano ao soberano. Assim, väo surgindo - ou gene- agências centrais e disfuncional para as agências da regiâo peri-
ralizando-se - o que Foucault denomina de "instituiçöes de férica e, multo especialmente, sugere a possibilidade de pensar
seqUestro" (prisao, manicômio, asilo, hospital, escoja, etc.) e a (repensar) a "colônia" ("neocolônia" e "região marginal") corn o
polícia. paradigma da "instituiçäo de seqüestro". E desnecessário dizer
As "instituiçóes de seqüestro" geram uma epistemologia: a que, no ámbito criminológico, está claríssima a relaçào entre a
criminologia, a psiquiatria, a clínica, a pedagogia (poderlamos criminologia ctiológica e a prisâo.
acrescentar a gerontologia, os "especialistas" em "tóxicodcpcn-
déncia")e, o que é muito importante, cada instituição gera seu
próprio saber ao amparo de seu micropoder. Y - O Paradigma da Dependencia
Ao afirmar-se que cada instituição gera deste modo seu saber
e seu poder, Foucault desqualifica a distinçâo marxista
entre infra- Nas últimas décadas, prevaleceram as teorias sobre o "desen-
estrutura e superestrutura ou, ao menos, leva-a a colocar-se em volvimento", cruzando-se idéias em diferentes sentidos. A tese
outros termos, pois o saber e o poder estâo muito mais imbricados mais difundida por setores oficiais do poder mundial foi de cunho
para Foucault do que para Marx, já que o poder gera também o spenceriano: o capitalismo cent'al tena car5ter "centrífugo" e es-

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tenderla o progresso äs regiñes marginais, generalizando, com a
sidera, ao contrário do pretendido pela teoria do desenvolvimento
industrializaçâo destas, o bern-estar em nivel planetário. Os fenô-
e, também, pelo rnarxismo tradicional, que nossos fenômenos nao
menos crirninais de nossa região seriam semeihantes aos do mundo
são análogos aos centrais, ruas, sim, deles derivados e, por con-
central no momento da acumulaçäo originária de capital. Esta visão
seguinte, apresentam urna particularidade diferencial que é irupos-
do desenvolvimento caiu em total descrédito nos últimos anos,
sível apreender corn as categorias do saber central.
diante da evidencia dt que, alérn de a industrializaçao nao ter se
Este paradigma abriu urna discussäo na qual se chocam opi-
-
produzido ou, se se produziu, náo ter trazido essas vantagens -,
niöes dispares. Apesar disso, podem ser assinalados os trabalhos
aosso crescimento econômico deteve-se bruscamente e o produto
de Darcy Ribeito como urna das exposiçöes mais completas desta
1)ruto caiu. Em ouros termos, o capitalismo centrai paece ser
teoria no plano antropológico48 prihcipalmente,por sua distinçáo
'centrípeto", acentuando-se cada vez mais, por um lado, a distância
entre alualizaçdo histórica e aceleraçäo evolutiva4: "Por aeeleraçáo
tecnológica entre o centro e as regiöes marginais e, por outro, o
evolutiva entendemos os processos de desenvolvimento de socie-
contraste entre o esbanjamento de nossas classes médias e o en-
dades que renovam autonomamente sou sistema produtivo e refor-
Jividamento de toda a regiáo e entre a desproteçâo da produçäo
mani suas instituiçóes sociais no sentido da transição para um outro
acional e a atitude acumulativa originária de capital produtivo
modelo de formaçäo socio-cultural, como poyos que existem por si
entra1 no século passado. 'rudo isto demonstra que existem pro-
mesmos". Por "atuali'iaçäo ou incorporação histórica designamos
ilcrnas estruturais -
e no meramente conjunturais em flUsso ---
os prueedimentos pelos quais esses poyos atrasados na histOria sao
Jesenvolvimento, admitidos e destacados inclusive por autores que,
)utrora, foram entusiastas do modelo neo-spenceriano45. enxertados compulsivamente cnt sisternas tecnologicaniente mais
E claro que existe urna tese ainda mais ortodoxamente neo- evoluldos, corn perda de sua autonomia ou, inclusive, corn sua
destruiçao corno entidade étnica".
penceriana -
digamos, abertamente genocida -
que propöc que Nossa tentativa de realisrno marginal aproxima-se desta cor-
) centro nos deixe entregues a nosso destino (que, obviamente, nao
i senäo aquele que o poder centTal estabeleccu) pan que apten-
rente ao constatar corn muita clareza que nossa regiáo latino-
americana e seu controle social sao produto da transculturaçào
lamos a nos fortalecer na adversidade e para que a ajuda nao nos
ìtrofie46. Isto implica propor urna dominaçáo e exploraçäo iii- protagonizada, primeiro, pela revoluçäo mercantil e, depois, pela
nitadas e imputar sens efeitos sobre nossa regiäo marginal à imossa revolução industrial, revoluçöes que nos incorporaram às suas res-
pectivas civilizaçöes "universais" ou planetarias. E bem evidente,
:ondiçâo de subdesenvolvidos e, naturalmente, de inferiores.
também, que, agora, nos encontramos frente a urn terceiro momen-
No entanto, nos prOprios países centrais e, particularmente,
ms Estados Unidos, vem se desenvolvendo urna corrente crítica da to -
a revoluçáo teenocientífica -
cujas conseqüências podem ser
tao genocidas quanto as anteriores. Para nás, na verdade o geno-
eoria do desenvolvimento, que substitui o "paradigma do desen-
cidio em ato, implica o exercício de poder dos sistemas penais de
'olvimento" pelo "paradigma da dependôncia", a exemplo do que
nossa regiäo marginal, já faz parte desse processo.
acorre há décadas no plano econômico geral47. Esta corrente con-
Sem dúvida voltarernos a alguns desses aspectos mais deta-
Ihadamente; adiantamos que, no entanto, em nossa opiiiiáo, o para-
5. Por exemplo, Prebisch, op. cit.
digma da dependência é o marco que nos permite melbor
6.?. T. Bauer, Crítica de latearía del desan'ollo, Barcelona, 1983.
.7. Sobre economia em geni, cabe mencionar os pontos de vista de André Gunder Frank
Darcy Ribeiro, O processo civilizatórjo, Petrópolis, 1987; As Américas e a Civilizaçdo,
(Capitalismo y subdesa,rollo en Amáica Latina, México, 1982) e Paul A. Bann (A 48.

economia política do desenvolvimenjo, Rio de Janeiro, 1977). Petrépolis, 1979; 0 dilema da América Latina, Petrópolis, 1983.
49. 0 processo civilizatório, págs. 55 e segs.

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mente52, suas contribuiçôes resultam altamente deslegitimantes
aproximação para a compreensáo do controle social punitivo em para o exercício do poder do sistema penal e desqualificantes para
nossa região marginal. o discurso jurídico-penal, ao exporem, entre outras coisas, a dis-
Certamente ainda há dúvidas e disparidades, mas, acima de panidade funcional dos fenômenos de controle social centrais e
tudo, flea claro que a America Latina no pr.o4uziu urna "servidáo" marginais do poder mundial, revelando assim que a pretensão de
através da superaçâo originária e dinámica da "escravidäo", nem cobni-los corn o mesmo discurso só possível mediante um nIvel de
sen capitalismo um processo que possa ser explicado por urna abstração de táo alto conteúdo idealista que chegue às raias do
superaço .própria da servidão ou do feudalismo Todos esses mo- solipsismo.
mentos, que nos forain marcados pelo poder central planetário e
näo por urna dinámica independente, responderam a necessidades
do poder centrai em suas diferentes etapas e nos foram impostas Vf - Balanço da Deslegitirnaçäo Teórica Central
corn um certo discurso ou saber".
Já assinalamos que, em nossa região, a deslegitimaçao do
. :

Isto determina a iinpossibilidade de nos referirmos a


.

"feudalismo", "pró-capitalismo" ou "capitalismo" latino-amen- sistema penal resultante da evidência dos próprios fatos. No
canos em sentido estrito50, ou seja, no mesmo sentido dado nos entanto, se há alguns anos, pretendia-se legitimar o exercício de
países centrais onde estes fenômenos aparecem como originários, poder do sistema penal em nome de nebulosas e futuras adaptaçôes
surgidos de sua própria dinâmica. ?or isto, tambdm, é absoruta- do mesmo à legalidade (que se produziria em funçâo de um hipo-
mente inadmissível a pretensão do desenvolvimentismo neo-spen- tético desenvolvimento, entendido no sentido spenceriano), a atual
cenano ao tentar compreender o controle social latino-americano deslegitimaçäo desenvolvida pela teoria sociológica central e pela
por analogia corn etapas presentes ou passadas do controle social criminologia da reaçäo social fechou a antiga via legitimante ao
central. Nossa regíäo marginal tern urna dinámica que eStá con- ilusäo na quai se assentava (que também foi aniquilada
dicionada por sua dependência
pela verificaçäo fática da falsidade do desenvolvimento neo-spen-
e flusso controle social está a ela.
ligado. cenano).
A deslegitimação teórica central nao se produziu por efeito
Na criminologia, a tese do desenvo1vimento neo-spenceriano
deu lugar ao que se chamou "criminologia tradicional da moderni- de teorias marxistas -
como pretendem aqueles que desejam
zação" que, do ponto de vista do paradigma da dependência, pro- ignoná-la em nossa área ou pelos partidários da "segurança macia-
duziu a "criminologia da dependência econômica" na quai cabe nal" -, mas a deslegitimação irreversível operon-se corn as pes-
mencionar Martha Huggins, por sua especial dedicação à hives- quisas interacionistas e fenomenológicas, como o reconhecem e
tigaçäo de nosso controle social51. Embora a proposta da crI- sublinham os autores que se perfilam entre as diversas correntes
minologia da dependéncia ainda deva ser desenvolvida mais ampia- marxistas corn fundanientaçäo teórica séria.
o marxismo nasceU deslegitimante do sistema penal, nias essa
deslegitimaçao teórica nao teve os efeitos atribuidos à teoria da
rotulaçäo porque estagnou numa "macrocrítica" que, invariavel-
- 50. Cabe obsciwr que DarcyRibeiro afirma serpossíve falar-se de feudalismo na America mente, ignorava a operacionalidade concreta do sistema penal.
Latina, entendido como urne egresso históiica, no propriamente de urna etapa, mas
...

que se deu em diferentes momentos e civilizaçôes, como expiessAc de decadencia (O


.
processo civiüza&jrio, pág. 60). A possibilidade de um feudalismo latino-americano foi
52. Martha K. luggins aponta como pionciro o trabaiho dc Charles Van Onselen, Chi baro:
defendida pelos primeiros socialistas e provocou um ampio debate (ver Frank, op. cit.).
African MineLabcìur in Southern Rodizesi4 1900-1933, Londres, 1970.
51. Martha K Huggins, From Slavery to Vagrwicy in BraziL Crime and social conirol in the
Third Work4 Nova Jersei, 1985.

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que traba-
i ratava-se de urna deslegitirnaçáo semeihante à do anarquismo, nao interacionistas, fenomenológicas, marxistas dos autores
aaalisado por nos53, e nenhurna delas chegou a produzir descrédito da eficácia deslegi-
lham teoricamente a partir do reconhecimento
"microfísica" do
d o discurso jurídico-penal, ao se centrarem nas novas estruturas do
tunante dos anteriores, as de Foucault quanto à
criminologia da
poder e näo descerem à forrna concreta na quai o poder opera no poder e, mais recentemente, as contribuiçOes da
s- sterna penai, cujo discurso de fundarnentaçôes lirnitararn-se a
economia dependente.
ksprezar, como urna superestrutura ideológica.
As contribui.çöes de Foucauit dernostram que nao se trata de
nero discurso faciirnente superável, urna vez que, se por urn lado,
Q corte entre "infra" e "superestruturai" näo se mostra tao nítido,

por outro, os "sabcrcs" são produzidos pelas agéncias que exercem


e;se rnesrno poder controlador, cuja análise particularizada havia
s do, praticamente, desprezada pelo marxismo tradicional.

O marxismo institucionalizado provocou ainda major con-


I isäo quando, por necessidades inerentes à irnplementaçáo de uma
industrializaçäo acelerada e à defesa nacional, relegitirnou violen-
ttmente o sistema penal e desernbaraçou-se de seus teóricos des-
I gitimantes, estigmatizando-os corno "sabotadores".
Simultaneamente, boa parte do marxismo nào institucionalizado
desembocou na "esquerda triste", sem perspectiva de mudança ou,
pelo menos, gerou essa atitude corno resultado de urna crítica que
s esgotava em si mesma. Além do mais, é certo que outro ampio
s tor do marxismo tradicional, que nunca chegou a aproximar-se

do fenomeno do colonialiso, permaneceu preso a urna postura


que nao conseguiu se afastar multo das linhas de desenvolvirnento
uco-spenceriano. O paradigma da dependéncia vejo jogar urna luz
ttnto sobre a funçäo controladora do sistema penal em nossa regiáo
okarginal e no centro; quanto sobre a consequënte falsidade de
qualquer discurso racionalizador que abarcasse as duas situaçôes
e sobre a desqualificaçao das tentativas desta natureza.
Em smntese, as contribuiçoes teóricas deslegitim antes mais sig-
iJ'icativas para a desqualij'icaçao do discurso jurídico-penal em
ossa área forant a criminologia da rea ção social em suas verten tes

5 L Na vertente anarquista há trabaihos específicos, como o de Alex Comfort, Autoridad y


delincuencia en el Estado Moderno, Buenos Aires, 1960; 6 clássica a crítica à prisäo de
Kropotkine,Lasprisiones. La moral an arquista Elsalariado, trad. da Juventude Literária,
Barcelona-Buenos Aires, s. f.

(8 69

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FARTE II

RESPOSTA À DESLEGITIMAÇÄO
EA CRISE

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CAPÍTULO TERCEIRO

TEOfflAS E ATITUDES CENTRAIS E MARGINAIS COMO


RESPOSTA À DESLECITLMAÇÁO EA CRISE

I. TEORIAS E ATITUDES: O SABER CENTRAL E


SUA PARCIAL DISFUNCIONALIDADE
PERIFÉRICA - II. RESPOSTAS CENTRAIS SOB A
FORMA DE "MECANISMOS DE FUGA'. 1. Negaçào
epistemológica da deslegitirnaçäo. 2. Fuga para o
retribucionismo. 3. A funcionalidade burocrática da
agencia judicial
RELEGITIMANTE SISTEMICO
- III.
- O DISCURSO
TV. AS RESPOS-
TAS QUE DESAFIAM A DESLEGTTIMAÇÁO A PAR-
TIR DO PLANO POLÍTICO-CRIMINAL. 1.
Intervençâo penal mínima e abolicionismo. 2. Seriam
propostas de novos modelos de sociedade? 3. A prin-

PROGRAMA DE INTERVENÇAO MÍNIMA COMO


-
cipal carencia das respostas pdlftico-criminais. V. O

PRpPOSTA POLÍTICO-CRIMINAL IMANTE DA


DESLEGITIMAÇAO. I. Duplo sentido de
"deslegitimaçáo". 2. O fundamento legitimante de um
futuro direito penal mínimo. 3. O programa de
legislaçâo penal mínima.- VI. O ABOLICIONISMO
PENAL. 1. Caracterizaçäo geral do movimento
abolicionista. 2. As variantes do abolicionismo. 3. A
polemica sobre o abolicionismo. 4. As dúvidas-limite
face às propostas abolicionistas.- VII. O USO ALTER-
NATIVO DO DIREIÌO.- VIII. REAÇÓES MAR-
GINAIS.

73
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j Teorias Atitudes: O Saber Central
e
de poder que priva da autodeterminaçäo, que assume
e sua Parcial Disfuncionalidade Periférica o governo
político, que submete os institucionalizados a urn sistema produtivo
L A resposta à destegitimaçao do sistema penal e a conseqüente em beneficio do colonizador, que the impóe seu idioma, sua
crise do discurso reh-
jurídico-pena] é heterogênea, nào apenas quanto giao, seus valores, que destrói todas as relaçöes comunitárias
que
disparidadc ideológica que abrange, mas, também, quanto à natu- Hie pareçam disfuncionais, que considerá seus
habitantes como
das respostas. Neste último sentido, é necessário precisar a sub-humanos necessitados de tutela e que justifica como empresa
existência de reaçées tanto ein forma de respostas teóricas piedosa qualquer violência genocida, corn o argumento de que, ao
criminológicas, politico-criminais ou discussöes jurídico-penais
como também cm forma dc a/iludes que no podem ser conside-
- final, redundará em beneficio das próprias vítimas, conduzidas
à
"yerdade" (teocrática ou científica). Este exercício de poder, con-
radas "teóricas". figurador do que Darcy Riheiro emma dc "processo de atua-
Torna-se fundamental destacar esta difercnça li-zaçäo", quando alcança as características presentes em nossa
na forma das
em razäo da tbndência, bastante frcqücñte,dè se desprezar regiào marginal ou na Africa, dá lugar a uma gigantesca "instituiçâo
ou tratar superficialmente as respostas nao teóricas. Uos dc seqüestro"..
pa(ses
centrais as atitudes nao teóricas possivelinente nao merecern aten- Tratar superficialmente a colônia e o "poder-saber" antro-
çao. No entanto, em nossa regiäo marginal estas reaçées são suma- pológico constitui urna tradiçào intelectual européia, poucas vezes
mente importantes e requbrem atenção preferencial, urna vez que, quebrada, que cultiva as críticas de seus pensadores sem reparar
aqui, o exercício do podcr dos órgäos nem sempre gera um saber no conteúdo etnocentrista de seu pensamento2. No entanto, é
in-
que se explicita em um discurso elaborado no estilo dos discursos questionável o conteúdo racista do "saber-poder" antropológico,
centrais qualificados de "teóricos", mas, ao contrario, limita-se quer pelo racismo "pessimista" de Gobineau, que, corn seus seui-
frequentemente a atitüdes discursivarnente confusas. dores - e corn a psiquiatria racista de Morel e seus herdeiros
-
As reaçOes aqui discriminadas de atitudes - formas de
exer-
cício do poder que gerani uni saber discursiva,ne,zte confuso c
coniradióno - säo explicadas, em nossa regiáo marginal, pela
2.
-
Apesar dc discuti-cI a metodologia defendida e dela se discorde -., cabe observarque
fosar,, nercssáños muitos anos para que um intcIcctua curopeu
COmO Sarrc desnudasse
forma assumida pelo excrcícío do poder pelos diversos órgäos. a civilizaçâo industrial como o fez no prólogo a Fanon.
3. ¿interessante assinajaT que OS
Existe um "saber-poder" que Foucault nao chegou a analisar com discunoseolonialistas e neocolonialistas, gebern que nunca
duvidararn da nossa inferioridade antropológica, desenvolvenm duas versóes
profundidade: o antropológico. O discurso antropológico nasceu sobre essa
mesma inferioridade: urna pessirnista, segundo a quai somos o produto dt urna
"queda",
como um discurso neo-colonialista que, revestido de forma "cien- e outra otirnista ou evolutiva, pan a qual aïnda nao chegamos a
"levantar-nos"Yan o
tífica", "superava" o discurso colonialista-teocrático. Entre as "ins- discurxo da antropologia teocrática cotoniatista ¿rarnos "hereges",
caídos ou perdidos,
conforme a tese de queo Apóstolo Tomás teña chegado à América, e sua rnensagern
tituiçöes de seqüestro" -
designaçäo das ínstituiçöes totais por rechaçada por ads (ver Pierre Duviots, La destnwcidn cfr las religiones andinas durante
sido
Foucault' - nao se encontra presente a colOnia que, em nossa conquista y Ja colonia, México, 1977; Jacques Larayt, Quezzaicóalt y Guadaiup4
La
io

opinião, deve ser repensada da perspectiva de urna gigàntesca fonnación de ¡a conciencia nacional en Mthco, México, 1983)-A vecsAo cteoeolonialista
deste pessimismo quis ser científica, Lendo sido deiendida por Gobineau, um
"instituiçäo de seuüestro" de características bastante particulares. decadente, dc nobreza duvidosa, diplomata designado para o Bnsil como castigo, e que
franSs
Nao é possivel considerar alheio a esta categoria foucaultiana, encerrou sua carreira corn um escándalo amoroso cpi Estocolmo. Para esteaovelista
amigo
apesar de sua imensa dimensao geográfica e humana, um exercício
palavn -
pessoal de D. Pedro Il - o único "ário" que considenva digno, no Brasil, de
dirigir-Ihe a
nao passáv-amos de degenerados, frutos de urna degeneraçao biológica
irrecuperável. Este estranho penonagem (veja-se a crítica instnitiva e feliz de Jean Pinot,
Le préjugé des races Paris, 1906; sobre sua breve
1. Foucault, Microfisica, cit.; La verdady lasfonnasjurtdicas, cit.
perrnanncia no lire51! e suas
excentricidades, seu vaticinio quanto à extinção do poyo bnsileiro por.degeneraçAo, etc.,

#75

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Ir)porcionou o libreto que haveria de repetir Alfredo Roscmbcrg,
de eslorço o máximo dc vigil'ância) corn o objetivo de disciplinar
flit)

C versào sintetizada e carente de originalidade4, quer pelo rads-


n:
C "otimista" de Spencer5, o arquiteto do "saber-poder'
-
para a produção industrial jamais poderla ter sido um programa
T do ini- válido para os países marginais, onde se tratava de conter as mato-
I c:ialismo neodolonialista britânido6. rias para mantê-las no baixo nivel tecnológico de uma economia
De maneira inquestionável, as colonias representavam gran- primária como mero complemento das economias centrais, que
e "instituiçôes de sequestro", as mesmas produzidas pela
C ;
apenas requena a superaçao da escravidao.
n: oluçao mercantil como instrumento indispensável para sua
o panóptico benthainiano poderia ser o modelo de controle
e.:tensäo de poder planetario. O neocolonialismo próprio da revo- ocial programado ideologicamente como instrumento dis-
1 ição industrial, que provocou a independéncia política de nossa ciplinador8 durante a acumülação originAria de capital na regiâo
r iáo marginal em relaçâo äs poténcias que -
por sua estrutura central, mas o verdadeiro modelo ideológico para o controle social
c e imp&ios salvacjonistas mercantis -
decaíram e perderam sua periférico ou marginal nao foi o de Beniharn nias o de Cesare
I eemonia dentral frente aos pujantes imperialismos indus- Lonibroso. Este modelo ideológico partia da prernissa de in-
t-i tizados, manteve a situação e renovou o genocidio da primeira ferioridade biológica tanto dos delinqüentes centrais como da tota-
cilonizaçäo quantas vezes se fez necpssário, deixando as grandes lidade das populaçöes colonizadas, considerando, de modo
r:raiorias de nossa regiäo marginal submetidas a minorias procon- análogo, biologicamente inferiores tanto os moradores das ins-
sIl ires do poder central.
tituiçöes de seqUestro centrais (cárceres, manicOmios), como os
Os defensores da primeira empresa colonial imputam aos habitantes originários das imensas instituiçöes de seqUestro
r uccolonialistas a invenção de urna "lenda negra" difamante. No
coloniais (sociedades incorporadas ao processo de atualizaçäo
cul anto, a historia nos cusma que nao houve tal lenda e, sim, uni histórica). Deste modelo provúm a famosa teorìzaçäo postuladora
¿irocidio de verdade, atrás do qual näo ficou o genocidio pro- da tao mencionada analogia entre o criniinoso e o selvagem (colo-
r:rcvido pelas potências neocolonialistas7. nizado), da qual também nao se salvaram a criança, o aneiáo (por
Nestas condiçöcs, as prisöes ou "pequenas instituiçöes dc Ser 'regrcssivo"), ou a inulber (ein razäo de sua menor capacidade
s:qüestro" de nossa regiäo marginal nao podiam pretender de racionalidade "funcional" para a produçáo e de sua menor
r:aponder à mesma funçäo que, ideologicamente, Ihes eram agressividade para a competiçäo violenta9.
a tribuIdas pelo centro. O panóptico de Bentham que para - A prisao dos países marginais constituía, pois, uma instituiçáo
To wanD representa o projeto ideológico de um modelo de socie- de seqUestro menor dentro de outra mai10 major. Em outros ter-
cale que vigia onimodamente (idealizado para exercer dom o mini- snos, nossas prisOes, no programa lombrosiano, seriam as celas de
castigo ou "solitárias" da grande prisäo, da grande instituiçäo de
t:eressartte consultar GeorgesRoeders, O int'nigo cordial do Brasi4 Rio deJaneiro, 1988),
n sequestro colonial.
fo scm dúvida o major inspiradorde Rosenberg, nAo era escravista, poMm Leu discurso
'e
Este programa só pode ser entendido como um apartheid
ra contraditório a esse respeitci; por isso foi necessário servir-se do discurso de Spencer,
.c é o equivalente neocolonialista da tese colonialista ou teocráLïca que negava a lenda de
criminológico "natural", porque, se aqui a maioria era de selvagens,
s da América, considerando-nos simples "infiéis". nao seria concebível uma instituição de sequestro destinada a pren-
4 13 ìstante clam a esse respeito, Marvin Harris, op. cit.
5 1V orel foi o criador da tese do desequilibrio "moral" dos mestiços, difundida na América

tina pelo já citado Nina Rodrigues no Brasil, por Runge na Argentina, etc. 8. Que tique bem claro ter sido um simples "modelo ideológico", pois na pruítica nunca
6 AI Cred Rosenberg, El mito del siglo XX Una valoración de lar luchas an(mico-espiriwales
funciunou conforme a programaçâo de Bentham, como nao podia Ser de outro modo.
tau CSTO tiempo, Buenos Aires, 1976. 9. Este curioso genero de argumentos sexistas pode ser apreciado, por exeniplo, na estranha
7 .N s verdade nAo se tratavu de nenhuma "lenda negra", mas de dims historiar negras.
obra de Otto Weininger, Sesso e carattere, Turim, 1922.

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der selvagens, funçâo que a prisäo cumpria no centro, onde os
"selvagens" cram minoria. Na periferia, essa funçäo era a da pró- seqüestro central. Corno a regiáo marginal nao dispunha de outro
L
institniçäo colonial. recurso, as fábricas reprodutoras de ideologias do sistema penal da
pria Como na periferia reproduziam os discursos centrais (através dos aca-
Segunda Guerra Mundial Hitler praticou na prOpria
aquilo dêmieos especializados nas universidades centrais), gerando con-
Europa que o apartheid criminológico justificava para as
regióes marginais - tradiçöes entre os orgaos de reproduçao ideologica (universidades)
especialmente latino-americanas e africanas
periféricos e o saber dos órgäos do sistema penal que enfrentavani
-,
o modelo lombrosiano foi rápido e cuidadosamente
arquivado. a dificuldade de conseguir outro discurso "apresentável", a partir
Na verdade, jamais um paradigma "científico" como o biotogista foi
tao rapidamente abandonado. de pedaços do discurso do apartheid criminológico, desqualificado
e proibido pela censura central ao ter se voltado contra o prOprio
Até entâo, o discurso criminológicò Invia sido o grande dis-
curso político das minorias proconsulares latino-americanas: sua centro11. -

burla à democracia e sua "tutela iluminadá" dé ñossas maioias Portanto, em nfvel de reprodução ideológka universitária, por
cram justificiadas pela inferioridade, das nossas malorias e por sua um ladò repetem-se os discursos teóricos centrais (gerados para
crescente "degenefaçào", que ameaçava as minorias "saudáveis"10. racionalizar um exercfcio de poder funcionalmente distanciado do
..

As prisóes, portanto, nada mais cram do que as "solitárias" de exercício de poder dos órgâos de nossa regiáo marginal), e, por
castigo dos grandes campos de colicentraçäo (ou de ressocializaçáo outro, o discurso dos órgáos de nossos sistemas penais degrada-se
em um "discurso underground" para "comprometidos", reproduzin-
"civilizadora" forçada) constituídos pelos próprios1 países peri-
féricos. do o velho discurso racista-biologista e expressando publicamente
O protagonismo das maiorias um saber discursivamente contraditório e confuso, ao qual deno-
nao era mais do que o triunfo
da degeneraçáo (nao era democracia e, sim, "demagogia"); libe- minamos atitude.
ralismo e democracia constitufam termos antagónicos na América Evidentemente, isto nao significa a ausência de atitudes nos
Latina desde países centrais, mas apenas explica porque estas são mais Ire-
a Revoluçâo Mexicana, e o discurso racista- qüentes e importantes, merecendo nossa maior atençáo, em nossa
criminológico represeutava o grande programa político neocolo-
regiäo marginal. Cabe acrcscentar que a defasagem no saber cos-
nialista.
tuma ser também explicada por nosso supostamente conjuntural
Quando, com inusitada urgência, tornou-se necessário arqui-
var essa ideologia, as minorias proconsulares já nao puderam subdesenvolvimento: o teórico colonizado ("neo" ou "tecnocolo-
nizado") pretende explicar a contradiçäo entre seu discurso e sua
utiliza-la para explicar o aniquilamento do liberalismo "para salvar
o liberalismo". A carência de urna ideologia central
prática como um momento passageiro a ser superado quando a
de sustentaçäo regiäo "alcançar" os níveis centrais.
produziu urna defasagem no saber (entre o discurso que correspon-
de ao exercfcio do poder no centro ¿ o exercfcio do poder
periférico). O exercfcio dc poder periférico já nao podla 11. Realmente, o único discurso que loi ut11 tanto ao centro quanto à rcgiâo margina! foi o
racionalizar-se corn os discursos centrais, porque os administra- lombmsiano na vçrsâo biologista pura. O discurso retributivo, por exemple, são se
dores das celas de castigo neocolonialistas (e agora tecnocolonialis- prestou como justiûcaçao; se transoulturar-se corn códigos como e Impeziat do Brasil e
tas) deviant exercer uni poder diferente daquele da instituiçdo de da Bolivia dc 1830 e todos os que eptaram pele modelo espanhol de 1548/1850/1870,
depanram.sc corn fenómenos curiosos: na Costa Rica, por exemple, nao havia prisno,
por isto a MfonalezaM foi substituIda por trabalhos forçados; prostitutas e vagabundos
1D A tese se sustentou por muitos anos. Veja-se, cram enviados à selva para construir caminhos, onde moriiam em pouco tempo (CL
por exemplo, Veyga, Degeneración y
¿egenerados. Micethi vicio y delito, Buenos Aires, 1932. Mónica Giandos, Sicrernas punidvos y estucnua social en Costa Rica: & velando una
histona wnordø2atth, San Jo54 reprod., 1988).

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Estas contradiçóes são sumamente importantes, pois, diante Fugapara o retribucionismo. Estritamente vinculada à atitu-
2.
ira impossibilidade de superá-las, hoje, apelando para argumentos de anterior - a ponto de, às vezes, ser difícil diferenciá-la, pois
i u junturais e personalizados, convcrtcm-se num formidável motor costumarn combinar-se - encontra-se a atitude dos que preferem
deslegitimaçào e agudizam as crises- inclusive existenciais ou refugiar-se no retribucionismo, mais ou menos preventivo-geral ou
-
i;soais dos teóricos marginais que, treinados no saber central, metafísico, segundo os gostos. Trata-se, deve ser repetido, de uma
¡em atuar em nossos sistemas penais. "atitude" e quase nunca de urna elaboraçáo ou aprofundarnento do
saber fundamentador. Esta atitude, como "mecanismo de fuga" ou
negador, näo deve ier, no entanto, confundida corn as construçôes
ii - Respostas Centrais Sob a Forma teóricas de discursos jurídiaopenais realiadas quñdo cronolo-
de "Mecanismos de Fuga" gicamente ainda nao se haviam apresentado os problemas de
Iegitirnidade corn a urgência de contemporaneidade marginal'2.
Negaçao episteinológica da deslegiti'naçao. Numerosos au-
1. No retribucionismo, que nao enfrenta a crise de legitimidade
t )rs e cultores
do discurso jurídico-penal, de pensameritos distin- do sistema penal, mas que a evita sem resolvê-la, deve também ser
t js e com nhveis muito diferentes de elaboraçäo discursiva, nao incluida a reiteraçäo atual da versão anglo-saxônica de Hart, para
i rtgram nenbuma teorização orgânica, mas, em geral, coincidem quem a pena se legitirna em funçao de dois principios: o da igual-
- - partir de uma visâo neokantiana, positivista lógica ou positivis- dade e o da Iiberdade. O principio da igualdade significa que,
t 1: uridica (nein sempre expressa e, menos ainda, coerentemente quando alguém vive em sociedade sem violar o direito, encontra-se
s&nentada) .- em considerar que, como sua "ciência" encontra-se em urna situaçäo diferente daquele que o faz violando o direito,
I rritada estritamente pela lei, o discurso jurídico-penal deve re- depreendendo-se, portanto, a necessidade de retribuir ao violador
C LLiI-5C à completitude lógica da interpretaçäo da lei em nivel
do direito o mal que causou.
sJnântico, procurando, zelosamente, evitar qualquer dado da rea- O "principio da liberdade", por seu lado, pressupöe que o
I d ide "incomodo" (nao assimilável pelo discurso).
violador do direito já calcula a a pena de modo que, na opçáo pela
Toda vez que a limitaçao - ou autolirnitação - imposta é de violaçäo do direito, já se encontra a opção pelo castigo13.
i upossível realizaçao, já que nunca se pode interpretar um texto
1 gal sem incorporar dados da realidade (a lei aspira sempre a
r ularnentar uma "realidade"), a incorporaçäo ou exclusáo destes 12. Evidentemente que estâo fora dcsta vaioraçäo autores como flans Weizel na Alemanha,
ou Giuseppe Bettiol na Itália, que construfram suas teorías antes que a cuse da
carlos näo legais constitui apenas urna arbitrariedade: a admissäo legitimidade se colocasse nos atuals termos. O pensaniento retributivo corresponde em
ce uns e a recusa de outros, segundo sejam legitirnantes ou des- sua versäo pun às teorias absolutas da pena, quando esta se impöe como necessidade
I ;gitirnantes, ficam a gosto do intérprete, que maneja o limite de nao suscetivel de Ser provada empiricamente, e Sim através de mero processo
lógico-dedutivo. Scm dúvida que o modelo mais elaborado foi o de Kant (ver Mario
r.ilidade epistemologicamente incorporada de acordo corn sua Cattaneo, Digniuà umana epena della filosofia di Kan4 Milac, 198i). tonstitui a mais
ciiveniência, apresentando-o como urna garantia de "cientifi- completa e elaborada justificaçäo paia a expropriaçâo do confito. As teorias relativas à
crdade" e "pureza metodologica" ou "garantia tecnocientífica". pena nao alcançam este resultado porque as provas empíricas as neutralizam. Os esforços
Estas construçòes - corno já foi afirmado - apresentam para construçäo de teorias "mistas" são estáreïs: toda teoria "relativa' é,Jeflnitivamente,
absoluta, porque nAo resta outro eaminho senäo secundarizar os fins; neste sentido,
cifrentes níveis de elaboraçäo, mas, em todo caso, o que deter- Binding foi mais coerente que Liszt
nuia a exclusäo do grau de realidade indesejável é a magnitude do 13. Ea tese de Herbert L. A. Hart, Responsabilità epena, Milao, 1981. Nesta linha trabalha,
i icômodo ou a dificuldade incorporativa do dado de realidade para na Argentina, Carlos Santiago Nino, Los ¡(mites de la responsabilidad penaL Una teoría
liberal del delito, Buenos Aires,1980; a respeito, Carlos Creus, Ideas penales
a e[aboraçao do discurso na medida do gosto do expositor. contemporáneas, Buenos Aires, 1985.

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Parece bastante evidente que se trata, em essência, de um
neocontratuatismo, que coloca o mesmo problema do contratualis- Negar um problema já existente, recorrendo ao argumento de
mo originário: a questão seria tranquila em urna sociedade "justa", que reconhecê-lo implica riscos e perigos, nao representa urna
em que a pena alcançasse todos os violadores do direito e em que resposta real e, sim, a adoçäo de urna atitude histérica: ignoro o
todos dispusessern do mesmo espaço social; no entarito, em socie- perigo e, corn isso, suponho que ele desapareça.
dades reals, nas quais isso nao acontece -
e, principalmente, em Respostas reais são as que reconheceni e enfrentani as críticas
nossa regiäo marginal -
a pena retributiva continua des- deslegitimantes, dando lugar a uma gama discursiva que vai da
legitimada14. Por outro lado, nao é esclarecida a razâo de se privi- busca de urna relegitimaçäo do sistema penal corn um discurso
egiar a retribuiço em vez da rejaraçáo .do prejuizo material e penal novo ou aparentemente novo à negaçâo radical dc qualquer
moral causado, que seria uma maneira mais efetiva de resolver o rclegitimaçäo e de todas as tentativas discursivas neste sentido,
confuto gerado pela violaçäo do dire ito, particularment pot levar scjarn cIas quais forem. O panorama teórico central oscila entre
àm conta o intçresse da pessoa diretaniente atingida» efles dois extremos quando realmente pretende enfrentar as argu-
Os seguidores do retribucionismo, em versáo preferencial- mentaçöes deslegitimantes16.
mente metafíica, procuram ignorar a deslegitimaçáo do sistema
penal e a crise do discursojurídico-penal por temor ao "reducionis-
3. A funcionalidade burocrática da.izgênciajudicial. Urna fuga
mo sociológico" e a um suposto aniquilamento do direito penal de ao desafio da deslegitirnação, que nao pode qualificar-se como
garantias (o efeito perverso do discurso jurídico-penal, já refe
rido). Esses temores -
em parte, conseqüência da perversidade do
-
teórica maa como simples atitude às vezes brutalmente grosseira
e outras extremamente ingénus, em algumas ocasiöes sustentada
discurso -
também são produtos parciais das conseqilências do com pedaços de argumentos neokantianos ou de positivismo
funcionalismo sistêmico -
das quais nos ocuparemos a seguir e - jurídico mais furioso e, em outras, sem rnaior sustentaçäo do que
náo chegam ajustificar a atitude de fuga negadora, que nao enfren- componentes autoritários que impedem o curso discursivo -,
ta a situaçäo crítica e que, na emergência, deixa o discurso penal traduz-se pela reaçào do órgäo judiciario, fundamentada no fato de
de garantias realmente indefeso, pois implica uma falta de resposta que a legitiniidade geta! do sistema penal nöo é problema de sua
real diante do avanço repressivo provocado por urna cascata de leis incumbência, reduzida unicamente à soluçdo dos casos concretos
punitivas com que os órgâos políticos respondem ao bonibardeio confoirne aspautas legais que regem ofatoparticular a resolver.
dos meios de çomunicaçâo de massa e à crescente incapacidade Esta atitude comporta uma notoria degradaçäo da atividade
para dar soluçöes reais aos conflitos sociais15. do órgäo judiciario, que se esvazia de qualquer ética, reduzindo-se
a uma funçäo totalmente burocrática como parte de um mecanismo
deslegitimado por sua arbitrariedade seletiva. O discurso jurídico-
14.A objeçáo é id.2ntica à que Jean Paul Macat formulou so contratualismo há dutentos
anos.
15.0 retorno ao retribucionismo ou "neoclassicismo" que se observa a nivel politico-criminal 16. Saibameque existe umaversaodo retribucionismopenal que sealinha entreaprevenço
na Escandiedvia, outrora campea do preventivismo especial quanto no tratamento, e na geral e o funcionalismo, sustentando que a pena cumpre uma tunçao de "supressAo
Aiemanha responde sóparcialmenteà falta de limites legais na ideologia do "tratamento" intrapslquica da perturbaçâo (alarme social) introduzida pelo delito na dispiçAo interna
(ver, a respeito, Albin Eser-Karin Comils,Neuere Tendenzen der krimbw ipolitik Baiuäge colctiva, corn a consegijinte consolidaçao da confiança comum no direito e corn o efcito
at' einem deucsch-skandùmvischen Srrafrechsskolloquium, Friburgo dc Brisgévia, 19S); induzido de prevenço de futuros delitos" (Elio Monelli, La prevenzione grisante
por outro lado, devemos ter presente que o preventivismo especial e o "tratamento" &ttegra.rrice nella modeina pmspedva nvibuzionistiea, in "Riv. IL di Diritto e
Proc.
também pretendem inserir-se nas linlìas gerais do funcionalismo. Penale", 1982, enero-mano, pág. 48). Esta tese no resistida à etítica de urna teoria mais
ou menos aguda da comunicaçIo social': um sujeito parece rijo se (ncr credor da
rctribuiçâo pelo que fez, senSo pela forma oem que o tras,smitiu ¡o pdblico.
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p na1 torna-se a-ético, no pior sentido da expressäo, pois o jurista III - O Discurso Relegitimante Sistémico
ri nuncia a qualquer conteúdo ético em sua conduta e o Orgão
idicia1 do sistema penal passa a atuar sem atender a qualquer o núcleo de todo pensamento sist&mico em "ciências sociais"
apelo ético. oonsiste num deslocamento do centro de atençào que, do hornem,
Esta atitude propöe um discurso jurídico-penal que nao se passa para o "sistema". Trata-se de urn modelo transferido da
irteressa item mesmo por relegitimar, corn qualquer argumento, o sociologia para o ámbito do discurso jurídico -penal. A origern
ii;tema penal, mas que, ao contrário, perde o interesse por sua deste pensarnento remonta ao funcionalismo de Durkheim19, ou
[e gitimidade e, por conseguinte, por qualquer consideraçäo éticat7.
mais proximamente, ao de Robert K. Merton, apesar de Merton nao
É a mesma atitude assuniida pelo "born" torturador, que se limita a transformar o "sistema" no centro de atençáo exclusivo de suas
ci mprir sua tarefa como um "profissional" corre to, passando a o sociólogo que deve ser apontado como "sistêniico",
pesquisas20.

e cponsabilidade ao órgao judicial e ao exerc(cio do poder dos juris-


em sentido estrito, é Talcott Parsons21, cuja versâo acolheu o dis-
cu: "Nao me importa se o que faço é ético ou näo. Nao sou eu quem curso jurídico-penal alernao, parte do qual se inclina, ultimamente,
dinde isso e, sim, a instância que sanciona a lei. Eu me limito a a endossar a versäo de Niklas Luhniann22.
ci mprir o que ela ordena". Esta foi certamente urna (esposta fre- Para Parsons, o "controle social" é um conceito sumamente
qente em Nuremberg. limitado, pois ocorreria somente ao fracassar a "socializaçäo". Sua
O treinamento desses juristas resume-se à formaçäo neces- perspectiva sociológica confunde-se com a perspectiva de Keynes
ria para seu desempenho como um disciplinado e obediente buio- em economia e com o "estado de bern-estar", no campo político.
'ci ata, que nunca pode formular-se quaiquer questionamento ético Neste sentido, seu sistema corresponde a um estado que attn de
c cujo Único mérito seria a desobediencia, da quai fazem alarde, rnodo paternalista, domesticando as pessoas; quando este processo
al cavés do quai o valor ético é substituIdo por um suposto valor
- -
denominado por Parsons de "socializaçäo" fracassa (o que se
p)sitivo da meca submissäo pessoal. evidenciaria tom a "conduta desviada"), começaria a operar o
A exprcssäo mais grosseira desta atitude e de maior - "controle social".
iii toriedade nos Últimos tempos -
foi assumida pela Corte Supre- Evidentemente, o pensamento sistêmico nada acrescenta às
auirmaçoes do organicismo23 e, na verdade, a diferença entre "or-
ma dos Estados Unidos quando, diante da evidência estatística
s bce a discriminaçào racial na imposição da pena de morte8, ganismo" e "sistema" nao se apresenta rnuito clara, se E cjue existe.
re solveu que essa estatística sO demonstraria urna violaçáo da igual- Para urna concepção sistêmica, o discurso jurídico-penal seria
W,de perante a lei, quando a discriminaçäo fosse comprovada no o regulador do "controle social" frente às condutas "desviadas".
ceso concreto. Apesar deste pensarnento ter, como seria natural, se generalizado
corn o "estado db bem-estar" ou "estado providencia" no pós-guer-
L7 Scm thivida, a perda da dimensso ¿tics acarreta igualmente a perda de quaquer
ra, o discurso jurídico-penal curopeu continuou circulando por
referencia filosófica. Convdm recordar aqui Coulure: "A major das desditas que pode trilhos predominantemente neokantianos até há alguns lustros24,
ocorrer a um estudioso de direito a de nao haver sentido nunca sua disciplina em mn
estado de ánsia filosófica, para depois dela chegar an trabaiho minucioso de sua ci6ncia.
Näobá estado de plenitude científica se nao se chega a tocar esta linha demarcatória entre 19. Emile Durkheim, La división del trabajo social Barcelona, 1985.
os ramos particulares" (Eduardo J. Couture, F VOlogo, pág. IX, a James Goldschmidt, 20. Robert IC Merton, op. cit.
PVobiema, generates del derecho, Buenos Aires, 1944. 21. Talcott Parsons, The Social System, Nova iorque, 1966.

LS Um panorama bastante completopode servisto em Amnestylnternational Publications, 22. Niklas Luhmann, Reehcssorìologie, Munique, 1972; SLcte,najurídJcoy doçnáticajurí&ca,

United States of America. The Death Penalty, Londres, 1987; Amnistía internacional Madri, 1983; Stato di diritto e sistema sociale, Nápoles, 1978.
Informe 1988, Madii, 1988, pág. 23. Don Martindale, op. cit., pág. 544.
140.

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quando começou a ser insistentemente infiltrado pelo funcionalis- novos delitos, e tampouco isto importa), tendo apenas o objetivo de
mo; porém o impulso mais importante da teoria sistêmica foi dado garantir o consenso, isto é, de cottribuirpara o equilibrio do sistema.
por sua recepçáo alema em versào prOpria, corn Luhrnann. Deste modo, ao mesmo que o discursojurfdico penal tributario da
Para Luhmann -
ao contrário de Parsons -
o "sistema" náo sociologia sistérnica afasta-se do bomem, reduzido a um"subsis-
se integra corn todas as pessoas da sociedade4 Luhrnann opôe tema", perdem-se todos os limites às garantias consideradas tra-
"sistema social" a "hornens", considerados corno "subsisternas". A dicionalmente como "liberais", tais como o bem jurídico, os
capacidade de equilibrio do sisterna depende de sua capacidade de requerimentos objetivos, etc. abrindo-se a possibilidade de se
,

"normalizaçäo", ou seja, da capacidade de absorver ("normalizar") imporem penas a açães meramente imorais que nao lesam nenhunt
a pluralidade dc expectativas dos "subsisternas" (hornens). bem jurídico alheio, de se outorgarem a relevância e a primazia a
Fundathental para Luhmann é que o sistema obtenha Uconsen dados subjetivos de ánimo e de se defender um critério de pena de
so", entendido quase como urn conjunto de apatias fundadas na caráter meramente utilitário ou instrumental para o "sistema".
falta de informaçaò ou ignorância,considerada por Luhmann como Dentro desta linha, cabe mencionar tanto autores como
urna "facilitaçäo da eleiçäo". Jakobs -
o mais ortodoxo e destacado dos penalistas sistêmicos25
A concepção sistêmica alema náo é ing8nua, pois, apesarde - como outros menos ortodoxos (Roxin, Otto, Amelung, etc.).
se aproximar niuito da descriçáo da realidade opericional do po- Em ixossa opinião, esta concepçäo representa uma grave deca-
der, admite-o de forma pragmática, a partir da premissa de que o dência do pensamento, já que se desembaraça da verdade para
importante é o sistema, base cornum de todo o organicismo. substituí-la pelo funcional, através do qual -
mesmo quando nao
Essa ideologia pretende ser "pragmática" e desvincular-se de
qualqûer axiologia histórica do tipo idealista, como a hegeliana. No
o confesse ou o negue expressamente -
a verdade se converte nuina
questdo de funcionalidade.
entanto, o conceito de "racionalidade" como "funcionalidade" (ou Esta transformaçáo se torna tao perigosa para as garantias
quase isso) implica urna confiança cega -
é major ainda que a de limitadoras do poder repressivo estatal e do exercício do poder
Hegel - no 'progresso" histórico. Na verdade, se o racional." nao arbitránio dos órgãos do sistema penal, a ponto de se revelar urna
é aquilo que pode "ser compreendido", a "razào" passa a ser um
equivalente central da conhecida "doutrina de segurança nacional"
"motor da hist6ria", converte-se em algo ativo, criador, pois pres- periférica, corn a qual apenas apresenta as diferenças lógicas den-
supöe, ao colocar entre parênteses qualquer questionamento, que vadas de suas diferentes posiçöes no poder planetánio26. Desta
o sistema social tern um sinai positivo e que, portinto, tudo o que forma, nao se pode negar que esta concepçäo, além de sen uma
serve para sustenta-b (funcional ao mesmo, "racional") é progres- resposta à deslegitimaçao do sistema penal, é completamente sin-
sista e positivo. Desta forma, esta concepçäo nao é independeite cera.
de toda axiologia, mas pressupòe urna base axiológica, representada -
pelo valor positivo do sistema social.
Em síntese e passando superficialmente por detalhes o -
discurso sistémico, apesar de neconhecen tanto a falsidade do dis-
Quando este dThcurso passa para o plano jurídico-penal, a curso jurídico-penal tradicional como os dados reais deslegi-
pena deixa de perseguir fins preventivo-gerais (admite-se que iâo timadores do exercício do poder do sistema penal, responde,
evita que outros cometam delitOs, mas isso nao interessa), nern simplesmente, que é necessario que assim seja pon ser funcional
especiais (também se admite que nao evita que o autor cometa para a manutençäo do "sistema social", única coisa que importa ou,

24. Ver Edmund Mezgcr, Moderne Wege der SzrafrechLrdogcnatik Eine ergänzende
25. Günter Jakobç Strafrecht Allgemeiner Teil, Berlim, 1983.
Betrachtungnsm Lehrbuch dec Szrafrechtr in seiner 3. Auflage (1949), Denim, 1950.
26. cf. Eniiiio Garcia Méndez, Autontarisino y control social, Buenos Aires, 1987.

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I

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)elo menos, a mais importante. Indubitavelmente, trata-se da res- de propostas político-criminais -
ou políticas, se assim se preferir
1osta relegitimadora do exercício de poder do sistema penal por - corn variáveis relativamente consideráveis em cada ums delas: a
xcelência, mas, à custa do desconhecirnento do discurso jurídico- proposta de um direito penal mínimo ou "contração de direito
penal tradicional, opera corn um conceito de "dircito" privado dc penal" e a proposta de sua aboliçäo ou do abolicionismo penal.
(lualquer referência ética e antropológica (que mal pode ser cha- Antes de analisar cada uma dessas correntes é necessário destacar
niado de direito), coloca em cheque, em larga perspectiva, pratica- quais são, em nossa opiniäo, as carências apresentadas por estas
jiente todo o direito penal de garantias e retroage a um direito proposlasface à deslegitimaçdo dos sistemas penais em nossa regido
ienal ultrapassado diante de um paradigma ficticio, característico marginal e â situaçòo crítica do nossopenalisnio.
(io discurso jurídico-penal autoritário. É importante adiantar que, ao contrário das respostas até
Na verdade, a polêmica de Luhmann com Habermas27 de- agora examinadas- que "fogem" ou "negarn" a deslegitimação ou
i onstra ser bastante problemática a afirmativa dc que Luhmann que, como o funcionalismo, enfrentam-na corn o propósito de refu-
¡ossibilite urna relegitimaçao do discurso jurídico-penal, já que tá-la , -
as respostas miniinizantes e abolicionistas assumem e
i ma "légitimaçáo" náo parece ser a fundamentaçäo de sua teoria, reafirmam a deslegitimaçäo (embora, corno veremos, existam al-
cue pretende ser apenas urna constataçâo. Permanece, portanto, a gamas diseussoes sobre o sentido dessa expressão e seu alcance).
úvida sobre a correçäo da transposiçäo de Luhmann parao plano o abolicionismo nega a legitirnidade do sistema penal tal como atua
dogmático-penal, isto é, do discurso jurídico-penal. na realidade social contemporánea e, corno principio geral, nega a
Além de todas estas consideraçöes, demonstrando ser a única Ìegitimaçao de qualquer outro sistema penal que se possa imaginar
tentativa realmente relegitimante verdadeira confissäo da incapa- no futuro como alternativa a modelos formais e abstratos de
idade relegitimante do exercício dc poder do sistema penal nos soluçäo de conflitos, postulando a aboliçäo radical dos sistemas
halses centrais e, de certa forma, urna renúncia ao pensanlcnto e penais e a soluçäo dos conflitos pot instâncias ou mecanismos
i ma racionalizaçäo meramente funcional do sen exercício de po-
informais. O direitopenalmmnitno (minimalismo penal ou contração
(er, cabe observar que é explicável o éxito relativo da teoria sis- penal), a exeniplo do abolicionismo, nega a Iegitimidadc do sistema
t3rnica nos países centrais, onde o poder gerou um nível mínimo de penal, tal como hoje funciona, mas propóe urna alternativa mínima
1cm-estar e no quai a pena de prisáo parece recair salvo em - que considera como mal menor necessário. Esta corrente é tao
lloucos países -, cada vez mais, sobre minorias étnicas. A idéia de deslegitimante quanto o abolicionismo em relaçâo aos sistemas
o importante é o sistema poder chegar a ser convincente; no penais existentes, ernbora o duplo uso da palavra "deslegitimaçao"
ntanto, em nossa região marginal, este pressuposto é insustentável por alguns autores tenha gerado alguma confusáo: enquanto, pata
, em nossa opiniäo, incapaz de convencer a rnaioria. o abolicionismo, a "deslegitimaçao" engloba tanto os sistemas pe-
nais formais existentes como os futuros, para alguns autores do
IV-As REspostas que Desafiam a Deslegitinaçäo minimalismo penal a deslegitimaçào estende-se apenas aos sis-
temas penais atuais e-aos sistemas penais que, propostos para o
a Partir do Plano Político-criminal
futuro, nao incorporem os postulados de sua contraçäo minimi-
zante25.
Jntervençdo penal mínima e abolicionismo. Em razäo da
1.
ueslegitimaçäo dos sistemas penais, surgem duas grandes correntes

17. Luhmann-i-Iabermas, Teorias della società e tecnologia sociale, Miläo, 1973. 22. Luigi Ferrajoli, EI derecho penal mini'no, in "Poderycontrol", no. O, 1986, pág. 24e segs.

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Até agora, a expressáo foi aqui usada em sen primeiro sentido; perspectiva eivada de elementos teóricos marxistas. Além disso,
ao analisarmos a proposta minimalista no parágrafo seguinte, utili- corno foi afirmado, a variável que se atribui à sociedade "azul"
soa
zaremos a abrangência da segunda acepçáo. rnuito "social-dernocrata", mas, na realidade, pode englobar
de fato engloba - e -
propostas de modelos de sociedade que, de
2. Scriampropostas de novos modelos de sociedade? Em prin- modo algum, pi-etendern estender urna generalizaçao do bern-estar.
cípio, todas as respostas teóricas centrais -
e mesmo as atitudes Torna-se óbvio que o funcionalismo sistêmico pode levar tambérn a
-. parecem ser propostas de novos modelos de sociedade; tern-se urna sociedade "negra" (neonazi), à medida que renuncie à jute-
falado de urna sociedade "azul", de urna sociedade "verde" e dc graçäo de componcntes éticos e antropológicos.
uma sociedade "verrnelha"29 e, efetivarnente, tern-se a sdnsaçäo dc Apesar deste confesso pccado de simplisrno, a classificaflo
que, face à deslegitimaçáo do sistema penal e à crise do discurso mencionada torna-se útil para evidenciar o nIvel destas respostas:
jurídico-penal, poderia havet reaçöes do tipo: sen dúvida, trata-se de uni nivel político-criminal, corn forte ten-
a) "Nào se preocupern, qu logo se adeivará. à legalidade"; dência ao nivel diretaniente político.
"Nao se preocupem porque nao vi dar em nada"; "Nao se preo- Neste sentido, é notória a diferença entre as respostas de fuga
cupem porque näo nos cabe averigûar o que acontece" (meca- e sistémicas e as rspostas abolicionista e minimalista:
as primeiras
nismos de fuga); e "Nao se preocupem, assim está bem porque continuam programando a ação dos juristas que atuam dentro dos
equilibra um sistema que garante bem-estar a todos" (funcionalis- sistemas penais existentes mediante um desenvolvimento do discur-
mo sistêmico). Nesta afirmaçào, estäo presentes defensores do so jurídico-penal ou dogmático, enquanto as segundas nao sepreo-
modelo da sociedade "azul", embora, também, possam perambular cuparn com este aspecto ou, pelo menos, däo-lhe pouca atençäo.
pelos carninhos os que sonharn corn urna sociedade "negra".
b) "É necessário abolir o sistema penal e assim dar lugar a principal carência das respostas politico-crieninais. Na
3. A
urna sociedade menos complexa, corn forntas mais simples e efe- literatura abolicionista, praticamente nao existe indicaçáQ alguma
üvas de solucionar conilitos". (Seria o abolicionismo, que parece que permita construir um sistema de respostas racionais para as
caminhar lado a lado corn as propostas dos que aspirant à "socie- decisöes dos juristas que devem trabalhar corn os sistemas penais
dade verde".) atuais e, entre os autores do direito penal mínimo, apenas aparece
e) "É necessário trotar o sistema penal por outro, mínimo urna ou outra indicaçáo isolada a respeito30.
porém indispensável, para evitar males piores em urna sociedade
igualitária, na qual as relaçóes de produçäo e de cambio sejam
Estas carncïas das chamadas teorias "radieais" provocaram rupturas entre
democratizadas". (Seria o direito penal mínimo, resposta que carni- 30.
teóricos
progressistas, mas é de se reconhecero esforço de Baratta. Entretanto, estes esforços nâo
nha na direçäo da "sociedade vermeiha".) lograram dissipar completamente - emboss se tenham esclarecido muitos
Sem dúvida, esta classificaçäo é demasiado simplista, pois mal.cntendidos - a imputaçao de certo "voyeurismo" corn que Maxinucci rotulou todas
certos autores nao se considerariarn e corn razào- repre- - estas propostas (Giogio Marinucei, L 'abbandono del codice Rocca: tra rassegnazione
utopia, in "La Questione Criminale", 1981, 2, pdg. 297; a resposta de
e
sentados por nenhuma destas correntes. Assim, por exemplo, Baratta está na
mesma obra, 1981, 3, pág. 349. Em tnbathos posteriores Baratta explicitou a necessidade
Hulsrnan afirma nào pretender nenhum novo modelo de sociedade, de se respeitarem os principios extraídos dos Direitos Humanos na dogmática,
como
enquanto Mathiesen postula o abolicionismo a partir de urna principios "intra-sistemáticos" (Requisitos mínimos dei respeto de los Derechos Humanos
en ta leypenai in "Capítulo Criminológico", Maracaibo, 13,1985, ein
"Derecho Penaly
Criminologia", Bogotá, 1987, no. 31), mas parece seguir vinculando a Iimitaçao à
29. Massimo Pa-vaTini, no prólogo à trathsç5o italiana de Nils Christie, Abolire la pena? 11 justiticaçào do sistema penal, o que, em fessa O1flO, retira a coerência de sua
paradosso del sistema penale, Turim, 19ES. colocaçâo.Algo análogo sucede a quaisquer interpretaçOes liberals do direito penal, por

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positiva, isto é, uma estratégia alternativa ao atual sistema repres-
Desta forma, tern-se a irnpressâo de que esta omissäo é lógica:
sivo de controle dos comportamentos socialmente nocivos ou pro-
ratando-se de sistemas penais deslegitimados, urna pauta pro-
blemáticos."
gramática sobre o que deveriam fazer osjuristas só poderla lirnitar-
A única maneira encontrada por Baratta para construir um
e a assinalar-thes urna militância político-criminal ou diretamcnte
uovo modelo integrado consiste em estabelecer urna relaçAo entre
política corn o objetivo de eliminar esses sisternas penais, seja para
"ciência" e "técnica", na quai "ciência" seria a ciência social, e
;boli1os definitivamente, seja para substituí-los por outros alter-
"técnica", o saber do jurista, o que, posteriormente, mediante urna
nativos mínimos, urna vez que qualquer outra soluçao seria rele-
rclaçâo dialética, converteria o jurist num "cientista social".
itimante.
I
Neste pensamento, parece haver algum eco do 'elho Liszt que,
Corno todos os discursos juridico-penais definidores de
como será evidenciado adiante, nâo parece de todo inadequado. No
Lecisoes dentro dos sistemas penais existentes são justificadores
entanto, ainda sein entrar no mérito do conceito de "ciéncia" e de
racionalizadores) dos mesmos, estariarn todos eles desqua- "técnica" (é preferível falar de "saberes"), parece-nos claro que,
hficados e, por conseguinte, a funçao do jurista seria a de un:
aqui, Baratta está olhando para um futuro no qual um "direito
tcnocrata dentro do sistema. No entanto, esta conduta nunca seria
um verdadeiro saber ("ciência"), mas, no máximo, enquanto duras-
penal mínimo" - e-sua conseqüente sociedade - seria urna rea-
e o sistema penal -
ou, ao menos, estes sisternas penais -,
lidade e noqual a funçäo do jurista - ao menos parcialmente -
de legislador OU projetista de legislaçáo.
joderia garantir urna espécic de tática de utilizaçao do sistema em
lenefício das classes subalternas ou carentes, como propóe o "uso Este novo modelo integrado n-do parecia ser, na forma atual,
possível para Baratta que, tarnpouco, nos indica corno alcançá-lo
¿ Iternativo do direito", praticamente a única corrente que encara
num futuro próximo ou irnediato.
i ma resposta neste plano.
Em resumo, permanece um terrivel vazio sobre a iinj;ossibi-
Os autores que -
nâo pertencentes a essa corrente däo - lidade de se pteencher hoje, nos alitais sistemas penais, a distáncia
naior importância ao problema assinalam que, além do "atraso da
entre a ciência sociale o discurso jurídico.
(tência jurídica cm relaçäo à ciência social contemporánea ser
(norme", nao é "recuperável"31. Trata-se nao de um rnero vazio teórico nem de urn salto dis-
cursivo, mas sim de urna carência que deixa anónimos os ope-
Neste sentido, Baratta praticamente nega a possibilidade de
rn novo modelo integrado de "ciéncia penal"," fundamentado quer
radores dos órgãos judiciais dos atuais sistemas penais ao
ro caráter auxiliar da ciéncia social em relaçâo à ciência jurídica, realizarern as críticas deslegitimantes.
cuerno caráter científico destes dois discursos, compreendidos em Esta earêneia, que para as teorias polítieo-eriminais, na opi-
niáo de alguns autores, seria estrutural, resulta do fato de que o
sua autonomia". Baratta atribui este fenômeno à circunstAncia de
cue a superaçáo crítica näc provén do interior e, sim, do exterior discurso crítico, que se alarga no Ambito dos órgâos académicos,
ca ciôncia jurídica, por força de urna ciência social corn a quai a centraliza-se a si mesmo ao impedir qualquer oportunidade de
efeito prátieo na operatividade das agências jurídicas do sistema
ciéncia jurídica ainda näo conseguiu encontrar urna nova relaçäo
penal.
ce colaboraçao. "Corn maior razâo" -
continua Baratta "a - Esta neutralizaçäo do efeitò modificador do discurso crítico
ciência jurídica nAo seria capaz, urna vez superada sua própria
sobre as agências jurídicas do sistema penal pode prolongar-se
i leologia negativa, de construir, a partir de dentro,
urna ideologia mais tempo nos países centrais do que cm nossa regiäo marginal,
cm virtude dos níveis relativamente baixos de violência com que
r
3 ..
mis neassário que seja recorihecer-Thes os estorços limitativos intentados.
Baratta, Ct Cfi/ca, cit lidam seus sistemas penais - em eornparaçäo corn os níveis de

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nossa regiào marginal e da seleçào étnica praticada por muitos Oufras propostas, estas sim verdadeiramente teóricas ou de
deles. Corn freqüência também, a associaçáo das propostas po- longo alcance, correspondem a um direito penal mínimo que, em
litico-criminals corn modelos de sociedade costuma gerar a sensa- urn modelo de sociedade diferente, estada legitimado
çäo de que sua realizaçäo dependerá demudanças estruturais rnais Aqui, analisaremos estas últimas, mas, para nao nos perder-
arnplas -que devem ser aguardadas ou desenvolvidas ern um rnos mima digressão erudita, o que nao é nosso objetivo, pro-
campo puramente político -
como condicionantes prévias. Obvia- curaremos nos fixar nas propostas de Ferrajoli e Baratta33, apesar
mente, a carência pode ocorrer nas duas situaçöes mundiais de de o segundo näo corresponder inteiramente ao carMer guai as-
poder; no entanto, esta carêneia é multo mais notória e necessitada sinalado.
de urna resposta em nossa região marginal. Para Ferrajoli, é necessário distinguir entre os fins
Corno será analisado posteriormente, acreditamos e tenta- prograrnáticos e a funçáo real atual da pena.Enquanto as funçöes
remos dernopstrar que estas limitaçóes so superáyeis e que é reals verificam-se empiricarnente, os fins prorarnáticos devern ser
possível procluzir um novo modelo integradd de "saber penal" debatidos no plano axiológico e nào podern ser deslegitimados corn
partindo de urna deslegitimaçâo -
ineluive admitindo a alter- dados empíricos. Para este autor, a deslegitimaçäo do sistema penal
nativa abdlicionista -
do sisterna penal. Esta construçáo é de nao corresponde à idéia que tern sido exposta aqui, ou seja, à.
imponderável urgéncia em nossa região marginal e, talvez, em- irracionalidade de nossos sistemas penais vigentes e operantes, mas
todo o "Terceiro Mundo" -
e nAa se encontra, necessariamente, sim à impossibilidade radical de legitimar qualquer sistema pena4
vinculada a urn modelo de sociedade, ao menos ern termos dos inclusive futuro e mínimo que seja. Ferrajoli recusa esta
matizes existentes nos discursos críticos centrais. radicalizaçáo, que parece identificar como propria do abolicionis-
mû, afirmando que mesmo em urna sociedade rnais democratizada
e igualitária, seria necessário urn direito penal mínimQ como único
V- O Programa de Intervençäo Mínima como Proposta meio de serem evitados danos maiores (a vingança ilimitada).
PolItico-crini brai Diante da Deslegitimaçâo
Ofundamento legidmante de umfuturo direito penal mínimo.
2.
1.Duplo sentido de "deslegitimaçöo". As propostas de urn Para Ferrajoli, urn direito penal mínimo legitirna-se, unicamente,
programa çfe intervenção penal mínima, tambérn chamado "direito através de razóes utilitarias, ou seja, pela prevençäo de uma reaçâo
penal mínimo", nao coincidem em seus fundamentos. formal ou informal niais violenta contra o delito. Ein outros termos,
É possível postular-se urna intervençäo penal mínima corn para esse direito penal mínimo, o objetivo da pena seria a mini-
considerável descriminalizaçào, corn reduçâo radical da pena de mizaçâo da reaçâo violenta contra o delito. Esse direito penal seria,
prisào e corn reeuperaçäo de todos os limites do chamado "direto portanto, justificado como um instrumento impeditivo da vingança.
penal liberal", seni nenhuma pretensäo teórica de longo alcance Ferrajoli considera que o direito penal nasce corn a subs-
que legitime o resto do sistema penal, isto é, através de um pro- tituiçäo da relaçáo bilateral "vítima-ofensor" por urna relaçâo tri-
grama mínimo e transitário de caráter pragmático.32 lateral que "vé urna autoridade judicial como terceira posição ou
como imparcial". Este autor nào nega a funçao preventiva-geral das

33.Ferrajoli, op. cit.; Baratta, op. cit. em "Cap. Crini."; do mesmo autor, flincipicw del
32. Aproximadamente, é oque se pretende corn a extensa proposta dc conc]usôes doinfonnc derecho penal mhthno (Para una teoría dt los datchas hwnanos como objeto y ilmüc de
Final, cit., do Inst. mt. de Direitos Humanos. pá.
la icy penal), in "Doctrina Penal", Buenos Aires, 1987, 623 e sep.

94 - 95

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xnas, atribuindo-ihe, no entanto, Urna dupla funçao: a prevenção
los delitos que indicaria o limite mínimo da pena e a prevençâo das soluçöes. No entanto, este aspectojá pertence à discussäo em torno
eaçöes desproporcionais que indicaria seu limite máximo. Para do abolicionismo. H

?errajoli, corn esta dupla funçäo, um direito penal mínimo repre- De quaiquer modo, é possível adiantar que o minimalismo de
;entaria sempre urna defesa do fraco contra o forte, da vítima face Baratta parece estar bem próximo de urna concepçáo da contraçâo
io delinquente, do delinquente face à vingança. penai como momento de progresso social, apesar de nAo ter a
Desta forma, o direito penal mínimo seria a lei do mais fraco. pretensao legitimante de um futuro modelo punitivo do tipo susten-
À pena seria justificada como um mal menor, devendo ser fixada, tado por Ferrajoli.
empre, a partir de um cálculo de custos: o custo do direito penai
o custo da anarquia punitiva.
VI -O Abolicionismo Penal
3.Oprograma de legislaçaopenal minima. Na linha do direito
1. Caracterizaçao genil do movimento abolicionista. Na ver-
penal mínimo, Baratta traçou os "requisitos mínimos de respeito
Los direitos humanos na lei penal", de acordo corn os quais os
dade, existem diferentes abolicionismos e, sem dúvida, é até pos-
sível falar-se de um abolicionismo anárquico, de longa data,
(Lireitos humanos cumpririam tanto urna função negativa dc limite,
(orno urna funçäo positiva de indicaçâo dos possiveis objetos de resultado, por mais paradoxal que pareça, de uma formidávei con-
I atela penal. fiança jusnaturalista; o racionalismo, o positivismo, o cristianismo,
etc., eederam lugar a "jusnaturalismos" que, levados ao extremo,
Os principios de Baratta são classificados como "intra-siste-
riáticos" (indicadores, dentro do sistema, dos requisitos para acabam postulando a dispensabilidade do direito positivo na cren-
ça de que as leis "naturais", liberadas do poder estatal, seriam
htroduçäo e manutençäo das figuras delitivas na lei) e "extra-
sistemáticos" (referentes aos critérios políticos e metodológicos suplementos para regular e resolver as reiaçöes e conflitos sociais.
Assim, Baldwin deu lugar a um anarquismo liberal, Kropotkin a um
lara a descriminalizaçâo e construçäo alternativa ao sistema penal
cos conflitos e problemas sociais). anarquismo positivista, Tolstoi a uma versAo crista, etc.34
Os principios intra-sistemáticos de Baratta referem-se a ga-
Entretanto, o abolicionismo aqui referido nAo é este e, sim, o
rantias e limites que seräo analisados na terceira parte deste traba- abolicionismo radical do sistema penal, ou seja, sua radical subs-
ho, enquanto tituiçáo por outras instâncias de soluçöo dos conflitos (ao contrário
os principios extra-sistemáticos constituem os
critérios orientadores da açâo legislativa ou da decisäo política. dos abolicionismos da pena de morte, da prisáo, etc.), que surge
E;ntre estes, Baratta distingue dois tipos de princIpios: uns rekrem- nas duas últimas décadas como resultado da crítica sociológica ao
se à descriminalizaçäo e outros implicam urna verdadeira "libe-
sistema penai.
raçäo da imaginação sociológica e política face a urna cultura do O abolicionismo atual constitui urn movimento que, nos úl-
penal que vem colonizando ampiamente a maneira de perceber e timos anos, produziu urna literatura considerávei35 sobretudo entre:
construiros conflitos e problemas sociais em nossa sociedade".
Esta proposta de Baratta nos deixa uma dúvida: nao sa- 34. Um panorama geni está em George Woodcock, L'anarchia Storia delle idee e dei
heríamos oque ficaria sujeito ao sistema penal se fossem aplicados, movimenti libertad, MilAn, 1973. Cabe observar, sobre as inómeras teorias qualificadas
em toda a sua extensáo, os principios extra-sistemáticos que pro- como utópicas, urna difereriça substancial em relaçao ao abolicionismo contemporáneo:
as antigas teorias confiavam no desaparecirnento dos próprios conflitos; o novo
çöe, já que praticamente näo há matéria que a imaginaçào so- abolicionismo nAo cre que desapareçam os conflitos, mas postula a aboliçAo do sistema
etológica nAo possa subtrair do sistema penal e achar-Ihe. outras penal corno soluçäo falsa dos mesmos.
35. Hulsman-Bernart de Celis, op. cit.; Huisman, La política de drogas: fuente de problem as

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os autores do norte da Europa A proposta de Huisman dirige-se para a substituiçäo direta do
principalmente escandinavos e sistema penal nao por um macronivel estatal, mas sim por instâncias
holandeses -, sens mais notórios representantes. Urna das carac-
terísticas mais cornuns entre seus líderes é a de haVerem levado intermediarias ou individualizadas de soluçäo de conflitos que
adiante movimentos ou organismos corn participaçäo de técnicos, atendam às necessidades reais das pessoas envolvidas. Para isto,
presos, liberados, familiares e sirnpatizantes, isto -é, pessoas corn Huisman propôe urna nova linguagem que suprima as categorias de
alguma experiôncia prática no campo da marginalizaçäo penali- "crime" e "criminalidade" que, como categorias, são "reificadas"
zada36. -
no pcnsamcnto oeidental, por escamotearem, na realidade, urna
O abolicionismo representa a mais original e radical proposta variedade imensa de conflitos que, obviamente, nAo desapareceráo
corn a supressâo do sistema penal. Estes conflitos, no entanto, ao
político-criminal dos últimos anos, a ponto de-ter seu mérito reco-
nhecìdo até esmo por seus mais severos críticos. serein redefinidos como "situaçóes problernáticas" podem encon-
trar soluçoes efetivas, ou seja, entre as partes envolvidas, em um
2-As variantes do abolicionismo. Os autores abolicionistas nao "cara a cara" similar modelos dc soluçao de conflitos
a
partilham de urna total coincidéncia de métodos, prssnpostos filo- ( compensatório, terapôutico, educativo, assistencial, etc.) que, di-
sóficos e táticas para alcançâr os objetivos, uma vez que provêm de ferentes do mOdelo punitivo, têm a vantagem de náo serem, ao
diferentes vertentes do pensarnento. Neste sentido, deve ser as- -
contrário deste modelo cuja aplicaçâo exelni, automaticamente,
sinalada a preferência marxista de Thomas Mathiesen, a os restantes -
necessariamente alternativos.
Sem dúvida, a proposta de Huisman, sintetizavel no lema
fenomenológica de Louk Huisman, a estruturalista de Michel
Foucault37 e, poderia ainda ser acrescentada, a fenomenológico- "chegar aopróprio confuto", além de apresentar-se, pelo menos em
-

historicista de Nils Christie. boa parte, tributária da fenomenologia e da etnometodologia -


a) Huisman, após urna evoluçáo radicalizante de seu pen-
-

apesar de, em nenhum momento, expressamente o declarar -,o


samento, concluiu ser o sistema penal urn problema em si mesmo e, reconhece uma raiz crista anterior à categorizaçáo escolástica,
diante de sua crescente inutilidade na soluçâo de conflitos, torna-se podendo-se deduzir que sua posiçäo vincula-se ao "modelo verde",
preferivel aboli-b totalmente como sistema repressivo. où, pelo menos, à linha de pensamento em que "o pequeno é
Entre outras razóes, Hulsman afirma que há très motivos bonito" - -

b9 Mathiesen pode ser considerado o "estrategista do abolicio-


fundamentais a favor da aboliçáo do sistema penal: é um sistema
que causa sofrimentos desnecessários que são distribuidos social- nismo Sua tática abolicionista encontra-se. estreitamente vin-
mente de modo injusto; nao apresenta efeito positivo sobre as culada a um esquema relativamente simples do marxismo, o que, no
pessoas envolvidas nos conflitos; e é sumamente difícil de ser man- entanto, nao retira o interesse de suas consideraçoes táticas.
tido sob controle. Como Mathiesen vincWa a existència do sistema penal à estru-
tura produtiva capitalista, sua proposta parece aspirar nao apenas
à aboliçáo do sistema penal, como também à aboliçâo de todas as
y vehículo de colonización y represión, ¿n"Nuevo Foro Penal", Medellín,
enero-mano de estruturas repressivas da sociedade.
1987, págs. 49e segs.; Nils Christie, Los lûnites del dolor, México, 1981; Thomas Mathiesen mostra-se abertamente crítico a todas as cons-
Mathiesen,
The Politics of Abolition, Oslo, 1974; Elena Larnuri, Abolicionismo del derecho penal: las
propustas del movimiento abolicionista, h," Poder y control", 3, 1987, págs. 95 e truçóes teóricas que nao se orientem ou que nao permitam urna
segs.; é
¡
extremamente interessante a obra coletiva intitulada The Criminal Justice System as a social
- problem: an abolitionist pempettive, cit.
36. Rolf F. De Folter, o. cit
38. Pelo menos essa é a impressäo que deixa a sua obra de 1974.
37. Idem, pág. 81.

98
-

99
-

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rduçäo mais ou menos imediata, no plano prático, de urna açäo
clutica "superadora de limites", na forma de algo "sempre ma- Christie destaca expressamente a destrutividade das relaçöes
ajado". comunitárias do sistema penal, seu caráter dissolvente das relaçóes
Seus esforços para conceituar o "inacabado" e sua perma- de horizontalidade e os conseqüentes perigos e danos da verti-
neate insisténcia neste tema permitem-Ihe traçar uma tática que calizaçâo corporativa.
Ha) permanece neutralizada ou imobilizada por urna contra-estra- Neste sentido, nega enfaticamente a interpretaçäo de
It;ia de retrocessos parciais do poder, tais como as descrmrni- Durkheim quando este entende que o processo de modernizaçáo
L.a izaçöes, as penas alternativas da prisäo, etc. Para-Mathiesen, o faz a sociedade progredir, corn a passagem da solidariedadc rnecâ-
poder sempre procura estabelecer o que está "dentro" e o que está nica para a orgánica e a conseqüente diminuiçäo do componente
' fra",
de forma a envolver e bloquear o que está "fora" para punitivo., A esse respeito, Christie afirma que "Durkheim era um
C O ocá-lo "dentro", atravós do uso de táticas dé "retrocessos par- produto específicode cultura urbana francesa. Durkheim concorda
C mais". com a opinião segundo a qual ver um Indio é já vê-los todos, ao
À opçao, criada pelo poder, entre o de "dentro" e o de "fora", passo que, entre os poyos civilizados, dois individuos são imediata-
14Lthiesen opöe a alternativa do "inacabado" como urna trilha, um mente percebidos como diferentes entre si. Este preconceito o
C e' 'enir sempre aberto. impede de ver tanto a soma das variáveis típicas das sociedades
Sua Utica de práxis teórica implica sempre urna resposta ao numericamente limitadas, corno os problemas de controle das so-
fur.cionalismo; enquanto este descreve muito bem - e até mais
ciedades mais extensas"39.
- -
'ealhadamente -
a forma de envolver o de "fora" e colocá-lo Para Christie e concordamoscom ele o melhor exemplo
'dntro", fazendo disso o principal objetivo do sistema, Mathiesen de solidariedade orgánica é proporcionado pelas sociedades
[abora a estratégia inversa: o caminho aberto que impeça o poder limitadas, cujos rnembros nao podem ser substituidos. Ao con-
ce "fechar-se" "fechando" o de fora, tática esta que neutraliza a trário, nos grandes grupos as condiçoes de solidariedade sáo limi-
c'Dlktratática da normalizaçäo mediante o "retrocesso tático" do tadas e os papéis obrigatórios podem ser substituídos corn
oler que faz com que todo retrocesso seja apenas isso e nada mais, lacilidade, através do mercado de trabalho, de forma a tornar os
conio retrocesso do poder até a aboliçâo do sistema penal. excluidos deste mercado candidatos ideais para o sistema punitivo.
Em sua action research, Mathiesen assinala que um movimento As observaçoes de Christie, .embora proporcionem urna tática
ahlicionista deve reunir determinadas condiçöes para manter sua clara para o abolicionismo, são altamente reveladoras para nossa
vit;Llidade, tais como: sua permanente relaçäo de oposiçdo e sua regiáo marginal e, particularmente, para a defesa dos vínculos
rhçdo de cotnpetiçdo corn o sistema. A oposiçâo requer uma consi- horizontais ou comunitários de simpatia.
deiável diferença de pontos de vista sobre as bases teórmcas do d) Embora nao possa ser considerado um abolicionista no
s sterna, e a competiçäo requer urna açâo política prática fora
do
sentido dos dernais autores aquí analisados, Michel Foucault foi,
práprio sistema. scm dúvida, uni abolicionista4 .

e) o abolicionismo de Nils Christie apresenta muitos pontos de Algumas de suas principals colaboraçöesjá foram examinadas
coniato corn o de Hulsman. No entarito, pode-se considerar Chris- ein itens anteriores, restando-nos, apenas, observai aqui que o
ti mais inclinado a fundamentar seus argumentos sobre a expe- conteúdo da tese foucaultiana, a nosso ver menos admissivel do
rircia histórica e, inclusive, sobre os reduzidos modelos existentes ponto de vista da tradiçäo humanista, consiste na própria consi-
d rnsaios comunitários nórdicos, como Christiania e Tvind.
r

39. Christie, op. cit.


40. Dc Folter, op. cit.
1(u)
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deraçâo do sujeito cognoscente como um próduto de poder (que dem acontecer em conjunturas envolvidas no próprio sistema
geraria nao apenas saber, mas, também, subjetividade cognos- penal. Renunciar a estas oportunidades táticas stria ridículo.
cente) o que, exagerando, levaria a urna posiçáo que secundariza e
relativiza a questáo antropológica. Corno já se observou, é possível 3. A polémica sobre o abolicionismo. O abolicionismo, como
esta no tenha sido a intenção de Foucault, limitado tao-so- era de se esperar, originou urna considerável polémica que está em
mente a descrever urna forma de conhecirnento da sociedade in- aberto e em pleno desenvolvimento.
e náo a tratar a questào em si. Urna das respostas mais interessantes é sem dúvida 4quela que
Em referência direta a teses coincidentes corn o abolicionis- provérn do "direito penal mínimo" ou "intervençäo penal mínima".
mo, Foucault, por uni lado, assinala, acertadamente, a forma pela Enquanto o abolicionismo procura reaiçar os custos do sistema
quai o poder expropriou os conilitos no momento da formaçao dos penal , o direito penal mínimo voila-se para os custos eventuais de
estados nacionais e, por outro, nega p modelo de uma parte sobçe- urna anarquia punitiva. Na opiniào de Ferrajoli, estes custos seriam
posta ao litigante, como instância Èujerior de duas categòrias: o perigo de bellum omnium, corn suas reaçñes
decisoria, o que se
evidencia em sua discussäo corn os úiaoístas41, ao cri(icaro conceito vindicativas descontroladas, e o perigo de urn disciplinarismo so
de "justiça popular". cial que irnpeça o delito de maneira puramente física, à custa da
Embora Foucault náo ofereça consideraçöes táticas para liberdade de todos.
avançar rurno ao abolicionismo, permite entrevê-las quando acon- Ferrajoli destaca que o direito penal permite a liberdade de
selha a "técnica do judoca", ou seja, quando se refere à debilidade escolha entre o delito e outra conduta, ao passo que a intervenção
que sofre o poder ao utilizar-se de violencias, que o deixa apoiado disciplinar ex-ante impede essa liberdade, à custa da liberdade de
em um só p6. Deve ser observado que a utilizaçäo da força do todos. Deste modo, o modelo penal mínimo seria constituIdo de
adversário, em substituiçäo ao emprego da própria violência, é um urna alternativa progressista frente ao abolicionismo, ao qual acusa
postulado básico de qualquer tese da "náo-violência"42. de ser urna "utopia regressiva" baseada na ilusäo de urna "socie-
Já que Foucault nao admitiu a idéia de "um sistema de poder", dade boa" ou de um "estado born".
considerando ser o "sistema" uma ilusäo provocada pelo ali- Para Ferrajoli, o abolicionismo engendra o perigo de alter-
nhamento de micropoderes, nao poderia aceitar a tese de nativas piores que o direito penal: a reaçao vindicativa descootro-
Mathiesen sobre o que fica "dentro" e "fora". Assim, em razäo da lada, seja em rnáos individuais ou estatais, e o disciplinarismo
maneira particular corn que esses micropoderes se recornpóem social, mediante a internalização de rígidos controles que atuarn sob
numa complexíssinia rede, seria possível estar envolvido e, no en- forma de autocensura ou como expressóes de polícia moral, cole-
tanto, permanecer em oposiçäo. Nao obstante, considerarnos ser tiva, ou ainda, em maos estatais, através de técnicas de vigilância
possível interpretar a tese de Mathiesen de nantira menos total em forma policial ou em forma de controle tecnblógico.
"sistémica" (ou "contra-sistêmica") e compartibilizá-la corn os Ferrajoli considera que, atualmente, o direito penal encontra-
pontos de vista de Foucault. O requisito de "oposiçäo" é clara- se tao contaminado de medidas policiais a ponto de converter-se
mente ideológico e a cornpetiçäo nada mais édo que manter sempre em um sistema de controle de predominio informal: "talvez, hoje,
viva a contradiçao na práxis: ambos (oposiçáo e competiçäo) po- utópicas nào sejam as alternativas ao direito penal" - diz - "e,
sim, o próprio direito penal e suas garantias. A utopia nao é o
abolicionismo, mas o garantismo, inevitavelmente parcial e imper-
feito". O direito penal mínimo estaria legitimado pela necessidade
41. Microfísica, cit.

42. Por exemple, Gene Sharp. Poder, Mae dçre,a Tecria eprádca da açäo Mo-violenta, Sao
Paulo, 1983. de defender as garantias dos "desviantes" e dos "nao desviantes".

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As críticas de Fcrrajoli ao abolicionismo parecem centralizar-
Em nossa opiniäo, a justificativaque Ferrajoli encontra para
se em certas simplificaçöes que realiza, tais como as pretensôes de
s u "direito penal mínimo" entra em eontradiçao, ao menos par-
suprimir o sistema penal, deixando todos os conflitos scm soluçäo
C a. mente, corn suas afirmativas de que as "finalidades" das penas
e sem a cobertura ideológica de urna soluçao aparente que vigora
e LLbelecidas preceitualmente nao podem ser recusadas apelando-
s ¡ara argurnentos empíricos, iima vez que a crítica ao abolicionis-
hoje no sistema penal; ou, ainda, de suprimir o direito penal -
n o fundamenta-se, justamente, na experiência empírica que a
como discurso jurídico -, deixando intacto todo o exercício de
o:craeionalidade real dos sistemas penais vigentes ofereee. poder dos órgäos do sistema penal.
Apesar de Ferrajoli nao o expressar claramente, e apesar da : Por outro lado, os defensores do direito penal.mmnimo também
n g ativa de alguns de seus partidários, esta critica parece ignorar
propôem um novo modelo de sociedde: se é inquestionável que o
qu o abolicionismo também propöe um novo modelo de sociedade. sistema pen4 äoobetiva apenas a repressäo, conio também - e

I.' c.te sentido, nao vernos razào pela qual nao se possa conceber
principalmente - o exercício de um poder positivo configurador

-
u:ni sociedade por mais isolada que seja na quai os conflitos - ( como o demonstra Foucault), a contraçäo do sistema penal im-
plicaria uma mudança profunda na rede do poder social, que traria
pU sam ser resolvidos -
ou nAo, conforme o caso -mdc-
consigo um modelo diferente de sociedade.
pDt dentemente de penas e de uma instância punitiva formal, scm
qiu isto, necessariamente, se traduza numa repressão major. O Na hipótese de se alcançar este modelo e o direito penal
pr(prioFerrajoli reconhece queas penas nao resolvemos conilitos; mínimo proposto - e, inclusive, aceitando-se a manutençäo deste
pùi tanto, em sua proposta mínima, o único critério de subsisténcia
direito penal mínimo de forma a evitar a vingança e um controle
di iena seria sua utilidade para evitar urna hipotética vingança. totalitário por parte dos órgâos executivos de sistema penal -
Na verdade, o abolicionismo nâo pretende renunciar à solução impor-se-á o questionamento da possibilidade de se neutralizarem
d s eontlitos que devem ser resolvidos; apenas, quase todos os seus
esses perigos através de meios que, menos violentos do que a pena,
ail res pareeern propor uma reconstrução de vínculos solidarios sejam capazes de resolver os conflitos de forma efetiva. De ante-
ch ;impatia horizontais ou comunitários, que permitam a soluçáo mao, nao se deve excluir a possibilidade do modelo de sociedade
dses conflitos sem a necessidade de apelar para o modelo que - implícita ou explicitamente - corresponda a urna inter-
pit itivo formalizado abstratamente.
vençao penal mínima, e encontrar, finalmente, a forma de resolver
Christie é explícito sobre esse aspecto, especialmente quando, os conflitos suprimindo, inclusive, este direito penal mínimo. Dcste
a partir das experiências comunitárias dinamarquesas, observa que,
ángulo, o direito penal mínimo apresentar-se-ia como um momento
sr tao estabelecidos estes vínculos que nossa civilizaçAo industrial do caminho abolicionista.
o i .eenocientífica verticalizante destrói (algo parecido corn o que
Por outro lado, é evidente que nao se pode pretender abolir
FeLid charnava "vínculo libidinal"), a pena produziria uma dor a unicamente o £direito penal", sem advogar a aboliçáo de todo o
sr repartida entre todos e, por isto, haveria uma tendência para "sistema penal", pois o desaparecimento apenas do primeiro, que
sua aboliçäo. Experiências latino-americanas impostas pela neces- nada mais é do que o discurso de justificaçáo e a paula do órgáo
sichde e pela rnarginalizaçao, nas quais o sistema penal nao atua, judicial, implicaria somente o cancelamento do poder dos juristas
U a também gerado um sistema próprio de soluçao de eonflitos43.
e a liberaçâo total dos conflitos ao poder dos outros árgáos do
sistema penal. Em outros termos, traduziria apenas uma nova
ilusAo, muito mais infantil ainda: a de confundir o discurso racio-
nalizador do exercício do poder do sistema penal corn este exer-
42 \ er, por exemplo, Boaventura de Souza Santos, Notas sobre a histOria jwídico-penal de
cício de poder ou de suprimir o já limitado exercício de poder do
P tsá,gada, in "O direito achado na rua", cit., pág. 46.

1 4
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único órgäo que pode gerar urna contradiçâo lirnìtadora e, princi- argumento de que o direito penal, como programaçao da operado-
palmente, afiariçadora dentro dos sistemas vigentes. Esta reaçáo nalidade do órgdo judiciario, deverpermanecer e, inclusive, ampliar
sO poderia ser qualificada como suicidio político reacionário e seu ámbito, de rnaneira que a intervençäo desse órgdo se torne menos
totalitário e, de maneira alguma, representa a proposta violenta do que outras formas ou modelos de decisäo de conflitos
abolicionista dispon Iveis.
Em fossa OiflI5O, o direitopenal nil,zimo é, de nianeira inques- Esta é urna ampliação do discurso jurídico-penal que implica
tionável, urna proposta a ser apolada por todos os que deslegitirnani
o sisternapenal, nilo como nieta insuperável e, smi, como passagem
urna intervençäo mínima do sistema penal -
o que nao é um
paradoxo, se levarmos em conta que são duas coisas bem diferentes
ou trânsilopara o abolicionismo, por niais inalcançáve/ que este Ito/c - pois somente na medida em que o confito se situar fora do
pareça; ou se/a, corno um momento do "unfinished" de Mathiesen e verticalizador do sistema penal e for submetido a uma
nao corno uni objetivo "fechado" ou "aberto". soluçäo menos violenta (ou liberado, se nao for necessária urna
o sistema penai parece estar deslegitirnadotanto em tetmos solução), será possivel reduzir o discurso jurídico-penal.
empíricos quanto preceptivos, utha Vez que náo vemos obstáculo à Esta é a verdadeira pauta indicadora do mínimo efetivarnente
conccpçäo de urna estrutura sodial m quai seja desnccessário o possível em cada circunstância, um mínimo imposto por um poder,
sistema punitivo abstrato e formhl, tal como é demonstra a expe- por um fato de poder que, de maneira alguma, estará legitimado,
riência histórica e antropológica. mas simplesmente presente, nao tendo a deslegitimaçao discursiva
O argumento iluminista do sistema penal para evitar a nenhum efeito mágico para suprimir este poder como fato.
vingança corresponde a um programa mínimo proposto pelo Ilumi- Os modelos alternativos de sotuçáo de conflitos nAo são
nismo e jamais realizado. No plano real ou sòcial, a experiéncia já patrimônio dos autores abolicionistas45 e a desqualificação mais
dernonstra suficienternente que é desnecessário o exercício do poder comum do abolicionismo como "utópico", que é a mais comum,
do sisterna penal para evitar-se a generalizaçao da vingança, porque resulta relativa diante de algumas experiências recentes näo ana-
o sistema pcnal só atua sobre urn número reduzidíssirno de casos e, lisadas suficientemente46.
mesmo assim, a imcnsa maioria das ocorrôncias impunes nao gene- Por outro lado, é evidente que "a política abolicionista requer
raliza vinganças ilimitadas. Ncste sentido, apesar dc na América um modo de pensamento estratégico, cujo ponto dc partida é urna
Latina serem cometidos genocIdios que permanecem, praticamen- situação concreta; por este motivo a ação abolicionista é sempre
te, impunes, nunca houve um episOdio de vingança massiva. local"47. Esta última característica encontra-se muito mais evi-
A regra invariável da inoperância geral do sistema penal dente em nossa região marginal do que nos päíses centrais, face às
diante dos conflitos mais graves e massivos apenas excepcional- características genocidas de "contençâo" -
e, nao, de "discipli-
mente dA lugar a vinganças; o que acontece é que os casos muito
isolados de vinganças são altamente alardeados, instigando a imita-
namento" -
de nossos sistemas penais (produtivo e consumista).
As trés razóes apontadas por Huisman para destacar a total
çâo e inventando-se urna realidade que contribui para fortalecer e deslcgitimaçao do sistema penal são de urna evidência inegável em
reforçar a justificativa do exercício de poder do sistema penal44.
Na nossa opinião, a proposta na qual deve apoiar-se um direi-
to penal mínimo nao é o veiho argumento iluminista e, sim, o 45.Por exemplo, Edward De Bono, Conflictos. Una mejor manera de resolverlo.ç Buenos
Aires, 1986.
46. Cf. Sebastian Schercr, J do not wish thin/C with moderation. Some materiaLs comments on
44. É conhecido de todos o impacto provocado por algues casos ocorridos no Brasil; n5o a utopian perspective, in "The Criminal Justice System..., cit., 36, págs. 107 e segs.
obstante, no causa alarde o clevadissimo ndmero de execuçôes parapoliciais. 47. Cf. De Folter, op. cit., pág. 48.

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I O sa regiâo marginal: as mortes, privaçöes de liberdade e viti-
acordo com seu discurso de justificaçâo, mas que permanece in-
niaçöes que recaem sobre os setores majoritários e carentes de
diferente e inativo diante da morte de um milhäo de pessoas por
I O sas populaçoes; a total indiferença pelas vítimas dos órgäos que
década.
Cxtrcem o poder penal; a perda completa de controle sobre as
gncias executivas dos sistemas penais e a crescente minimizaçäo
As dúvidas-limiteface Ospropostas abolicionistas. Como foi
4.
( intervençäo dos órgäos judiciários; e a prática de delitos gravis-
.Lì

analisado, um dos perigos percebidos por Ferrajoli no abolicionis-


dinos por parte dos integrantes dos órgäos penais. mo refere-se à possibilidade de, por via policial, originar-se um
Por outro lado, a experiência latino-americana, demonstrando controle físico-de conduta destruidor dos espaço sociais de Liber-
¿ iicapacidade dos setores penais para resolver os conflitos gera- dade. Pavarini, por sua vez, advoga a incapacidade de o abolicionis-
(IC); pela poluiçäo, pelo white collar, pelos crimes econôrnicos e de
mo responder a determinados problemas, como o terrorismo48.
lrnsito, afasta qualquer pretensäo neste sentido. Até agora, em A rigor, acreditamos que as duas ohjeçöes podem ser cate-
Ieiaçâo aos crimes de poluiçäo, white collar e crimes econômicos gorizadas mais ampiamente: o avanço tecnológico, ao criar meios
- crimes de poder -existe uma inoperância geral de nossos físicos muito mais sofisticados que nao deixam nenhum espaço de
isLemas penais que, nos poucos casos em que atua, é instrumen-
1

controle de conduta que possa ser invadido, pöe, também, em mAos


lahzado como meio de eliminaçäo competitiva, deixando swine- de grupos cada vez mais reduzidos de pessoas e, até, em mAos de
Já'eis os menos poderosos. individuos isolados, instrumentos coin formidável poder destrutivo,
Os exemplos costumeiros de efetividade diante de crimes
ampliando a capacidade desses grupos e pessoas para destruir
in([ualificá'eis e aberraçöes do poder representam apenas o resul-
massivamente os heils jurídicos.
Ic[o da seleçäo de aiguns executores materiais que podem ser
Indubitavelmente, o desenvoivimento verliginoso da energia
arificados com a perda de proteçáo- por nao serem mais Uteis
nuclear49, a engenharia genética e os meios de guerra química,
L utro poder maior, como qual entraram em conflito, ou por estar
C
assim como a transmissAo de notícias falsas e a possibilidade de
LeEasadò o alinhamento anterior de micropoderes -corn a cui-
alterar mecanismos computadorizados de grande complexidade -
Ladosa exclusäo dos instigadores e cúmplices invuineráveis que se
u:narn rapidamente funcionais no novo reordenamento desses mi-
entre muitos outros -
geram o perigo de condutas que, mesmo
levadas a cabo individualmente ou por pequenos grupos, são capa-
I

Tclpoderes.
zes de destruir milhares de vidas humanas ou produzir cataclismos
I

Múltiplos são os casos demonstrativos de que, em nossa região


semelhantes aos telúricos.
]uLrginal, os poderosos só são vulneráveis ao sistema penai quando,
Obviamente, com estes pretextos, pode ser gerado um con-
-a uma luta que se processa na cúpula hegemônica, coiidem com
trole social realmente totalitário usando a mesma tecnologia dispo-
lucro poder maior que consegue retirar-lhes a cobertura de invul-
nivel. Desta maneira, produz-se um consenso suficiente para este
lerabilidade. Do ponto de vista de nossa regiUo marginal nao hO controle social, tanto pela realidade desses perigos, como também
utiûo alguma para se crer que seja menos utópico um modelo de por um sofisticado processo de invençAo da realidade através da
o :iedade no quai nao existe invulnerabilidade penal para os po-
própria tecnologia, nos casos em que a realidade existente nAo
iC osos do que um modelo de sociedade no qual seja abolido o
constitua por si mesma ameaça convincente para justificar este
¿ 3tema penal. controle.
Em relaçäo aos delitos de trânsito, nao é possível, pelo menos
:rI nossa região marginal, depositar muita conflança num modelo
48. Pavarini, Prólogo a Christie, cit.
1 cisório que, até o momento, se vangloria de prover segurança de
49. Robert Jungk, Gli apprendisti strengonL Storia degli scienziati atomici, Turim, 1958.

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Esta perspectiva, já prevista sob a denominaçâo de "estado
nuclear"50, que nâo 6 gerado somente pela energia nuclear, mas por
Obviamente, esta prevençäo - täo necessária quanto peri-
todo um descontrolado avanço tecnológico competitivo, constitui,
gosa - nao corresponde a urn sistema penal corno os atuais, e,
diante dela, o rnodelo penal náo pode ser levado em conta. Na
scm dúvida, um gravissimo perigo que nao pode ser ignorado em
verdade, esta prevençao deve ser realizada na órbita policial, pois
urna proposta desta natureza.
são medidas preventivas policias e nao penais. Trata-se de urna
A tecnologia, ao mesmo tempo em que resolve inúmeros pro-
forma de polícia de segurança que, frente a estes fatos, deve operar
blemas, produz outros, pois parece atuar corn efeito multiplica-
da rnesrna forma que nos incêndios, epidemias, terremotos, inun-
dor51, seudo urna das suas arneaças mais sérias a possibilidade de
daçöes, etc.
que sua capacidade destrutiva venha a servir para aniquilar ou
Talvez fosse o caso de se desenvolver aqui um direito de
minimizar os espaços sociais. controle de atividade preventiva policial corn estrita vigilância judi-
: Trata-se, portanto, de urna tecnologia de dtruiçäo que, a dal ou, ainda, feita diretamente por órgaosjudiciais, nacionais ou,
qualquer momento, pode descontrolarse culposarnente ou ser usa-
ainda melhor, internacionais, que limite a ingerência preventiva ao
da dolosamente pelo terrorismo e que, sem dúvida, pode ser causa
estnitamente necessário emeada caso, impeça o desvio do poder
imediata de um controle social estatal tecnopolkial'riáo mehos
que, sem dúvida, teriam esses órgaos e garanta o segredo das
terrorista Desta forma, as observaçóes de Ferraj oli e Pavarini são infonmaçóes recoihidas.
coincidentes, ao menos em boa parte, por serem ambas suscetíveis
Indubitavelmente, este complexo problema nada tern a ver
de englobamento tiesta perspectiva. O abolicionismo, segundo es-
com o modelo penal de decisao de conflitbs, rnas refere-se a um
tes autores, nao tena resposta para esta tecnologia de destruiçáo.
problemático controle limitativo das faculdades preventivas poli-
No entanto, acreditamos que esta objeçäo reulta bastante
ciais, igualmente necessário tanto corn a permanência quanto corn
infundada urna vez que o modelo penal mínimo também nao apre- o desaparecimento do sistema penal. Por outro lado, seria con-
senta unia resposta clara a esta questäo. veniente pensar-se em urn órgão com características bem diversas
Neste tema, nao é admissível a afirmaçâo de Ferrajoli, no
das que integram os atuais sistemas penais, pois a permanência dos
sentido de que o direito penal atua ex-post e o delinquente, afinal,
órgáos atuais representarla uni obstáculo que contribuinia para
escolhe de acordo corn urna liberdade que, em urn certo sentido, perpetuar e incrementar ao extremo seu atual exercício deslegi-
lhe t proporcionada pelo direito penal, o que parece trazer ecos de
timado de poder.
Hart e do neocontratualismo. Na possibilidade de destruiçäo de Denominar "direito penal" a esta regularnentaçao lirnitadora
bens jurídicos, é inquestionável que nao se pode deixar o autor da açäo preventiva de fatos corn capacidade destruidora massiva é
"escolhcr" urna vez que ë indispensávcl chegar antes e impedir o sumamente difícil.
fato, até mesmo em razäo de ser a capacidade técnica destrutiva Na verdade, impedidos estes fatos em sua etapa preparatória
tao formidável que pode acontecer que, em breve, nao reste nm- ou de tentativa, o impedimento de sua reiniciaçao ou continuação
guém para impor a pena ou, inclusive, que a questáo nada tcnha a
dilicilmente pode denominar-se "penal", ainda que praticado tarn-
ver corn o modelo penal, por tratar-se de urna conduta suicida.
bém por um órgäo judicial nacional ou internacional.
Se, em última instánci&, se resoivesse chamar esta regula-
mentaçâo de "direito penal", a questâo nao seria de denprninação,
50. Robe rtjungk,EIES(ado nz4clea,. Sobre elpro gre.so hacia la inhumanidad, Barcelona, 1979. pois, qualquer que esta fosse, as canactenísticas deste "direito pe-
Si. Ct AurelioPeccei Las ciencias socialesy el desatrollo husnaflo, in "Simposio de la Unesco. nal" náo teriam nada a ver com os sistemas penais vigentes: nao se
Repercusiones sociales de la revolución científlcaytecnológica", Madri, 1982. trataria de um fato de poder do momento da política nem de um

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Este movimento resultou de urna crítica marxista bastante
lato de poder do momento da guerra, por mais que suas conse-
ortodoxa e tradicional do direito, inclinada a negar a possibilidade
jüências físicas pudessem se assemeihar ao segundo. Seria um de um direito alternativo, que se traduziu, preferentemente, numa
notnento depoderpara a sobrevivência da vida planetária, o que the
prática destinada a utilizar o "direito burguês" em sentidos corn-
lana urna fisionomia própria.
pletamente diversos daqueles irnpostos pelo poder que o cniou.
Neste sentido, parecem diminuir as distâncias entre o direito
Se a proposta de um uso do direito sempre em beneficio da
ena mínimo que, em última análise, tambtm nao seria relegiti-
classe operária é interessante, por negar a neutralidade judicial,
nante do modelo penal de decisäo de conflitos, e o abolicionismo.
padece de urna série de carências, tais como nAo perceber as mu-
£m nossa região marginal, onde a distância tecnológica em relaçâo
danças ocoridas na Europa, insistir ém um conceito de proletariado
io poder central aumenta rapidamente52, a necessidade de urna
cuja exist6ncia é difícil de ser afirmada na atual estratificaçAo
itividade preventiva "controlada" será inevitávcl a curto prazo.
social européia e, em geral, nAo fundamentar-se em urna elabo-
teduzidas as distâncias entre as perspectivas minimizantcs ou (le
raçAo teórico-jurídica (o que, por deliniçâo, nem ao menos teuta,
ontraçâo do sistema penal e as abolicionistas e, levando-se cm
já que se trata de urna práxisjurídica que busca reintroduzir-se nas
:onta que, aimai, ambas se identificarn nurna disputa sobre
contradiçoes capitalistas como forma de acelerar e esperar urna
nodelos de sociedade que, para nós, estäo muito afastados e que,
mudança revolucionária: qualquer tentativa no sentido teórico im-
io momento, em face de nossa posição marginal na rede planetária
plicaria um reforço do direito e do estado "burgueses" aos quais se
le poder, carecemos de autonomia para realizar, nao tern muito
deve renunciar aprioristicarnènte).
entido perdermo-nos em detalhes neste debate que pode levar ao
A transferência desta proposta para nossa regiAo marginal
mobilismo ou à demora de urna ação que, eticamente, nAo podemos
nestes termos seria impossível por razöes que podem ser aqui
idiar.
enumeradas segundo seus diferentes níveis.
Perdermo-nos nesta discussao entre posiçöes que nao estäo
No planoprático, esta proposta recebenia uma necusa frontal
Estantes urnas das outras seria ainda mais absurdo do que imaginar
em razäo da generalizada satanizaçäo do marxismo na América
i hipótese de que nossos libertadores tivessem retardado as guerras
Latina.
le independência do continente até chegarem a urn acordo sobre a
No plano teórico, sua falta de teorizaçáo jurídica se traduziria
)osterior adoçäo da forma republicana ou monárquica constitu-
;ional de governo, unitária ou federativa, com ou scm autonomia numa prática scm nenhurna perspectiva de recepçäo em nossa regi-
Ao marginal.
nunicipal, etc. E evidente que, se tivessern se comportado de modo
No plano político, sua conceituaçáo marxista tradicional, que
Ao absurdo, o juízo histórico sobre eles tena sido bem diverso.
na Europa ignora a atual situaçäo -
bem pouco proletánia do -
trabalhador europeu incentivado ao consumismo, também nAo
f11- O Uso Alternativo Do Direito levada em conta a duvidosa existência de um proletariado latino-
americano, nos termos do marxismo tradicional. A situaçâo de-
Corn a denòminaçäo "uso alternativo do direito" é conhecido pendente da América Latina e a crescente carência- de capital
im movimento dejuízes e juristas, surgido na Itália há duas déca- produtivo produzem um aumento de maiorias neçessitadas que nAo
las, corn eco, mais recentemente, na Espanha e Alemanha53. podem ser consideradas nern "proletárias", nem "exército de neser-

53. P. Barcelona-C, Cotturi, El Estado y los juristas, Barcelona, 1976; L'uso alternativo del
2. Ver Alcira Argumedo, Un horizonte sin certezas. América Latina ante la Revolución
diritto, a cura di..., Roma, 1973.
Cienfffico-Técnica, Buenos Aires, 1987.

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va" para urna produçäo industria' que permanentemente decresce
com a conseqüente reduçäo dos setores trabalhistas tradicionais e co ortodoxo, a evasäo através dos obstáculos epistemológicos ao
que apresenta remota perspectivas de "chamar a reserva" (como se saber jurídico, um grosseiro retribucionismo pouco explicado, o
observa no balanço negativo de nossos termos de intercârnbio uso reiterado de idéias pericu!osistas, frequentemente amalgama-
comercial e no crescente peso das obrigaçôes e serviços das estra- das -
de modo inexplicável -
com o "bern comum" tomista, etc.
tosféricas dIvidas externas). Estas atitudes nao sao explicáveis em nivel de análise teórica,
O uso alternativo do direito, em nossa regiäo marginal, a.ém resultando muito simples cain na tentaçäo de reduzi'-las ao absurdo.
de pouco viavel, tena o inconveniente das críticas ao direito que Estas atitudes voltarao a ser analisadas no capítulo seguinte, onde
foram desenvolvidas a partir de urna proposta puramente política, ficará mais clara sua natureza de mecanismos de fuga ou de racio-
uma vez que a falta de urna teoria jurídica nao Ihe permitiria nalizäçöes, incapazes de alcançar coerência discursiva face à mag-
penetrar no saber jurídico que, até aqui reafirmado, permaneceria nitude das contradiçóes reais nas quais se desenvoivem as condutas
tao intacto54 quanto sempre estee frente s crítidas dirigidas ao dos operadores reais dos órgäos do sistema penal.
nível exclusivamente político. Por outro lado, começaram as tentativas de reação positiva
Mais do que um uso alternativo do direito que promova urna através de um direito penal "crítico"55, que ainda nao se desenvol-
revoluçâo social, nossa regiâo marginal necessita de um direito veu in extenso, mas que traduz um evidente sinai da situaçäo crítica
alternativo capaz de promover sua aceleraçäo histórica. Mesmo que caracteriza o penalisnio da regiâo neste momento.
admitindo-se a validade central da proposta, nossas necessidades
apresentam-se profundamente djferentes por resultarem de dois
processos sucessivos de atualizaçäo histórica incofporativa, que
transnacionalizaram o primitivo controle social, enxertando-o mar-
ginalmente na rede de poder planetário, numa sucessáo de geno-
cidios e etnicídios.

VIII - Rea çâes Marginais

Na América Latina, nao se registranam, pelo menos de forma


orgânica, respostas à deslegitimaçáo do sistema penal. Nao é pos-
sível considerar organicamente urna série de atitudes scm coerência
de "fuga" diante do fenômeno, que amontoarn argumentos ou que
ignoram, ou pretendern ignorar, a desiegitirnaçäo.
Apenas como exemplo, pode-se mencionar, sem considera-
çóes particulares, algumas manifestaçöes discursivo-penais da cha-
mada "doutrina de segurança nacional", o apelo ao positivismo 55. E claro que a criminologia crítica latino-americana, queprecipitou a situaçAo crítica a que
legal, a invocação de valores através de um neoescolasticismo pou- nos referimos, encontrou um número considerävel de penalistas mais sensíveis ao
impacto deslegitimante. Nesta linha poden-se mencionar, entre outres, Juan Bustos
Ramírez, Juan Fernández Carrasquilla, o pranteado Emiro Sandoval Huertas, Alfonso
54. Cf. García Méndez, op. cit. Zambrano Pasquel, Luis dela Barreda Solórrano, Esteban Righi e, na Espanha, Francisco
Muñoz Conde.

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CAPÍTULO QUARTO

NECESSIDADE E POSSIBILIDADE DE UMA RESPOSTA


MARGINAL

A NECESSIDADE DA RESPOSTA MARGINAL


PARA CONTER O GENOCIDIO. 1. A encruzilbada de
nossa regiäo marginal no marco do poder mundial. 2. A
operacionalidade real dos sistemas penais latino-
americanos: o genocidio em ato. 3. O poder con-
figurador dos sistemas penais latino-americanos. 4. Os
aparelhos de propaganda dos sistemas penais latino-
americanos (a fábrica da realidade). 5. As fábricas
ideológicas. 6. O condicionamnto, a estigmatizaçáo ea
morte: a criminalizaçäo. 7. As cadeias ou máquinas de
deteriorar. 8. As agcncias executivas como máquinas de
policiar. 9.. As agCncias judiciais como máquinas de
b.ocratizar. 10. Deterioraçao e autagonismos como
produtos da operacionalidade dos sistemas penais. 11.
A destruiçao dos vfnculos comunitärios.
NECESSIDADE DE UMA RESPOSTA MARGINAL
- II. A
COMO IMPERATIVO TUS-HTJMANISTA
RESPOSTA MARGINAL COMO IMPERATIVO
- III. A
ETICO. - IV. A NECESSIDADE DE RESPOSTA E
UMA PROPOSTA OTIMISTA.
DADES PARA UMA RESPOSTA MARGINAL.
- V. AS DIFICUL-
- VI.
ALGUMAS BASES PARA A SELEÇÄO REALISTA E
MAR GINAL DE ELEMENTOS TEÓRICOS. 1. O
caráter realista da resposta. 2. 0 que marginal? 3. A
originalidade marginal-sincrdtica da Aknérica Latina. 4.
Os perigos da "vertigem": a antropologia fïlosófica e os
direitos humanos. 5. O realismo marginal na
crimihologia e no direito penal. 6. A anlise realista
marginal poderia ser estendida às propostas centrais?
VII. POSSIBILÏDADE DE RESPOSTA POLÍTICO-
-
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CRIMINAL A PARTIR DO REALISMO MARGINAL.
uma limitada secundarizaçäo da economia, à medida que era re-
I. Táticas e estratégias. 2. A intervenço m(nima como
tática. 3. "Reformismo" e "radïcalismo". querida urna major complementaridade com o centro.
Estes são dois capítulos genocidas, praticados em conse-
qüência de uma ineorporação forçada que implantou um controle
social punitivo transculturado, funcional para os objetivôs colonia-
I - A Necessidade da Resposta Marginal para listas e neocolonialistas. Nestes dois momentos, a ideologia geno-
Conter o Genocidio cida foi justificada em razão de nossa "inquestionável
inferioridade", dentro de um "marco teórico" teocrático no colo-
1. A encruziihada de nossa regiäo
tnarginalno marco do poder nialisrno (inferioridade por nao haver recebido a mensagem crista)
mundial. Há cinco séculos nosso território é submetido a um pro- e de um "marco científico" no neocolonialismo (inferioridade por
cesso ¡de atualizaçáo histórica incorporariva, como resultado de nao possuir o mesSo grau de "civilizaçao" ou por ser biologica-
àuas revoluçóes tecnòlágicas sucessivas: a'niercantil (século XVJ)
mente inferior).
e a industrial (século XVIII). Primciramente, aspoténcias ibéricas,
Atualrnente, encontramo-nos na terceira revoluçäo tecnoló-
como "impérios mercantis salvacionistas"1, efetivaram nossa
giea corn conseqüêneias planetárias: a revoluçûo tecnocientíj'ica.
incorporaçáo à civilizaçâo mercantil na forma de colonialismo e, Os países centrais lutam pelo dominio tecnológico em deter-
em seguida, as potências européias do norte praticarani o neo-
colonialismo que aihda perdura. Atualmente, o centro deslocou-se
minadas áreas -
tais como a teleinforniática, a tecnologia, a ener-
para a Anérica do Norte, sendo já possível reconhecer que nos
gia nuclear e a robótica -
e as conseqüências desta revoluçào são
im previsíveis.
ejicontramos em mejo a urna outra reyciluçäo, a tecnócieru (flea.
Os Estados Unidos, a Europa, a União Soviética e o Japâo
Q colonialismo e o neocolonialismo forant dois momentos
disputam entre si essas tenologias visando à obtençäo de resultados
- -
diferentes mas igualmente cruéis de genocidio e etnocidio.
produtivos imedjatos e, ao nao pouparem esforços nesse sentido, a
A destruiçäo das culturas originárias, a morte de seus habitan-
velocidade de renovação nessas áreas é vertiginosa2. A aceleraçào
tes, em tal magnitude que chegou a alarmar os próprios histórico-tccnológica já produziu efeitos até agora desconhecidos
colonizadores, e a escravidao através do transporte de africanos
constituem as características mais evidentes do colonialismo. O
nas relaçóes dos países centrais. Enquanto alguns como o Japáo -
neocolonialismo, por seu lado, praticado uma vez consumada a
e a Europa -
conseguem amenizá-los, os Estados Unidos, na
década de citenta, realizaram urna ccterceirizaçao de sua economia
independência política, destacou-se por lutas cruentas que aca-
que deslocou massas humanas enormes do setor secundario para.o
baram por impor o poder de minorias locals proconsulares dos
de serviços, evitando a desocupaçáo, mas provocando, simultanea-
interesses das potências industriais, que continuaram ou con-
mente, qrave baixa de salários médios e aumento (la polarizaçäo da
sumaram a empresa genocida e etnocida do colonialismo, descn-
riqueza
cadearam guerras de destruiçâo intermináveis (como a do
Ao mesmo tempo, reduziu-se o orçamento dos serviços soclais
Paraguai), transportaram a populaçäo marginal européia para
e deslocaram-se fundos para a máquina repressiva do Estado,
substituir a populaçào desprezada como inferior e impulsionaram
transformando-a em fonteconsiderável de trabaiho em serviços, ao
levar a prisionizaçào a limites incríveis: um preso para cada trezen-

l.A expressAo é dc Darcy Ribeim,


2. Cf. Bruce Naussbaum, El mundo tras la era de/petróleo, Buenos Aires,
Oprogesia civllizttáHo, cit.
1955.
3. Cf. Alcira Arguenedo, Un horizonte sin cenezas, cit.

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IÁS habitantes, em geral, seudo que, para cada vinte negros (entre
20 e 29 anos), um está preso. considerável aumento da pobreza absoluta4. Desta nova mar-
o inipacto tecaológico produz ou tende a produzir a reduçäo ginalizaçäo nutre-se, para sua reproduçäo de clientela, o sistema
cbs classes operárias centrais, ao mesmo tempo cui que vai submer- penal latino-americano, selecionando prisioneiros ou fuzilados sem
giado nossa regiäo marginat em uma situaçäo desesperadora. Os processo.
letaentos que nos permitiam protestar por algum respeito no Consideremos que a populaçäo atual da América Latina beira
'[n Lercàmbio eram, basicamente, a mao-de-obra barata e a disponi-
os quatrocentos miihoes de habitantes e se projeta para 550 milhôes
Hlidade de matérias-primas e alimentos. No entanto, o primeiro no ano 2000. Com base nessas projeçöes, embora o percentual da
elemento já näo interessa ao poder central e o segundo tende a, populaçäo menor de 17 anos venha a diminuir de 45 a 40%, em
:rpidamente, perder o interesse, em decorrência de sua substitüi- termos absolutos a populaçAo nesta faixa etária terá crescido de 180
para 220 milhóes de habitantes no final do século5.
ç o por novas tecnologias.
À notória deterioraçäo- da posiçáo latino-americana em ter- Mantendo-se a tendéncia de cortes percentuais nos gastos
L3S de intercâmbio deve-se sornar o endividamento dos países da públicos relativos à saúde e educaçäo, teremos no ano 2000 uma
rea, que chega a limites em que qualquer benefIcio da balança massa de 220 milhoes de habitantes menores de 17 anos corn níveis
L(mercial é absorvido pelo centro, nao deixando a menor pos- de saúde e educaçao inferiores aos atuais, isto é, em condiçöes
:il )ilidade de acumulaçäo de capital produtivo. Conseqíicntcmentc,
laborativas inferiores e corn urna demanda laborativa notoriamente
;_, países de nossa região marginal só conseguem pagar uina parte contraída.
js juros, enquanto o restante continua acumulando-se, de forma Estas eifra, ilustrativas e que nao requerem maiores comen-
tários, complementam-se corn um aumento do percentual de presos
i aumentar a divida. Para se ter urna idéia mais precisa, a dívida
.> terna passou de trinta bilhöes de dólares (em 1972) para sem condenaçäo em toda a regiào, onde, corno sabemos, a prisáo
: atrocentos bilhöes (em 1988), em razâo da abundância de melos preventiva é a verdadeira pena em razâo da distorçäo cronológica
IC pagamento nos países centrais e da concessäo irresponsável
do sistema penal.
de
.r5ditos destinados a armamentos, obras faraônicas ou especulaçäo Näo havendo modificaçáo ou reversâo da atual tendência, no
J lanceira pura e simples, créditos frequentemente feitos a ano 2000 estaremos fora de qualquer competiçäo internacional,
]iaduras militares introduzidas como beneplácito ou como apoio corn urna populaçäo jovern consideravelmente deteriorada em ra-
-
ii :eto dos préprios prestamistas cejo pagamento sabia-se impos-
záo de caréncias alimentares e sanitárias elementares, corn edu-
caçäo deficiente, corn notoria marginalizaçáo urbana em termos de
i' el. Desta forma, somente o serviço desta divida aproxima-se da

p antia que representava o total da dívida em 1972. pobreza absoluta, corn urna grande reduçäo da classe operaria e
A brusca restriçáo de quase 50% das importaçóes (entre 1981 com uni sistema penal que lançará mao da repressäo mediante o
f983 apenas) provocou urna recessäo só eomparável corn a de aumento de presos sern condenaçâo. No entanto, diante da impos-
:930, corn aumento da desocupaçáo edo subemprego, deterioraçáo sibilidade de imitar os Estados Unidos -
fazendo disso uma fonte
le cerca de 10% da renda per capita a partir de 1980 e de de economia terciária, coisa que nossos orçamentos nâo supor-
9: roximadamente 20% do salário e clara diminuiçâo do percentual tariam -
nao é difícil imaginar qua a alternativa se dirigirá para
ramentário destinado à saúde e educaçäo. urn controle pelo terror do Estado, através do aumento tanto dos
Esta situaçáo crítica nAo provoca os mesmos efeitos sobre a
o alidade da populaçäo de nosso continente, mas afeta principal- 4. Os dados economices são de Ricardo Ugos, Efectos sociales de la crisis económica,
u :nte as classes marginais urbanas, causando neste setor reprodução, 14 de outubro de 1986 (Ccpal)
S. Elías Carranza, Sociología de la justicia de menores (nfractores San José, no prolo.

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fuzilamentos sem processo, como da tolerância oficial para com os Diante desta perspectiva, demasiado clara, torna-se também
grupos de exterminio. mericlianamente evidente que quem náo entende está procurando
Esta perspectiva apocalíptica atribuiria ao sistema penal lima
a maneira de colocar-se entre os cern milháes de procônsules e
funçào que, a cada dia, vem sendo assumida corn crescente bene- esbirros dos
projetos tecnoapocalípticos.
plácito de seus órgäos, ou seja, a funçào de conter aproximada-
rca0 ha dúvida de que a situaçäo é sumamente perigosa. No
mente 80% da populaçâo da regiäo (cerca de 440 milhöes de tambérn acreditarnos que nossa regiäo marginal escapará do
pessoas, isto é, o equivalente à populaçäo atual), submergidos na entanto,
perigo, que nossos poyos saberáo unir-se a tempo, que podemos
pobreza enquanto uns 110 milhöes representariam os 20% procon- conseguir uma transferência tecnológica conveniente e adotar me-
sulares e sets executores, guarda-costas e esbiTros, cujos interesses didas econômicas de integraçäo regional, desenvolver nossa capa-
se complementariam pelo exercício da hegemonia terrorista: cidade de consumo interno e, em vez de suportar outra etapa de
Sem dúvida, esta visao corresponde a urn jnojeto genbcida, 3tualização colonial, protagonizar urna etapa de aceleraçâo his-
que correspouderia ao projeto da erceir civilizaçâo planetária, da
tOnca, embora nao se ignore todos os sacrifIcios que este processo
civilizaçáo gerada pela revoluçâo tecnocientífica, se a América demandará.
Latina for surpreendida por esta revoluçáo na forma de "atua- Urna peça chave para escapar do perigo de um tecnocolonialis-
lizaçáo histórica incorporativa", ou seja, se essa civilizaçáo fizer mo genocida é o manejo e controle do sistema penal, neutralizando-o
corn que o poder central nos incorpore a um projeto tecnoco- como instrumento deste novo colonialismo.
lonialista por auséncia de capacidade política para protago- O mero esboço deste panorama, da tarefa que caberia ao sis-
nizarmos uma aceleraçäo histórica. tema penal e da necessidade de neutralizar sua funcionalidade ein
No caso de nao desenvolverthos a capacidade de "aceleraçao reja çdo ao projeto ten ocolonialista é suficiente para comprovar a
histárica",cairíamos, inevitaveirnente, neste projeto dc repúblicas extrema urgéncia de ¡tina resposta marginal no confuto da crise de
"tecno-oligárquicas", que representariam o equivalente tecnoco- legitiniidade do exerc(cio de poder de nossos sistemas penais.
lonialista das "repúblicas oligátquicas" do neocolonialismo.
Ao colonialismo da revoluçäo mercantil (século XVI) seguiti- 2. A operacionalidade real dos sistemas penais latino-
se o da revoluçâo industrial (século XVIII) e seguir-se-ia o da americanos: o genocidio ein ato. Nao se deve pensar que apenas a
revolução tecnocientlfica (século XX). A projeçáo genocida de um projeçâo futura de nossos sistemas penais no ámbito de um geno-
tecnocolonialismo correspondente a esta última revoluçäo fana cídio tecnocolonialista marca a necessidade e a urgência de urna
empalidecer a cruel história dos colonialismos anteriores, se levar- resposta marginal â deslegitimaçáo do sistema penal, pois já agora
mos em conta tanto as possibilidades disponíveis agora e em - a atuaçao de nossos sistemas penais caracteriza um genocidio em
-
poucos anos de rnanipulaçào genética humana6, como a perspec- a n doni en Io.
tiva de uma populaçáo corn sua juventude deteriorada biológica e Além da ameaça quase irnediata representada por esses sis-
ethicativamente. temas penais ne, quadro de urna tentativa de subjugaçáo tecno-
colonialista, atualmente estäo eles ocultando, com sua inoperância,
praticamente todos os homicIdios por negligéncia e imprudéncia
cometidos na regiäo (66 no tránsito, um milhào de moños a cada
6. H anos que aspessibilidades desta manipulaçäo constituem motivo depreocupaçao, mais
que justificada, pan os teóricos dos Direitos Humanos (vor Guido Germ, Jnstitut
dez anos).
International dEstudes des Droits de l'homme,Mothficazionigene&heeDùttiddt'uomO. Da mesma forma, torna-se também difícH aceitar que, praíica-
A cura di..., Pádua, 1987. mente, nao existem condenaçöes por homicIdios ou negligencia na

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segurança industrial, apesar do altissimo percentual de mortes alividades ilícitas cometidas pelo pessoal desses órgáos do sistema
entre operários da construçäo em vários países, por exemplo. penai. Ha mortes violentas em motins carcerários, de presos e de
As pesquisas empíricas demonstram que apToximadamente pessoal penitenciário. Há mortes por violência exercida contra
90% dos processos por mortes e lesôes culposas terniinam corn o
presos nas prisöes. Há mortes por doenças náo tratadas nas prisöes.
arquivamento, isto é, scm urna acusaçáo sustentada. Há mortes por taxa altIssima de suicidios entre os crirninalizados e
o aborto t praticamente impune na regiäo, apesar da entre o pessoal de todos os órgäos do sistema penal, sejam suicidios
tipificação legal e das frequentes discussoes doutrinarias a res- manifestos ou inconscientes Há mortes...7.
peito. Nao há dúvida de que, se a vida deve ser protegida desde a Se näo bastassem todas estas mortes, nos momentos em que
concepçäo - como assinala a Convençäo Interamericana de Direi- se desata urna aberta repressäo política em qualquer dos nossos
tos Hurnanos - neste aspecto deveria ser considerado um número
,
países, os órgäos executivos do sistema penal participarn dessa
de vidas provavelmente equivalente a um elevado percentual da
repressão, protagonizando em número massivo seçüestros, desa-
populaçäo que consegue sair do seio materno (existem cálculos
parecirnentos forçados de pessoas, homicidios, etc.
aterradores, embora todos sejam discutíveis: a cada trés crianças É positiva a existência de um número considerável de agôncias
que nascem, urna seria abortada).
internacionais voltadas para essas situaçöes, mas as mortes coti-
No entanto, apesar desta inoperância frente a mortes inevi-
dianas do sistema penal nao preocupam as agôncias internacionais,
Lávcis em númcros multas vezes milionários, nossos sistemas penais
a nao ser mtiitO recentemente.
igregam mais mortes, exercendo urna violência sem paralelo.
A vio1ncia cotidiana do sistema penal recai sobre os setores
llá mortes em confrontos armados (alguns reais e a maioria mais vuineráveis da população e, particularmente, sobre os ha-
;imulada, ou seja, fuzilarnentos sem processo). Flá mortes por gru-
bitantes das "vilas-misérias", "favelas", "cidades novas", etc. Nao
ms parapoliciais de exterminio em várias regiöes. Há mortes por
acreditamos na necessidade de continual a enumeraçäo para per-
;rupos policiais ou parapoliciais que implicäm a eliminaçäo de
cebermos que eslarhos diante de um genocIdio em andamento.
;ompetidores em atividades ilícitas (disputa por monopólio de
O genocidio colonialista e neocolonialista, em nossa regiäo
listribuiçäo de tóxicos, jogo, prostïiuição, áreas de furtos, roubos
marginal, nao acabou: nossos sistemas penais continuam prati can-
lomiciliares, etc.). Há "mortes anunciadas" de testemunhas,juízes,
do-o e, se ndo forem detidos a tempo, serão eles os encarregados do
iscais, advogados, jornalistas, etc. Há mortes de torturados que
genocidio tecnocolonialista.
iäo "agüentaram" e de outros em que os torturadores "passararn
Em alguns países, esta situaçáo torna-se mais evidente quando
lo ponto". Há mortes "exemplares" nas quais se exibe o cadáver,
o genocidio assume um aspecto inquestionavelmente étnico, como
Ls vezes mutilado, ou
se enviam partes do cadáver aos familiares, a contribuiçäo do sistema penal para a extinçäo do indio ou o nítido
J)raticadas por grupos de extermfnio pertencentes áo pessoal dos
predomInio de negros, mulatos e mestiços entre presos e mortos.
urgäos dos sistemas penais. Há mortes por erro ou negligência, de
pessoas alheias a qualquer confito. Há mortes do pessoal dos
3.0 poder configurador dos sistemas penais latín o-americanos.
próprios órgaos do sistema penal. Há alta freqüência de mortes nos
Conio foi visto, o verdadeiro exercício de poder de um sistema
l.rupos familiares desse pessoal cometidas corn as mesmas armas
penal nâo é o negativo ou repressivo, mas, ao contrário, o positivo
cedidas pelos órgäos estatais. Ha mortes pelo uso de armas, cuja
ou configurador.
tosse e aquisição é encontrada permanentemente em circustâncias
cue nada tém a ver com os motivos dessa instigaçáo pública. Ha
nortes em represália ac descumprimento de palavras dadas em 7. E este, ein tinhas gemís, o objeto de estudo da segunda etapa da investigaçáo em curso do
Inst. mt. de Direitos Humanos sobre os sistemas penais.

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12S
Este exercício de poder em nossa regiâo marginal é enorme. cujos cadáveres exibe através dos rneios de cornunicaçáo de massa,
As agências nao judicials de nossos sistemas penais encontram-se corno prova de sua eficácia (estas mortes gerarn urna espiral violen-
militarizadas e a burocratizaçäo das agencias judiciais permite que ta, quando o infrator sabe que ser surpreendido pelas agéncias
operem corn inteira discricionariedade. executivas significa nao a perda da liberdade mas da vida).
Como regra geral, os órgãos judiciais preferem nao entrar em A burocracia judicial costuma responder aderindo à campa-
confito corn as agências náo judiciais, urna vez que as reconhecem nha, impondo penas "exemplares", usando expressöes moraliza-
como mais poderosas. Além disso, esses conflitos implicam, ein doras nas sentenças que publica e inclusive procurando
geta!, enfrentamentos corn outros setores -
particularmente corn notoriedade pública corn declaraçöes autoritárias que, freqilen-
o político -
que os órgãos judiciais pre-ferern evitar. temente, ern razäo do baixo nivel técnico e informativo de seus
Em conseqüência. as agéncias nao judiciaiLs dos sisteipas agentes, contradizem as mais elementares regras do discurso jurl-
penis latina-americanos possuern poderes para ipor penas, vio- dico convencional.
lar domicilios e segredos de comunicaçäo, requerer documentaçáo As agências aproveitam estas oportunidades para requisitar
identificatória aos expedir essa docurnentaçao (e mar-
habitantes1
mais velculos, meios, pessoal e armas, que costumam ser con-
cá-la ou nega-la quando IheE convém), privar de liberdade qualquer cedidos jielo amedrontado setor político, arneaçado em sua eilen-
pessoa seni culpa ou suspeita alguma, realizar atos de instruçäo, tela eleitoral por urna campanha de lei e ordern, à quai nao sabe
ocupar-se de tudo o que a burocracia judicial Ihe deixa por menor corno responder. Apesar de quase todos os políticos latino-ame-
esforço, fazer "batidas", fechar lugares públicos, censurar espe- ricanos terem sido presos ou torturados, nao dernonstram a menor
táculos, fichar a populaçäo, etc. Nilo lid controle militarizado mais cornpreensão quanto aO poder e ao perigo representados por estas
poderoso eforinidável do que o exercício por estes órgaos, à margern agências e à necessidade urgente de seu controle. Ao contrário,
de qualquer controle do órgao judicial e, inclusive, corn seu preferem esquivar-se do problema através da falsa ilusáo da pos-
beneplácito8. sibilidade de manejar esse poder e de colocá-lo a seu serviço, ilusao
Quando as agéncias nao judiciais notarn que sau poder vai que perdura até que outras vicissitudes flies devolvam para o lugar
minguando ou pereehem esta ameaça, pot causa de alguma reforma de vit ¡mas dessc l)der.
ou tentativa dc reforma legal ou jurisprudencial, ¡mediatamente o Em outros casos, esses políticos decidem enfrentar esse poder
apareiho de propaganda do sistema penal -
os meios de cornu- seni medir adequadamente suas forças e se precipitarn, produzindo
nicaçäo de massa -
lançam urna campanha de "lei e ordern", cujo reaçöes defensivas do poder dos sistemas penais que depois no
objetivo nao é outro senão atemorizar a população e provocar urn sabem Como enfrentar. Estas tentativas carentes de tálea cos-
protesto público para pressionar as agências políticas ou judiciais tumam ser politicarnente suicidas e seu lamentável r'sultado finai
e assim deter a ameaça a stu poder (entendendo-se sempre por tal pode ser urna reprcssáo maior e a generalizaçäo de urna sensaçào
a capacidade para obter rendimentos ilícitos). de impoténcia, ao mesmo tempo em que o poder das agências nao
A agéncia náo judicial contribui para esta situaçäo corn urna judiciais sai reforçado e a atitude burocrática judicial premiada.
espécie de "trabalbo regularnentar" na proteçâo da propriedade e
corn a produçäo de vm maior número de rnortos por sua violaçäo, 4. Os apareihos depropaganda dos sistemas penais latino-
americanos (a fábrica da realidade). Os rneios de cornunicaçào
s. E comum nos paises periféricos os efetivos policiais superarem os militares. Na Africa
social de massa -especialmente a televisâo -
são hoje elementos
costumam ter multo mais peso político (cf. Marshall B. Clinard Daniel J. Abott, Crime ¡n indispensáveis para o exercício de poder de todo o sistema penal.
developing cout,Iricc. A comparwil'e perspective, Nova torque, 1973, pág. 217).

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Sernos meios de comunicaçáo de massa, a experiéncia direta O sentimento de falta de segurança da população em razão da
da realidade social permitiria que a populaçáo se desse conta da simples dúvida quanto à ineficácia tutelar de todo este aparelho é
falácia dos discursos justiticadores; nao seria, assim, possível in- enorme, já que atinge um plano psicológico muito profundo.
duzir os medos no sentido desejado, nem reproduzir os fatos con- Como a grancje falacia da civilização industrial ("dos céus
flitivos interessantes de screm reproduzidos ein cada conjuntura, descerá um herói para te proteger e resolver teus problemas, elimi-
ou seja, no momento em que são fvoráveis ao poder das agências nando a tua parte ma") é criada e mantida em forma de mitologia
do sistema penai. negativa petos meios de comunicaçáo social de massa, a tecnologia
Os meios de coinunicaçào de massa são os grandes criadores da manipulaçâo que estes adquirem apresenta-se cada dia maior.
da ilusão dos sistemas penais, em qualquer de seus níveis e,tun o desprezo que os "seriados" dos últimos anos demonstram pela
damentalmente, em dois níveis que devem ser cuidadosamente vida humana, pela dignidade das pessoas e pelas garantias in-
diferenciados: a) o transnacionalizado; e b) o que responde às dividuais nao é simples praduto do acaso, mas urna programada
conjunturas nacionais. propaganda em favor do reforço do poder e do controle social
a) Em nivel transnacional, os meios de comunicação de massa verticalizado-militarizado de toda a sociedade.
ocupam-se da precoce introjeção do modelo penal como um pre- b)Em nivel das conjunturas ,zacionais, os meios de comuni-
tenso modelo de solução dos conflitos através da "cornunicaçáo (IC eaçáo de massa têm a íunção de gerar a ilusão de eficácia do
diversäo", ¡sto é, justamente através da introjeçäo que parece mais sistema, fazendo corn que apenas a ameaça dc morte violenta por
inofensiva. ladroes ou de violação por quadrilhas integradas porjovens expul-
E importante lembrar que as crianças costumam passar mais sos da produção industrial pela recessão sejam percebidos como
horas diante da televisao do que diante da professora. As séries perigo.
policiais são as mesmas em todo o continente; mais de 60% do Mais concretamente, são os meios de massa que desenca-
material de televisáo em nossa regiâo marginal é importado9; e boa deiam as canìpanhas de "lei e ordem" quando o poder das agências
parte do resto apenas imita grosseiramente o que vem de fora. O encontra-se ameaçado. Estas campanhas realizam-se através da
material transnacionalizado (as séries policiais) criam demandas "invenção da realidade" (distorção pelo aumentode espaço publi-
de papel dirigidas aos membros das agéncias penais nacionais que citário dedicado a fatos de sangue, invenção direta de fatos que nao
nada têm a ver com os requerimentos nacionais (os funcionârios aconteceram), "profecias que se auto-realizam" (instigação pública
devem comportar-se como os personagens das séries)10. Os seria- para a prática de delitos mediante metamensagens de "slogans" tais
dos glorificam o violento, o esperto e o que aniquila o "mau". A como "a impunidade é absoluta", "os menores podem fazer qual-
"soluçáo" do conflito através da supressâo do "mau" é o modelo quer coisa", "os presos entram por uma porta e saem pela outra",
que se introjeta nos planos psíquicos mais profundos, pois são etc.; publicidade de novos métodos para a prática de delitos, de
recebidos em etapas muito precoces da vida psíquica das pessoas. facilidades, etc.), "produçdo de indignaçao moral" (instigaçào à
violência coletiva, à autodefesa, glorificaçäo de "justiceiros", apre-
sentação de grupos de extermInio como "justiceiros",etc.).
Estas campanhas, conio já foi visto, verificam-se quando as
). Cf. Alcira Argumedo, op. cit.
agencias sentem-se ameaçadas em seu exercício de poder, como
to. -
E significativo e nao somente anedático - que recentemente um imvortante Corpo
quando se aproxima um golpe de estado. Neste último caso, a
policial da regiao tenha promovido o recrutamento de pessoal mediante anúncios corn campanha nao é apenas de indignaçáo moral frente a fatos violen-
figuras de personagens das sties policiais mais conhecidas.

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Eos, mas estende-se a urna suposta degradaçao das costumes, pat reótipos de seu tempo, sempre vinculada à idóia do Ido, isto e, a
ticularrnente na área sexuaL uma espécie de desvalor estético.
Virtualmente, o barôrnetro dos golpes de estado passa por Na América Latina, o estereOtipo sempre sè alimenta das
esta publicidade, náo senda difícil predizê-los através desse gênera características de homens jovens das classes mais carentes, salvo
de campanha. nos momentos de violêneia política ou terrorismo de estado escan-
Em nossa regiäo marginal, ao contrário dos pafses centrais, carado, nos quais o estereOtipo se desvia para varôes jovens das
onde o problema nâo se apresenta, as campanhas de "lei e ordem" classes médias (o "jovem subversivo", ao qual se contrapöe o "jo-
só podem ácontecer corn governos constitucionais progressistas, já vem esportista") .

que nas ditaduras militares são impedidos, pela censura jornalística A capacidade reprodutora de violência dos meios de cornu-
ou pela autocensura dos próprios meio de comunicação de massa. nicação de massa é enorme: na necessidade de urna criminalidade
Este fato tem o duplo efeito de si:tiar o setor qlítico progres- mais cruel para meihor excitar a indignaçáo moral, basta que a
sista para ithpedir o eñfraquecimetto daináquin repressiva que, t1evisão dê exagerada publicidade a vários casos de violência ou
a curto pmo, será aplicada no próprio setor político e gerar urna crueldade gratuita para que, imediatamente, as demandas de pa-
sensaçäo de "ordern e segurança" nas ditaduras (mediante a desa- péis vinculados ao estereOtipo assumam conteúdos de major cruel-
parição de notíeias) e de "desordem e insegurança" nos regimes dade e, por conseguinte, os que assumem o papel correspondente
mais ou menos democráticos. ao estereOtipo ajustem sua conduta a estes papéis.
Algo parecido acontece nos governos autoritários constitu- Entre outras coisas, os meios de comunicaçäo de massa, em
cionais, quando nao são eles proprios que instrurnentalizam as nossa regiáo marginal, constituem o melhor instrumento para in-
campanhas pata reforçar sua repressào corn urna máscara demo- centivar o consumo de tóxicos. Assim, a publicidade de alguns
crática, de acordo corn as agências do sistema e o apareiho da casos de intoxicaçáo corn inaláveis- frequentemente corn deta-
propaganda de massa. lhadas explicaçóes de suas técnicas de uso sob pretexto preventivo
Outra funçäo importante em nivel nacional, embora corn ccrta - nao fizeram outra coisa a nao ser generalizar seu uso, causando
cooperaçáo transnacional, é a fabricaçÀo dos "estereótipos do cri- numerosas mortes de crianças e adolescentes. A associaÇäO "droga-
minoso". O sistema penal Mua sempre seletivarnente e seleciona dc prazer.seXo-Proil)1cã0" em discursos supostamcntc preventivos,
acordo com estere6tipos fabricados pelos rneios de comunicaçào oculta urna metamensagem de incentivo ao consumo de tóxicas. Isto
de massa. Estes estereOtipos permitem a catalogaçao dos crirni- é tao claro que se torna estranho que, praticamente, nenhum meio
nosos que combinam com a imagem que corresponde à descriçáo de eomunicaçâo de massa fale abertamente do perigo de impo-
fabricada, deixando de fora outros tipos de dclinqüentes (delin- tência e da incapacidade para o prazer resultante da intoxicaçâo
qüência de colarinho branco, dourada, de trânsito, etc.). crOnica.
Nas prisöes encontramos os estereotipados. Na prática, é pela O mero enunciado das principais funçoes dos meios de cornu-
observaçâo das características comuns à populaçao prisional que nicação de massa, como aparato de propaganda do sistema penal e
descrevemos os estereOtipos a serem selecionados pelo sistema 4ua dedicaçäo quasc exclusiva a tal propaganda, revela o alto grau
penal, que sai entáo a procurá-los. E, como a cada estereOtipo deve Je empenho da civilizaçäo industrial e dos albores da civilização
corresponder um papel, as pessoas assim selecionadas terminam cecnocientífica para preservar a ilusáo e fabricar a realidade do
correspondendo e assumindo os papéis que Ihes são propostos. sistema penal e a funçâo-chave que este sistema cumpre na ma-
Lombroso, corn seu "criminoso nato" (embora tenha sido ttutençäo do poder planetário desta civilizaçáø industrial.
Ferri que assim o batizou), Jegou-nos a melhor descriçáo de este-
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De qualquer modo, é evidente que nos limitamos a um mero tras organizaçóes internacionais que, corn recursos menores, obtêm
nunciado incompleto, pois a questäo vai multo alem e, definitiva- rnaior reconhecimento.
nente, está vinculada à estrutura de comunicaçáo da sociedade Dificilmente estas agências alcançam objetivos diversos dos
ecnocientífica, que muda a comunicaçào "entre pessoas" pela co- burocraticamente propostos, pois a dinámica ideológica da regiáo
nunicaçäo "através dos rneios". Este tipo de comunicaçâo nao se segue suas próprias regras, frequentemente vinculadas a dinãmicas
imita a proporcionar urna falsa imagem da realidade, mas a pro- conjunturais e locais sumamente complexas.
luzir realidade, de acordo com regras -
tais como o "teorema de Quanto à formaçáo e treinamento dos operadores dos órgáos
Thomas" e a "profecia que se auto-realiza" de Merton relacionados iudiciais, nao podem ser negadas uma considerável massificaçáo do
ko "bode espiatório" aplicado a certos grupos
sociais que são - ensino, uma reduçäo da bibliografia, uma adestrada incapacidade
elhas conhecidas dos conceitos sociológicos. para vincular fenôrnenos e, em geral, uma degradaçäo tecnocrática
Este conjunto contribui para conservar um sistema simbólico do direito que, escassamente, supera o nivel exegético de pre-
'fechado", cujas conseqüências mais notórias são a reproduçao e paraçäo de empregados corn título. As exceçóes apenas confirmam
fortalecimento da verticalizaçäo corporativa da sociedade. Em a tendência geral.
nossa regiäo marginal, este processo gera o fortalecimento dos O descuido salarial do setor docente e da pesquisa é urna
mnculos neocolonialistas na versâo ainda mais genocida corn que prova da tendência assinalada; as dificuldades econômicas aumen-
i os ameaça hoje o tecnocolonialismo. tam esta tendência com a reduçáo dos orçamentos universitários.
Como vimos, acentua-se na regiäo um deslocamento de recur-
5. As fábricas ideológicas. A reprodução ideológica dos dis- sos orçarnentários para o selor "segurança" em detrimento do setor
cursos dos sistemas penais verifica-se nas universidades que, sem saúde e do setor educaçäo, o que geta efeitos no ámbito daprópria
cúvida, representam outra peça chave do sistema penal, embora, segurança.
em nossa região marginal, sem a mesma importância que nos países
centrais. Na América Latina, nao existe um esforço de raciona- 6. 0 condicionamento, a estigmatizaçdo e a morte: a crimi-
lzação legitimante original do sistema penal, mas copiam-se as nalizaçao. Nossos sistemas penais reproduzem sua clientela por urn
'acionalizaçoes diretamente elaboradas pelos sistemas centrais, processo de seleçáo e condicionamento criminalizante que se
combinando-as da forma desejável. orienta por estereótipos proporcionados pelos meios de comu-
De qualquer maneira, deve ser observada a formaçäo de al- nicaçáo de massa.
ulnas agências regionais supranacionais, geradoras de uma bu- Há estereótipos "místicos", que nao podem realizar-se (o do
rjcracia transnacional que, às vezes, luta para ocupar um espaço violento consumidor de heroína corn síndrome de abstinência, na
rprodutor major do que aquele de que realmente dispoe, mas que, América Latina, por exemplo), e estereOtipos "realizáveis" (ver-
em geral, se conforma em cumprir a invariável regra burocrática de dadeiras "profecias que se auto-realizam"). Estes dois estereótipos
j istificar-se, gerando sua própria clientela de viajantes sao criados pelos meios de comunicaçào de massa, mas aos segun-
oficiais. Até
c momento, como a estas agências falta incidência prática dos são requeridos comportamentos violentos ou cruéis.
na
r produçäo ideológica, elasainda nao conseguiram substituir Os órgáos do sistema penal selecionam de acordo com esses
ou-
estereótipos, atribuindo-Ihes e exigindo-Ihes esses comportamen-
Bastante clan da análise que, a este respeito, faz Baratta sobre "droga' (Introducción a
tos, tratando-os como se se coinportassem dessa maneira, olhando-
una sociologia dc la droga. Problemas y contradicciones dei control
penal de las os e instigando todos a olhá-los do mesmo modo, até que se obtém,
drogo-dependencias, reprod., Rio de Janeiro, 1988).. finalmente, a resposta adequada ao papel assinalado.

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mais importante é feita pe.a prisäo ou
cadeia e perfeitamente
Como é natural, nem todas as pessoas respondem a esta mall- da possibilidade de
cia humana da mesma maneira. O estereótipo alimenta-se das ca- legalizado através de registros de reincidência,
trabalho honesto por
racteristicas gerais dos setores majoritários mais despossuldos e., impedir ou dificultar qualquer exercicio de
ocupam de propagar o
embora a seleçâo seja preparada desde cedo na vida do sujeito, é parte das agências do sistema penal que se
periodicamente a
ela mais ou menos arbitrária. Os sujeitos mais sensíveis às deman- status do crirninalizado, de privar de liberdade tomar os
de
das do papel formuladas pelas agéncias dos sistemas penais são os pessoa, convertendo-a em um "suspeito profissional",
inclusive por parte dos juizes,
mais imaturos, OU seja, os que possuem menor independência a antecedentes como provas de culpa,
respeito de sua adequada distinçao em relaçâo aos objetos exter- etc.
nos. A major sensibilidade As demandas do papel relaciona-se
dúvida, os maus-
direxameute corn a possibilidade de invasäo que o individuo As cadelas on máquinas de deteriorar. Sern
7.
usuais na prática dos
-
ofereça. tratos, a tortura, os vexatnes e as ameaças,
como condi-
.

órgãqs policiais, tornam-se altamente deteriorafltes


Ao assumir o papel dethaidado pe10 trgäospènais, o iidi- mais importante da
víduo converte-se em importante colaborador pata. a manutenção cionanlento criminalizar. No entanto, a parte
"instituição total"
deterioração condicionante fica por conta da
do sistema penal. Scm a contradiçào derivada destecomportamen- (pertelicente à categoria
to condicionado, o sistema penal nao seria umailusáo, mas urna que conhecemos corn o nome de "prisäo"
alucinaçáo, muito mais difícil de ser provocada. dnominada por Foucault de "instituiçôes de sequestro")12.
que se comporta como
A carga enigmática produzida por qualquer contato do sis- A prisâO ou cadeia é urna instituiçãO
urna patologia cuja
tema penal, principalmente corn pessoas carentes, faz com que uma verdadeira máquina deteriorante gera
regressäol3, o que nao é difícil de ex-
alguns círculos alheios ao sistema penal aos quais se prolbe a princiPal característica é a
condiçöes de vida que
coalizäo corn estigmatizados, sob pena de considerá-los contami- plicar. O preso ou prisioneiro é levado a
de tudo que o adulto
nados, cothportem-se como continuaçäo do sistema penal. nada têm a ver corn as de um adulto: éprivado
com limitaçôes que o
Cabe registrar que a carga estigmática náo é provocada pela faz ou deve fazer usualmente em condiçöes e
comunicar-se por
condenaçäo formal, mas pelo simples contato corn o sistema penal. adulto nao conhece (fumar, beber, ver televisàO,
manter relaçôes se-
Os meios de comunicação dc massa contribuem para isso em alta telefone, reccber ou enviar correspondência,
medida, ao difundirern fotografias e adiantarern-se às sentenças xuais, etc.).
de todas
com qualificaçóes como "vagabundos", "chacais", etc. Por outro lado, o preso é fendo na sua auto-estima
privacidade, de seu prOprio
Este fenômeno nao é privativo do sistema penal, mas nele as formas irnagináveis, pela perda de
A isso juntam-se as
assume características particulares: urna pessoa começa a ser tra- espaço, subrnissóes a revistas degradantes, etc.
prisöes: superpopulacäo
tada "como se fosse",ernbora náo haja manifestado nenhum com- condiçöes deficientes de quase todas as sanitaria,
portamento que implique urna infraçâo. Ao generalizar-se o alimcntaçäo paupérrima falta de higiene e assistência
tratamento de acordo com o "como se fosse" e sustentar-se no
tempo quase sem exceçäo, a pessoa passa a se comportar de acordo
com o papel atribuIdo, ou seja, "como se fosse", e corn isso acaba
Microfísica.
"seudo". CabanulIas,ApufltaP'a una psico-s°ciologfa carcelati4
12.

13. Cf. Mariano F. Castex-Ana M.


Ê necessário advertir que no sistema penal nao se trata sim- Cohen-Laurie Taylor, Psychological Survival- The
reprod., Buenos Aires, 1986; Stanley Gustav Nass, Die Kthninell en.
plesmente de um acordo externo, mas também de sério "tratarnen- nperieíwe of Long-Term Jmprisonmeflt Middlesex, 1972;
Urnwel4 Schuld un Schicksal; Munique, 1966.
to" integrado em um complexo processo de deterioração, cuja parte Secl4

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eLe., scm contar as discriminaçóes em relaçâo à capacidade de
tos" o que nada mais era do que uma classificaçäo ou tipologia dos
pagar por alojamentos e comodidades.
diferentes modos de deterioração provocados pela prisionizaçäo14.
o efeito da prisäo, que se denomina prisionização, scm dúvida
A prisao nao seqüestra muiheres item velhos, a nao ser em
deteriorante e submerge a pessoa numa "cultura de cadeia", proporção multo reduzida.
j stinta da vida do adulto em liberdade. As mulheres nao precisam ser controladas por meios ins-
Esta "imersäo cultural" ajo pode ser interpretada conio urna titucionais porque sao contidas através de instâncias informais,
t ntatiya de reeducaçäo ou algo parecido ou sequer aproxima-se do
embora possa ser percebido um aumento da populaçäo penal femi-
p )stulado da "ideologia do tratarnento"; suas formas de realizaçäo nina por latos vinculados à cocaína.
so totalmente opostas a este discurso, cujo caráter escamoteador Os vaihos são deteriorados por outros meios que os levain à
é percebido até pelos menos avisados. A men circunstancia de que
7{% dos presos da regiäo näo estejam condenados mostra a cvi- doença, à morte ou ao suicídio, livrando dessas obrigaçöes (quando
existem) os maltratados sistemas previdenciários da regiâo, para
d nte confissäo da falsidade do discurso ressocializante.
alivio de seus operadores.
A prisäo nao deteriora por deteriorar, mas o faz para con-
Cabe lembrar que a América Latina, peio menos setorial-
_1 cionar: "invade" o individuo corn suas exigências do papel que
mente, eonseguiu superar o tradicional indice recorde de suicidios
u mbérn ihe. são formuladas pelas outras agéncias do sistema - e da
q w a prisão apenâs exacerba - em urna continuidade deteriorante
Suécia15.

r( alizada por todas as agências, incluindo a judicial. Trata-se de


8. As agências executivas como máquinas de policiar. Deno-
u:na verdadeira "lavagem cerebral", da quai fazem parte, inclusive,
minamos "agências executivas" do sistema penal sens segmentos
U. demais prisioneiros que interagem corn aquele submetido ao
institucionalizados näojudiciais, destacando-se, pelo papel de pro-
ratamento criminalizante. No entanto, e einbora a prisão seja
tagonistas centrais desempenhado em razäo de seu alto poder con-
::trnpre deteriorante, é possível observar que oem sempre o resu1-
ado é eficaz corno reprodutor de clientela. Efetivamente como já
figurador, as agéncias policiais (as agências penitenciárias
possuem muito pouco poder configurador).
inos, os diferentes graus de sensibilidade às exigências do papel
Na América Latina, a regra é a militarizaçâo das agências
dpendern da maturidade do individuo que, se nao puder distinguir
policiais e penitenciárias, embora suas funçóes sejam de natureza
incito nitidamente os limites do seu mundo exterior, será rapida-
indiscutivelmente civil, pelo menos formalmente. O serviço policial
mente invadido. Em urn pequeno número de casos, esta invasäo terá
de investigação criminal é claramente um serviço civil, conio tam-
Lili efeito desestruturante e a deterioraçáo do
individuo será em bém o seria a pretensa técnica do tratamento penitenciário. No
iireçäo à psicose ou ao suicidio; em urn número muito major o
entanto, os dois serviços costumam ser militarizados, organizados
ndivíduo se deteriorará assurnindo o papel de acordo corn as
com regulamentos disciplinarios de caráter militar, práticas de
igêucias; em um pequeno número de casos resistirá e sua de-
sançöes, uniformes, insignias, graus, etc.
erioraçáo nao se desenvolverá em nenhum dos dois sentidos. Há
ai ida um pequeno número de hipóteses nos quais o individuo,
rasmo na prisâo, nao "se vê" como "criminoso" e portanto as 14. Manifestaçöes desta curiosa "inversáo" etiológica são as classificaçöes de Benigno Di
)igências do papel são diferentes. Tullio,Tratado de Antropología Crimina4 Buenos Aires, 1950; Louis Vervaeck,
Introduction au cours d'Anthropologie Cthninelle, Bruxelas,
1924; Franz Aiexander-Hugo
Todas essas variáveis forarn recolhidas nas complexíssimas Staub,Eldelincueníey sus jueces desde elpunto de vista psicoanalítico, Madri, 1935. Urna
'classificaçöes de delinqilentes" da criminologia etiológica em sua interessante crítica a esta última classificaçao ests em Rüdiger Herren, Freud und die
ersáo clínico-criminológica, que confundiu como "causas de deli- Krimthologic Ein] bring in die P3ychoanalitische Krïminologiç Stuttgart,
1973.
15. A Argentina parece ter ultrapassado o número de
cinco mil suicidios no último ano.

[26
J

137
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Existem algumas agências executivas nao militarizadas, como Ao contrário do que ocorre corn o estereOtipo do delinquente,
bancos centrais, diretorias alfandegárias, administraçöes de Iron- portanto, cindcm-se por causa de urna complexa manipulaçäo da
teiras, dc migtaçöes, etc. que. no entanto, sempre exercem suas opiniáo pública, enquanto a cúpula das agências reitera discursos
funçóes ao amparo da força militarizada das outras agéncias exe- moralizantes.
cutivas. A isto deve acrescentar-se que as classes médias latino-
Em gerai, as agências militarizadas so integradas por pessoas americanas vêem o policizado corno, urn emergente das classes
recrutadas dos segmentos carentes da populaçäo, isto é, dos mes- carentes e, freqüentemente, tém preconceitos raciais a seu res-
mos setores nos quais se produzcm a vitimizaçäo e a criminalizaçâo. peito. Se por um lado, todos os preconceitos racistas de nossas
Este pessoal sofre urna série de graves violaçöes a seus direitos classes médias recacm também sobre o policizado e alimentam uma
humanos, comumente ignoradas nos discursos penais e crimino- contida atitude de desl.rezo contra o mesrno, por outro, este
lógiòos. Tem-se falado bastante, nos últimos anos, no processo de antagonismo social é também instrumentalizado quando se trata de
criminalizaçao, mas tem-se faladS rnuito»poucoi no processo de reprimir ou suprimir rnanifestaçôes dissidentes ou coptestatórias
policizaçao, igualmente deteriorante, que atua sobre os mesmos das classes médias em nossa regiäo marginal.
segmentos carentes da população. Cabe observar que os setores mais progressistas de nossas
O pessoal policizado, além de ser selecionado na mesma faixa classes médias nao escapam dos preconceitos referidos, embora
etária masculina dos criminalizados, de acordo também com um atenuem seos exccssos racistas.
estereOtipo, é introduzido em urna prática corrupta, em razão do Neste panorama, náo é estranho que o policizado possa ser
poder incontrolAdo da agéncia da quai passa a fazer parte e é caracterizado como urna pessoa em situação anômic-a, no mais
treinado em um discurso externo moralizante e corn uma prática primitivo sentido da expressào, nao pelas transformaçoes sociais
interna corrupta. -
conjunturais ou estruturais como naversäo originaria durkheim-
A cisão entre o discurso externo e a prática interna é clara- niana da anomia -, mas como resultado de um treinamento que o
mente percehida pela populaçao que se comporta em relaçao ao submerge na anomia. O homem perde as referências dos grupos
pessoal da polícia corn grande desconfiança, de acordo corn o originários aos quais pertence, que passam a "estranhá-lo" e a
estereOtipo popular que mostra a polícia como q indivIduo "vivo", trata-lo eom certa desconfiança; os grupos médios náo o aceitam e,
"esperto" e "corrupto". Ao lado deste "estereOtipo popular" da em geral, o desprezam; as cúpulas o ameaçam corn sançöes ad-
polícia, existem demandas dos papéis que são designados ao poli- ministrativas, se nao se submeter às práticas corruptas, ao mesmo
cizado e que se nutrem da propaganda de massa transnaciona- tempo em que lhe impöem discursos moralizantes; simultanea-
lizada: violéncia justiceira, soluçao dos tonflitos sern necessidade mente, a conduta "ideal", que o reprovam por nao assumir (e que
de intervençäo judicial e executivamente, machismo, segurança, corresponde à de "herói" produzido pela ficçáo trans-
indiferença frente à morte alheia, coragern em limites suicidas, etc. nacionalizada), é a de um psicopata.
-
-

Demandas transnacionalizadas no modelo de papel dirigidas O policizado sofre urna grave perda de identidade como
ao pessoal da polícia correspondem ao que, nos conceitos mais nao poderia deixar de ser - e, por conseguinte, elevado grau de
tradicionais, denomina-se "psicopata". deterioraçâo, porque ninguém pode estar em condiçöes intelec-
Em síntese: se por um lado, em funçäo do estereOtipo, o tuais ou emocionais de atuar racionalmente em semelhante anomia.
policizado é visto como um corrupto, por outro, pelas exigéncias Mas a anomia e a deterioraçao aprofundam-se ainda mais se
do papel, espera-se que ele se-comporte como um psicopata. considerarmos o medo que, necessariamente, acompanha seu com-
portamento. Os maiores riscos físicos nas agências do sistema penal

138 . - 1:39

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âo sofridos pelos policiais. Os regulamentos e as práticas das ou da agência política, trate de selecionar alguns de seus integran-
&êcias obrigam os policiais a correrem riscos, muitas vezes corn- tes e criminalizá-los para salvar sua imagem de "organismo" capaz
?Jktamente inúteis (estar sempre armado, vestir uniforme fora de de "autodepurar-se".
3erviço, ter os cabelos cortados militarmente, intervir em qualquer Em smntese, poderiamos definir a policizaçao como oprocesso
raLO ainda que a situação seja suicida, etc.). de deterioraçäo ao quai se submetempessoas dos setores carentes da
Se numa operaçáo o homem precisa matar outro, a agência popula çäo que se incorporani às agências militarizadas do sistema
a o Ihe presta nenhuma assistência psicológica posterior. Tam- penal e que consiste em deteriorar sua identidade original e substituí-
:cuco M uma preocupaçáo razoável em refinar a integridade psi- la por urna iflentidade artificial, funcional ao exercício de poder da
_lj ica dos policiais se ele deve intervir em outros fatos traumáticos
agência.
rco1her suicidas, cadáveres despedaçados, etc.); presume-se que
J!
.ndivíduo deve estar psicologicarnente preparado para tudo isto, 9. As agências judiciais como máquinas de burocratizar. A
perque o contrário seria impróprio do "macho" que o policizado seleçäo recrutadora dos agentes e operadores das ag7ncias judi-
it Ve ser. ciais verifica-se, de maneira geral, entre os setores médios e mé-
-
Isto significa que a ausência de medo que, obviamente, nao dios-baixos da populaçäo, embora, eventualmente, possa operar-se
) mesmo que valentia, mas uma característica psicopática, pro- alguma excepcional seieçäo entre pessoas da classe média alta.
ii to de acting-out que incapacita para a previsäo - e a insen- O processo de treinamento a que ë submetido é igualmente
1iljilidade ao horror Ihe são requisitados de maneira que ninguém deteriorante da identidade e realiza-se mediante uma paciente
deria responder positivamente, sendo confundidas estas duas internalizaçao de sinais de [also poder: solenidades, tratamentos
xgôncias corn sua identidade sexual. Se nao responder às exigén- monárquicos, placas especiais ou automóveis com insIgnias, sau-
;i.s psicopáticas, Ihe dâo baixa através de um simples procedimen- daçöes militarizadas do pessoal de tropa de outras agências, etc.
L) administrativo. Por outro lado, o pessoal destas agências nao tern A introjeçao destes sinais de falso poder pode dar-se precoce-
ii tito de sindicalizaçäo, pois a ordem militarizada assim o impede. mente na própria universidade, mas, o mais comum, é que o trei-
Quando o policizado morre por um dos perigos, que, nem namento comece na hierarquia inferior da própria agência.
eupre de forma necessária, os regulamentos militarizados obri- De acordo com a forma pela qual se estrutura a agência, os
;a m-no a -enfrentar, um cuidadoso ritual de morte é posto em "cadetes" judiciais sao treinados como juízes de menor valor ou
'Jicionamento com grande publicidde: a agência consolida seu municipais ou como empregados administrativos, O certo é que, ao
der promovendo tanto a indignaçäo moral entre seus membros
C alcançar uma categoria equiparävel à de oficial das agências mili-
emo o medo. Desta maneira, tornam-se ainda mais anômicos, tarizadas, o indivíduo já deve ter internalizado os modelos da
ievem cerrar fileiras e garantir o vínculo grupal da agência, de agência e deve responder às exigências do papel que Ihe for
i -ma corporativa, de acordo corn o discurso da cúpula da agência atribuIdo a partir de urna adequada manipulaçáo da opiniâo pú-
simultaneamente, ficam mais vulneráveis aos modelos da mesma, blica: assepsia ideológica, certa neutralidade valorativa, sobrie-
se torna o único abrigo para fabricar urna identidade artificial dade em tudo, suficiência e segurança de resposta e, em geral, um
-n troca da identidade que se deteriorou no processo de se tornar certo modelo de "executivo sênior" com discurso moralizante e
r' policial. paternalista ou uma imagem de que, na devida idade, responderá a
Soma-se a estes medos o eventual temor de que a própria este modelo.
Lgencia, em algum momento em que a conjuntura o requeira, diante A manipulaçäo da imagem pública do juiz pretende desperso-
a pressäo da opiniäo de alguns meios de comunicaçäo de massa nalizá-lo e reforçar sua iunçao supostamente "paternal", de ma-

:4) 141

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neira a ofuscar e ocultar scu caráter de operador de
urna agência
penal corn limitadíssimo poder dentro do sistema penal. realidade nao responde a um esquema simplista de
Esta im- divisao de
\_ agern é introictada pelo proprio operador porque poderes do estado, mas parece resultar funcional
\ dc modo a alimentar sua foi treinado nela, para todas- as
onipotência - sinai de imaturidade,
próprio da adolescência -, e o impede de perceber as
agências.
o juiz parece urna pessoa que se acha mais
arneaçada em sua
ido sen poder. Dentro desta lógica, duvidar de seu
lesáo a sen "narcisismo treinado", expressão do
ratite de sua personalidade.
lirnitaçoes
poder significa
resultado deterjo-
identidade do que em sua estabilidade funcional entendida
fonte salarial, pois costuma ter um papel muito mais
do que o do prOprio policial, urna vez que scu lado
como
internalizado
"paternalista"
Em determinado momento, o operador da parece merguihar as raízes em estratos mais profundos do
agência judicial incons-
:
percebe a si mesmo em funçäo de seu cargo e hierarquia e ciente.
constrói Se a deterioraçáo que o sistema penaJ produz
nina identidade assentada sobre essas bases. nos policiais tern
L
Recusa os lampcjos de
consciência sobre as liniitaçöes do sen poder, em razäo sido pouco estudado, a burocratizaçäo, como
do sofri- forma de deterio-
rnento que Ihe provocam (afetam seu narcisismo, sua raçäo dos operadores das agências judiciais dos
onipotência e sistemas penais,
sua auto-estima; observe-se que se trata de
características regres- diretamente, nunca foi estudada e, por conseguinte, a situaçäo
de
sivas iguais às que condicionan os processos de violaçâo de direitos humanos que acarreta nao tern
criminalizaçáo e tratamento
de policizaçáo); nao Ihe resta outro
recurso senAo evitar conflitos porque o.s próprios afetados nao a percebern.
corn outras agências para preservar sua identidade Poucas vezes é adequadarnente observada a situaflo
falsa ou artifi- de ex-
dal, produto do treinamento regressivo róprio da agència trema vulnerabilidade na quai se colocam estas
e, tarn- pessoas, e as ten-
bem, para conservar sua funçäo: o único' caminho tativas de explicitá-la se estirnagtizam numa espécie de
"desacato"
é a
burocratizaçdo, ou seja, as respostas estereotipadas, a que "destruiria as bases republicanas" ou qualquer
conformi- outra expressä
dade com os modelos "de sempre", a "ineficacia de obstruçâo autoritária do discurso). Menos
treinada" através ainda se considera que
da elevaçäo dos rneios a categoria de fins, etc., muitas "teorías jurídicas", a partir de outro ângulo,
isto é, tudo o que é nao passam de
hem conhecido e descrito como "comportamento racionalizaçôes ou mecanismos de fuga, explicâveis somente à
obsessivo"16 (em- luz
bora esta definiçâo seja demasiado psicologista e nem destefenônieno de deierioraçao e nao em nivel consciente.
sempre coin-
cidente com a realidade da burocratizaçáo judicial).
Sein dúvida, este comportamento debilita o 10. Deterioraçao e antagonismos como
poder da propria
.

produtos da Operacio-
agência judicial, mas, por outro lado; apresenta-se nalidade dos sistemas penais. Contemplando a policizaçáo,
perfeitamente a buro-
funcional ao exercício de poder configurador positivo cratizaçáo e a crirninalizaçao, o sistema penal é um
das agências complexo
restantes do sistema penal. Nada meihor pedem desejar estas aparelho de deterioraçâo regressiva humana que condiciona
do falsas
que urna agéncia judicial, que reitere um discurso
que justifique
identidades e papéis negativos.
todas, composta por onipotentes que créem exercer urn Evidentemente, a interaçäo condicionante de todos os papéis
poder -
-
que, na realidade, está sendo exercido por elas e por
que procuram evitar qualquer confUto corn as agências,
operadores
é muito mais complexa do que pode refletir
e apresenta graus e matins diferentes,
nossa breve referência
inventan- corn variáveis locais e con-
do-se tarefas sem incomodá-las muito, junturais. O resumo, no entanto, é suficiente para
Incontestavelmente, esta na pista dos mecanismos através dos quais os
colocarmo-nos
sistemas penais vio-
lam os direitos humanos, nAo sO dos criminalizados,
mas de seus
16. Cf. Merton, op cit.
prOprios operadores: deteriora, regressivamente, inclusive aqueles
que os manejam, ou crêem manejá-los.
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Um dos meios mais eficazes para garantir a deterioração 11.A destruiço dos vínculos comunitários. Parece claro que,
r ressiva de seus operadores é a instabilidade trabaihista de todos corn o resumo aqui feito sobre a forma de atuaçao real do sistema
C S crabaihadores dos sistemas penais: nenhum deles pode exercer penal, a descriçâo revela a necessidade urgente de urna resposta
i ga1mente os direitos trabaihistas que são reconhecidos a todos os latino-americana diante da crise de legitirnidade.
C LIros trabaihadores; nao poder» pedir aumentos salariais, sin- No entanto, tanibém é fundamental precisar melhor a razâo
C icalizar-se, nem declarar-se em greve ou tomar outras medidas de pela qual esta operacionalidade real cria a necessidade de resposta.
C ail áter trabaihista. As agôncias militarizadas impedem-no por eau- Com efeito, apesar de o sistema penal ser plurifuncionai (e
s. de seu regime; as judiciais, por constitufrem um "poder do qualquer reduçao unilateral do mesmo é um erro gravissimo que
e s t ido". deve ser evitado por causa de suas coneqüências práticas Iclais),
o complicado jogo de identidades artificiais, criadas pelo entre essas funçoes e!nergeni, como. as mais notôrias, a criaçdo e o
r exercício do poder do sistema penal, introduz antagonis- aprofundamento de antagonismos e contradiçoes sociais e
rics entre os operadores das diferentes agéncias do poder. Estes conseqüentemente o enfraquecimento e a destruiçäo de vínculos
anragonismos provocam a imputaçäo recíproca de que aquilo que comunitários, horizontais e de simpatia. Nao é à toa que se permite
s onsidera falhas conjunturais do sistema penal, na realidade so e se fomenta que o sistema penal- mediante a deterioraçäo regres-
car acterísticas estruturais dos mesmos. siva de identidades e a criaçâo de papéis artificiais (de "delin-
Estas impul açñes recíprocas provoca w Urna ''coiil[)aiti men -
queUtes", dc "polieizsis" ou de "juizes") que venham a ocupar o
t zaçäo" das agéncias do sistema penal, já que cada urna deve espaço deteriorado - gere antagonismos entre diferentes grupos
del ender seu próprio exercício de poder frente às outras. AO Cfl- de carentes, dentro destes mesmos grupos, ou entre esses grupos e
c.j telar-se para defender seu poder, cada agéncia o exerce corn os setores niédios, provocando, assim, a neeessidade constante de
asu oluta indiferença -
e até desconhecimento ou ignorância era - maior violência repressiva e o aumento de deteriorados. Tudo isto
r al açäo às restantes e, multo mais ainda, em relaçäo ao resultado leva, em nossa região marginal, a se considerar o sistemapenal como
f a ai da operacionalidade do conjunto, sobre o qual nao tém sequer o nlaior obstáculo àpaz social e, fundamentalmente, à coalizuo civil
a possibilidade de se informar.
frenie ao exercício arbitrário do poder.
Desta forma, nao .6 correto referir-se a um "sistema penal" o sistema penal apresenta-se como um poder local funcional
eu indo, em realidade, trata-se de um conjunto heterogêneo de a uma imensa rede de poder planetario que, ao apoiá-lo - por sua
a gr nejas eompartimentalizadas'7, razáo pela quai usamos a expres- funcionalidade - também o transnacionaliza corn a formidável
sic apenas por sua consagraçäo técnica. Na realidade, por "sistema eontribuiçäo do poder da comunicaçâo de massa transnacional).
r cual" entendemos simplesmente a soma dos exercícios de poder de Este poder planetário possui razöes de sobra para evitar tanto a
taas as agências que operam independentemente e, de modo algum, coalizâo civil como a abertura de sólidos meios de cornunicaçäo
a:jiiiio que a palavra "sistema" quer assinaiar no terreno da biologia intra e interclassistas em nossa região marginal.
c u em outros análogos. Ouanto maiores e mais graves forem nossos antagonismos
internos, maior será o condicionamento vertiealizante trausna-
cionalizado e menores sedo, portanto, os bei de poder capazes de
oferecer alguma resistência ao projeto tecnocolonialista. Urna
obrc esta característica estrutural dos sistemas penais, 1-luisman-Bernart de Celis, np. sociedade verticalizada constitui, obviamente, urna sociedade (deal
it.; State of NewYork. Commisionoflnvestigation, The New Yorkprisoner realease, Nova para ser mantida sempre dependente, inipedindo-se qualquer ten-
3 orque, 1985, pág. 13. tativa de aceleraçdo histórica, en quanto urna sociedade que equilibre

14'
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i .
relaçoes de verticalidade (autoridade) coni re(açöes de horizonta-
IWade (de simpatia ou comunitaria) apresenta-se mais resistente à aplicada nos Estados Unidos (mas. nao no Canadá, Europa e
dominação neo e tecnocolon ial. Japäo), chegando-se aos inconcebíveis niveis de prisäo já referidos
Quando o verticalismo social predomina, basta dar um (urn preso para cada trezentos habitantes) e acs resultados já
piparote na cúpula para manter o controle. Ao contrário, a comu- esperados, ou seja, aumento do índice de homicidios20.
nidade representa a possibilidade de .resistência anticolonialista, NAo por acaso, o poder mundial sempre manteve agentes
pois aquele que se apodera do poder verticalizado dispâe apenas poconsulates destruidores de vínculos comunitários em nossa
de um dosioci de poder. O poder central sempre deseja a existôncia periferia, tais como as ditaduras "tecnoburocráticas" de
de apenas uma cabeça na regiäo marginal. A pluralidade comu- segurança nacional" -
qualitativamente mais destrutivas da
nitária é estigmatizada como "primitiva", "arcaica", "desor- omunidade do que as clássicas ditaduras latino-americanas ou, -
denada", "insubordinada" ou "subversiva"18 recentemente, alguns rebrotes de demagogia repressiva que, mon-
Esta razäo -
urna das mais importantes par exigirmos urna tados na lei e na ordern, captaram votos de suas prôprias vítimas
para suas metas de submissáo total aos imperativos tecnocolonialis-
resposta urgente para o problemà da deslegitithaçâo do sistema
penal -revela que, no fundo, encontra-se presente urna questäo tas centrais.
de defesa nacional19. Embora nossos politicos cèrcados pelas - No entanto, na América Latina, esta demagogia akançou
apenas éxitos esporádicos elocais, que acabam mal, como demons-
agôncias de propaganda do sistema penal -
nAo o tenharn corn-
tram algumas experiências eleitorais recentes.
preendido, nossos sistemas penais são os instrumentos de
dominaçdo neocolonial e arneaçarn converterem-se no instrumento
de dominaçáo tecnocolonial niais eficaz já inventadò.
Em substituiçäo a exércitos invasores, apresenta-se muito
II - A Necessidade de Urna Resposta Marginai
Como Imperativo Jus-h umanista
mais simples enviar seriados de televisáo e tecnologia discursiva
para conseguir que nossos setores mais carentes e atingidos pela A necessidade de resposta nAo é imposta apenas pela ameaça
crise de nossos sistemas produtivos se dividam e náo consigarn de um genocIdio praticado pelo tecnocolonialisrno e de um outro
coligar-se, processo que conta corn «beneplácito dos setores genocfdio já cru andamento, tuas, em nivel de direitos humanos, a
médios, também preservados de qualquer tentaçâo de dissidência dcslegitirnaçAo do sistema penal, além de demonstrar que nossos
contestatória. Corn singular ingenuidade, esta mesma receita é sistemas penàis marginais violam os direitos humanos, revela que
tais violaçoes nao provém de nossos sistemas penais periféricos,
18. Sao evidentes neste sentido os esforços feitos por qualquer ditadura para destruir sendo produto dc características estruturais dos proprios sistemas
os
vínculos de solidariedade e de cornunjdade. penais. Em resumo, o exercício de poder dos sistemas penais é
19. Fica clam que a doutrina da 'segurança nacional"
e da "defesa nacional" resulta em inconipatís'el coin a ideologia dos direitos hümanos.
concoitos quase incompaL(veis. Nio poderla sor do outro modo, devez que esta doutrina
conspirativa, na quai insisteni até boje as conferéncias rnilitares,pretende que façarnparte Na verdade, pode parecer um contra-senso afirmar que a
Movimento Comunista Internacional (MCI) todas as pessoas ou instituiçôes que ideologia justificadora dos sisteir 15 penais é incoinpatível corn a
formulem quaiquer crítica social ou denunciern situaçòes de injustiça a nivel nacional ou ideologia dos direitos humanos, urna vez que todos os instrumentos
internacional; conforme esta tese conspirativa insensata, a alternativa parece ser apoiar
O status quo sem a menor objeçao ou passar a integrar as fúeiras do MCI;
dos direitos humanos parecem reconhecer a legitimidade do sis-
deste modo,
como todos são convertidos ein inimigos, pois todos sao membres do MC, a "doutrina"
pode cumprir urna funçao política discursiva, nias náo serve para ïnstrurnentalizar nada
inteligente em rnatéria de defesa 20. A critïca democrática em Elliott Cuffle, ConfrontingcrimcAnAmedcan Challenge, Nova
Iorque, 1985.

146
F

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I ema penal, ocupando-se corn certo detaihe de sein limites e garan- principio de que todos os homens nascem livres e iguais em dig-
Lias. No entanto, urna análise mais próxima e pormenorizada da nidade e direitos. Scm dúvída, trata-se dc urna insensatez histórica
cuestão e, particularmente, de sua genealogia ideológica permitirá somente comparável corn a insensatez que pretende a futura exis-
( bservar que esta é urna simples aparência.
tência de um sistema penal que, com a estrutura de qualquer um
Para perceber o fenomeno em toda a sua dirnensäo, torna-se dos atuais, se inspiraria no principio da igualdade, quando sabemos
t ecessário deter-se uni momento na
natureza dos direitos humanos. que a operatividade seletiva é da essência de qualquer sistema
Os direitos humanos, como consagrados pelos instrumentos penal.
iiternacionais, näo representarn urna mera "ideologia ins- Os diritos hurnapo, no.entanto, nao represeqtaxp urna utopia
t iimental", mas um certo grau de consciência mais ou menos uni-
: em sentido negativ), mas uni programa de longo alcance de
'ersat que constitui urna ideo(ogia programática para toda a transformaçäo da hun2anidade Considerá-los de outra maneira é
hurnanidade. No entnto, um programa é apenas urna antecipaçáo urna tentativa de banalizá-Ios. Sua positivaçäo em instrumentos
e, por conseqüência, náo significa que esteja realizado, e sim que norrnativos internacionais serve para demonstrar-nos que o mundo
eve realizar-se como transforrnaçáo social e, obviamente, como está 'ao contrário". A pretensão de que os direitos humanos estão
t ansformaçao também individual. "realizados" nao passa de urna tentativa de colocá-los "ao con-
Quase töo simples como repetir que "todos os seres humanos trário" e, cm conseqüência, de neutralizar scu potencial transfor-
.uescem livres e iguais em dignidade e direitos" é a dificuldade de mador.
V venciá-lo. Para vivencia-lo,
torna-se necessária urna atitude Enquanto os direitos humanos assinalam um programa
cumica: colocar-se de cabeça para baixo, para ver o mundo ao realizador de igualdade de direitos de longo alcance, os sistemas
C )ntrário. penais são instrumentos de consagraçáo ou cristalização da desi-
Realmente, vivenciar o artigo prirneiro da Declaraçâo Univer- gualdade de direitos em todas as sociedades. Nao é por acaso que
s tI constitui uma verdadeira façanha moral. A vivéncia
perceptiva os dispositiv6s dos instrumentos de direitos humanos referentes
ii:m sido apenas privilégio raro de uns poucos numes morais da aos sistemas penais sempre sejam lirnitadores, demarcadores de
hLlmanidade. A cornparaçäo do comportamento desses mimes corn fronteiras mais ou menos estritas do seu exercício de poder: flea
nssas atitudes fortemente condicionadas pelo poder e seu saber claro que os direitos humanos se defrontarn ali com fatos que
chrivado seria suficiente para perceber-se que nada restaria de desejam limitar ou conter.
RLssos sistemas penas se fossem operados por aqueles numes A ideologia dos direitos humanos reconhece múltiplas raízes
orais (estes tambéni nao sobreviveriam se vivessern hoje e estives- e origem21, sendo absurdo que tal ou qual jusnaturalisnio reclame
sim ao alcance de nossos sistemas penais). para si urna paternidade exclusiva. Sem dúvida esta ideologia é
Nao é difícil imaginar Cristo ou Buda condenados por fruto de diferentes momentos históricos, apesar de sua
adiagein" e, na piar das hipóteses, "desaparecidos" por terem
configuraçáo ou formulaçäo contemporánea ser proveniente do
al entado contra a "segurança nacional", ou
São Francisco ins- século XVIII, de um momento de consciéncia humanista es-
i:ucionalizado em um manicômio, subrnetido a especialistas que timulado e instrumentado pela classe dos proprietários das má-
cuntrolariarn seu "delirio místico" com choques elétricos ou corn quinas que lutavam por um poder retido despoticamente por
r
amisa-dt-força química". -
aqueles que se diziam seus titulares por "direito divino".
E possivel, assirn, perguntar que tipo de insensatez hist6rica
si nifica pretender a existência, em algum momento, de um
sistema Ver, par exeinplo, as inúmeras citaçöes de Jeanne 1-lersch, El
pnal que haja expropriado o direito da vutima para realizar o 21.

Madri, 1984.
derecho de ser hombre,

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Conseqüentemente, sua fornnilaçäo mais próxima, provém de
urna luta, da bandeira desfraldada por urna das facçóes em luta na
revoluçäo industrial - levou as classes hegemônicas européias a
urna cruel cornpetiçäo pela hegemonia européia e mundial,
gênese da civilizaçäo gerada pela revoluçáo industrial, cons- provocando nova etapa genocida em nossa regiäo marginal, na
tituindo, portanto, urna ideologia instrurnental fundamentada na regiao africana e, inclusive, na propria Europa.
ficçáo contratualista. O chamado "direito penal garantidor ou 11ml- Esta etapa genocida foi cumprida conservando do contra-
tador", dentro deste contexto, representa um freio a urn fato de tualisrno apenas o que Ihe era ideologicamente funcional e
poder originado na luta gerada pela revolnçäo tecnológica, isto é, desvencilhando-se do resto para, mais tarde, arquivá-lo completa-
pela revoluçáo mercantil que corneça a "expropriação do confUto"
(do direito da vitirna) nos séculos XII e XIII.
mente e retomar o organicismo, na vertente "organicismo - indus-
trialista", corn argumentos "científicos". A civilizaçäo industrial
A ficçao do contrato social procurou conter o poder do estendeu-se à América do Norte eliminando todos os habitantes
soberano, mas sen desenvolvirnento coerente teve como resultado nativos da região, transportando populaçäo européia e africana
final desmoñtar o poder exercido pelò sistem penal, como e
mantendo a última em escravidao até a guerra da Secessào em 1863.
demonstra o fato de Marat, baseado na mesma ficçào, ter desem- os discursospenais liberais, queprovinham ou se
bocado numa visäo socialista que deslegitimava todo o sistema entroncavam
corn o contratualismo que gerou a rnodernaformulaçao dos direitos
penal de seu tempo, e deFtuerbach ter dela deduzido a pos- humanos, foram, na pratica, um instrumento de intervençao penal
sibilidade de urna resistência revolucionária. O proprio Rousseau, mínima que nao pôde ser desenvolvido em virtude da dinâmica
geralmente citado como fiador desta ficçáo, extraía dela näo "urn competitiva da luta hegemônica gerada pela revoluçáo industrial.
estado liberal econômico" assentado sobre conceitos quiritários de o controle policial verticalizado-militarizado colocou-se a serviço
propriedade, como geralmente se pretende, e sim um "estado so- dessas lutas e o direito penal "liberal" foi achatado pelas versóes
cial"22.
organicistas da nova classe hegemônica.
Estas aflrmaçöes, efetivamente, nao podiani ser toleradas pela
classe que havia desfraldado a bandeira do contrato social quando -
Logo após a Segunda Guerra Mundial quando foi cometido
esta alcançou a hegernonia social e alijou a antiga aristocracia.
o genocidio nazista, desfraldando como ideologia o
organicismo
foramretomadas as idéias humanistas até entäo cuidadosamente
-
Na verdade, nunca houve um sistema penal histórico que atuas-
arquivadas e corn elas enfrentaram-se primeiro o nazismo e, depois,
se de acordo corn os postulados racionalistas de Kant ou de Feuer-
o stalinismo. Estas idéias converteram-se novarnente
bach, de Carrnignani ou de Carrara; todos, em urna linha de numa
ideologia de luta, que agora aqueles que as usaram ins-
tradiçáo humanista, projetarani argumentos úteis na pratica ime-
trunientairnente há piatto décadas pretendern arquivá-las, por, nao
diata para conter e limitar o exercicio arbitrário de poder dos sistemas serem mais úteis para os interesses da divisao internacional do
penais. No entanto, jamais poderáo ser modelados sistemas penais trabaiho gerada pela revoluçâo tecnocientufica. A "Nova Ordern
de acordo com estas idéias, como nao pode ocorrer naquela época, Econômica Internacional" é considerada "velha" e impraticável
quando a nova divisâo internacional do trabalho gerada pela - por parte das "novas" direitas centrais.
Em relaçâo à ideologia penal, assim como o organicismo
teocrárico caracterizou a civilizaçao mercantil e seu colonialismo
22. "Sobre os maus governos, est igualdade é exclusivamente aparente e ilusária; sá serve
para mantero pobre em sua miséria to rico em sua usurpaçáo. De fato, as leis são sempre
escravista, e o organicismo científico foi próprio da civilizaçöo in-
úteis para os que possuem algo e prejudiciais aos que nada têm. Ponde se segue que o dustrial e de seu neocolonialismo, o organicismo sistêmico parece ser
estado social nAo é vantajoso para os horneas senAo quando já possuem algo e nenhurn o sinai da civÜizaçao tecnocien tífica e de seu tecnocolonialismo.
deles tern cm demasia" (J. J. Rousseau, nota 6, Cap. I,DC1 Coturato SociaJ Madri, 1975),

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A atual configuraçäo do sistema penal, por ser proveniente instrumento de poder seletivo que, desde o século XII, serve para
d s albores da revoluçäo mercantil e da formaçâci dos estados verticalizar militarmente as sociedades.
fltcionais, provoca o desaparecimento dos velhos mecanismos de A necessidade e a urgência de uma resposta fundada na
('1UÇäO entre partes em confronto, produzindo-se a expropriaçäo deslegitimaçao do sistema penal se impöem, também, a partir da
dm conflitos (dos direitos da vítima), assumindo o soberano o lugar perspectiva de programa transformador que os direitos humanos
d- "única vítima" e convertendo todo o sistema penai em um exer-
implicam, particularmente em nossa localizaçäo no mapa do poder
cicio de poder verticalizante e centralizador. planetário, onde o caminho progressivo até a realizaçao dos
Longe de liniitarseupoder corn a revoiuçao industrial, tal como direitos humanos é muito claramente submetido a interrupçöes
ei z postulado pelo contratualismo, o poder do sisternapenqi cresceu abruptas e onde o exercício de poder do sistema penal constitui a
?vtoriamente através da generalizaçdo das agências policiais nos peça chave do exterminio brutal.
sculos XVIII e XIX, encarregadas, desde aquela época, de sete mais
1h portante poder: o positivo e configurador.

Curioso paradoxo resulta de ser esse poder reclamado pelas


III - A Resposta Marginal Como Imperativo Ético
[) Óprias vltimas do sistema penal que, impossibilitadas de tomar
Quem atua cal alguma agência do sistema penal ein nossa
cinseiência do fenômeno, dividem-se em gravíssimos antagonis- rcgio marginal e, particularmente, qucni atua nas agéncias
inos, atrav6s das armaçöes inventadas e criadas pela inanipulaçäo
d; comunicaçâo social e da seleçäo, em sentido duplo, entre as
- -
rcprodutoras de ideologia isto é, nas universidades ao repro-
duzir o discurso de justificaçáo do sistema penal elaboradas por
íitnas, os vitithários, de maneira a nao ser mais possivel deter- estas agências nao pode deixar de detectar a necessidade de enfren-
minar-se quem é quem, a partir da perspectiva dos direitos tar a deslegitimaçao, vivenciando-a como urna urgência de caráter
fe manos.
ético, urna imposiçäo ou imperativo de consciência, em razào da
A configuraçâo atual dos sistema penal provém do século XII
violéncia aberta tanto destessistemas, como do contexto social em
e se reafirmou no século XIX, ao passo que a formulaçáo moderna
que atuam. A está afirmaçao é possível responder, de maneira
dm direitos humanos provém da tentativa de limitar este poder no
defensiva, com a esquizofrenizaçáo argumentativa produzida pelo
s culo XVIII. Esta diacronia genealógica demonstra, como é obvio,
temor, argumentando-se que este imperativo ético náo tem
a contradiçäo entre a ideologia dos direitos humanos e a reafir-
fundamentaçao objetiva, que se trata de mera qùcstäo de valoraçáo
maçáo do sistema penal,
subjetiva.
Por outro lado, o princIpio segundo o qual todos os bomens
Trata-se de urna resposta verdadeira ou, na realidade, este
h;Lscem livres e iguais em dignidade e direitos é prOprio dos numes
imperativo possui fundamentaçao objetiva? Para nós esse
mcrais, daquilo que se costuma denominar "saber milenárïo", isto
fundamentaçao sem dúvida existe, e nao é nada menos do que o
pertence aos momentos de mais alta moralidade das culturas
niilagre, usando a palavra no seu sentido mais original e
ai rasadas peto poder planetário das civilizaçóes mercantil e in-
:Justrial, assentadas em sua superioridade tecnológica.
etimológico, isto é, a maravilha.
Em nossa regïäo marginal, desempenhar esta funçâo
Esta diacronia genética torna-se ainda mais clara se recordar-
operativa é uma circunstAncia que deve ser entendida como mila-
nas a contradiçao entre a afirmaçäo de que todos os bomens
grosa, pois efetivamente importa nurna formidável constelaçáo de
:escem livres e iguais em dignidade e direitos - própria de um casualidades, tAo numerosas, que constitui um milagre extrema-
p] ograma nao realizado de transformaçäo da humanidade - e um
niente privilegiante. Ser juiz ou catedrático na América Latina

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significa havcr ultrapassado, previamcntc, muitos riscos: haver nas- menor e mais elementar interroga çao deste precetto gera o imperativo
cido (isl:o é, nao ter sido abortado), haver sido alimentado ade- de vivenciar qualquer privilegio como urna oportunidade fraterna e

quadamente, haver superado ou escapado das doenças infantis corn mTh coni mera ocasido de prazer hedonista.

seqüelas incapacitantes, haver conseguido alfabetizar-se e, ainda Seja qual for o enunciado preferido para qualquer objetivaçäo
mais, haver ascendido aos niveis módio e superior do ensino, haver mínima dc necessidade ética (evangélico, kantikno oujus-humanis-
escapado das arncaças à vida adulia que os fenomenos naturais ta), a verdade é que a situaçäo atual de nossa regiäo marginal
catastróficos represenlam, a violéncia política e náo política, nao latino-americana exige que a resposta ao desafio da deslegitimaçäo
haver "desaparecido", etc., e outro sern-número de fatores cujo do sistema penal -
no caso de nao serem consideradas suficientes
conjunto compöcni ornilagre que coloca tal individuo nenia as razOes dadas anteriormente -
imponha-se também como im-
situação extreinalnente privilegiada. perativo ético.
Dç alto desto milagre privilegiante, basta olhar-ao redor para
notar que foram muitos aqueles que frustraram sua esperança de IV - A Necessidade de Resposta é Urna Fròposta Otirnista
vida ou aqueles que, scm frustra-la, de modo algum puderam se-
quer aproximar-se desse situação dò privilégio. Responder desiegitimaçäo do sistema penal significa en-
à
Esta visäo, que pOe a nu o desprezo pela vida humana prati- contrar utna resposta que contribuapara diminuir a violéncia atual,
cado pelo exercício de poder no quai o juiz ou catedrático erige-se quebrando sua curva ascendente.
como operador, cria um imperativo de consciéncia iniludível, um
-

Tudo que afirmamos sobre a necessidade urgente dessa


comprornisso corn todos aqueles que nao puderam-ser beneficiados resposta pode parecer a muitos ainda uma simples valoraçao nao
pelo niilagre - pelo menos coni uma parcela mínima deste corn -, suscetível de ser "verificada".
aqueles que nao puderam ou náo souberam transpor os perigos que Contudo, acreditamos que, a despeito de qualquer
fazern corn que seja uni mulagre tanto estar vivo na América Latina eonsideraçâo epistemolágica ou lógica na quai pudéssemos nos
corno, ainda mais, ter acesso a certo grau do saber. confundir, existam vários motivos para crer que o verdadeiro cami-
Diante desta constataçâo, um operador consciente nao pode nho nao pode passar pela destruição de milhoes de vidas humanas
deixar de viveneíar a possibilidade de que este milagre acabe no no exercício de um poder mundial que, em poucos anos24, provocou
segundo seguinte, de que, para além da consideraçäo metafísica da o perigo real de aniquilar a vida planetária, fazendo com que a
morte, ens nossa regido marginal há unia aceleraçdo da morte que evoluçao retrocedesse em milhóes de anos25.
está muito ahaixo desta consideraçöo universal eque este fenOmeno,
Apesar dc ser coerente a afirmaçäo deque o mal absoluto nao
em sua posição milagrosa, compromete este agente corn a vida no
existe, deve admitir-se, pelo menos, que a perspectiva apocalíptica
sentido de exigir-Ihe urna resposta à violência que torne sua exis- coincide bastante corn aquilo que, humanamente, podemos ima-
téncia menos milagrosa e sua posiçáo menos privilegiada23. ginar como cxtremo máximo do mal26. -

Se"todos os seres humanos,... dotados canto são de razào e

consciência, devem comportar-se fraternalmente uns corn outros", a

24. Ver, por exemplo, Jeremy Rifkin, Dichiarazioni di un eretico, Il dilema del nucleare e
dell'ingegneria genetica, Milào, 1988.
23.Este "milagre" foi entendido romo 'culpa" no manejo dialético da culpa de urna
25. Cf. P. R Ehrlich-C. Sagan-U. Kennedy-W. OrrRoberts, Oinverna nuclear, Rio deJaneiro,
importante corrente da literatura alema. Scm dúvida que a arbitfariedade seletiva gera 1985,
uma "dúvida" nesse sentido, um imperativo ético (Karl-Joseph Kuschel, Wie schtd&er in
einer Zeit des Verbrechens? in "Orientierung", 18-50, 30/9/86, pág. 195).
26. Cf. Norberto Bobbio, E/problema de la gua-ray las v(as de lapa; Barcelona, 1982.

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A mais usuat imputaçáo a qualquer crítica desmistificada do
xcrcício do poder do sistema penal da América Latina t sen destruição da vida planetária pela fissáo nuclear ou pelo
pretenso pessimismo, entendendo-se por "pessimismo" a per- iançamento de animais novos no meio ambiente, sern poder calcular
seus efeitos ecológicos.
epçâo das coisas pelo ángulo mais desfavorável; seu antônimo - Nao se trata mais de um caso de imaginaçáo exaltada, mas o
'otimismo" -
seria percebê-las pelo ângulo mais favorável.
simples conhecinento de que a Corte Suprema dos Estados Unidos
Na realidade, nao podemos rejeitar frontalmente esta
ifirmaçäo, mas é necessário determiná-la e assumir a parcela de reconheceu, em 1987, o direito de patentear animais inventados e
!erdade que ihe corresponde e que, geralmente, náo costuma ser de que já se combinam gens de crescimento humano em porcos para
xatamente a motivação dessa imputaçäo. aumentar sen tamanho e geñs de ovelhas em cabras, tecnologia que
Trata-se de urna questâo de percepçào do sistema penal. E coloca nas maos dos cientistas dos centros deroder do hemisfério
laro que assumimos expressamente uma valoraçâo em ¡tossa per- norte a manipulaçáo do potencial energético2
A comprovaçäO de que as radiaçáes provocam mutaçâes
epçäo:percebemos o sistentapenalem termos de seis alt(ssinio custo
2e vidas humanas e, a partir deste ponto de vista, a percepçäo
gentticas incentivou o estudo dos gens at6 a obtençäo da t6cnica
orna-se multo desfavorável, podendo ser, conseqüentemente, que permite cortar e ligar as cadeias de ADN de diferentes
ua1ificada de "pessimista". espécies, dando origem aos virus recombinados.
No entanto, o sistema penai pode ser sem dúvida observado Eis como a biogenética e a engenharia genótica resultam de
)or outro ânguio, náo tao desfavorável ou, inclusive, favorável ou urn subproduto da fissao nuclear e como, hoje, o homern começa a
'otimista". Esta perspectiva verifica-se quando o sistema penal & dispor da possibilidade de manipular o curso da evoluçäo biológica
Lnalisado pela ótica do "sistema", ou seja, do ponto de vista do num brevissimo período de tempo, de alterar os fragílimos
uncionalismo sistômico, por esempio. Este "otimismo", no entait- equilibrios ecológicos montados através de milhöes de anos e de
o, tern um preço que nao estamos dispostos a pagar: o imediatismo realizar exper.iências, inimagináveis até há bem pouco tempo, corn
io hornem e seu deslocamento do centro de interesse material genético humano. Todas essas experiências são defendidas
do discurso
penal, a conseguinte amoralidade do discurso e, por último, o argumentando-se que a vida é urna questâo qumica e que a própria
ancelarnento do conceito de "homem" como "pessoa", para tecnologia pode neutralizar seus perigos, argumento, sem dúvida,
eduzi-lo a um "subsistema". Em nossa regiâo marginai ademais, 'otimista", porém, mais do que "otimista", irresponsável e superfi-
sta ótica impede a percepçáo e a mudança da realidade genocida cial.
(Le nossos sistemas penais, passa por alto miihöes
Obviamente Mo participamos deste otimismo alienado, pois
de mortes e oculta
ameaçà de um genocidio major derivado do tecnocolonialismo. preferimos enfrentai a realidade corn a clara consciéncia de seus
Em urna dimensâo planetaria, esta ática nao dá ouvidòs às adver- perigos. Por isto, analisamos qualquer fato de poder e, especial-
E8ncias de Einstein, de Heidegger27 e de muitos outros sobre a mente, o fato de poder do sistema penal, a partir da perspectiva da
z meaça nuclear, nem aos avisos de cientistas e pensadores sobre a realidade de sua destrutividade em açäo e potência.
rianipulaçäo genótica (e outras análogas), pretendendo ignorar Desta nossa ótica emerge urna questäo ética: pode-se escoiher
ue, em poucas decadas, produziu-se uma mudança qualitativa no a vida .- e desvalorizar seu aniqvilamento - ou pode-se escoiher
a valorização do sistema (com o conseqüente negativismo ou
j oder mundial, que adquiriu a capacidade real e efetiva de
indiferença pelo aniquilamento da vida humana e nao humana),

2 M. Heidegger, Umanesimo e scienza nt/Pera atomica, Brescia, 1984.


28. Cf. RiAda, op. cit.

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I
mas também pode-se escoffier nao pensar e, em efeito depressivo (gerado pela deslegitimaçäo) causado em quem
semeihante
alienaçao covarde, cair no desprezfvel otùnLgmo irresponsável. estava convencido desta ilusão e de sua perspectiva fácil quando,
nós, a decisâo eticamente correta escoihe a de repente, defronta-se corn uma tarefa muito mais dura e difícil
valorizaçao
da vida, apesar da corageni de pensar. Ter a coragem de pensar do que aquela proposta a partir da certeza tranquila que sempre
e,
apesar disto, escoiher e apostar na vida, é a atitude The proporcionou a ilusäo do discurso tradicional, dos meios de
de otiniisnio
Consciente que assuininjos. Desprezar o otimismo comunicaçáo de massa e dos apareihos de reproduçao ideológica
alienado (pela
eleiçao da "náo vida" no mito do "sistema" ou de do sistema penal.
qualquer outra
insensatez, ou pela escoiha de nao pensar) e assutnir Nao se trata de pessimismo por parte daquele que se encar-
um otimismo
Consciente, nada tem de "pessimismo", apenas rega da deslegitimaçâo e, sim, "de desânimo" produzido pela
implica a proposta
de urna tarefa "pesada", o que nao é a mesma cotta. surpresa no ter que empreender uma tarefa para a quai nao foi
-

"Ver" um perigo, enfi-entá-Jo e lutar com a envicção


de en- treinado e da qual nao Irnaginava que tena de encarregar-se.
contrar uma salda, uma alternativa, neutralizá-lo, nao é ab- Nao se pode confundir o desassossego do receptor do discurso
solutarnente "pessimista", embora seja nitidamente diferente deslegitimante, quando ihe é mostrada uma realidade que nao havia
de
ignorar o perigo ou confiar gratuitamente em que percebido e enfrenta uma tarefa para a qual náo foi treinado, corn
outros faräo
"algo" que o neutralize. Todos estamos na nave espacial o "pessimismo" do próprio discurso, porque esta confusâo seria,
terra29, que
leva passageiros de primeira, de segunda, de apenas, outro mecanismo de fuga.
terceira classes e
outros que vâo no porâo, misturados com a carga. b) Pessimismo sobre ofuturo da violéncia. Ê posslvel cair numa
O otinjismo alienado corresponde aos
passageiros de visao apocalíptica, segundo a qual a- situação nao tena salda al-
primeira, que decidiram permanecer no salao de jogos guma. Nossa posição nao tern relaçáo corn a traurigelinke, nem corn
por con-
fiarem em que outros salvaráo a nave, já que estäo atitudes mais irracionais de resignaçao impotente ou de indiferença
todos a bordo,
mas, ao mesmo tempo, são capazes de lançar completa ou dc fatalismo povoado de cataclismos totais.
ao mar aqueles que
tentem salvar a embarcaçao se nesta tentativa forem Toda esta nossa proposta é uma prova da recusa deste "pes-
privados de
alguns minutos de energia elétrica para seus jogos ou simismo": acreditamos ser possível reduzir os n(veis de violência,
obrigados a
näo utilizar alguns dc seusjlipers. salvar inuitas vidas Iiu,nanas, evitar nzuùa dor inútil, e, finalmente,
A imputaçao de pessimismo, no entanto, pode ter
conteúdos fazer o sistema penal desapàrecer um dia, substituindo-o por
mais concretos, que exigem análise mais detaihada. mecanismos reais e efetivos de soluçäo de conflitos.
a) Pessimismo sobre ofuturo do sistema penal.
Neste sentido, Sem dúvida, para neutralizar nossas afirmaçôes naO faltarão
acreditamos estar destruIda a ilusäo de que, em nebuloso vozes que se acovardem e nos qualifiquern de "pessimistas" e, às
futuro, a
realidade operacional do sistema penal se adequara ao vezes, de "utópicos" enquanto continuam brincando com seus
juridica-
mente programado, observando-o estritarnente. fliperamas no salâo de jogos. -

A tarefa que operadores e juristas temos à frente


apresenta-se A incompatibilidade entre "pessimista" e "utópicos" é tao obvia
muito mais árdua do que a tarefa imaginada de acordo
corn esta que fica bastante claro que o "pessimismo" nao é uma nota de nossa
ilusao. Entretanto, isto nao é "pessimismo" do discurso
des- posiçäo, mas uma disposição de quem tern urgência em encontrar
legitimante do exercício de poder do sistema penal, mas
sim urn uma resposta no sentido redutor da violência.
As razôes que nos levam a ser otimistas quanto as pos-
29. A expressâo pertence a Kenneth E Boulding, The sib ilidades redutoras de violência são vá ri as.
Economics for the Coming Spaceship
Earth, m "The Environmental
Handbook', edit. por Garret de Bell, Nova Torque, 1970.

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Em princfpio, acreditamos que o homem nao é racional, mas tes teóricos -ou úteis -
necessários para hierarquizar e defender
a vida humana e a dignidade do
hornem.
partir desta premissa seletiva - à quai denominamos
pode (e deve) chegar a sè-lo30.
Alem disso, apesar de o avanço da civilizaçao industrial ter A
"realismo marginal" - obtemos, obviamente, urna
referência
s do uma cadeia de indiscutível violência genocida em nivel pois é urn
teórica sincrética. Na verdade, este sincretismo
preocupas

planetario, negamo-nos a ver fisso quer urna lei universal,segundo


- e desejável - em qualquer tentativa teórica que
a quai urna suposta marcha em direçâo ao "progresso" se balizaria, dado inevitável
marginal.
i forma "natural" e necessária, em cataclismos, catástrofes, des- pretenda ser realista e exeqülvel a partir de nossa regiäo
uiçöes e aniquilamentos dos "fracos" e "inferiores", como era
VI - Algurnas Bqses para a Seleçâo Realista
L

pastulado pela ideologia racista do evolucionismo spcnceriano


qer urna necessidade iniludível para salvar urna raça superior da e Marginal 'de Elemeztos Teóricos
'icadência, como era postulado pelo involucionismo racista do conceito
0 caráter realista da resposta. Ê difícil precisar o
posiçöes filosóficas -
acassado diplomata e novelista Gobineau. 1.
de "realismo", pois praticamente todas as
Por último, acreditamos existirem motivos para supor que o idéias -
inclusive as mais idealistas, para as quais o "real"
são as
arnem é capaz de reagir de modo racional diante do espetáculo da
Nstruiçäo inútil de milhóes de vidas humanas e que, cm última pretendcm ser realistas em certo sentido.
de vários
stûncia, a espécic humana nao é suicida, conio nûo o é nenhuma Aqui, adotamos a expressäo "realismo" corno síntese
it
filosófica pura.
o itra. conceitos, deixando de lado qualquer discussào
o realismo
a) Em primeiro lugar, nossa posiçäo aceita
mundo" algo (lue existe
Filosófico no senLido de que o "material do é
qual "ato do co-
IV - As Dificuldades para Urna Resposta Marginal fora e independente de nós, e diante do o
limitando-se
nhecirnento" náo cumpre. nenhuma funçao "criativa",
Embora a necessidade e a urgência de urna resposta nao a dar-Ihe um sentido (um "para quê").
corn várias
i pendam de consideraçoes meramente "opinativas", como se b) Em segundo lugar, por "realismo", coincidindo
cultural latino-
p ade notar, na verdade a formulaçao de urna resposta nao é das cosmovisöes que convergem para o complexo
simples
simples, em razáo de estarmos marginalizados do poder mundial. americano, atribuirnos ao mal uma realidade e nao urna
mais ou
Evidentemente, em nossa regiáo marginai nao dispornos de "falta de bem" ou "irnperleiçao", segundo um modelo ideal
"elites do pensamento" pagas para elaborar respostas teóricas. menos absoluto.
Corn a eiaboraçáo e a completitude lógica das respostas centrais, O mal, na forma de morte violenta, infiiçáo
de dor, misEria e,
e humana,
ilDssas respostas marginais sempre apareceräo como defeituosas. em geral, carência grosseira E uma realidade social
Como dependernos dc referências teóricas ccntrais e de seus scado impossível convencer um latino-americano pertencente à
malE urna simples
elementos, torna-se demasiadamente titánica a tentativa de criar maioria carente de nossa regiao marginal, que o
a]go semelhante a um marco teórico que permita uma aproximaçäo "falta do bem". -

i nossa realidade. Esta dependencia nos obriga a lançar mao para nos
c) Em terceiro lugar, usamos o termo "realismo"
i sses elementos, selecionando-os e cornbinando-os de acordo corn aproximar dos fenornenos do sistema penal, evitando a reificaçao
aigum critErio que, em nosso caso, nos permita "ver" os componen- das categorias generalizantes interligadas pelas
agências (como
ins-
"crime", "droga", etc.), que perdem sua utiiidade corno
SC. Martin Buber, ¿Qué es ei hombre?

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truineittos do pensamento, tornando-se "realidides
inventadas"
apenas dança -
resulta inevitavelmente ligada à necessidade de
que o obstaculizam. uma grande prudência no entendimento do homem como prota-
d) Ein quarto lugar, utilizamos "realismo" para gonista e parte deste processo que, definitivamente, nos leva a urna
demonstrar a relativizaçAo e provisoriedade de nosso saber, multo difícil de ser
necessidade de renunciar -
pelo menos temporariamente a - aceito na sociedade industrial ou tecnológica, mas multo comum
qualquer modelo ideal (ou a qualquer discussáo a seu
respeito), em em todas as taizes cutturais que convergen em nosso continente.
razáo da urgéncia de se colocar em marcha,
inadiavelmente, urna A "verdade", corno coincidência corn a realidade, apresenta-
práxis redutora da violência.
Por último, usamos ccrealisrno para indicar a se extremamente problemática, desde que a contradiçáo é urn dado
prioridade da invariável da realidade corno constante vir-a-ser e que sç deve
vida humana e a necessidade de preservá-la.
Nossos cálculos de
conveniência e necessidade, nossas estratégias e táticas, admitir como tal. A verdade é a propria realidade, e dela só po-
se no reconaecimentq da vida humana e de
baseiam- demos nos aproximar de maneira mais ou menos eìíptica5, pela
sua anhjuilaçäo inen-
siva, como dado primArio de fossa realidade necessidade de adthitir sua contradiçAo, do mesmo modo que do
marginal.
Além destes elementos, sintetizados coin a fundo da tradiçAo filosófica, foi postulado por Heráclito36 e Lao
expressão "rea/is-
mo", levain os ein consideraçäo outros Zi37, isto é, no sentido originArio da conservaçáo da contradiçáo e
elementos que, embora nAo
sejam tAo prhilegiados em nossa análise, certamente nAo na versáo compatibilizada corn o modo de saber cartesiano-
nao podem
ser desprezados na compreensAo de nossa newtoniano pretendida por Hegel ao tentar converter Heráclito em
proposta.
a) Ao insistir no carátersincrético de nossa inventor de sua dialética38.
referencia teórica,
é preciso admitir que, em certa
medida, somos inspirados pela b) No plano específico do discurso jurídico-penal, por "realis-
posta holística, embora isto nAo implique a mo" tambérn entendemos a renúncia às "ficçöes" e às "metáforas",
accitaçäo acritica de
algumas de suas vcrsñes que, por serem muito conforme já demonstranlos. Para nôs, t inadmissivel que, para a
"ocidentalizadas", sustentação de um discurso, se "invente" ô que falta ou se "trans-
caem nas maihas da lógica que pretendem
denunciar e se porte" o que sabemos nao corresponder ao discurso. Se o discurso
aproximam muito do organicismo31. Se ultrapassamos
estes riscos,
torna-se bastantc atrativa a grande dose de modestia que apresenta lacunas, provavelmente nAo se adapta à realidade, deven-
inipñc au do, portando, ser descartado.
saber humano.
A visão newtoniana do mundo rcvelou-se Neste sentido, rccusamoS as metáforas contratualistas e or-
incapaz dc explicar
o "mullo pequeno" e o "multo grande", ganicistas, assim como a famosa metáfora da "guerra de todos
de tal forma que a física
moderna deu asas a sua imaginaçào cosmológica32; contra todos" e outras nAo menos artificiais e perigosas, como o
os limites do
saber neste ámbito pareceni reabrir o caminho dos mitos33. contratualismo entre os fracos, de Nietzsche39 do quai nem
A visäo
do mundo como um processo cósmico -
onde existe movimento,
mas onde, ein certo momento, os objetos que se movem
parecem 34. Cf.Capfl, Oponto demutaçño, cit.
desaparecer, onde há atividade seni atores, onde nAo ha
bailarinos, 35. Capra, Verso una nuova saezz4 cit., pág. 66.
36. Ver Karl Jaspers, ¡grw,difllosofl, MìlAo, 1973, pág. '720; AbbagnanO, op. dt., t.1,pág. 19;
31. Ea objeçäo de Silvana Castgnone, I diritti degli Werner Jäger, Paideia, Mdxieo, 1971, pág. 175; Theodor Gomperz, FensadonS griegos,
animali, Bolonha, 1988, pág. 9.
32. E quase alucinante o debate sobre as analogias Assunçâo, 1951,!, pág. 90.
entre as cosmologias oñentais e as da
física moderna, ainda que reclame pela falta de major 37.Lao Zi (El Libro del Tao), trad. de Juan Ignacio Preciado, ediçAo bilmn$C, Madri, 1983.
profundidade nos trabalhos (assim, 38. G. W. E tIegel, Lecciones sobre la historia de ia filosofia, México, 9T?, I, pág. 258.
por exemplo, Ursula King, Cosmología citindu/sruo, in "Co,,cilium
33.Ver, por exemplo, Michael Talbot, Misti cisrnoyfTsica
", 156, 1983, pág. 421).
39. Filederich Nïetzche,Z14r Genealogie der Moral. Bine Streitschrift (in "Werke", Erlangen,
moderna, Barcelona, 1986; Fritjof t. IV, págs. 281 e Sega.).
Capra, El Lao de la finca, Madri, I 984.

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Preud4° parece salvar-se - ou as ilûsôes sistêmicas que nao repre- equivaler a "periférico", preferimos utilizar aquele adjetivo por ser
entam mais do que coalizóes mutáveis de poderes parciais. mais expressivo.
Neste último sentido, ao afastarmos qualquer id&ia de "sis- b) Pela mesma razão, com a expressäo "marginal" demons-
ema" em forma dc "máquina" perfeitamente montada e inteligen- tramos a necessidade de se adotan a perspectiva de nossos fatos de
erneute dirigida, abandonamos as concepçñes conspirativas, em poder na relação de dependéncia corn o poder central, scm pre-
jualquer de suas vertentes, quer através da clara concepçäo cons- tender identificar esses latos com os processos originários desse
)irativa que constitui a denominada "doutrina de segurança poden, pois algumas analogias, superficialmente consideradas, cos-
iacional", quer de outras versöes simplistas da "luta de classes" do tumam levar a uma identificaçaoernônea.
narxismo dogmático, que interpretam as mínimas manifestaçöes de c) "Marginal" tambéth pretende assinalar aqui a gnande
xercício de poder como uma intencionalidade superiormente din- maioria da populaçâo latino-americana, manginalizada do poder,
;ida por uma espécie de macrocornputer capaz de tudo planejar. mas objeto da violência do sistema penal.
3stas teses conspirativas possuem um alto componente paranáico Conforme já foi demonstrado, a marginalidade das grandes
por conseguinte, uma grande capacidade de distorcer a rea- maiorias latino-americanas nao pode ser confundida com os gran-
idade. des fenôrnenos centrais do século XIX. Naquele momento, os cam-
Urna última advertência deve ser formulada sobre o emprego poneses, que se concentravam nas cidades européias, cumpriam a
las "metáforas", Apesar de ser admissível o uso da "metáfora" funçao de "exército de reserva" em relaçáo aos setores sociais mais
tomo (orma de aproximaçáo elíptica a urna realidade sempre con- treinados para a produçäo industrial, enquanto o acúmulo de capi-
raditória, neste caso o emprego da metáfora assume a forma de um tal pnodutivo em razäo da mais-valia excedente permitir a
incorponaçäO dos segmentos menos pnodutivos ao sistema de
J

'onhecimento ou saber pletórico de modestia, de humildade diante


le uma realidade que nao pode ser arranbada de outra mancina. produçáo.
:ste uso da metáfora difere notoriamente de seu emprego artificial Este processo nao corresponde a nosso fenomeno periférico
para substituir elementos ausentes de um discurso que pretende ter atual, onde se deteve o investimento produtivo e, por conseguinte,
Llcançado a "verdade", que perdeu de vista o sentido explicativo a classe -
setor ou segmento -
operário-industrial tende a
da metáfora para tomá-la como parte da realidade inatingível e reduzir-se, afetando a representatividade dos sindicatos. A
que, ¡mediatamente, deduz conseqüências práticas com a segu- chamada "informalidade", como forma de sobrevivência, tende a
i ança de resposta própria do saber da civilizaçäo industniai, for- generalizar-se, reafirmando o nítido predominio da economia
ialecido pela revoluçáo tecnoindustrial de nossos dias. "subterrânea, desta maneira, torna-se incalculável o panorama
econOmico continental, a partir apenas dos dados econômicos
0
que é marginal? A expressâo "marginal" tambêm é aqui
2. oficiais4t.

.mpregada como síntese de vários aspectos que desejamos destacar Esta rnarginalizaçäo urbana crescente e desenfreada nao re-
m nossa tentativa de resposta. presenta a denominada "classe operánia" do marxismo tradicional,
a) Marginal mostra, em primeiro lugar, nossa localizaçäo na nem um "subpnoletariado" de cultura camponesa, mas uma classe
periferia do poder planetário, em cujo vertice encontram-se os
chamados "países centrais". Neste sentido, apesar de "marginal"
41. Pode-se imaginar a importáncia adquirida pela economia subterránea em nossa regiäo
O. Sigmund Freud, Totem und Tabu (Eùtige Ubereinstùnmungen ¡ni Seelenteben der Wilder marginal, sabendo-se que alguns países reconhecem como primeiro rótulo de exportaçáo
und der Nezuotiker), in "Kulturtheorestische Schnriften", Tübingen, págs. 287 e segs. a cocaina.

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marginalizada da cultura industrial que gera suas próprias relaçoes numerosos judeus, alguns dos quais foram para Lima46. O tráfico
de sobrevivência2, prescindindo das pautas estatais. de escravos em larga escala trouxe para fossa regiäo marginal a
E absurdo reduzir este fenômeno a esquemas totalmente cultura africana47.
estranhes43, a exemple des que. formulam análises marxistas Sob a dependéncia do neocolonialismo industrial, os progra-
simplistas, dos que reivindicam o neo-spencerianismo ou, ainda, mas de transporte de populaçäo -
particularmente para o "Cone
des que pretenden tomar este fenomeno como prova reivindi- Sul" - trouxeram a populaçâo excedente de camponeses europeus
catoria da "economia livre de mercado"44. que se conce.ntraVam urbanamente e que, como näo podiam ser
d) Por último, "marginal" indica nao apenas a compkxa satisfatoriameute incorporados à produçäo industrial européia,
conceituação do setor urbano mais atingido pelos albores do tec- convertiam-Se na "populaçáo perigosa" dos países do Sul da
noéolonialismo, mas também a situaçäo que se generaliza no plano Europa48.
cultural em razän de o colonialismo o neocolnialismo e o tec- Os chineses foram vendidos como escravos no Pacífico -
nocolonialismo iniciante originarem determinada configuraçáo de especialmente no Peru -
quando os ingleses já patrulhavam os
toda a populaçâo latino-americana que se formóu sob o signo da mares49, convertidos em campeöes da luta contra o mesmo tráfico
"marginalizaçäo". -
negreiro que, antes, constituÇia um dos sens comércios favoritos e
mais rentáveis. Novas ondas migratorias foram registradas em
3. A originalidade inarginal-sincréüca da América Latina. decorrôncia da Segunda Guerra Mundial, das perseguiçáes às mi-
Neste último sentido, a expressâo "marginal" encerra urna cono- norias européias e da "Guerra Civil Espanhola" e suas seqüelas.
tação de originalidade só compreensível em urna perspectiva his- Na verdade, nao há grupo étnico-cultural no planeta que,
tórica. perseguido ou marginalizado, náo tnha sofrido uma dispersáo
A formaçâo da configuraçáo humana da América Latina nos mais ou menos sigñificativa que se somasse à marginaliiaçäo erigi-
quinhentos anos de dependência pode ser descrita como um intenso nária colonial, curiosamente protagonizada também pelos margi-
processo de marginalizaçáo na colonizaçâo ibérica, que provocou nalizados da primeira metrOpole colonial.
a grande marginalizaçäo dos indios e a mestiçagem, es prOprios Na Europa, forain desenvolvidas diversas avaliaçôes sobre
colonizadores cram marginalizados45. A Espanha, que terminava nossa região marginal que, ao ser descoberta pelos europeus, geron
sua guerra contra os árabes, envicu para cá sens recém-conquis- uma verdadeira euforia idealizante que, coni o avanço da civi-
tados meridionais, em grande escala produto da cultura muçul- lizaçäo industrial e a consolidaçäo do neocolonialismo, den lugar a
niana. Portugál, carente de população suficiente para a empresa, uma versâo "científica" de inferioridade, coni raizes geológicas e
recolheu todo europeu disponível e, deste modo, chegaram zoológicas facilmente transportadas para o humano50.

42. Ver Ladas Adler de Lemnitz, Cómo sobreviven los marginados, México,
1980.
46. AntoniO Domfaguer Ortiz, LosjUdeOXOfl"«'°' cE5pañ4yA7fl'°', Madri,
1971.
43. Ci. lanice E. PerSman, O milo da marginalidade Favelas epoiltica no Rio de Janeiro,
Rio a la adjura africana en América Latina, Unesco,
de Janeiro, 1977. 47. Ver (autores diversos) Introducción
44. Esta fltima interpretaçäo é de Hernando de Soto,E?ofrosendera La revolución
informai, Paris, 1979; (autores diversos) La fraga negrera del siglo XV al XL\ Serbal-Unesco,
1977.
Bogotá, 1987. Barcelona, 1931 Mortno Fraginals (cop.),Afrka azAinbiCaLOtiflt2 México,
45. Até certo ponto é certo que nao faltam autores latino-americanos que, 48. For excmplo, Fernando 1DevotoGianfflflCO Roseli, La inmiffación italiana a? la
acolhendo o
biologismo reducionista, prctendeni que a atual violência na regìAo é produto da elevada Argentina, Buenos Aires, 1985.
psicopatia existente entre os marginalizados colonizadores (assim, Francisco J. Herrera 49. w. stewart, La servidumbre china en el Peni, Urns 1976.
Luque, Los viajeros de Indias. Ensayo de interpretación de la sociologia venezolana, so. E bastante ilustrativo o detathad(sSimo e
documentado trabalho dc A'atondk Certi, Lo
Caracas, 1961). disputad-el Nuevo Mundo. Historia de una polbnica, 1750-2900, México, 1982.

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Esta versäo resultou no racismo neòcolonialista do paradigma
-
1:}nbrosjano derivado do spencerianismo -
como ideologia das
A civilizaçäo mercantil, ao tornar subdesenvolvidas a América
Latina e a Africa para produzir a revoluçao industrial Qá que, sem
I .êndas neocolonialistas do norte e centro europeu que, nos
os meios de pagamento e a matéria-prima latino-americana e afri-
S( ulos XVIII e XIX, desbancaram as poténcis ibéricas, que nao se
i kC ustrializavam. A inferioridade de fossa região marginal foi sin-
cana, náo tena conseguido fazô-la)53, originou por baixo dos panos
t t zada corn clareza por Hegel na versâo germânica do etnocentris-
um processo bastante singular de sincretismo cultural que,
r c colonialista quando, na sua interpretaçäo da historia, deixou de economicamente estrangulado, está produzindo pautas próprias de
I kdo, à medida que ascendia o Geist, todas as culturas convergentes
subsistência mediante a atual sincretizaçao de todas as contri-
em nossa regiäo marginal51. buiçoes de suas raizes.
Enquanto a civilizaçào industrjaFvai se dilujndo hoje em urna
Pode-se afirmar que a civilizaçào industrial avançou preda-
t )rLamente sobre o planeta com urna incrível violéncia, que mar- revoluçáo dientíflco-teéno1ógica que provoca um deconfrolada
gtnalizou brutalmente os Indios, os negros, os muçulmanos, os inércia tecnológica incapa'z de programar racionalmente e de pro-
e i ntais, os judeus, altrn de outras minorias e das próprias culturas
porcionar urna imagem Cósmica e antropológica, nossa região mar-
c3nponesas centrais. No entanto, este fenomeno, em nossa regiâo ginal está se convertendo em receptáculo e protagonista das
inagina1 latino-americana, nao tem similar planetario, pois, todos histOrias que a revoluçao industrial interrompeu com violéncia
nó marginalizados, concentramo-nos em um territOrio muRo cx- singular quando se proclamou dona da bistória.
t:uso, protagonizando um processo de interaçäo que já alcança Diante desta inquestionável conotaçäo de sincretismo em nos-
qu trocentos rnïlhôes de pesseas (sem contar corn a parcela deste sa regiäo marginal, qualquer tentativa de aproximaçáo corn a
f i5rneno dentro dos Estados Unidos), que se cornunicani em urna realidade de seus fenômenos nao pode escamotear um sincretismo
n e ma lIngua ou èzn variantes limitadas e compreensiveis entre si teórico paralelo, pois Ludo que seja social e que comprometa nossas
d: nesmo tronco lingüístico. maiorias populares 6 sincrético. Nada pode ser compreendido
Nestes cinco séculos, apesar da magnitude dos genocidios e sobre nossa r&giäo marginal se nao a assumirmos e, por conseguin-
e ncídios, estas manifestaçoes perduram e continuam interagindo te, se nao assumirmos nossa marginalizaçao da história etnocentris-
d.: orma sincrética52, Desta forma, este sentido de "marginalidade" ta da civilizaçâo industrial.
e n nossa regiäo implica, necessariamente, um "sincretismo", de tal
n a 'eira que praticamente pode-se afirmar que a América Latina 4. os perigos da "vertigem": a antropologia filosófica e os

é, e n substância, o resultado de um forniidá t'e! processo de interaçäo


direitos humanos. Ao se gerar um saber fora ou contra o "saber-
d i narginalizaçao planetaria, marcado pelo sincretismo. poder" das agências ligadas a urna rede de poder planetário, cor-
re-se o risco de se cair numa "vertigem", produto do "pensar contra
a maré"54, isto é, de se gerar um sabernao consagrado, desqua-
5] C carg Wilhelm Friedrich Hegel ,Leccionessobre la filosofia de la historia universal, Madri,
l'SO. lificado pelo poder das agéncias, um "saber contra-poder"
.,' respeito da sobrevivtncia cultural, apesar dos sucessivos genocIdios, a literatura é recusado e marginal, underground, fustigado pelas grandes usinas
ensa. No entanto, basta como esempio a referéncia acs trabalhos de: Maria Chiappe,
ti

N aisés Lcmlij e Luis Millones, Alucinógenos y Chasnanismo en el Perú Contemporáneo,


reprodutoras das ideologias dos sistemas verticalizantes da
L ma, 1985; Alvaro Estrada, lido de Marta Sabina, la maga de los hongos, México, 1977; sociedade.
R Gordon Wasson, El hongo maravilloso: Teonan4cat Micolaola en Mesoa,nén'ca,
N éxico, 1983; Manuel M. Marzal,El sincretismo iberoamericano. Un
esw dio comparativo
t bre los Quechuas (Cusco), les Mayas (Chiapas) y los Africanas (Bah(a), Lima, 1985;
t: ouglas Sharon, El Cha.'nán de loe Cuatro flentos, México, 1980; etc. 53. Walter Rodney, De cómo Europa subdesarrollo a Africa, México, 1982.
54. A expressâo é tomada de Buber, op. cit.

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"Pensando contra a maré", ternos a sensaçäo de falta de pon- na rcgiâo marginal, recordando-se, como exemplo demonstrativo,
tos de apoio aos quais nos agarrarmos para manter certo equilibrio
a involuçäo ideológica de Vasconcelos.
tranquilizante. "Pensar contra a rnaró" t urna atitude sO admisslvcl Para nós a única garantia de que um pensamento realista
se esse pensar tolerar a transitoriedade e a permanente evoluçäo
marginal nao se perca na vertigem é sua firme fundamentaçào na
de tudo e, partindo desta evoluçáo, for aceito, de forma "holística",
priorizaçáo da pessoa e, como dado ôntico elernentar, na vida
corno pensarnento que permite alcançar urn conhecirncnto sempre
humana (conseqüentemente, no desvalor prioritário da destruiçâo
provisório. da vida humana).
De qualquer modo, é diffcil manter-se em equilibrio nesta A base antropológica deste saber t indispensavel para evitar
:

atitude que, em fossa regiäo marginal, implica assurnir como saber


- o perigo da vertigem razâo pela qual nao podemos aceitar o des-
também o "sujo e desorganizado" de nossas maiorias, que se opöe
locamento da antropologia fundamental de Foucault, que parece
ao "limpo e ordenado" das minorias da cultura urbana55 repre-
reduzir o próprio hornem, como sujeito eognoscente, a urna criaçäo
sentativas do saber das agências do sistema, no qual a vertica-
do podèr.
lizaçao apresenta-se como indicada para "ordenar e limpar", ao De qualquer modo, esta base fundamental (esta antropologia
passo que a horizontalizaçáo das relaçöes sociais 'desordena e
elementaríssima) seria urna prinieira plataforma ou pretexto
sula". filosófico para o começo deste "pensar contra a mart" ac quai
A civilizaçäo industrial e;
principalmente, a atual teeno- poderfamos nos agarrar nos momentos de tempestade capazes de
civilizaçâo apresentarn-se coni urna estética da harinonia cromática provocar vertigem. Esta fundamentação encontra, hoje, urna rea-
urbana, em confronto corn a desarmonia de seus marginalizados, firmaçao positivada nos instrumentos internacionais dos direitos
--
:1
tao feios e sujos corno o estereótipo do criminoso atávico humanos, como anseio da comunidade internacional.
:- lombrosiano. Nossa própria região marginai é pintada como
atávica, de acordo coin a tradição do paradigma lombrosiano ou 5. 0 realismo marginal na criminologia e no direito penal. O
neocolonialista racista. Desta forma, estiginatiza-se qualquer "pen- realismo marginal, a partir do qual pretendemos elaborar urna
samento contra a maré" na regiâo narginal como rneio de se evitar resposta, pode abrangcr tanto a dimensäo criminológica, quanto a
a coni ami 118ç5() e de c garant ir a aprovaçio dûs
controles de político-criminal ou a jurídico-penal.
qualidade das agências centrais. Portanto, a difícil situaçâo gerada A dirnensáo criminológica permitiria urna aproximaçâo dos
poteste "pensar contra amaré" marginaiproduz, frequentemente, mecanismos e efeitos da realidade operacional de nossos sistemas
urna "vertigem" capaz de levar os autores de esforços desta natu- penais corn a clara e confessa intencionalidade de procurar o saber
a se apegarern a posiçöes completamente antagônicas e
necessário para diminuir sens níveAs de violência de forma imediata
:

negadoras das próprias bases de seu pensamento rnais produtivo. e para suprimi-los de forma mediata, como objetivo ou estratégia
Se o
"pensar contra a mare' no centro gerou fenômeno desta "utópica" (no sentido positivo do "nao realizado", nAo no sentido
-

: natureza - lembremos, por exemplo, o primeiroimpulso de en- negativo do "nao realizável").


tusiasmo pelo fascismo de Berdiaev e
o inuito mais dramático Nao acreditamos na separaçäo entre a criminologia e apolítica
nazismo de Heidegger56 .-, podemos imaginar quãomaior é o risco
crimina4 pois todo saber criminológico está previamente delimitado
por uma intencionalidade política (ou "político-criminal" se se pre-
55. Rodoif lcusch,Américaprofiman, Buenos Aires, 1986. ferir. Em nossa opiniäo, a criminologia nao é "urna ciência, mas o
56.Recenteniente, provocou uni inusitado burburinho - nAo de todo justificado - na saber - proveniente de multiplos ramos - necessáqo para ins-
-
.

inteiectuaiidade europia o livre de VlctorFarías,Heidegcre il nari,ino, Turim, 1988.


trumentalizar a decisáo política de salvar vidas humanas e diminuir

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a Violência política em fossa região marginal corn vistas a se al- sendo obviamente impossível deixar de levar em consideraçäo o
cnçar um dia, a supressäo dos sistemas penais e sua substituiçáo contexto social dessa realidade.
pur formas efetivas de solução de conflitos (se estes necessitarem No entanto, apesar de os sistemas penais cumprirem funçóes
:Cr resolvidos, já que, por um lado, nern todos os conflitos neces- parcialmente diferentes no centro e na periferia, existem aspectos
i am resolver-se e, por outro, nao
existe sociedade corn capacidade estruturais comuns às duas formas de exercício de poder (a
p ra resolver todos eles57.
seletividade, a compartimentalizaçáo das agéncias, a

A dinzensjo furidico-penal do realismo marginal parece mais crirninalizaçäo, os estereOtipos, cte.), embora corn modalidades
( mplicada, uma vez que o discurso jurídico-penal deslegitima-se operacionais concretas diferentes (muito major violência operativa
X m a deslegitirnaçäo do proprio sistema penal. No entarito, este u regiäo rnarginàl)»Como tesultadò lógico rçiteramo a kdéia de

rocesso nao impede a construção de urn novo discurso jurídico- que um controle social orientado para a contençäo de grupos est ran-
it nal, que aceite a deslegitimaçao do exercício de poder do sistema geiros epara o condicionarnento do consumo do que ¡tao é necessa'rio
it na! e que se limite a pautar as decisoes das agências judiciais corn para viver, inevitavelmente, deve atuar de um modo diferente ao de
mesmo objetivo político de reduzir a violência, levando-se em um controle social orientado pìra a contençäo daqueles que querem
cnta informaçâo criminológica sobre a operacionalidade real
a consumir o que necessitarn para viver.
lis sistemas penais. O ponto de partida para a nova construçáo Nao é possível esquecer que, além das características estru-
ia proporcionado pelas estruturas lógico-rcais, que permitcm turais cornuns e das necessárias diferenças operacionais, as duas
n.nscender os limites de suas aplicaçoes realizadas por WeIzel e formas de exercício de poder são manifestaçöes de um mesmo
lescobrir um conceito ôntico de pena. alinharnento de agências, que se traduz em um único exercício de
Os dois capítulos seguintes tratarào desta matéria, sendo nos- poder planetario. Neste sentido, ambas são parte de urna "rede de
o propósito, aqui, apenas adiantar, brevemente, que o nosso realis- poderes" que sustenta uma injustiça social transnacionalizada em
marginal pretende contemplar urna aproximaçâo corn a funçao da divisão internacional do trabalho, que, ao nao considerar
eilidade objetiva do sistema penal que, através das estruturas a dirnensJo ética da interdependmncia dos pavos, acentua-se em

]Ó;ico-reais, possa também, servir de base para um novo discurso prejuízo do "sul subdesenvolvido"58. Assim, "norte" e "sul" par-
j iii ídico-penal que paute as decisöes das agéncias judiciais como
ticipam da mesma rede de poder, o primeiro ocupando o centro e
arte de hua tática orientada para a mesma estratégia delimitadora o segundo a regiäo marginal.
I

Lo campo do saber criminológico. As teorias centrais referentes ao sistema penal e suas cons-
Neste sentido, o realismo margin ql, ao invés de eliminar a ética truçöes jurídicas, a partir desta perspectiva, também são "provin-
o direito, tornarla ética também a criminologia do direito cianas", de modo que uma região deste complexo de poderes visto
penal corn
¿ a e em urna decisuo ético-pol(tica que priorizasse
a vida humana
sob urna ótica distinta (marginal) pode enriquecer seu próprio
cono valore a morte como desvalor. conhecimento sobre um fato do poder que quase sempre foi obser-
vado "a partir de um único lado da lua". Incontestavelmente, uma
6. A análise realista marginalpoderia ser estendida àspropostas perspectiva marginal encontra-se em condiçoes de criar urna nova
ei trais? Corn o realismo marginal tentamos nos aproximar de uma
rIN lidade de poder e extrair regras para diminuir sua violência,
58. Estes são conccïtos que nao suscitam maiores discussôes em quase todos os campos,
inclusive no eclesiástico. Ver, por exemplo, Sollicitudo rei sociatis, Carra Encíclica del
Sumo Pontífice Juan Pablo ¡I al cumplirse el vigérùno aniversario de la Populonvn
5', f. Mathiesen, op. cit. Pro gressio, Buenos Aires, 1988.

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visäo angular mais capaz de se aproximar do fato de poder em
nivel sistema penal e a substituí-lo por formas efetivas de soluçâo de
planetario.
Provavelmente esta explicaçao tern algurna similitude corn a .
conflitos.
lenda budista dos cegos aos quais se perguntava o que era Sein dúvida, o objetivo mais imediato deve dirigir-se para a
urn reduçào do número de mortes e a geraçäo de espaços de liberdade
elefante e cada um deles respondia de acordo corn a parte do
paquiderme que tocaya59. Urn realismo marginal no implica um social que permitam a reconstruçäo de vínculos comunitários ape-
isolamento teórico, mas uma nova perspectiva teórica tentada a sat da cotcentraçäo urbana. Estes objetivos apresentam-se intima-
partir de outro ponto do poder; ou seja, urna critica e urna resposta mente ligados, pois a reconstruçäo da comunidade depende da
em um outro momento do poder, considerando sempre que a queda do nivel de yiolência do sistema penal (neutralizando assim
rede a açäo do principal instrumento de dissoluçao comunitário).
de poder é a mesma.
Em sintese, um realismo marginal pode: As táticas para alcançarmos estes objetivos são relativamente
a) revelar mais nitida»zente as caractàísticOs estruturais de simples, desde que as agéncias políticas nao percam o rumo. Em
todo o sistema perlai, já que em ¡tossa região marginal estas caracte- primeirà lugar, é necessário introduzir um discurso diferente e nao
rísticas são mais evidentes em virtude de sea maior nivel de violencia; violento nas fabricas reprodutoras da ideologia do sistema penal,
ou seja, nas universidades e centros de terceiro grau. Por outro
b) mostrar mais claramente como atua a rede de poder
lado, é fundamental a neutralizaçao do aparelho de propaganda
planetario ao assinalar as particularïdades de sea exercicio depode.r
na regiao marginal. violenta do sistema penal, ou seja, a introduçao de mensagens dife-
rentes nos meios de comunicaçäo de massa. Tal objetivo poder ser
alcançado através da produçäo local de mäterial de diversáo para
VII - Fossibilidade de Resposta Po!(tico-cri,ninal os meios de comunicaçáo de massa com exigências de papéis menos
a Partir do Realismo Margina! violentos - nao psicóticos, nem paternalistas - para os
operadores dos sistemas penais, podendo proteger-se este material
Táticas e estratégias. À criminologia, tal como a enten-
1. corno se faz corn qualquer outro produto da indústria nacional
demos, integram-se ínsitos objetivos político-crirninais. Nao (créditos, proibiçao de emitir além de certo percentual de séries
podemos ignorar, no entanto, que a realizaçáo desEes objetivos importadas, etc.).
depende da decisdo -
muito mais ampia - de protagonizar urna Em segundo lugar, as noticias podem ser subinetidas a um
aceleraçac histórica e nao. uma noya atualizaçáo que nos submeta controle técnico que evite sua difusáo através da televisao de
ao tecnocolonialismo, como urna noya etapa de dependência maneira a provocar ou implicar metamensagens reprodutoras ou
gcnocida (a terccira em cinco séculos). -
instigadoras públicas de violência, de delito, de uso de- armas, de
Acima das desarmonias e mal-entendidos que podern retardar condutas suicidas ou de consumo de tóxicos.
essa empresa, as circunstâncias políticas nos conduzem para o Sein dúvida, este controle técnico seria atacado como lesivo à
caminho da política geral na regiäo. Marchando de acordo corn um liberdade de expressäo. No entanto, apesar de a liberdade de
programa político mais ampIo, urna criminologia envolvida no expressâo consistir na livre circulaçäo das idéias e no amplo direito
realismo marginal perniitirïa demonstrar sucessivos objetivos à informação, as idéias podem circular corn Iiberdade sem que isso
estratégicos, que tenderiam a reduzir o exercício de poder do seja incompatível corn a proteção da produçäo nacional, a criação
de fontes de trabalho e a economia de divisas. O ampIo direito à
inforrnaçáo nao é limitado quando nao se impede a circulaçáo das
59. Ver Udana. La Palabra de Ruda, trad. de Carmen Dragonetti. Barcelona, 1982.
notIcias, mas quando se proíbe inventar fatos violentos nao ocor-
174
.
175

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d los, mostrar pela televisäo cadáveres despedaçados, explorar a
demonstrando a falsidade da invençáo e da dimensäo do fenomeno
Jur aleja surpreendendo declaraçoes de vítimas desoladas e des-
apresentado como emergente quando, geralmente, é usual, etc.
:c neertadas, violar a privacidade de vítimas humildes e outros
Enquanto nao se encarar uma política criteriosa sobre o
ecursos semelhantes, como a incitaçäo de brigas entre vizinhos de
aparelho de propaganda do sistema penal, náo haverá maneira de
airros populares, invençáo de pseudo-especialistas em matérias
se diminuir a violência nem de se modificar o sistema penal econo-
li e desconhecem totalmente, apresentaçäo de profissionais deseo-
il ecidoscomo catedráticos, etc., isto é, a propagaçäo de mizando vidas humanas.
n' nsagens irresponsáveis que constituem urna deslealdade comer-
2. A intervençäo mínima como tática. A diminuiçao da
:i;Llcorn o simples objetivo de obteraudléncia, numa cornpetiçäo
iriada que se considera normal na região. O grau de aberraçäo é intervençáo penal através da descriminalizaçao, da "diversion" e
do principio da oportunidade de açâo penal sáo, obviamente, cami-
a )graude que quem consegue filmar um homicidio ou um suicidio
nhos que possibilitam a diminuiçäo da violência do sistema penal,
' la para a fama, questâo que pouco tern a ver com o direito de dar
desde que a renúncia à intervenção do sistemapenal Mo constitua
:

}U receber informaçao.
um recursoformalpara retirar matéria da agência judicial e aumentar
o argumento frequentemente usado pelos operadores e
o poder das outras agências. A renúncia à intervençào punitiva deve
nipuladores dos meios de comunicaçäo de massa (o crescimento
ser tratada como forma de renúncia real ao modelo punitivo con-
:

a audiância revela o descjo do público dc consumir noticias: c


iju nsagens violentas) nao resiste à menor análise: nao é possível
su/erado Onuicam eìite
Embora este conceito seja precisado adiante, é possivel afir-
Lerar - -
e, na verdade, nao é tolerado o televisionamento de
mar que, por ora, a tendéncia à intervençâo penal minima como
luJas as matérias que aurnentem a audiência Sc algurna atriz
tática de diminuiçâo progressiva da intervençâo penal sO â admis-
LiLlosa autorizasse o televisionamento de seu casamento corn a
sível à medida que os conflitos sejam subtraídos da programaçäo
late de núpcias completa, o índice de audiência seria altfssimo, no decisoria pelò modelo punitivo para proporeionar-lhe outra
aLanto, ninguém pode sustentar que a intolerância a esse
cs])etáculo afetasse a liberdade de inforrnaçao. -
solução via um modelo diferente de soluçáo de conflitos (repara-
Nâo se trata de urna questäo de moral ultrapassada, pois se dor, conciliatorio, etc.)- ou para deixá-lo à mercê de instâncias
i n adulto quiser presenciar a noite de núpcias completa da atriz e
informais. Esta tendência nao é, no entanto, adniissível no caso em
que, unicamente, sejam suprimidas a intervençúo da agência judicial
sia o permitir cobrando ingresso, por mais aberrante que possa
i ecer, nao ha problema algum para que o faça.
ou as garantias do direito e dO processo penais e, na realidade,
Entretanto, continue a aplica çäo de um modelo punitivo com uma pena em
iitalerável é a imposiçao deste espetáculo como parte de um
sentido ôntico. Este fenOmeno que, em nossa regiáo marginal, acon-
seiviço de noticias, euja degradaçâo da informaçao obriga os com-
c ¡dores a descerem ao mesmo nivel de aberraçao. Este processo tece com as contravençöes, com os menores, corn os doentes men-
¿gravado com o bern conhecido efeito reprodutor de violéncia tais, etc., nao constitui nem uma intervenção mínima, nem uma
ce sas mensagens; a produçao de "epidemias de suicidios", deserirninalizaçâo ou urna renúncia ao sistema penal, mas sim um
eneralizaçao da posse de armas, homicidios intrafamiliares, recurso perverso para aumentar o poder repressivo e configurador
Faniicidios por erro, etc. do sistema penal.
A única resposta para as campanhas de lei e de ordern é a Urna prernissa básica de qualquer política criminal de
cciitracampanha usando os mesmos meios, retificando as noticias, reduçäo da violência do sistema penal é a nao aceitaçäo por parte
das agências judiciais da transferéncia, sob qualquer pretexto, da
matéria penal de sua alçada, para outras agências punitivas. Ao
17 177
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contrario, as agônciasjudiciais devem reivindicar a recuperaçào da
matéria penal que já lhc.s tenha sido subtralda corn recursos per-
versos.

3. "Reformismo" e «radicalismo". Nos últimos anos,


tern-se
desqualificado corno "reformista" qualquer proposta aquém dos
nhveis de transformaçao preconizados por aqueles que
aplicarn
pejorativamente o voeábulo.
Àpesar da oposição "reformismo"-"radicalismo" (e propostas
"rcformistas"-propostas "radicais"), os limites entre urnas e outras
nao são claros. .

Em um extremo encontrain-se as r4postis relativas ao


"despotisrno ilustrado", a um "mudar tudo para que nAo mude
nada", enquanto no outro extremo aparecern posiçöésque levam a
'
PARTE 111
crítica a urna transformaçao total da sociedade em Iunçâo de
modelos difereates.
Neste sentido expresso, a posiçâo que postulamos nao pode
ser qualificada corno "reformismo" pejorativo, pois partirnos da
admissaoda deslegitimaçao do exercício de poder do sistema A CONSTRUÇÄO DO DISCURSO
penal, da incompatibilidade do discurso de justificaçáo do sisterna JURtDICO-PIENAL A PARTIR DO
penal corn os direitos humanos, de sua instrumentalizaçáo neo e
tecnocolonialista e de sua caracterizaçáo como elemento de dis-
REALISMO MARGINAL
soluçao comunitária. Reconhecemos, também, a legitimidade dos
discursos que postulam a aboliçâo total ou quase total do sistema
penal. Nao acrelitamos que nossa proposta possa ser pejorativa-
mente vista como "reformismo", pela simples razao de postular
urna açáo irnediata no campo do discurso jurídico. Recusarnos
frontalmente qualquer insinuaçáo neste sentido porque, justa-
mente, nossa proposta é sair da impotência crítica.

178

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CAPÍTULO QUINTO

UM MODELO CONSTRUTIVO PARA O DISCURSO


JURÍDICO-PENAL NAO LEGITIMANTE: O DIREITO
PENAL HUMANITARIO ATUAL DA POLÍTICA

I. BASES PARA SUA ESTRUTURAÇÂQ. i. Cias-


sificaçáo dos elementos do discurso legitimante. 2. É
possfvel construir um discurso jurfdico-penal limitado à
funçào pautadora decisOria, racional e náo legitimante?
3. A incorporaçâo nâo reducionista das dados Onticos.
II. PAUTAS GERATS PARA UM EXERCÍCIO DE
-
PODER LEGITIMANTE DIANTE DE UM FATO DE
PODER DESLEGITIMADO. 1. E possívcl haver um
discurso jurídico-penal racional frente a um sistema
penal deslegitimado? 2. 0 direito penal e o direito
humanitario como prolongaçoés recíprocas.
NHAS DO DISCURSO DO MODELO
-
DECISÓRTO.
1H. LI-
1.
Reconstruçâo do conceito de "pena". 2. Estabelecimen-
to do horizonte de projeçâo do discurso jurídico-penal.
3. Conceito do direito penal assim delimitado. 4. Urna
nova etizaçào para o direito penal. 5. O discurso
jurídico penal-re-ético como discurso da contradiçflo. -
IV. AS GARANTIAS PENAIS EM UM DISCURSO
JURÍDICO-PENAL RACIONAL. 1. A deslegitimi-
zaço da guerra e do sistema penal. 2. Particularidades
diferenciais dos campos penal e jushumanitario. 3. A
funçao da agencia judicial. 4. Um novo sentido para as
garantias penais. 5-As garantias como limites rnaximos
de irracionalidade. 6. 0 discurso jurídico-penal e o
padrâo alcançado pela agencia judicial. 7. Exposiço e
perspectivas dos principais principios penais limitadores
inacabados. -V. PRINCIPIOS PARA A LJMTTAÇÄO
DA VIOLENCIA POR CARENCIA DE
ELEMENTARISSIMOS REQUISITOS FORMAIS.

in'
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I. Principio de reserva legat ou de exigencia do máximo
de legalidade em sentido estrito. 2. Principio de máxima regras gerais para decisoes da agéncia judicial. Toda construçâo
taxatividade. 3. Principio de irretroatividade. 4. dogmática tende a um modelo de regras que torne previsível e
Principio de máxima subordinaçao à lei penal subs- racional o exercício de poder dos juristas. Em outras palavras, t
tantiva. 5. PrincIpio de representaçáo popular. -.-- VI. imprescindível a existência de decisôes nao contraditórias nos con-
PRINCIPIOS PARA A LIMITAÇÂ0 DA VIOLENCIA flitos selecionados pelas agências executivas do sistema penal e
POR EXCLUSÄO DE PRESSUPOSTOS DE DISFUN. submctidos à agência judicial.
CIONALIDADE GROSSEIRA PARA OS DIREITOS O discurso jurídico-penal, ao pretender cuniprir tanto a fun-
HUMANOS. 1. Princfpio da limitaçäo máxima da ção legitimante, como a funçäo pautadora, apresenta, conseqüen-
resposta contingente. Z. Principio de leividade. 3. temente, componentes legitimantes e pautadores, intimamente
Principio da minima prçporcipnalidade. :4 Principio de vinculados, pois a funçäo legitimante subordina a pautadora a tal
respeito minimo à humanidade. 5. Principio de ponto que esta permanece completamente imersa na primeira.
idoneidade relativa. 6. PrincIpio limilador da lesividade Os componentes legitimantes devem começar por atribuir
à vltinia. 7. Principio de transcendência minima da urna funçào à pena que pretende ser racional e estar submetida à
intervençáo punitiva. - VII. PRINCIPIOS PARA A
LIMITAÇAO DA VIOLENCIA POR EXCLUSÄO DE
legalidade. De acordo corn a fnnção atribuida é possível derivar,
dedutivamente, uma construçäo teórica abrangendo os componen-
QUALOUER PRETENSÂO DE IMPUTAÇÂO PES- tes pautadores; cada teoria da pena converte-se, portanto, em urna
SOAL EM RAZÂO DE SUA NOTORIA IR- teoria do direito penal1. Deste modo, cada justificativa ou legi-
RACIONALIDADE. tiniaçäo da pena representa urna teoriado direito penal que abarca
e submerge a totalidade da funçâo pautadora, pois esta se limita a
derivar-se dedutivamente como projeto ou planificaçáo do exer-
I - Bases Para Sua Estruturaçâo cício de poder da agéncia judicial.
A intervençäo -
nos poucos casos em que a agência judicial
1. Classifica çäo dos elementos do discurso legitimante. a) O é charnada a decidir em funçäo do processo de seleçâo realizado

-
-
exercício de poder verticalizante prOprio da sociedade industrial
é racionalizado através do discurso justificador do
pelas agências nao judiciais -
pauta-se, portanto, em categorias
dircito penal, abstratas que impedem contatos corn a realidade coxiflitiva social
que cumpre urna fun çáo legitimante, nao da agênciajudicia4 mas de dentro da quai a agancia deve decidir. O confito social e cada -
todo o sistema penal. A transculturaçao neocolonialista, propria da delito é um conflito social - perde-se (como, por definiçäo, já está
característica modernizadora incorporativa da civilizaçáo in- perdida uma "parcela" do confito, corn a supressäo davítima como
dustrial, trouxe o discursojurídico-penal para a periferia onde, até protagonista) em uma pauta decisoria, apta apenas a trabalhar corn
hoje, os mesmos discursos legitimantes são utilizados, apesar do abstraçóes dedutivamente encadeadas às necessidades da funçáo
diversificado exercício de poder dos sistema penas marginais. legitimante (ou justificante) do sistema penal.
O primeiro grupo de elementos discursivos do direito penal Desta forma, torna-se impossivel construir um discurso, corn
legitimante compöe-se, portanto, dos componentes legitimantes do pautas decisOrias (ou seja, corn funçào de projetar jurisprudéncia,
discurso. de planejar o exercício do poder dos juristas) racionais, pois estas
b) O discurso jurídico-penal nao se esgota, no entanto, em sua
funçao legitimante, mas cumpre tambérn umafunçaopautadora de CL aerhard Schmidt La leyy los jueces
1. in Radbruch.Schmidt-WelseI, "Derecho injusto
y derecho nub", Madri, 1971, pág. 28.

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autas näo podem levar em consideração (incorporar ao discurso) conteúdo delimitado: temos ai o "horizonte de projeção"2 de um
)s dados da reafidade social ao serem obrigadas a permanecer saber ou "ontologia regional" (delimitação de um campo do ser).
ledutivamente vinculadas (em posição dedutivamente servil) aos Geralmente, como o ser nao admite estas divisoes, impostas
omponentes justificadores (falsos, porque devem recorrer a fai- pela limitaçâo da possibilidade do conhecimento humano, os
idades para legitimar o nao legitimável, ou seja, para legitimar horizontes de projeçao esfaeelam-se e geram novos horizontes, ou
I
odo o exercício de poder do sistema penal). O discurso jurídico- "rcvoluçöes epistemológicas". O discursojuridico-pcnal, no entan-
J erial legitimante do sistemapenal naopodejaniais cumprir afun cao
to, apresenta-se tao cauteloso e prudente neste aspecto, que é
ie pautar a meihor decisao diante da confUto, mas apenas de pautar precedido de uma série de recortes que evitam, cuidadosamente, o
( decisao dedutivamente mais adequada à prernissa legitimante do esfacelamento de eu horizonte de projeçäo.
xercício de poder do sistema penal previamente selecionado com o ámbito do "penal" é delimitado pela pena e o conceito de
¿iguma das "teorías dapena". "pena" é definido por um ato batismo legislativo. Assim, cabe à
o servilismo dedutivo dos elementospautadores em relaçao aos agência legislativa (ou política) decidir o horizonte de projeção do
I lementos legitinantes manifesta-se claramente quando se observa saber penal. Um fato de poder da agéncia legislativa decide, por-
' ideal de qualquer construção dogmática: procura-se levantar tanto, o que fica dentro e o que fica fora do saber penal, do discurso
todas hipóteses conflitivas e pautar as decisòes, scm se levar em jurídico-penal.
(orila se tais hipóteses verificam-se concretamente, se nao são Obviamente, o que é excluído do discurso uma vez que a -
lcançadas pelo poder do sistema penal, se nao se resolveni, se se conseqüência jurídica que priva de direitos -
é denominada pena
resolvem Por vias informais ou se são resolvidas por outras agén- é excluido também do conhecimento -
e do exercício de poder -
iUS. -
da agôncia judicial penal, ou seja, é excluido do poder dos juristas
A explicaçäo última desta característica estrutural dos discur- e, geralmente, é incorporado ao discurso administrativo, trans-
sos jurídico-penais de justificaçao resulta de nao ser o "modelo ferindo-se para o exercício de poder -
das agéncias nao- judi-
enal" -desde a expropriaçáo irreversível do direito da vítima e ciais. O discurso jurídico-penal esforça-se para racionalizar estes
ca conseqüente exclusâo do sujeito passivo do protagonismo "recortes" de tal maneira que permitam conservar seu horizonte de
j rocessual, substituido por um funcionário representante dos
projeçao, sem entrar em confito com o exercício de poder das
i iteresses do "soberano" ou pelo proprio
juiz, ou seja, desde os agências nao judiciais.
s6culos XII ou XIII - um modelo de soluçao de conflitos. A A funçäo dos elementos negativos do discurso jurídico-penal
a gência judicial pode decidir nos conflitos selecionados
por outras
apresenta-se altamente legitimante do sistema penal, pois reduz o
agéncias, mas nao pode solucionar esses conflitos (a nao ser por exercício de poder da agência judicial de forma aparentemente ra-
acaso). Dal, portanto, a funcionalidade de um discurso legitimante cional, simultaneamente legitimando o exercício de poder das de-
que lhe ofereça uma máquina depautas decisorias capaz de, através mais agências e mantendo estagnado o saber penal, ao congelar sen
da racionalizaçao justificadora, assumir a aparência de pautas de horizonte de projeção.
s )luçöes. Estes elementos apresentam-se altamente funcionais as agên-
c) No discurso dogmático-penal legitimante, um terceiro cias judiciais burocratizadas, uma vez que economizam esforços
grupo é composto de elementos negativos. dessa agências, evitando-Ihes confitos. Desta maneira, o ambito do
Todo saber se expressa de acordo com um discurso definidor
seus limites e se manifesta num sistema de compreensäo do
2. CI. Wilhelm Szilas, ¿Qué a la ciencia?, México, 1970.

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t
"penal" (horizonte dc projeçäo do saber jurídico-penal) encontra- ou num mero arbitrio do poder? Conseguiremos produzir urna
se à mercô dos condicionamentos "epistemológicos" gerados pelo verdadeira construçäo pautadora?
poder das agências. Nossa resposta é afirmativa se, por "construçäo", entender-
Os elementos negativos podeni ser mais ou menos estruturais, mos urna ideologia coerente, um conjunto de limites e depautas que
ou seja, mais ou menos necessários para a preservaçào do poder possam sercompreendidos de rnaneira nao contraditôria e um cami-
verticalizador militarizado das agências nao judiciais ou conjun- nho de acessopara a realidade corno controlepermanente do acerto
jurais, quando facilitam ou ampliam esse exercício de poder em decisório. Se, por "construçâo', entendermos um modelo "fecha-
funçäo da jressäo exercida pelas agências näo judiciais, da decisào do", detaihado, preciosista, irnutáve, ou quase issu, capaz de res-
das agéncias políticas ou da debilidade ou vocação burocrática da ponder a todas as perguntas "aqui e agora", essa "conflruçâo"
agência judicial. obviamente só poderá ser realizada por um idealismo que, quanto
A função evidente dos eleme»tos negativos permite com- mais solipsista, mais será capaz de alcançá-la.
preender como u discurso jurídico-penal convencional procura a Urna construçäo realista sempre apresenta uma quota de meer-
legitimaçäo através de urna via dupla: pela via positiva, ao tratar de teza inerente à sua conexäo com o mundo, onde tudo é inacabado e
dotar a pena de urna funçäo, deduzindo dela um sistema de pautas ein permanente evoluçao.
dccisórías com aparência de soluçöes; pelanegativa, ao reconhecer A construçäo idealista tem a vantagem de possuir major capa-
como racionais os limites impostos pelo conjunto das demais agên- cidade de resposta segura; no entanto, este nivel de segurança varia
cias e assim legitimar seu exercício de poder. na razâo direta do grau de delirio bem sistematizado que se consiga
dcscnv&ver.
2. E possivel construir um discurso juridico-pènal limitado à Por oùtro lado, esta construçâo parece possível sem que se
funçao pautadora decisória, racional e nao legitimante? A mais recorra a elementos normativos "metajurídicos" (no sentido de
elementar percepçâo da realidade impöc umaretificaçao radical do urna supralcgalidadc ou de um jusnaturalismo) através da cons-
discurso jurídico-penal. truçäo de um discurso jurídico-penal que realize os objetivos as-
Como primeira tarefa, impòe-se, com urgência, determinar o sinaados ao Interpretar a lei corn elementos positivados, tais como
ámbito do saber penal corn base cnt dados corretos, que o retiren: do a Constituiçao, os Tratados Internacionais e a lei (em sentido estrito
arbitrio do exercicio de poder das agén cias legislativas. ou formal).
Por outro lado, ao se reconhecer a deslegitimaçáo do sistema
penal, torna-se imprescindfvel retirar o discurso de justificaçao da 3. A incorporaçao nao reducionista dos dados önticos. As dis-
base de qualquer construção dogmática e sustentO-la também sobre cussöes jusfilosólicas sempre giraram em torno da relaçáo "fato-
dados da realidade. O discurso jurídico-penal assim elaborado re- valor", sendo, portanto, impossível siiitetizá-las. Muito
duzir-se-ia à construçûo pautadora de decisôes da agência judicial simplistamente, as diferentes posiçáes são, no entantó suscetíveis
fundamentada em dados da realidade. Em outros termos, seria urna de urna classificaçâo primária -distinguindo-se teorias realistas e
planificaçao do reduzido exercício de poder da agência judicial em idealistas - que, apesar de insuficiente, em razâo de algumas
forma racional, ou seja, um conjunto de pautas decisorias seguindo posiçôes pessoais de difícil ou duvidosa locaiização, cumpre uma
uma estratégia configuradora de uma tática para o exercício racional funçAo orientadora.
do poder da agência judicial (do poder dos juristas). O círculo das teorias "realistas" é integrado pelas versòes
Esta tarefa impöe-se. No entanto, estaremos em condiçöes de segundo as quais o valor jurídico (ou. o desvalor) nao altera a
construir este discurso sem cairmos nuni reducionismo sociológico estrutura do objeto avahado, que Ihe é anterior e independente,

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tquanto nas teorias "idealistas»', o valor cumpre
urna funçáo "cria- Entre as múltiplas tendências dessa atitude generalizada4,
lora" do objeto. destacou-se por sua prudência, urna concepçáo que foi considerada
o idealismo tende a gerar um "mundo do jurista", o que Ihe como um "programa mínimo" dentro do panorama total do pen-
cutorga urna grande segurança ao afastá-lo da permanente mu- sarnento da "natureza das coisas"5 e que teve singular sorte, no
(Lança e do devenir próprio do mundo real, isolando-o dos debates campo do saber jurídico-penal: a teoria das estruturas lógico-reais
obre a realidade. O realisrno, ao contrário, é um carninho que (sachlogischen Strutkturen)6.
proporciona respostas menos absolutas, mais contingentes e, quase A teoria das estruturas lágico-reais foi transportada para o
empre, provisorias. discurso jurídico-penal,com aplicaçâo limitada à teoria do delito,
Em geral, o jurista tende a inclinar-se para o idealismo, que onde produziu mudanças consideráveis, gerando urna longa polê-
flic permite construçôes teóricas dentro de urna "estética jurídica" mica que ultrapassou ampiamente as fronteiras alemás.
Lue compartilha os valores da arquitetura autoritária, predorni- Com certeza, nao é necessário reproduzir aqui esta teoria,
llante -nao casualmente -- na maioria dos "palácios de justiça" conhecida em nossa rcgiäo marginal há quase três décadas. Seu
lo Ocidente, corn seu rnonurnentalismo frontalista. O realismo, artífice, obviamente, foi o alemào Hans WeIzel. O pensamento
pesar de näo representar essa "segurança", possui a vantagem de jurídico-penal alemão pós-welseliano, no entanto, incorporou, co-
'alorizar um mundo nao articulado na medida das necessidades do mo componente praticamente irreversível, a estrutura complexa do
'alor ou, o que é o mesmo, do sujeito que avalia. tipo penal (lôcalizaçao de dolo e culpa como cslruturas típicas),
Advirta-se que existem distintos graus de realismo e de idea- abandonando o fundamento welseliano das estruturas lógico-reais
lismo, em cujos extremos podem localizar-se os reducionismos que, praticamente, nao são mais mencionadas na doutrina atual. O
sociologismo, economicismo, historicismo, biologismo, etc.) e os movimento de "volta ao realismo" no discurso jurídico-penal, dc
olipsismos. grande ímpeto até a década de sessenta, ofuscou-sc, quasc desa-
A considerävel gama de neokantismos filosóficos permitiu a parecendo no últimos vinte anos.
l)assagem de várias versöes desta concepçäo para o direito penal, Este fenomeno é suscetível de diferentes leituras. Alguns afir-
iepresentando diferentes graus de idealismo e possibilitando o mam que a teoria "esgotou-se" e que, conseqüentemente, foi des-
lesenvolvirnento do positivismo jurídico e a admissäo da onipo- cartada por ser infecunda; outros sustentam que toda referéncia ao
I éncia legislativa. "ontologismo" é reacionária eautoritária; um outro grupo criticou-
O advento do nazismo, do fascismo e do stalinismo na Europa
[eu origem a um movimento jusfilosófico de pás-guerra na Alema-
,Lha Federal, propondo, para eludir a onipotôncia legislativa, uma Stuttgart, 1970; cm castelhano,La nanualcza dela cosa coinofonnajurtdica deipensamiento,
olta 'à natureza das coisas". Este movimento representava, pra- trad. dc Ernesto Garzón Valdez, OErdoba, 1963.
4. Um ampio panorama está cm Luis Rccaséns Siches, Erpe7ienciajurtdica, naturaleza de la
licamente, urna atitude generalizada de repúdio radical ao posi- coso y Lógica tazonabie", México, 1971.
livismo jurídico e nào urna corrente unitária, pois abrangeu desde 5. Assim, Aicssandro Baratta,Rprobiema della natura deifotto. Studi e discussioninegli ultimi
josiçöes bastante prudentes até novas versöes de vários jusnatu- dieci ann4 in "Anuario Bibliografico di Filosofia del Diritto", Milào. 1968, pág. 227; do
i alismos dos séculos anteriores. Um dos primeiros impulsos neste
mesmo autor, urna versáo das distintas correntes, muito bem sintetizada, em Natur der
Sache und Naturrecht, in "Die ontologislice Begründung des Rechts",Darmstadt, 1965;
E entido, como se sabe, foi dado por Gustav Radbruch'. furl ticheAnalogie und Natur der Sache; in "Fest, f. Erik Wolf", pág. 137;Rechtspositivismus
und Gesetzposïtivisnzu in ARS?, 1968, LIV/3, pág. 32S; La teoria della natura delfatto alla
luce dela "nuova retorica'; in "Annali della Facoltà Giuridica, Università degli Studi di
Gustav Radbruch, Fünf Mïnuten Rechtsphilosophiç 1945; Gerechtigkeit un Gnadç, 1949; Camerino", Miläo, 1968, pág. 39.
Gese&iches Unrecht und übagesetzliches Recht, 1946, todes cm Rechtsphilosophie, 6. Hans Welsel Abhandlungen zum Strafrecht und rar Rechtsphilosophie, Berlirn, 1975.

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a como sendo "jusnaturalismo" metafísico; e nao faltou a obser- suposiçao de que o direito dirige-se a urna pessoa, ou seja, a entes
vaçáo de que, afinal, é urna antropologia filosófica. Geralmente, capazes de autodeterininarem-se. O desconhecirnento desta estru-
esta teoria é igual às demais correntes do beterogêneo conjunto da tun lógico-real pressupóe a quebra do direito, porque o nero
Natur der Sache (irredutíveis a urna formulaçáo única em razâo de exercício de força, corno é óbvio, nao pode identificar-se com o
suajá mencionada disparidade) e arquivada no grande fichário de direito.
ruinas de sucessivos jusnaturalismos. Na nossa opiniao, existe outra estrutura fundarnental de -
Scm pretender reiterar aqui a exposiçáo detalhada da teoria certo modo, pressuposta na anterior -
que o legislador náo pode
das estruturas Iógico-reais7, devenios recordar algutnas de suas quebrar: trata-se da estrutura que vincula o direito às leis físicas.
priucipais características, na medida necessária para nosso pro- A teoria da estrutura lógico-reaís permite afirmar que o direi-
pósito atual. nao é um -ente ideal, algo como urn círculo. Ao contrário, o
Esta teoria apresenta-se corno ntíteSe da Versão do neokan-
a1 direito é um instrumento ou fertamenta que, tal como um martelo,
tismo que só torna racionalmente acessível o mundo através do apesar de defeituoso, leve, quebrado, etc., continua sendo "mar-
valor: diante da funçáo criativa assumida pelo valor nessas versöcs telo" até que, reduzido a um pedaço do cabo, deixa de sè-lo.
neokantianas, a teoria das estruturas lógico-reais afirma que o Esta afirmaçäo nao implica, no entanto, nenhum jusnaturalis-
direito, quando se refere a qualquer ente, deve reconhecer que este mo no sentido idealista, ou seja, nao pretende construir-se partindo
está inserido numa certa ordern, que o mundo nao é um "caos" e da visáo iluminada de uma suposta "lei superior" que nos permita
que o conhecimento jurídico, corno todo conhecimento, náo altera
aceder dedutivainente a urn sistema complèto de "como deve ser o
o objeto do conhecimento. Se o direito quer atuar sobre um ámbito direito". Se existe algum vestígio de jusnaturalisrno idealista nesta
da realidade, deve reconhecer e respeitar a estrutura òntica desse teoria seria o denominado "jusnaturalismo negativo": nao serve
ámbito e nao inventar esta estrutura porque, neste caso, regulará para dizer-nos como deve ser o direito, mas para dizer-nos o que
outra coisa e obterá outro resultado. nao é direito8.
Quando o legislador desconhece as estruturas lógico-reais, Neste sentido, torna-se infundada a crítica de ser esta uma
náo deixa, necessariamente, de produzir direito, rnas limita-se a teoria reacionária e autoritária. Na verdade, "reacionária e auto-
arcar com as conseqüéncias políticas de seu erro: se o legislador ritária" é a förma que o jurista pretende atribuir à ordem da
ou o jurista idealista -
pretende definir as vacas "no sentido realidade na qual quer assentar o limite do legislador. As diversas
jurídico" como urna espécie de cachorro-grande, negro, corn dentes ordens do mundo real nao sgo, evidentemente, unívocas, pois tam-
enormes e que ulva nas estepes-, pode, obviamente, fazê-lo; ape- béni são resultado de saberes-poderes, seudo, portanto, ossível ao
nas, deverá arcar com as conseqüências quando pretender orde- jurista apresentar um fato a partir de uma interpretaçäô ou versao
nhar um lobo. particular e arbitraria da ordern do mundo. No entanto, mais auto-
Nao obstante, existeni algurnas estruturas lógico-reais fun- ritário seria se pretender que o legislador pode fechar ou impedir
damentais que o legislador nao pode quebrar sern deixar de pro- qualquer debate, reconhecendo-lhe o poder de inventar o mundo.
duzir direito: o legislador -
ou o direito, se se preferir -
pretende
regular a conduta humana através de urn sistema de corninaçôes S. Karl Engisch, Auf der Suche nach der Gerechtigkeit Hauptthenien der Rechtsphilosophiç
sancionais. O mero impedimento físico nao é direito. Dal a pres- Munique, 1971, pág. 240. É interessante assinalar que urna idia próxima a este "direito
natural em sentido negativo" foi concebida há um stculo por um dos juristas
atino-americanos mais criativos, Tobias Barreto, que a resumia afirmando que "nAo há
um direito natural, mas urna lei natural do direito" (Jnzrodução aoEsgudo doDfreito, in
T Sobre cias, vero tomo lido nosro Tratado dc Derecho Penai Obras Completas", cdiçAo do Estado de Sergipe, 1926, VII, pág. 38).

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Pretender que a "segurança jurídica" é provida pela compe- coincidisse corn a antropologia jurídica reconhecida pela comu-
t3ncia legislativa de "inventar o mundo", que Ihe garante "certeza", nidade internacional nos Documentos dos Direitos Humanos, como
confundir a segurança jurídica corn o bonapartismo ou a "segu- expressâo de urna consciência jurídica universal.
rança" do acatamento da vontade vertical das ditaduras (a "segu- Estas breves consideraçôes demonstram que o abandono da
xatça" da autoridade), Afirmar que o estado moderno 6 "racional teoria nao resulta de seu esgotarnento ou da perda de sua fecun-
( democrático" e, por isto, impede que o legislador "fabrique o didade, mas sim de outras razóes que podem ser percebidas, mais
jiundo", negar a evidéncia e desconhecer a experiência histórica claramente, à luz da crítica sociológica deslegitimadora do sistema
ni qualquer lugar do planeta9. penal.
Pretender que a teoria das estuturas lógico-reais é urna an- Weizel enunciou sua teoria há algurnas décadas e a aplicou ao
tropologia "metafísica", porque vincula o direito à autodeter- direito penal no pós-guerra, utilizando-a, nos anos posteriores,
iiinaçäo, em virtude desta náo ser verificável empiricarnente, é um para aperfeiçoar seu discursojurídico-penal. Apesar de ser forçoso
jeducionismo próprio do neopositivismo. A autodeterminaçâo é reconhecer na captaçâo da ordem do mundo de WeIzel urna con-
ivenciada em todas as relaçoes soclais, sendo táo metafísica quanto siderável dose de "aristotelismo", nao sao suas premissas meto-
atitude do sujeito que nos reprova, aos gritos, por termos arnas- dológicas que se invalidam e, sim, sua percepçäo pessoal do mundo.
fado o pára-Jama de seu carro em funçáo de nossa impericia no A posiçao wclzcliana provocou uma mudança considerável do
trânsito; a linguagem humana, popular e coloquial encontra-se tao discurso jurídico-penal na teoria do delito, deixando, no entanto,
itamente enriquecida por esta "metafísica", que é utilizada pelo intacta a teoria da pena, para a qual Welzel nao levou suas "es-
róprio jurista que a nega ao referir-se aos que nâo aceitam sua truturas lógico-reais"°. Q que aconteceria se, em vez de ficarmos
evidéncia científica". corn as modificaçoes ita estrutura teórica do delito, por meras razOes
A objeçäo de que esta teoria pressupöe urna antropologia
f losófica nao representa um obstáculo ou urn deleito, mas sim, um
sistemáticas -
como sefaz -
arquivando as estruturas lógico-reais,
continuássemos corn elas e as levóssernos â teoria da pena? O que
riérito, principalmente quando se trata de urna antropologia bá- aeonteceria se, corn os dados de realidade dos atuais paradigmas
sica, elementar, "preparatória" se se prefere, em relaçáo a outros criminológicos, tentássemos enfrentar a construçâo de uma teoria
utropólogos pertinentes ao ambito do privado numa sociedade da pena de acordo corn as estruturas lógico-reais? Simplesmente,
iluralista. Apesar de ,sua elementaridade, trata-se de urna antro- produzir-se-ia uma deslegitimaçao total das penas e das "medidas
o1ogia necessaria para estabelecer bases mínimas de coexisténcia. de segurança" tal como Welzel as apresentava e como continua
Esta objeçäo seria menos consistente ainda se essa antropologia apresentando o discurso jurídico-penal legitimante e, com isso,
seria evidenciada a falsidade de todo o discurso jurídico-penal
legitimante.
Essa "certeza jurídica" é a do Estado despótico, como beni o assinalou López de Oñate, Em nossa opiniâo, a teoria das estruturas lógico-reais nao foi
pois, "se ¿ verdade que também um Estado despótico pode aparentemente garantir a
certeza afirmando zuna única vontade e só urna, ¿ igualmente verdade que essa vontade só
arquivada por ser infecunda, mas porque, ao ser aplicada à teoria da
-
¿ certa e enta momentaneamente, näo tendo se entendemos rigorosamente oconceito pena, tena deslegitimado o sistema penal e desmistificadi o discurso
de Estado despótico - nenhuma constância. O despotismo, corno introdutor dc uma jurídico-penal.
certeza na vida social, tern sau limite na exigencia mesma da certeza, revelando uma
refethncia à certeza puramente ilusória e enganosa. Urna certeza provisória, que pode
esfumar-se a qualquer momento, ¿ urna certeza por antífrase" (flavio López de Oñate,
...

La cenca del derecho, trad. deS. Sentís Melendo e M. Ayerra Redín, Buenos Aires, 1953, 10. Pode-se acompanbarodesenvolvimento convencional da sua tese a respeito, noparágrafo
pág. 161). 32 de Das deutsche Swafrech4 1969.

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A teoria das estruturas lógico-reais é corn certeza "infecunda" II - Fautas G erais ParaUm Exercício de Foder
para construir um discurso legitimante do sistema penal ein um Legitimante Diante de Um Fato de Poder
momento de profunda crítica social, mas ainda é iinuito "fecunda" Deslegitimado
para construir um discurso que assuma a deslegitimaçáo do exer-
ciclo de poder do sistema penal'1. 1. Ê poss(vel haver um discurso jurídico-penal racionalfrente a

Por outro lado, a teoria das estruturas lógico-reais nao conduz um sistemapenal deslegitimado? Em um primeiro impulso ou intui,
a nenhum reducionismo, mas, simplesmente, aponta ao jurista a çao, a resposta é negativa.
necessidade de vincuhr-se e de respeitar os entes a que se refere, A tradiçao das fábricas de reproduçäo ideológica do sistema
tal como se verifica nas respectivas ordens do mundo. Esta posiçáo, penal tem adestrado os juristas, corn discursos nos quais é impos-
como é natural, remete frequentemente ojurista äs disputas sobre sível a separaçAo entre a legitimaçäo do exercício de poder do
esses Órgäos e sobre as estruturas ônticas do mundo, discussào sistema penal e a legititnidade da patita de decisoes nos casos
ineludível na coexisência e que, obviamenÈe, nao pode esquivar-se . submetidos a seu poder (ou seja, às gências judiciais) pelo proces-
a qualquer modelo da mesma. so de seleçao prévia das agéncias nao judiciais.
Procurar a "segurança" mediante a construçâo de um mundo Em funçao desse longo condicionarnento, alimentado pelo
em que tudo esteja "pronto" e em que aevoluçao esteja estagnada servilismo dedutivo das pautas decisorias ein relaçao às legitiman-
tes, a resposta elementar considera que, se o exercício do poder do
significa procurar a segurança em um "näo-mundo" (negaçáo do
mundo), que é a máxima insegurança imaginável. O aforismo seria: penal encontra-se deslegitimado, torna-se necessário aboli-
sistema
lo.
"Como a segurança nAo é inerente a este mundo, devemos inventar
um outro mundo, inexistente, e esquecer o mundo atual". Por mais No entanto, um pequeno contato corn os dados da realidade
curioso que pareça, este raciocinio predomina ii0 discursojurídico- do exercício de poder das agências do sistema penal impöe que o
penal legitimante. A teoria das estruturas lógico-reais proporciona jurista renuncie à sua onipotôncia adolescente, para alcançar a
as bases para enfrentá-lo, evitando o reducionismo. rnaturidade que lhe permita tomar consciência dos estreitos limites
de seu poder.
Scm dúvida, no plano pessoal, este processo, ein funçâo da
dcsilusao que representa, gera estados depressivos inevitáveis: a
11. É curioso que essa teoria tenha sido re&haçada, senda paulatinamente substituida pela passagem da adolescéncia à maturidade implica, necessariamente,
funcionalismo na Alemanl,a Federal; que os soviéticosa rechacemporque perniiteaajuiz
urna inte,pretaçâa arbitrária e completamente livre da enneelto de Lraiçáa à pdtria e de desilusao; o individua que escapa da neurose improdutiva aprende
outras delitos, caso essa interpretaçâo interesse aos dirigentes da sociedade, ista é, "aos a usar o impulso juvenil para transformar a realidade, tornando-a
círculos monopolísticas e vindicativos da República Federal Alema" (Zdravamíslav, mais atrativa do que o jogo de ilusöes.
Schneider, Klina e Rashkóvskaia, Derecho Penal Soviético, Fañe Genera4 Bogotá, 1970,
Se o jurista consegue superar seil saber adolescente e reco-
pág. 547); que tenha sido repelida pelo penalismo espanhol nas tempus do franquismo
(exeetoparCerezo Mire unspoucos); que tenha sido rechaçadapelospenalistaspráximos nhece a funçAo legitimadora de seu discurso jurídico-penal como
ans círculos das ditaduras militarea do 'cone sul", mas bd, no entanto, quem a rotule de imposta pelo poder da sociedade industrial -
e, na nossa regiao
"marcista", mesmo que um dos mais conspicuas representantes dapenalisma rinpratense
da "segurança nacional" tenha dito: "A qual - -
agora me ocUrre pode transformar o
marginal, pelo poder do neocolonialismo -,
perceberáo esvazia-
direita penal no paraíso das doutrinadores da nova Weltan.schaung (sic), depais de mento de seu discurso legitimante. Em contrapartida, no entanto,
aclarada e interpretada conforme as ditasverdades eternas, au defender, corn argumentos -
encontrará uit sistema penal que permanece por ser um fato de
metajuri'dieos, que o direita penal seja a instrumento técnico para garantir apreservaçâo
das massas prolctárias" (Fernando Bayardo Bengoa, Dogmática jurídico-penaL
poder - pois, por maior que seja a deslegitimação discursiva, os
Refonnulaciónyperspectivas, Montevidéu, 1983, pág. 58).
fatos depodernäo desaparecern corn os escritos dos juristas, urna vez

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¡be nao estdo sublinhadospor sua legitimidade, mas, sim, por seV nunca puderam exercer, porque jamais as agências judiciais
dis-
,cder. puseram do exercício de poder legitimador de seu dscurso.
Pelo
o sistema penal nao se apresenta conio o único fato de poder contrário, limùarseu discurso àfunçtiopautadora decisôria
implica
it slegitimado sustentado por seu prOprio poder; a guerra ou a reduzi-lo à programaç4o de seu exercício real de poder.
ii;tribuiçäo internacional do trabaiho são latos de poder deslegi- No entanto, nao se deve imaginar que esta limitaçäo
do dis-
hiados; curso jurídico-penal seja um mero recorte discursivo,
mas que, ao
Estes latos de poder existem, fazem parte da realidade. A reconhecer as deskgitimaçao do sistema penal, a pauLa decisoria
da dia torna-se mais evidente a necessidade de se eliminar a corrente se conforme, Já que sofrp a distorçäo provocada por
sua
erra para garantir a sobrevivência; no entanto, a guerra per- dependéncia dedutiva dos eleMentos legitimantes.
niinece como um fato de poder. A guerra está diante de nós, e, se A construçäo de um novo discurso
jurídico-penal implica a
:ti urna reaçáo ingênua, decidirinos, em algum dos países de nossa planificaçäo normativa do exercício do poder decisorio dos
juris-
regiäo rnarginal, ignora-la ou suprimir as forças armadas, em pouco tas, como poder efctivo dc sua agônciajudicial, livre
dos obstáculos
icOElpo a rede de poder planetário obrigará o país vizinho a nos impostos pela dependência servil dedutiva dos falsos
elementos
invadir. deslegitimantes do sistema penal. Em conseqüéncia, deixa-se
aber-
Seguramente, é impossivel a iegitimaçâo de latos de poder la a possibilidadg de se construir urna pauta
decisoria legítima.
C4 usadores de milhöes de mortes e de infinita dor humana; entre-

tanto, para a supressäo desses males, torna-se necessário, em pri-


o exercício do poder dos juristas, tal como programado
partindo dedutivamente de urn discurso falso que Ihe oculta
-
os
tu iro lugar, reconhecer a existéncia daqueles latos, dimensionar limites reais - é um exercício de poder que tende a
reduzir-se
scu poder, analisá-los, determinar nosso poder diante do fenô- progressivamente. O reconhecimento dos limites reais desse exer-
cnno, estabelecer urna cadeia de cxbjetivos estratégicos sucessivos cício significa mais que a simples renúncia a urna
iludo; é pres-
una tática para alcançá-los. suposto indispensável para pautar um exercício de
poder legítimo
O primeiro passo para o exercício de um poder que enfrenta que procure sua progressiva amplia çdo.
i (ro poder deslegitimado é perguntar como se pode administrar o Qualquer tática ampliatoria do exercício do poder
dosjuristas
911der disponível. está condenada ao fracasso se planejada a partir
de um discurso
Apesar de o exercício de poder dos juristas encontrar-se limi- real de poder: ninguém pode fazer esforços racionais
para ampliar
Lado äs agências judiciais, a deslegitimaçäo do sistema penal e a seu poder quando vive uma alucinaçáo
acreditando já dispor desse
qnebra do discurso dos juristas nao deslegitimam necessariamente poder.
c-xercfcio de poder das agências judiciais. Na verdad; à medida A construçao de um discurso jurídico-penal que
reconhece o
e as agencias judiciais exerçam seu poder de forma racional, frente caráter de fato de poder deslegitimado do sistema penal
e se limite à
im fato de poder que nilo podem suprimiri seu exerc(cio de poder patita de decisoes da agênciajudicialnao implica uma
relegitimaçao
te -á legítimo, se o fizerem distendendo seus limitados recursos para do sistema penal. Esta afirmativa conteria,
aparentemente, contra-
;cnirolá-los. Da mesma forma, à medida que essas agências pro- diçäo subjacente ou paradoxo porque, adestrados
os jüristas no
:z. rem ampliar seu exercício racional de poderi também este será discurso legitimante, parece inexplicável que se legitime
seu poder
e ;Wnzo. e se deslegitime o poder do sistema
penal.
Reconhecer a deslegitimaçáo do sistema penal e renunciar a No entanto, este nao é o único caso no qual
o exercício de
qualquer discurso relegitimante por parte das agências judiciais poder dos juristas se considera legítimo e nccessário
frente a um
implica, apenas, que estas renunciem a um exercício de poder que ato de poder deslegitimado. Como já foi visto,
a guerra & um fato

:t 6
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de poder claramente deslegitimado; no entanto, ninguém duvida da integrando-se em urna rede de micropoderes cujo conjunto da a
necessidade e racionalidade dos esforços dos juristas, dedicados ao impressao de um sistema corn capacidade orgânica de auto-equi-
direito humanitário, e de suas agências. Enquanto a guerra en- líbrio e reproduçâo. A característica mais notória do poder é
a
contra-se deslegitimadat2, o direito humanitário está legitimado, dinámica: em scu exercício, os micropoderes lutam,
coligando-se
ao procurar reduzir o nivel de violéncia de um fato de poder que permanentemente de modo instável.
está fora de controle, jato é, que näo consegue, por seu limitado Ao prescindir desse dinamismo, o exercício do poder
torna-se
poder, suprimir13. incompreensível; exatamente a idéia generalizada de que o poder
A coincidência entre a guerra e o sistema penal nao é casual, "se detérn" estaticamente contribui para distorcer esta
perspectiva
como será analisado posteriormente. Por enquanto, esta coinci- e impede a percepção de sua essência, que
é exercício.
déncia deve ser considerada apenas para negar qu1quer suposta A5 vezes, a dinámica e as lutas do podermanifestam-se
corn
contradiçáo entre a tentativa de pautar o exercício do poder dos maior violência. A violência do exercício de poder também pode
juristas de forma legítima e o fato de! poder deslegitimado do encobrir-se corn um discurso que a justifique, que a oculte ou que
sistema penal. a mostre segundo as circunstâncias do
momento de poder. Há
O exercício do poder dos juristas assim pautado só será legi- momentos de poder nos quais a luta aberta dá lugar à guerra;
em
timado à medida que paute as decisöes da agência judicial para que outros, a luta limita-se ao plano político, nao se esciarecendo se a
esta assuma urna funçäo de contradiçäo dentro do conjunto de política é urna continuação da guerra ou se a guerra é urna con-
agências do sistema penal, reduzindo sua violência. Por isso, o tinuaçäo da política.
discurso que pauta o jurídico-penal nao pode ser "pronto" e, sim, o exercício de poder dos últimos quarenta anos (isto é, dos
"inacabado", aberto às contingências e espaços que à dinámica do albores da revoluçâo tecnocientífica) exclui a guerra corn armas
poder das agências do sistema penal venha a lhe abrir, oferecendo- convencionais das áreas de concentraçäo depoder planetario (sub-
Ihe mais oportunidades para reduzir a violéncia do exercício des- metidas a ameaças corn armas näo-convencionais cujo aperfeiçoa-
legitimado do poder. mento "preventivo" ou "dissuasivo" já lhes permitiu acumular
capacidade destrutiva planetáría), relegando-as às áreas marginais
2. 0 diretto penal e o direito huinanitário como prolonga çdo do poder.
recíprocas. O poder é exercido de forma sumamente complexa, Apesar de o discurso jurídico-internacional deslegitimar as
guerras, as guerras existem e existem exórcitos, fábricas de
at-
mamento convencional, programas carissimos de sofisticado at-
12.A guerra foi deslegitimada pela Carta das Naçöes Unidas. 56 em trés hip6teses é rnamento nuçlear, químico, bacteriológico, etc. Están no mundo
autorizada: 1)por medida de seguranca coletiva disposta pela ONU; 2) em caso de guerra como umfactum, tao real quanto qualquer outro.
de libertaçAo nacional; 3) ein caso dc guerra defensiva. A terccira condiçao, devido à
diticuldade na caracteñzaçâo do "agressor", éa brecha pela quai escapa a açâo do poder, A verticalizaçao do poder social, no centro e em nossa regiao
o que demonstra a impoténcia dos organismos internacionais frente a ele (Christophe marginal, valendo-se do sistema penal, tambérn é um dado de rea-
Swinarski, Introdacción al Derecho Internacional Humanitario, Comité Internacional da lidade, urn fato de poder, como o é o escasso poder realmente
-
Cruz Vermeiha Inst. Interani. de Direitos Humanos, São José, Genehm, 1984, pág. io;
exercido pelas agências judiciais nesse sistema.
também UCU, Normas fimdarnentates de tos Convenios de Ginebra y de sus Ptosocotos
Athcionol4 Genebra, 1983; "Revistà Internacional de la Cruz Roja"; etc. lJma vez que, em nossa regiâo marginal, esse exercício de
i3. "C) direito internacional humanitário é o coipo de normas internacionais ...que limita, -
poder torna-se às vezes em razao de sua funçao de contençao de
por razôes humanitárias, o direito das Partes em confito dc escolhcr livremente os
métodos e os meios utilizados na guerra, o que protege as pessoas ou os bens afetados
maiorias - extremamente violento, pretende-se confundir exage-
ou que podem ser afetados pelo confito" (Swinarski, pág. 11). radamente os momentos de guerra e de política. Esta confusao é

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enuontrada particularmente pelo disthirso central de exportaçáo mente como meros apêndices burocráticos do poder das outras
(ato utilizävel para consumo interno central) que pretende a exis- agências do sistema penal.
t t cia de urna guerra "permanente" de características especiais - As agências geradoras do discurso jurídico-penal (a atividade
"sILja"- capaz de legitimar qualquer exercício de poder, inclusive acadêmica jurídico-penal) encontram-se na mesma disjuntiva, em-
gei.ocida. Revelando-se insuficiente o exercício de poder vertica- bora de maneira pessoalmente ainda mais ineômoda: ou continuam
1:z.nte do sistema penal para os planos de espoliaçäo de alguns ruminando os restos de discursos dispersos afastando-se cada dia
g ri. pos financeiros centrais, instrumentalizam-se funcionais arrou- mais dos demais saberes sociais (sociologia, economia, psicologia,
1: O terroristas e essa ideologia, a fim de se verticalizar militar- historia, anttopologia, etc.) e da filosofia, da ética, etc., ou se
mente toda a sociedade, convertendo o sistema penal em um decidem a elaborar um discUrso pautador de decisóe que importe
a p relho de terrorismo estatal. em um exercício de poder legítimo das agências judiciais.
Os dados sociais sobre o sistema penal demonstram clara- Nesta última opçáo, o direitopenal (saber ou discurso jurídico-
meate como ele é insuscetível de relegitimação. penal) assumiria a fun çäo de um direito humanitário do tempo da
Se o exerciclo dopoderfosse racional, Mo haveria espaço para política.
a gierra nempara o sistemapenal. Esta, no entanto, é urna mcta que Esta última opçäo, para os marginalizados do poder plane-
s ncontra no final do programa de transformaçäo revolucionária tário, impòe-se com urgência em razâo da necessidade de se con-
ctumerada, em liuhas gerais, pela Declaraçio Universal dos Direi- (rolar a altissima violéncia do sistema penal nos países periféricos,
t is Humanos, em 1948.
o que significa muito mais do que a efetivaçäo de certas garantias
Assim como cada uma das partes beligerantes, ainda hoje, para o reduzido número de pessoas apanhadas pelo sistema penal
r n tende amparar-se em um discurso que a coloque em situação de repressivo (o que, no entanto, por si só revelaria a necessidade de
"tthfesa", todo o sistema tenta racionalizar seu exereício dc poder reformular o discurso). Para nossa realidade marginal esta opçäo
culi um discurso "defensista" e, conseqüentemente, como um exer- importa a defesa de lugares ou espaços de poder comunitário,
dco "naturalmente necessário" de poder. controle e limitaçäo de poder verticalizador e, finalmente, enfra-
A necessidade de limitar e, depois, de erradicar a guerra nos quecimento do instrumental de dependência.
r nscs centrais, gerou o direito humanitario como mejo de pôr fim A reconstruçdo do discurso jurídico-penal como planificaçdo
a sua violôncia. No entanto, as agéncias realizadoras desta pro-
do exercício de poder decisorio dos juristas é, em n ossa regido mar-
g r maçâo jurídica näo dispoem do poder necessario para efetivá-la
ginal, urna necessidade vinculada a nossa sobrevivência comunitária.
lanetariamente, quando o poder central e o marginal apresentam-
s ontraditórios com os objetivos deste ramo jurídico.
O sistema penal, diferentemente da guerra, nunca foi discur- III - Linhas do Discurso do Modelo Decisório
s i irnente deslegitimado pelo poder. Ao contrário, os esforços
lugLtimantes esgotaram-se e, hoje, quando nada mais faz do que 1.Reconstruçdo do conceito de "pena". Anteriormente, refe-
mimar restos de discursos legitimantes espalhados, ou se pre- rimo-nos aos elementos negativos do discurso jurídico-penal legi-
t ude legitimá-lo recorrendo-se abertamente às necessidades de timante como componentes elaborados para deixar fora do saber
t rn suposto "sistema", as agéncias judiciais deparam-se corn a dis- penal aquilo que corresponde a seu horizonte de projeçäo, para
jintiva de assumirem o papel desempenhado pelas agências de deixá-los fora do poder dos juristas e, deste modo, para legitimar
dirito humanitario diante da guerra ou degradarem-se definitiva- em relaçao a eles, o exercício de poder das agéncias ndo-judiciais.

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Assim, póe-se como prioritária a tarefa de eliminar os ciernen- esta sO pode distinguir-se das deinais sançóes jurídicas por ex-
tos negativos e restaurar ou estabelecer o horizonte de projeçáo do clusäo.
direito penai, ou seja, ocupar ou recuperar para o exercício dc A falta dc racionalidade da pena deriva de nào ser um ins-
poder das agências judiciais do sistema penal os terrenos cedidos trumento idôneo para a soiução de conflitos. Logo, toda sanção
ou usurpados. jurídica ou irnposiçao de dor a título de decisao de autoridade, que
o horizonte de projeção do saber jurídico-penal é constituí- nao se encaixe nos modelos abstratos de soluçdo de conflitos dûs
do, obviamente, pela "lei penai", já que se trata de urn sistema outros ramos do direito, é urna pena.
regulador derivado da interpretação da lei penal. O caráter dife- Enquanto a privaçao de algurn bem ou direito a título jurídico
renciai da "lei penal" em reiaçâo às outras icis é a "pena". Como o servir para reparação, para compelir alguém à realizaçao denim ato
conceito de "pena" é recortado artificialmente por diferentes teo- devido, para a nulidade de atos realizados ou para interromper um
rias que tentam legitimá-la, torna-se neéessário reconstruí-lo desde processo lesivo em andamento ou impedir sua iminência, nós nos
sua deslegitimaçáo, para poder estabelecer osejementos negativos encontraremos corn sançóes correspondentes a modelos raeionais
iegitimantes da concessào gracioisa de sua matria ao poder de de exercíçio do poder, embora, por multas e variadas ratóes (scie-
agências nao-judiciais. tividade no acesso à justiça, defeitos no mecanismo operacional,
o conceito de pena nào pode ser proporcionado por nenhum etc.), scu funcionamento possa nao ser satisfatório. De qualquer
discurso legitimante e tampouco pode ficar em maos do legislador. maneira, sempre seräo modelos, em nível abstrato, de soiuçào de
Näo pode haver urn saber que aspire à dignidade académica e cujo conflitos, apesar de sua defeituosa operacionahdade concreta.
âmbito dependa de um puro ato de poder político. No entanto, o modelo penal, tal como enfatizado pelo abo-
Ao poder político compete até certo ponto decidir quais con- licionismo e outras críticas, deixa de ser um modelo de sòiuçäo de
dutas devem ou náo ser submetidas à pena,, pois isso integra sen conffltos, por supressão de urna das partes do confito sempre que
exercício no mareo do fato de poder do sistema penal. A agência a vítima desapareça em razäo da apropriaçào do confito pelo
política, no entanto, náo pode superar todo limite de irraciona- soberano ou pelo Estado. Este fato explica a incrível multiplicaçâo
lidade e inventar a "pena" e a "nao-pena". de teorias da pena (e conseqüentes teorias do direito penal), a
Em sua seleção ou contribuiçAo ao campo seletivo das agôn- errante peregrinaçao filosófica do saber penai e, quase até, sua
cias executivas, a agéncia política possui também um máximo de avidez ideológica14.
irracionalidade adrnissível, que a obriga a respeitar dados mínimos Nos últimos cento e trinta anos, a operacionalidade dos sis-
de realidade. Assim, como nào pode converter em conduta humana temas penais náo variou multo na realidade; no entanto, a diver-
qualquer fato, nem desconhecer o caráter de conduta ao fato hu- sidade discursiva com a qual se tenta legitirná-la durante esse
mano que a configure, tampouco pode negar o dado real do con-
teúdo da pena. O legislador pode fazer muitas coisas; mas, entre
outras, nao tern poder para dizer que o doloroso nao dOl.
14.Há mais de um século, Tobias arreto, no Nordeste brasileiro, já visThmbnva corn
Esta estrutura lógico-real nao pode ser desconhecida pelo
legislador em razäo da existêneia de urna realidade física que o
absoluta clareza: l0 conceito de pena - -
escrevia nao é um conceito jurídico, mas
político. Este ponto é capital. O defeito das teorias usuais na matéria consistejustamente
impeça. no erro ao considerar a pena corno urna conseqütncia do direito, logicamente
Se o sistema penal é um mero fato de poder, a pena nao pode fundamentada.' E vai ainda mais longe em scu raciocinio, vinculando sua deslegitimaçao
corn a da guerra tal como postulamos aqui (cf. Tobias Barreto, Ofimdamento do direi/o
pretender nenhurna racionalidade, ou seja, nao pode ser explicada a de punir, fra Menores e ¡oucos "Obras Completas", ediçáo do Estado de Sergipe, 1926, t.
náo ser corno manifestaçáo do poder. Nao sendo a pena racional, V, pág. 149).

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mesmo tempo é assombrosa, representando, de forma indireta, um a)Sançöes contravencionais;
jr dício claro de sua irredutível carência de racionalidade. b)Sançöes militares;
o proprio nome "pena" indica um sofrimento. Sofrimento, c)Sançoes graves de direito administrativo;
e::iste, entretanto, em quase todas as sançöes jurídicas: sofremos d)Inabilitaçães e interdiçöes dispostas por agências adminis
q ando nos embargam a casa, nos cobram um juro definitivo, nos trativas ou corporaçöes;
anulam um processo, nos colocam em quarentena, nos conduzem e)Privaçôes de liberdade por estados de emergência política;
c)ercitiyamence como testemunhas, etc. Nenhum desses sofrimen- OMedidas para mcnorc$;
t( s é denominado "pena", pois possuem um sentido, ou seja, de g)Medidas para adultos;
acordo corn modelos abstratos, servem para resolver algum con- h)Reclusöes psiquiátricas;
fi to. A pena, ao contrário, como sofrimento Órfao de raciona- OReclusöes em asilos para anciäos;
li lade, há vários séculos procura um sentido e nao o encontra, DClausuras em estabelecimentos, proibiçöes de espetáculos,
shnplesmente porque nao tem sentido a nao ser como manifestaçao censura, negaçäo de documentaçáo, de licença, etc.;
U poder. OPrisäo preventiva prolongada;
Portanto,pena é qualquersofrimento ouprivaçäo de aigu ni beni m)Privaçöes de liberdade a pretexto de segurança, identi-
ou direito que Mo resulte racionalmence adequado a alguin dos ficaçáo, etc., nao objetivando interromper nem impedir o curso de
iodelosde soiuçdo de confuto: dos denials ramos do direito. urna açäo lcsiva.

2. Estabelecimento do horizonte de projeçäo do discurso juri- Nestes casos e em outros mais, existe, é forçoso reconhecer,
d4co-penal. Concebida a pena de acordo com os dados ônticos mesmo que dc forma bastante discutivel, urna pena, seja lcgal ou
ft :monstrados, estaria fora do arbitrio da agência legislativa sub- ilegal, maspena, que dizer, urna niatenialidade punitiva que a agén-
ir air matéria penal recorrente a urna mera alteraçao do nomen funs. cia judicial deveria recuperar para seu prOprio exercício de poder.
A maneira pela qual a agência legislativa denomina uma pena Para tanto, é irnposta-à agência judicial urna prograrnaçäo para que
é irrelevante, pois o importante seräo sempre os dados de reali- exerça o seu poder, que consiste em decidir em cada caso, bastan-
U ide: infliçäo de dor e inadequaçâo aos modelos de soluçáo de do-se na análise das seguintes circunstâncias particulares:
cunflitos dos demais ramos jurídicos.
Se, baseados neste conceito de pena, descrcvermos o ho- a)impor a pena ao decidir o conflito, quando houvcr confuto
ciionte de projeçào do direito penal, observaremos a entrada, em e se reúnam todos os requisitos que requeira a intangibilidade dos
sc u ámbito, de áreas e dominios antes insuspeitados, aos quais o limites máximos de irracionalidade tolcrável ou admitida (garan-
U scurso tradicional de direito penal nos acostumou a ver como tias ou principios penais);
tranhos a ele, por culpa dos tais elementos negativos raciona- b)riäo impor a pena quando nao houver conflito ou faltern os
licantes a que nos referimos anteriormente. ditos requisitos
Embora a título de exernplos e provisoriamente, se conceber- c)nao impor a pena e dèclarar a inconstitucionalidade da lei
roos que são efetivamente penas, isso abre, pelo menos, o debate e que a preveja ou aitorize quando: a) autorize sua aplicação quando
c tabelece as limitaçoes necessárias, com vistas às seguintes conse- nao haja conflito ou quando se excedam os limites máximos de
qiìências jurídicas: irracionalidade admitida; ou b) atribua a irnposiçao ao exercício de
poder de uma agência nao-judicial.

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Resumindo o que foi dito, podemos dizer que são leispenais, por suà seletividade, sem falar em outras características bern mais
portanto, as que prevéem penas como forma de decisao de conf! (tos marcantes) e, nos poucos casos submetidos à apreeiaçäo da agêúcia
e as que de qualquer modo, autorizem a imposiçöo de penas (sejam
judicial, a única coisa que cIa pode fazer é controlar a violência,
ou sido constitucion ais), entendendo-se por «penas" as conse-
mas jamais suprimi-la, dado que a mesma já chega, em boa parte,
qüências jurídicas que impliquem priva çäo de direitos ou scifrimento consumada.
e que nao pertençam, como modelos de soluçao, a outros ramos de
dire ito.
4. Urna nova e(izaçäo para o direito penaL a) E possível urna
3 "politizaçao " do direito penal? Esta pergunta, carregada de angUs-
Conceito de direito penal assiin delimitado. Conforme o tia, costuma ser formulada pelos operadores das agêneiasjudiciais.
sentido reconstrutor corn que assumimos a tarefa de ensaiar urna A resposta afirrnativa encontra frontal resistôncia, e isto é
nova versäo do direito penal, partindo da deslegitm.açáo do sis-
compreensível, podendo ser explicado pelo treinamento judicial,
tema penal, é possível definir provisoriamente b direito penal(o que ensina aos agentes que o seu procedimento (da agência judi-
saber jurídico-penal) como à reconstruçäo discursiva que interpreta thai) deve ser "apolítico", ou seja, os operadores da agénciajudicial
.;
as leis de conteúdo punitivo (leis penais) para dotar a jurisdiçao dos sao adestrados para o näo-exercício do poder ou para exercê-lo o
limites exatos para o exercício de seu poder deçisório e de modelos menos possível, e assirn mesmo em subordinaçáo, a serviço do
ou opiniñes nao contraditórios para os conflitos que o poder das poder de outras agências.
demais agências seleciona a Jim de submeté-los à sua decisdo, de No entanto, a deslegitimaçao do sistema penal acaba de de-
aproceder deforma socialmente menos violenta. monstrar que a agência judicial é política, que sempre o foram todas
Nesta conceituaçäo referimo-nos ao poder dcci6rio da agên- as agências judiciais, e que renunciar exercer seu poder ou cedê-lo
cia judicial e náo ao poder para resolver os conflitos, porque par- gratuitamente a outras agências é também urn ato político. Porque
tindo da incapacidade do modelo penal, para "resolvê-los' nao é nao M exercício de poder estatal que nao se/apolítico: ou é político
possivel atribuir-lhe esta fun çäo, mas sim a de' "decidi-los'; estahe- ou sido é poder.
lecendo se existe o conflito, se deve imputar a pena e que pena deve Está claro que "político" aqui cáo significa "partidário", no
ser impulada- sentido da subrnissäo da agência judicial às agências legislativas ou
A agência judicial, corn a configuraçáo atual do poder social, executivas, e sim no sentido primitivo da palavra, de "governo da
nào pode pretender resolver os conflitos, e sim limitar-se e esfor- cidade", de natureza inquestionável de um poder que se deve exer-
çar-se por reduzir ao mínimo a intervençáo sempre violenta da açäo cer sobre os cidadaos.
do poder em conjuntura política. A deslegitimaçao do exercício de poder do sistema penal
Quanto à busca de soluçdo socialmente menos violenta, deve- coloca o jurista diante desta evidéncia, liberta-o de todos os pretex-
se ter presente que é esta a fonte de legitimaçäo do exercício de tos utilizados até então para dissimular-Ihe a verdadeira natureza,
poder decisório da agência judicial. denunciando de maneira incontestável que a sua programaçâo,
Esta seria, pois,' a nota que conferiria racionalidade enquantoprojeçûo de um exercício de poder estatal, épolítica.
(legitirnidade) ao seu poder 'de decisäo. Observa-se que o confito O discurso jurídico-penal sempre foi político, e afirma-lo
já chega à agência judicial corn urn grau considerável de violência abertamente náo implica "politizá-lo", mas fazê-Io consciente de
praticada ou a ele incorporada, graças à atuaçâo de agências nao- sua natureza; assirn corno ninguém pode pretender "embranque-
judicials que intervieram previamente de forma seletiva. Por con- cer" rosas brancas para depois afirrnar que são brancas, nao se
seguinte, toda intervenção do sistema penal é violenta (pelo menos pode igualmente pretender "politizar" o direito penal somente

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tfirmando que ele é político'5. A diferença se estriba em que implicaçao, pela sua atitude de indiferença diante da prática geno-
e:onhecera brancura das rosas brancas nao gera nenhum compro- cida do poder teeno-colonialista.
ini550, masreconhecer que o direito penai é político compromete o retorno ou refúgio na "glosa", frente à prática violenta e
iamente, e isto porque impóe a imediata definiçao de objetivos, deslegitimidada do poder em nossa regiáo marginal, mereceria hoje
1i
Q:

como a conseqüente seleçao dos meios para alcançá-los, obri- mais do que nunca o qualificativo de l'arte schifosa che nei tempi
ïa a delinear o sentido do exercício de poder que aspira a pro- passati chiarnosi gius cri minal?6.
rnar corn seu sistema de regulaçâo decisoria, e arriscar-se a b)A "antiga"etizaçäo do direitopenal. A preocupaçâo corn a
o ssíveis conflitos corn as outras agôncias do sistema penal, quando "etização" do direito penal foi um esforço de pos-guerra, com o
la:) gera antagonismos e contradiçáo com o outro exereício de quai se pretendia racionalizar e, portañto, impor lirnites à scIe-
oder, bern como para a prática do próprio poder. tividade típica rda agéncia legislativa. Para tanto, foi dada ênfase ao
Se o jurista aceita que o direito penal é político já nao pode que se denorninou de funçáo pedagógica do direito penal, que tena
EU Is atuar corno exegeta ou cDnstrutor de deduçöes racionahzan- corno resultado a conservaçäo de valores ético-sociais fundarnen-
mas sim corno programador de urn exercício de poder, um tais.
Lomem de luta. Está, hoje, izas maos do jurista decidir se cria um Ao direito penal assirn concebido estaria reservada a funçäo
W curso a serviço do poder de agên cias nao-judiciais, racionalizan- "positiva", de preservaçâo desses valores. "Tarefa do direito penal
(00 como discurso útil a um suposto "sLytenta 'Ç ou se produz ¿tin - afirmava-se é a proteçâo dos valores ético-sociais fundarnen-
-
t'L3 curso que desenvolva urna prática de poder autOnoma para as tais (valores tais como dispon de si, dirigir a prOpria açáo) e so-
tgYnciasjudiciais, a serviço dapessoa humana, vàlendo-se de urna mente como parte dessa tarefa a proteção dos hens jurídicos ern
oztradiçüo que reduza a violência. partieular". A proleçäo dos hens jurídicos se operaria mediante
Urna dogmática que fuja dessa alternativa significaria a opçâo a proteçào destes mesmos valores ético-sociais elementares e, por-
io: urn discurso jurídicó-penal que näo sabepara que serve nem a tanto, maior deveria ser a pena quanto mais fundamental fosse o
c¿t ,n serve. valor social desrespeitado.
A preferéncia pela soluçâo "sistêrnica" equivaleria, do nosso A deslegitimaçäo do sistema penal deixou sem sustento esta
lo to de vista de regiáo marginal, a decidir-se a favor do tecno- teoria, que nao leva em conta a seletividade do sistema penal, sua
(c) onialismo; enquanto que a "ornissâo", ou preferência pela inde- arbitrariedade, sua violência, sua corrupçäo, entre outras caracte-
fir ïçäo, consciente ou inconscientemente, tena a rnesrna rísticas.
o efeito desta tendênciafoi urna "etização" do .direito penal
que desde logo perdeu o primitivo equilibrio dos seus arquitetos-
15, costume de alguns autores responder tal interrogaçäo cïtando Carrara, mas certamente fundadores, e passou a dar relevo aos requisitos subjetivos com
-
em ter compreendido o ecu pensamento e às veres até sen 16-lo - pois a verdade é esquecimento dos dados objetivos na configuraçäo do conceito de
ue Carrara negou-se a tratar do delito politico, pela ausência de critérios objetivos sobre "delito". Por este caminho só eneontrou mesmo o precipício, em
os quais elaborou sua teoria, observando que o conceito sempre esteve sujeito ao arbitrio
apolítica, tal como se expressou no parágrafo 3.924 de seuPro'a,n,na; mas data afirmar que caiu ao admitir que o resultado, como pressuposto da pena, tern
ut Carrara negava caráterpolítico ao direito penal, ha urna distância sideral, pois quem funçáo legítima para fundar a exigência de pena, mas nao no que
az ta afinnaçâo esquece a própria definiçáo de delito dada por Carrara (parágrafo 21)
r
om a cxig6ncia expressa da "nocividade politica" (parágrafo 33), que era o que Ihe
ubtraía a arbitrariedade legislativa, subrnetendo-o à cxigdncia de corresponder a urna 16. Francesco Carrara, Opuscoli di Diritto Criminale dei Professore Comm. ..., Quarta
necessidade politica", que ele conccbc como urna necessidade "da natureza humana" edizione, vol.1, Prato, 1855, pág. 180.
Carrara, Proamma, 1924,1, pág. 71). 17. Hans Wetze!, Das deutsche Strafrecht, 1969, pág. 44.

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diz respeito à sua magnitude corn vistas a adequaçáo da pena à
culpabilidade, do que resultada que os fins da pena são deter- cm nossa região rnarginal, só que em versão mais aperfeiçoada: o
minantes levando-se em conta a personalidade18. vclho organicismo (positivista) acreditava que selecionava as "eólu-
Resumindo, um movimento em euja raiz èonvergiam inúrneras las infecciosas" e as elirninava (em lugar de "penas", impunha
tendéncias, que nAo era estranho à idéia dà limitar o legislador, "medidas eliminatorias": morte, afastamento) ou neutralizava-as
reuniu requisitos objetivos para estabelecer o que seria um "de- com medidas de "reeducaçäo", enquanto que o "novo organicismo"
lito", bem como outros requisitos de natureza subjetiva; porém, ao nao se preocupa por selecionar todas as "células infecciosas" -
insistir nos primeiros, desviou-se o bastante para transfigurar os nem o pretende -, mas somente as que lhe convenham ("infec-
requisitos objetivos, terminando em uma nova teoria sintomática da ciosas" ou nao) para convencer o organismo de que tudo está em
açdo: a açäo como sintoma de urna "vontade", de um ânimo, de ordem: o "velho organicisrno" pretendia operar sobre o "organismo
desconhecimento dos valores fundamen tais. social" fisicamente; já o "novo" deseja fazê-lo pela insinuaçào (ou
É evidente que nao concordamo&com esta etiaçâo do direito astúcia).
penal19, e insistirnos, isto sim, em quc a deslegitimaçâo do sistema A antiga etizaçáo do direito penal do pos-guerra significou a
penal faz desmoronar sernelhante eonstrução. culminância ideológica do programa iniciado com a expropriaçáo
Acreditamos ser esta "etizaçâo" extremarnente perigosa, já do bem jurídico afetado e a conseqüente exclusào da vítima do
que, posta a serviço do funcionalismo, é urna "etizaçäo" esvaziada modelo penal. A única desculpa para semelhante expropriaçáo era
de todo conteúdo ético em sentido restrito, limitando-se a sele- que o sistema penai se erigia em guardiäo de valores "éticos"
cionar pessoas antifuncionais, atendendo a condutas sintomáticas superiores dos bens jurídicos. As vítimas eram obrigadas a
de ant ifitncionalidade20, ou quem sabe, francamehte, limitando-se a sacrificar seus direitos ern favor de um suposto "magistório ético"
selecionarpessoas para mostrar como são aplicadas aspen as sempre exercido pelo poder para garantir o direito de todos. A racio-
que a exibiçûo da md quina penal seja útilà conservaçäo da confiança nalizaçao baseava-se no principio de que rnais desejável seria que
no poder ou do medo do poder. todos internalizassern esses valores, isto sim, muito mais impor-
Parece-nos bem claro que a -postulaçâo de "valores ético- tante que o simples direito individual da vftima.
sociais elementares" é um conceito organicista (ou sistêmico, SC SC É Obvio (jtJC nada disto se mantém dc p6 corn a dcslcgitimaçáo
preferir), mas à medida que a exposiçào acentua seu funcionalismo, do sistema penal e quempretendafundamentar um discurso jur(dico-
corno nao poderia ser de outro mOdo, evidencia-se cada vez rnais penal sobre esta terá que reconhecer que seus "valores éticos fun-
seu organicismo e, afinal, acaba sernelhante ao perigosismo do damentais" são sustentados mediante o seqüestro dos mais frágeis
século passado, e do qual ainda hoje sobrevivern alguns destroços para treind-los reiteradamente na violaçöo das normas que cor-
respondam a tais valores, tudo levado a cabo por agências que no
exercício de seu poder os desrespeitam continuamente.
1&Também Diethart Zielinski, Handlung- und'Erfo!grunwen im Unrechtsbe8nff c) For urna nova etização do direito penal. Se nos dermos ao
Untersuchungen zur Stnilclur von Unrechtsberiindwig und Unrechtsauschluss, 1973, pág. trabalho de imaginar urna situaçâo de extrema moralidade, certa-
213,
mente que seria qualquer coisa próxima da preparaçào de um
19.Cabe esclarecerque nunca compartilhamos dessa opiniâo, indusive coi nossas anteriores
exposiçöes sobre direito penal, em que consideramos o bem jurídico como conceito grupo para enfrentar um outro grupo e fazer.com que um terceiro
central e inarredável da teoria jurídica do direito, a ponto de realizar um considerávcl sofra as conscqüências, porém corn a particularidade de que os trés
esforço construtivo buscando um lugar sistemático para a sua singularidade. agrupamentos pertençam à maioria da populaçäo que deseja
20.Significa um regresso ao perigo organicista, o que é evidente, considerando-se que o
funcionalismo sistmico constitui uni neoogamicismo.
reprimir, o que se consegue em boa parte fazendo com que as

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contradiçöes assim geradas sirvam para que essa mesma maioria modelo de soluçao do confuto, o que, caso o fosse, seria excludente.
reclame da violência que a refreja. Por essa razào é "descontInuo", "parcializado", "excepcional",
Nenhum discurso que legitime esta aberraçao operativa - "nao-constitutivo", etc. Consiste em um conjunto de hipóteses corn
ite guarda grande semeihança corn a mafia21 - pode conter um que o Estado expropria sem indenizaçäo o direito da vítirna e a
mínimo componente ético; este procedimento degrada nao só o afasta do conflito, para exercer um poder que, por sua vez, serve
discurso jurídico como o exercício de poder das agências judiciais para justificar urn exercício de poder ainda maior, o qual reforça e
1 nhveis extremos. mantém a verticalidade social corporativa.
A necessidade de se ensaiar urn uovo discurso, que implique Um imperativo ético impöe que a agência judicial responda
una programaçäo nova e diferente da prática de poder das (seja responflável) pela realidade operativa do restante das gências
igências judiciais, surge corno imperativo ético e, naturalmente, há do sistema penal.
le produzir um discurso calcadamente ético: o "niilagre de estareni o discurso planificador de seu exercício de poder, como
ivos" reclama urna resposta dosfuristas. Esta resposta no sentido - resposta a este imperativo ético, terá a sua marca. O conteúdo ético
-
:.

timo1ógico era urna responsabilidade dos mesmos juristas: do discurso jurídico-penal (que the devolveria a racionalidade per-
responsável" é quern deve "responder". seria fornecido por seu geral objetivo de limitar, controlar e
Deste modo, seria operada urna re-etizaçao do discurso dida)
reduzir o nivel de violéncia do sistema penal, o que implica que o
ur(dico-pena4 nias näc no sentido de exigEncias áticas direcion adas direito penal, concebido corno o dircito humanitário em conjuntura
Ipessoas envolvidas nos conflitos que a agên c/a judicial deve decidir política, tena uma funçäo politico-criminal (de redutora de
sim como prescriçóes áticas dirigidas à própria agência judicial, a violência) como urn passo no caminho rumo à utopia.
eus operadores e programadores doutrinários. O sentido político e o cunho marcadamente ético do discurso
A re-legitirnaçao e a conseqüente re-etizaçào do direitb penal jurídico-penal desembocariam em urna programaçäo orientadora e
ao indispensáveis para salvar o direito em geral e nao somente o decisoria a ser nutrida constantemente por dados fornecidos pela
lireito penal. Nao é possível existir urna parte sequer do direito criminologia22, sem cuja informaçäo estaria órfAo de sustentaçào
;orno mero exercício de poder sem orientaçäo ética, pois ¡sso fática para selecionar a decisào que rnelhor corresponda à sua
mplicaria a consagraçäo da violência e a deslegitimaçao de todo o pretensäo de reduzir a violência do exercício de poder do sistema
lireito. penal.
Enquanto os demais ramos do direito importarern modelos A objeçäo que se poderia fazer a tal colocaçäo seria o que, a
ibstratos de soluçäo de conflitos, mais eficazes em conformidade nosso ver, constituirla a sua virtude: a de implicar a aceitaçao prEvia
;om o exercício de poder que amplia ou restrinja a sua alicaçäo de urna antropologia que a fundamente. E conseqüência inevitável
seletividade para acesso à justiça), o sistema penal continuará
endo puro exercício de p'oder seletivo sob a aparéncia de urn
nodelo jurídico que nern mesmo abstratamente resolve os con- 22.0 conceito de criminologia tomou-s probtcmático, havendo quem proponha que se
Jitos; portanto, deve operar de forma independente e superposta abandone a denominaçao (porexemplo, Bergalli, em op. cit. in "Crïminalia") e quem nao
faça questáo de terminologias (ver [nIa Aniyar de Castro, idem). Nós utilizamos a
corn outros modelos, porque é urna prática de poder e nào um cxpressao, corn cia abarcando qualquer dado de realidade fornecido por qualquer área
das ciencias sociais que nos seja necessário ou útil para levar a cabo a reduçao davioléncia
no sistema penal. Tampouco negamos a "clínica criminológica", mas alteramos o signo e
IA mecánica da atividade maflosa 6 a de urna "empresa" que gera perigos e arneaças, preferimos falar de "clinica da tlnerabilidade", como parte da enorme tarefa que o
cobrando proteçáo contra estes mesmos produtos que cia engendra (ver Raimundo sistema penat impóe a psicólogos e médïcos, diante do desgaste que provoca em todos os
Catanzaro, ¡1 delitto come impresa. Storia sociale della mafia, Bolonha, 1988). que corn ele Sc envolvern.

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da postura élica que o direito sempre requer: toda orientação ética
racional imposto por um discurso jurídico-penal re-etizado no sen-
pressupöe uma antropologia. Esse pressuposto deve ser analisado tido proposto, exerceria de forma intrinsecamente contraditória a
filosoficamente, certamente, pois qualquer discurso jurídico-penal
mesma prática de poder do sistema penal. A funçáo de redutora e
pode desmoronar se nao se assenta em sólida base filosófica.
limitadora da violência (e, utopicamente, de aniquiladora) só pode
Os autores do século passado conheceram esta necessidade,
ser cumprida comofunçao contraditória.
até o dia em que a sociedade industrial produziu os modelos A funçao contraditória da agência judicial está longe de ser
positivistas (biológico-racistas e tecno-jurídicos), que trataram de
ignorá-la. Koje, quando se impöe a necessidade de se retomar a
uma invençâo despropositada -
mesmo que muitos pretendam
mostrá-la como tal, condicionados que estäo ao modelo tradicional,
fundamentaçáo antropológica, já nao é preciso procurar por seu porque, na -,
que deixa de lado tudo que náo resulte funcional
pressuposto (e o conseqüente modelo ético), percorrendo às tontas realidade, segundo Montesquieu: a república nAo funciona sem
toda a filosofia, por já serem evidentes. H
urna contradiçAo de cunho ético, que é a virtude. "Em um Estado
A antropologia fundamentadora, graçañ à ideologia dos
Direitos Humanos e à sua evidência internacional, já nao é somente
popular -
dizia ele -
nAo bastam a vigência de leis nem o braço
do príncipe semqre levantados; é necessário um remédio a mais,
uma antropologia filosófica, mas também uma antropologia que é a virtude" E nAo poderia ser de outro modo, já que Mon-
.
jurídica, ajustada a normas positivas da mais alta hierarquia tesquieu, considerado o primeiro sociólogo do direito, propunha
jurídica. urna divisáo de poderes, os quais exerceriam a função de controle
E certo que se pode ignorar essa antropologia e construir
recíproco. Ora, é impensável um controle recíproco sem uma
discursos juridico-penais diferentes, baseados em finalidades
relaçäo contraditória, e esta caberia à agência judicial desempe-
meta-humanas aptas a justificar qualquer atuaçäo arbitrária do
nhar exercendo o seu poder eticamente.
poder. Mas o que importa nAo é evitar que se construam tais Porém, já agora em nosso campo jurídico-penal, Von Liszt
discursos, e sim que, ao construí-los, seus arquitetos exponharn a
concebeu o direito penal como a "Carta Magna do delinquente"24;
sua antropologia, o que provocará o seu imediato descrédito. Os
o "fim", que desenvolveu em seu "Programa de Marburgo"25.
discursos juridico-pen ais ,nais perigosos (por serein gen ocidas) nao
Esta intuiçäo centenária. demonstra que a nossa proposta
são os que expient e expressani urna antropologia aberratória, e sim nada tem de desarrazoada, e que efetiiamente atualiza a idéia de
os que a ocultarn sob disf arces humanistas; os primeiros são facil-
Liszt, uma vez desautorizado o discurso de justificaçäo do Leviatö,
mente neutralizáveis, já os segundos, amparados em sua nebulo-
que hoje dispöe de um poder imensamente superior ao que tinha
sidade e na constante mudança de nível de discurso, afastam
nos tempos de Liszt, via-se limitado por um discurso que cumpria
qualquer possibilidade de diálogo.
a funçâo de contradiçáo, contendo o Leviata.
a) A colocaçäo anterior carece de urna observaçäo pratica: é
5. 0 discurso jurídico-penal re-ético como discurso da
possível objetar-lhe que, mesmo que construamos urn novo discurso
contradiçao. Torna-se bem claro que a confecçAo de um modelo
decisório dentro dos contornos que viemos assinalar implica
projetar um exercício de poder em contradiçâo corn o sistema 23.OF.sptri:o dasLeLs, Livrofli, p. fl
24 Franzvon Liszt, SzrafrechttkheAufc zeundveflráge 19O. Ur inte'esnte cornentário
penal. pode ser lido ein Claus Roxin, Kthninalpohtik und Srafrechrssys:eni, Berlim, 1973, pág. 1;
O sistema penal necessita da agência judicial, pois sern cIa se também flans Weizel, Nazu,ralismus und Werhilosophie, em "Abhandlungen ...", cit.,
deslegitima totalmente. Esta necessidade confere certa rnargem de 1975, págs. 293 69.

Franz von Liszt, La idea de fin en el Derecho Pena4 trad. dc Enrique Aimone Gibson,
poder à agência judicial que, em conformidade corn o modelo 25.

rcvisáo técnica e prólogo de Manuel de Rivacobay Rivacoba, Valparaith, 1984.

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jurídico-penal, as agências judicials seguiriam comportando-se claro que nossa proposta, do ponto de vista do realismo marginal.
egundo a sua burocratizaçäo funcionalizada, pois nao haveria ar- nada tem a ver com ela.
umentos suficientes para deslocar pessoas de sua cómoda posiçäo A tese de Kantorowicz, embora nao descambe para o realismo
¡'ara entrar em choque corn outras agências, lendo em conta a histórico, era movida por um pressuposto insustentável, con-
relativa fragilidade -
e conseqüente vulnerabilidade - dessas siderando o pluralismo social e a manifestaçäo da "opiniáo
pública" (ou construçáo da realidade social).
gências. ;

Por outro lado, também surgiriam antagonismos entre os que respeito do uso alternativo do direito, cabe observar
comoAjá pudemos ver28
-
roferem um novo discurso e os operadores das agências judiciais, -
que se trata de uma proposta eonjun-
C W preferem a comodidade dos discursos legitimantes. turaI, que deslegitima toda a ordem jurídica, como uma etapa que
Esta objeçäo, aparentemente prálica, na realidade subestima ser superada revolucionariamente, e para tanto deve ser ele
C discurso jurídico. Introduzir um discurso deslegitimante implica instrumentalizado e utilizado ein favor da classe trabalbadora, para
C uebrar a unidade diseul-siva legitimante das agências de apressar o processo revolucionário, único caminho capaz de pos-
reproduçâo da ideologia do sistema penal, indispensáveis ao exer- sibilitar um exercício de poder legítimo.
dejo de poder das agêneias judiciais e estreitamente vinculadas a A proposta que ora examinamos nao é fruto de mera decisão
c la. Se considerarruos que a vinculaçâo do poder coin o saber da
ideológica, como decisao ein favor de um sistema de idéias em lugar
géncia judicial t muito mais complexa e estreita do que um maree tIc outro, mas de urna opçao ática: diante dc um simples ato de
-
tárieo permita supor porquanto, ignorada tal conexäo, o saber poder e da opçáo entre racionalizá-lo em moldes funeionais ou
enfrentá-lo racionalmente para reduzir-Ihe a violêneia e, em última
s, reduz a mera "superestrutura" -,
veremos que um discurso
análise, suprimi-lo, eseolbemos a segunda opçäo por um imperativo
j irklico-penal entendido como o direilo /zuina,riiário da conjuntara

politica poria em funcionamento urna dinámica de contradiçoes que ético.


i iteressam e comprometem seriamente o poder da agênela judicial. A partir desta opçâo, muitos sistemas de idóias podem ser
O esforço jurídico nesse sentido também eonfiguraria um constituidos e aperfeiçoados; porém, jamais scm exigir eusto social
cxereício de poder da parte dos juristas, que nao poderia ser ou individual. Nao se trata da escolha simples por urna das faeçöes
r eutralizado corn uma simples prática violenta de poder, posto que em luta, conforme a análise marxista tradicional, porque em nossa
própria tentativa de neutralizaçäo acentuaria essa dinámica no regiáo marginal o antagonismo náo se apresenta deste modo, pois
scio das próprias agências judiciais. que se trata de controlar urna violêneia trarisnaeionalizada, que se
b) Urna possivel segunda objeçáo seria, quase seguramente, exerce sob forma de eontençäo sobre as grandes maíorias da nossa
-

e que esta proposta, da ótica do «realismo marginal", afeta a regiáo marginal, cada vez mais afastadas do sistema de produçáo
"segurança jurídica", e por isso se pretenderá vinculá-la e até - industrial, que destrói nossos vínculos comunitários a fim de
malograr qualquer plano independente de modcrnizaçäo social.
riesxiio identifica-la ao "direito livre", ao '<uso alternativo do
c ireito", ou às sentenças do juiz Magnaud. A experiêneia de um discurso jurídico-penal, da perspectiva
Quanto ao argumento da "segurança jurídica", dele já nos de um realismo marginal, pretende algo mais ambicioso que urna
ccupamcis26. E, no que diz respeito ao "direito livre", se corn tal utilizaçáo oportunista de possibilidades a fim de desequilibrar um
e onceito se pretende entender a versão de Kantorowicz27, está bem suposto «sistema social" e produzir uma hipotética revoluçáo cujo

2;. Ver supra, págs. 192 e 198. Aires, 1949.


27. Herrmann Kantorowica, La lucha porci derecho, cm "La ciencia del derecho", Buenos 2& Ver supra, pág. 112.

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custo humano seria pavoroso e scus resultados, problemáticos, republicana, fazendo prevalecer seus principios sobre a lei
considerando-se a nossa posiçäo planetaria. napoleónica e os critérios jurisprudenciais exegéticos de urna
Almejamos um discurso jurídico-penal condizente com urna agência burocratizada e indulgente, agradavel ao imperador
(ática presidida por urna estra(ágia cujos objetivos sejam etica- gotoso.
r
o fenômeno se repetiria meio século depois, na Itália, quando
mente impostos, sendo o principal salvar vidas humanas. Reduzir
os níveis de violência significa salvar vidas, e isso, no atual contexto a doutrina e a jurisprudencia se deparararn corn a Constituiçao de
1947 e corn o código de Rocco. A reaçáo italiana foi rnais
genocida, é revolucionário, é parte de urna revoluçäo pela
vida,
indispensável à nossa subsistência. generalizada, devido à sua magistratura dernocratizada e ins-
Referindo-se a Magnaud, nele reconhecemos urn exemplo que trurnentalizada pela prOpria Constituiçào, demorando alguns
parte nos inspirou. lustros para se produzir; de qualquer maneira, o escândalo nào foi
em
L
Hoje se sabe que Magnaud nao foi urn precursor do direito de urna voz isolada, corno no caso Magnaud, operando-sej uma
livre e que suas sentenças -
ou a hmioria, $elo menos tinham - constituciönalização da dogmática que, algumas vezes, rendeu-se a
fundamento legal29. Embora seja verdade que Magnaud nunca urna "exaltaçao constitucional"31, tendo sido secunda'da por
tenha exposto o seu método, posto que nâo foi um teórico, entretan- inúmeros grupos doutrinários e por magistrados.
Em smntese, o que de certa forma reivindicamos neste .mornen-
to suas sentenças são um exemplo magnífico dejurisprudência que
defendemos, produzida ein seu tempo. to é um planejainento decisorio para a agência judicial, a fim de
que instaure a contradiçáo entre os principios constitucionais, os
O escândalo que as sentenças de Magnaud provocaram na
França e na Europa deveu-se a que, conforme a regra geral, é organismos internacionais de Direitos Humanos, os tratados a
preciso elevar até aUs principios constitucionais do sistema respeito e a realidade operativa dos sistemas penais, por outro
republicano de governo, para dali derivar a decisào para o conflito lado, e que, da mesma forma que Magnaud, decida-se abertamente
pelos primeiros.
em exame, buscando soluçöes reais, ou pelo menos neutralizando
e) A contradiçäo, como ponto de partida para a prática, pelos
o máximo possível a perturbaçáo que a intervençâo punitiva possa
juízes, de um discurso do tipo proposto, pode afigurar-se como
causar. Urna atenta Icilura das sentenças de Magnaud30 permite-
nos comprovar que hoje podemos chegar a soluçoes análogas pela
geradora de caos, particularmente àqueles que vêem como "natural"
o exercício do poder verticalizado do sistema penal, e que são a
aplicaçào da dogmática jurídica.
Ê evidente que Magnaud provocava pm conflito político a
maioria das pessoas, pois que essa idéia se encontra, há séculos,
partir de uma posiçâo ético-política prévia: Magnaud era um internalizada, tendo sobre ela cavalgado planetariarnente os
republicano profundamente convencido dc« que devia aplicar o "cavaleiros do Apocalipse" das revoluçöes mercantilista e in-
direito em conformidade corn urna legislaçäo completada por urna dustrial,e mesmo ä tecno-cïentífica dos nossos dias, que tern a seu
serviço uma tecnologia de manipulaçäo muito mais apurada, per-
Constituiçäo republicana e códigos bonapartistas, ao tempo em que
na agência judicial predominavam os que sentiarn saudade de
Napoleäo, "o Pequeno". Magnaud amparava-se na Constituiçäo
31. Ver Francesco C. Palazzo, Valori costituzionali e difino penale (un contributo comparativo
allo studio del tema) em 'L'influenza dci valori costituzionali sui sistemi
29. Luis Recasns Siches, Panorama del pensamiento jurídico del siglo flÇ México, 1963, 1,
dogmatici-fiuridici contemporanei", Miläo, 1985, pág. 570; Franco Bricola, Reppórti tra
pdg. 101. do,n,nasica e politica c,i'nhia/e, na "Rh'. It. di Diritto e Procedura Penale", 1988,
r so. uenw t.e, Les JU8OflCFUS du Ú1&nt Mazaud réunies et cotninentéspar...., Paris,
janeiro-março, pág.).
1904 (existe urna traduçâo casteihana de Dionisio Díez Enrique; Madri, 1909).

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nitindo a iusinuaçAo dessa idéia em etapas bastante prematuras da Mesmo que, de momento, pareça pouco provável que isto
¡ida humana. aeonteça em nossa regiào marginal, devido à estruturaçào e ao
Scm dúvida que a objeçäo se manterá enquanto se conservar treinamento das agências polieiais e penitenciárias, temos certeza
i ilusäo de que o sistema penal resolve conflitos; porém, se nos de que a eontradiçäo ihtroduzida nas agêneias judieiais geraria
imitássemos a ver os conflitos em sua realidad; acautelar-nos- discussoes que, definitivamente, eonduziriam ao diálogo; a
amos do contrário. democratizaçáo levará um dia as agêneias náo-judiciais nao só à
Easta lembrar que até hoje o sistema penal nao conseguiu sindicalizaçao como à tomada de consciência social; em algum
esolver o confuto gerado pelo aborto: o aumento da repressão momento a eontradiçäo se deslocará para outros planos aban
obre os médicos que o praticam náo faz mais que aumentar o preço donando os atuais, claro que com avanços, vaeilaçóes e retrocessos,
los seus serviços, excluindo cada vez mais as mulheres das faixas e isso significará urna abeleraçao da contradiçao do sistema penal
conomicamente mais carentes, que se vêem entregues a maos em uma etapa mais avançada rumo à reduçâo da violêneia, o que
lespreparadas e desumanas, o que tem feito aumentar o número de boje parece muito distante.
nortes devido ao emprego de práticas primitivas, fazendo com que O processo, sem dúvida, chegará às agêneias policiais, a nao
) aborto ocupe o primeiro lugar entre as causas de morte violenta. ser que a civilizaçáo técnico-científica logre limitar a número muito
; repressäo ao tráfico de tóxicos, por outro lado, só serviu para reduzido o contingente policial, que operaria a agência como um
nierferir no mercado e aumentar insolitamente o scu preço, fazcn- grupo reduuidissimo de tecnoeratas exerecndo urn poder policial
lo tal atividade atrativa economicamente, ao mesmo tempo em que robotizado, o que nao é nada simples, nao sé pelas difieuldades
:riou uma rede mafiosa de formidável poder transnacional, encar- técnicas, como também porque nao se pode prescindir de tao im-
egada da distribuiçáo e da comercializaçao desses tóxicos em porlante fonte de trabalho.
odos os países que Ihe convêm, sem que o sistema penal tenha Mesmo que nao ocorra este processo de "robotizaçäo poli-
ogrado êxito na soluçäo desse conflito. cial" - no que nao cremos -,
a própria procedência social do
Estes dois exemplos são suficientes para insistirmos em que, grupo de policiais acabará por forçar uma mudança na atividade
titando um confUto épor demais sErio, nao pode ficar nas maos do - 32
da agencia
.

istema penal, que defende soluçôes ilusOrias que na realidade so e) Poder-se-ia formular uma observaçao, indagando se real-
1'roduzem mortes, corrupçao e destruiçao da sociedade. mente tudo o que resta das atividades de poder do sistema penal
Por isso, quando defendemos um programa estratégico para fiearia deslegitimado; e se nao há sequer uma parte mínima do
'lue a partir dele sejam estabelecidos objetivos com vistas à exercício de poder das demais agências penais que seja legítima e
ealizaçáo da utopia do abolicionismo, náo nos referimos a uma racional.
utopia no sentido negativo, de "irrealizável", e sim, como temos
nsistido reiteradamente, no sentido positivo de si'nplesmense
rinda nao realizado.
32. É mais provável que as próprias agtncias, à medida que scu pessoal se conscientize,
d)Uma interessante observaçáo seria a de que as demais
reclamem corporativamente novas e diferentes funçôes, como parte da necessária
;Lgências do sistema penal, especialmente a agência policial, nao rcformulaçâo de seu papel comunitário. É inquestionável que a agência policial possui
])oderiam em certo momento começar a reduzir ou mesmo cessar a enorme potencialidade para inspirar modelos de soluçäo nao-punitiva para os conflitos
ontradição com a agência judicial programada a partir de uma (particularmente conciliatórios) e que a agência penitenciária ¿ a que pode reivindicar
coin ¿rito a aplicaçóo de penas nao-privativas de liberdade e a realiza çäo de urn esforço
'isão marginal da realidade, começando a operar de modo análogo (depois de superada a i&sao do 'tratarnento ") para reduzir ao minimo possivel na execuçdo
esta. penal os efeitos destruidores e multiplicadores da pena.

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Ja dissemos que as alucinaçoes são mais raras no plano social, Quando o Estado absolutista moderno pils levar ao extremo
sendo riele muito mais frequente ejustificáveis as ilusoes. Portanto, o esforço de verticalização, para legitimaro
sistema penal, des-
existe, indubitavelmente, um mínimo de poder exercido legitima- legitimou a guerra (Hobbes). Para evitar urna suposta bellum orn-
mente, como o que se pOe em prática para interromper o curso de niurn contra orines -que, como sabemos, nunca existiu -
um processo lesivo ou a privação de liberdade de alguém para pretendeu-se o monopólio absoluto da força: qualquer força que
salva-lo de uma agressäo vindicativa, tudo isto sem contar que as escapasse ao seu controle seria delito; "delito" e "guerra" passaram
agéncias penais eostumam encarregar-se de funçöes que nada téni a ser sinônimos passou-se a considerar o direito
corno um or-
a ver corn o exercício de poder do sistema penal e que, portanto, denamento monopolizador da força para impor a "paz" ("a sua
nao são atingidas pela deslegitimaçao (prevençäo física de ad- paz", é claro).
dentes, serviço de bombeiros, etc.). A esta deslegitimação da guerra se contrapôs uma re-
legitimaçao da mesma, passando-se a considerar o direito como
"direito subjetivo", e, por conseguinte, o "delito" passou a sig-
IV - As Garandas Pen ais Em Um Discurso nificar a sua rspectiva lesao (Feuerbach, os jusfilósofos espanháis
Jur(dico-penal Racional do Século de Ouro): a força era legítima quando significava
1. A deslegüimaçao da guerra e do sistema penaL Demons-
resistência à opressão. Trata-se da tese da "guerrajusta"; a guerra
traremos a íntima conexâo existente entre a guerra e o sistema se legitima na medida em que é "justa", e o sistema penal, na
penal, para depois compararmos a missâo do direito frente a ambos medida que evita a guerra "injusta". O direito passou à condiçáo
os fenômenos (o que determina as peculiaridades próprias do de tutor de direitos subjetivos.
direito humanitário e do direito penal) e, a partir desta perspectiva, Deste modo vemos que, primeiramente, para legitimar um
definir a função que as garantias ou limites penais devem cumprir, sistema penal onipotente, Sc deslegitimou a guerra no Estado ab-
hem como determinar o seu alcance. solutista, e depois, para deslegitimar a onipotência desse sistema
A comparaçâo entre o dircito humanitario e o dircito pcnal penal, rc4egitimaram-se algumas guerras.
nao é arbitrária. A afirmaçao da continuidade éntre a guerra e a o positivismo jurídico introduzio urna nova variante, ao
política pode ser debitada a autores de pensamentos dfspares, mas pretender legitimar tanto as guerras quanto o sistema penal,
o vínculo material entre a guerra e o sistema penal, considerando.
mediante a sujeiçâo de ambos à regulaçäo: eram legítimos na
se a funçao disciplinadora e verticalizante do segundo, resulta fora
medida em que fossem "legais", que se ajustassem às leis. Dado que
nem todas as guerras e sistemas penais se mostravam "justos", os
de qualquer dúvida, pois ambos são os instrumentos mais violentos
respectivos poderes passaram por cima de seus incômodos "jus-
de que se utilizaram as civilizaçôes mercantil e industrial pata
naturalismos" e acabaram identificando "legalidade" com "legiti-
estender e exercer o seu poder no planeta, a ponto de o binomio
midade". Acima de qualquer consideraçáo a respeito34, o certo é
verticalizaçao social/produçao industrial ser táo inseparável quantb
que as agéncias de guerra 'e as do sistema penal também nao
industrialism 0/ann amen tism o ou teen ologia/armamentismo. Dai
aceitaram as limitaçöes que lhes pretenderam impor suas respec-
que a historia da legitimaçâo ou deslegitimaçäo de um dos seus
tivas agências políticas, e a guerra já nao pode serj objeto de
termos náo pode ser independente da do segundo33.
depwzir,
já nâo o encontron, o fundamento jurídico da guerra" (Ofundainento do direito
33. Recorde-se o raciocinio clam de Tobias
Barreta a este respeito, há mais de um século: cit., pág. 149).
"Quem estiver em busca do fundamento jurídico da pena deve também buscar, se é que 34.VersUpra, pág. 19.

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e.uIaçáo, até que tecnologia nuclear consagrou, de fato e de
a reduzir a violéncia do sistema penal, para atenuar a sua intervençâo
I orna irreversivel, a subtraçäo da guerra a qualquer lei. e, finalmente, como meta utópica (para extingui-la), é preciso in-
o sistema penal, por seu turno, passou a exercer seu poder fluir sobre as instituiçöes e sobre os homens.
cetivo budando, de modo cada vez mais acentuado, as agéncias Um discurso jurídico-penal racional -
a serviço da
]wíticas que se limitarain a resmungär sua impoténcia diante da deslegitimaçäo é a - forma mais prática e efetiva de se agir sobre
tuação, sob a forma de teorias jurídicas propagadas pelas os hornens e as instituiçöes, modificando normas e inaugurando
gncia de reproduçäo ideológica (pelas universidades, escolas e urna ¿tica voltada para a vida.
la(uidades de direito).
Neste quadro, ante a evidência do descontrole total da guerra, 2. Particularidades diferenciais dos campos penal e jus-
i r )nipeu o "pacifismo". "É que, quando
urna instituiçáo se torna humanitário. As açòes do poder em tempos de guerra e em conjun-
t:,( poderosa a ponto de desconhecer limites, a tendência tura política, em que pesem os seus estreitíssirnos vínculos,
é, a
i ducípio, ainda que só idealmente, eliminá-la. E foi o que se deu apresentam notórias diferenças, que permitern distingui-las facil-
Glu a propriedade e o comunismo, corn o Estado
e a anarquia, corn mente, mesmo que nos breves e confusos momentos de transiçao
a g terra e o pacifismo"35, e corn o sistema
penal e o movimento pela eTas possam se sobrepor.
sai aboliçäo. o combatente na guerra, isto é, o candidato a ser morto ou
1-loje a guerra foi deslegitimada36 e, se hem que tardiamente, aprisionado por este ato de poder, é o "inimigo", assim considerado
o uesrno está sucedendo ao sistema penal, ern quern pertença ao lado contrário, vista ou nao uniforme; e como a
que pese o enorrnc
e;brço de propaganda corn que os meios de eornunicaçäo tentarn luta 6 massiva, a simples manifestaçäo subjetiva ou sua suspeita leva
ei ar este resultado. Já que a propaganda bélica nao se presta à à identificaçao do inimigo corno alinhado no lado contrário.
C Ji juntura política, a soluçáo
é a propaganda do sistema penal. o ato de poder em conjuntura política é também massivo, mas
.A deslegitimaçao d guerra levou os juristas
a rneditar profun- nao se trata de aniquilar, vencer ou vender o inirnigo, e sim de
danente sobre a possibilidade da sua extinçäo. Para tanto, con- conter urna consideró veZ ,naioria, impedindo-a de coligar-se ou or-
s, ft raram três alternativas lógicas: atuar sobre
os instrumentos de ganizar-se. Os inimigos aqui são todos os integrantes dessa maioria,
c jribate (defesa do desarnt amento), tátiea essa considerada
a mais se bem que nao no sentido de "inimigos de guerra", mas de "mimi-
p:ática e ao mesmo tempo a menos eficaz; agir sobre o homem, de gos políticos", ou seja, em outro tipo de exercício de poder.
a orienta-lo eticamente para a paz, o que se sabe O sistema penal seleciona uns poucos inimigos políticos e os
menos
p áLico, mas, por outro lado, extremamente eficaz; atuar através exibe como inimigos de guerra da maioria, é claro, também da
d is inst étui çOes, a fim de criar instâncias superiores de rninoria, que nao precisa ser reprimida por esse mecanismo, salvo
controle, o
q te, afinal, ofereceria a vantagem de ser relativamente nos casos de dissidência, considerada perigosa. Por isso mesmo, a
prático e
eÌ ic az37.
vinculaçäo "guerra-sistema penal" ¿ muito mais íntima e complexa
Quanto ao sistema penal, a primeira alternativa nao tern a que a fórmula "delinqüente-inimigo da Pátria", que é parte da
mtsma importância que tem nas outras atividades de poder. Ja as ideologia justificadora do sistema penal38.
d:j-a ais opçóes nao são incompatíveis e sim
complementares: para
38. A analogia remonta ao discuiso elitista e racista-organicista de Garofalo, O raciocinio
35 C Bobblo, op. cit., pág. 110.
.
deste autor - que, segundo 06 que aprovam a sua lógica tortuosa, tinha o mérito
36 V :rSVpTq, pág. 198.
37 C:. Bobbio, op. cit., págs. 95-110.
inquestionável da sinceridade e da clareza -
pode ser resumido da seguinte maneira:
"Por mejo de urna matança no campo de bataiha, a naçâose defende contra seos inimigos

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A seleçäo dos candidatos a sereni impiñgidos a tnarcaçûo (registra-se o desfiguramento, permitindo que o con-
como ininiigos
de guerra, escoihidos entre os iniinigos-politicos,
náo é Iella ao denado circule corn a sua marca mais ou menos visível, conforme a
acaso, pois se trata de selecionar os que acabarâo circunstáncia: liberaçáo, condenação condicional, condenaçao a
por encarnar
completamente o papel de "inimigos de guerra", mesmo execuçäo condicional, "probation'?, "parole", "liberdade con-
que nao
haja "guerra", e nao e qualquer "inimigo poiftico", dicional", saldas antecipadas, etc.), internaçáo essa que pode ser
que se presta a
isso ou oferece as condiçoes desejaveis. O
que se pretende, enfim, precedida pelo recoihimento efetivo, por tempo mais ou menos
é escoiher, corn base em uni certo perfil
estereotipado, alguém apto longo, em campo de concentraçäo de inimigos políticos, o que nao
a assurnir um papel, introjetá-lo e vivé-lo
ató o um. ocorre na maioria dos casos, senda mais frequente a marcação
Se um diretor teatral, mesmo exigindo imediata.
pouco clos seus atores,
ernprega demasiado esforço na seleçao dos mesmos A razäo está em que o encarceramento por motivos dc guerra
corn vistas aos
personagens a serem representados uacil deduzir e a prisào por motivos políticos perseguem objetivos diferentes?
o cuidado que
este aspecto merece por parte do sistema penal. Logo, seus respectivos prisioneiros recebem tratamentos distintos
Esta diligente tarefa seletiva é exebutada por e, na maioria das vezes, até opostos:
agéncias que
detectam bastante bem a presença de candidatos a) em tempos de guerra, o poder pode ordenar que os
com base num
estereOtipo, ou seja, entre os que por si mesmos prisioneiros sejam internados ou mantidos em cárcere, em ambos
já se travestem de
inimigos de "guerra", ou ainda aqueles em
que o disfarce parece os casos para neutralizá-los como inimigos;
cair como urna luva.
b) já em conjuntura política, o poder vigente, em lugar de
O número de candidatos escolhidos
fatores, em geral, conjunturais. Entre eles
depende de ¡números neutralizar o inimigo político - que se manterá -, impóe-lhe um
contam-se o interesse rótulo e um eondicionamento para que se comporte e seja con-
das agéncias selecionadoras (sua justificaçao siderado um inimigo de guerra.
burocrática, a neces-
sidade de legitimar sua arbitrariedade ou seus Por esse motivo, um campo deprisioneiros de guerra é um lugar
atos ilícitos), o
desejo de silenciar os protestos das agências de de contençäo, de repressao; e um campo de prisioneiros politicos
publicidade
(provocados por seu desejo de rating ou induzidos por
outras (prisdo) é local de adesiramento, de preparaçöo. Esta diferença se
agências), a necessidade de gerar serviços tanto ïmpóe de modo inevitável, porque a prisäo política nao objetiva a
na agência
selecionadora quanto na penitenciaria, o objetivo de manter verdadeira eliminaçao dos inimigos, pois que o meio mais eficaz é
ou
reforçar o nIvel de contradiçao, de discordâncja,
ante o perigo confundi-los apontando alguns dentre eles - prévia e convenien-
irninente, ou simples rumor, de coalizao entre
majoritários, etc.
setores sociais temente preparados - como seus verdadeiros inimigos.
O fato é que em situaçäo de guerra o inimigo é representado
Em geral, o número de prisioneiros que o por uma facçäo mais ou menos coesa que combate acirradamente,
sistema
careen é maior que o número dos que ele mata em atos penal en-
de "guer- no passo que, em se tratando de conflito político, existe uma
ra", ou exibidos como tais (em falsos confron(os maioria inimiga ainda nao organizada para a luta política (quer
ou em execuçöes
sem processo). Osprisioneiros de guerra são dizer, para derrotar a hegemonia minoritária e operar segundo
mantidos em campos
de prisioneiros ou internados em territorio inimigo. interesses autônomos e nAo centrais), em cujas fileiras é alimentada
A maior parte
dosprisioneirospojítjc05 são internados no prOprio a confusAo, de forma a nAo permitir sua organizaçâo e
território, após
conseqüentemente tomada de poder, Isto se consegue "fabricando"
externos; mediante urna execuço capital, dc seus inimigos
internos" (La falsos "inimigos de guerra" para que ajam como tais e, cam isso, se
de Pedro Dorado Montero, Madri, s.f., pág. 133).
Cr&nìnología, trad.
possa "fabricar" uma espécie de "guerra"; dito mais claramente:

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iStD serve para difundir urna espécie de "doutrina da segurança populaçáo do território ocupado incorram em atos semelhantes,
na;ional de conjuntura política", equivalente à sua análoga do como pode pretender uma interpretaçao simplista do fato, mas
(eiílpo da "guerra suja". estAo dirigidos frontalmente a uma maioria já de si reprimida pela
E natural, portanto, que intente o absurdo de prender todos situaçäo de confusäo e desorganizaçäo em que se encontra, para
(iS inirnigos políticos, e sornente os que possarn encarnar o papel de
que esta mesma maioria, de bom grado, aceite o controle que Ihe
'

it irnigos" na "guerra suja da política".


impede a organização.
Em sendo estas as características mais relevantes do exercício As execuçöessem processo são mortes exibidas,frontalistas,
(le poder em conjuntura política, deve ficar bem claro - urna vez nao dirigidas ao morto, mas ao espectador, nem mesmo para infun-
Iu is -
que o exercício de poder pelo sistema penal nao passa por dir-lhe medo para que nAo faça o mesmo que o morto, e sim para
(:s: a repressão, mas por um controle e vigilância que, sob o pretexto que aceite resignadamente a violência do executor e a exija, para
Le combater os inimigos que ele mesmo fabrica da forma já que sinta medo do morto, da "guerra" a que está "assistindo".
C erida, é exercido sobre todos os inimigos políticos (isto 6, sobre Os grupos d exterminio latino-americanos, que executam
sem processo com fins "moralistas", nada mais fazem que ocultar
]

n naioria marginalizada e uns poucos e eventuais dissidentes da


r ipria minoria) para impedir a sua organização, inclusive corn o com algumas execuçöes isoladas suas verdadeiras finalidades, que
são proteger e compartilhar os interesses de um setor da delia-
I

licaeplácito de boa parte dos membros dessa maioria, e até mesmo


L
pedido.
CU qüência a que däo cobertura ou que depende diretamente deles.
A morte do in.imigo de guerra e a morte do inimigopoiltico são
u stancialmente diversas: o inimigo de guerra morte em um ato de 3. A funçöo da agência judicial. A agência judicial costuma
'í(lência recíproca e organizada; o inimigo político ¿fuzilado sem apresentar já disfarçada e, quando possível, com seus papéis já
Jonnalidades (exceto no ritual simplíssimo de alguns grupos de completamente assumidos. O treinamento para isso se inicia desde
(x ermínio latino-americanos, mas só eventualmente) e, quando o momento em que o sistema penal toca a pessoa que será presa ou
i ä6 possivel exibi-lo como disfarce na pele de "inimigos na guerra marcada.
u a da política", o fuzilamento é ocultado cuidadosamente, pois do A agência penal deverá decidir se deve prosseguir com a prisdo
:: itrário poria a descoberto toda a verdade acerca do seu exercício ou confirmar a marcaçao antes deproceder à internaçäo nopróprio
ile poder, o que provocaria mobilizaçäo da parte inimiga (exa. território. E este o seri exercicio depoder;para isso existe um conjunto
I amente o que se pretende evitar). de Ceriniônias e ritos que, em gera!, visam a confirmar em cada um
Em certas situaçöes, quando a vítima se acha conveniente- dos participantes a certeza de nu papel.
inc nte disfarçada (ou épossível disfarçar seu cadáver) e, melhor Ademais, na medida em que a agência judicial se limita ao
i'da, quando está no desempenho de seu papel de "inimigo na desempenho desta funçAo, legitima o restante exercício de poder
rurra suja da política", o atoó divulgado, havendo casos em que do sistema, e é por isso que as demais agências do sistema penal
nä se pratica o fuzilamento sem a publicidade, para se provar a reclamam-Ihe o desempenho das tarefas de sua competência,
ix stência de pretensa "guerra" e a conseqüente necessidade do sempre que a agência ou seus operadores nao as assunlam plena-
:oitrole que o sistema penaideve exercer sobre todos os inimigos mente, o que produz urna ruptura deslegitimante.
políticos em potencial. a) A agência judicial deve decidir se o disfarce condiz com o
As execuçöes policiais são tao ilegais quanto as execuçöes de comportamento. A capa do inimigo na "guerra suja da política" é
sioneiros de guerra, mas nao tem a finalidade de exemplar, e sua ostentada como um uniforme, a partir do quai se cobra uma lista
de atitudes correspondentes, condizentes corn o desempenho do
I

:xcuçäo nAo objetiva evitar que outros prisionciros ou toda a


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pöder dt.
papel atribuido ao disfarce, urna vez que àsua simples exibiçaoja Casos ha em que as agências selecionadoras usam o
estereOtipos
se reclama um comportamento corn cIa harmoDizado. Espera-se de seleçäo repressiva para fixar caracteres negativos nos
do país
quem se veste como pedreiro, que se cornporte como tal, que dessas minorias: todos os imigrantes "sem documentos"
venda seja
construa muros, que seja pedreiro; de alguém que corresponda ao vizinho sao ladroes; todos que usam tóxicos, cuja
todos os homos-
estereótipo de ladrao, espera-se que seja ladráo, que se comporte proibida, roubam e matam para adquirir o tóxico;
residem
como tal e, pot conseguinte, que toube. A agência judicial tern sexuais e lésbicas são corruptores de menores; todos que
sao selvagens
como funçäo confirmar, por meio de um ritual estabelecido, que é em regióes de habitaçôes prcárias ou de emergência
asslin mesmo, porque quem "é" ladräo "deve roubar", e realmente regiöes são menores de quadri-
e primitivos; todos os jovens destas
"rouba". Ibas e violadores; etc.
de
b) O mecanismo acima descrito é o que opera na maioria dos o acaso pode fazer com que os campos de concentraçaò
.

casos, mas como o eìcerckio do poder nunca pode operar de modo prisioneiros políticos alberguem um pequeno número de presos
por
fatal è mecánico - posto que manipula coxdutas humanas, geral- azar, que nâo merecem o mesmo tratamento dispensado à maiorìa
mente imprevisiveis, em razAo da prOpria essncia e de ocorrncias dos selecionados. Em geral, são passados à
categoria de "inter-
fortuitas -, surgem casos em que a operatividade é diferente, nados no prOprio território", e nao se insiste na marcaçào.
Em sua
sendo alguns deles aproveitados - emfeedback -. para ocultar o major parte são criminosos de trânsito, sobre os quais as
agências
variar.
que é a regra geral, publicando-se apenas as exceçöes. nao tern interesse algum. Nao obstante, a situaflo pode
Nas oportunidades em que o sistema penal se ocupa dos heterogénea se
De qualquer modo, urna minoria atípica e
mau uso da
dissidentes politicos, age como se fossem prisioneiros de guerra, junta a este grupo (profissionais condenados pelo
inclusive desrespeitando as garantias do direito humanitário, e profissão, um grande número de homicidas e causadores
de lesôes
estes casos
subiraindo-os ao poder da agéncia judicial utilizando-se de diver- diversas,etc.). Exige-se da agênciajudicial que resolva
sos expedientes. Um deles é prendô-los invocando poderes ter selecionado por engano ou mes-
que as demais agências devem
extraordinarios surgidos em razáo do "estado de emergéncia", mo contra a vontade. .

negando à agência judicial todo poder controlador a respeito. Um Por fim, existe em alguns poucos países um grupo insig-
método mais rápido é o scqüestro puro e simples, conhccido "desa- nificante, o dos derrotados nao-dissidentes. Sao os que
perderam a
parecimento forçado de pessoas". batalha pela hegemonia do poder e que, ao serem vencidos,
Pica subentendido que, em tais situaçôes, qualquer intromis- sofreram o "afastamento por precauçäo", de quejá nos ocupamos.
de cor-
são da agéncia judicial é julgada desabonadora para si propria, Em geral são ex-governantes ou funcionários acusados
sabotadora da "guerra", etc., e qualquer discurso jurídico que rupção, suborno, homicídio, abuso do poder, etc.,
porque o grupo
penal para fortalecer-se; ou se
ensaie a defesa dos direitos elementares destas pessoas é con- vencedor também se vale do sistema
grupos financeiros que
siderado cumplicidade com fins políticos. trata de financistas derrotados por outros
aniquilar poder
agora utilizam o sistema penal para acabar de
o
Existe um grupo de dissidentes verticals, composto nao neces-
sariamenfe de dissidentes políticos (em muitos casos é mais que económico da facçâo derrotada; etc.
solicitado
evidente que nao o sâo), que costuma juntar-se a minorias étnicas, A respeito desses "derrotados nâo-dissidentes", é
religiosas, sexuais, culturais, etc. Geralmente, as agôncias nao- à agência judicial que lhes confirme os
cargos (oque em gera! nao
isso fica consolidado
judiciais exercern sobre seus membros um poder controlador nao é difícil, por serem públicos e notorios) e com
formalmente punitivo, enquanto que à agéncia judicial se pede que o poder do grupo vitorioso.
uäo intervenha, como forma de legitimar o controle das restantes.
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Quanto aos derrotados nâo-dissidentes e alguns presos por b) tanibém que tenha o máximo cuidadopara que esses limites
aar, é born que se diga que, ernbora nao tenham se comportado nao sejam anuladospor distorçûo cronológica ou intervençáo super-
c:( nforrne o estereOtipo, passaram por momentos em que estiveram ficial ou formal39.
vi. Ineráveis ao poder em conjuntura política - o sistema penal - Diante da evidente carência de poder da agência judicial para
cjie aproveita para legitimar seu poder, exibindo-os como prova de abolir o sistema penal e substituí-lo por mecanismos de soluçao de
scu pretenso funcionarnento igualitário, ou de pseudo-eslorço para conflitos (paralelamente à Cruz Vermelha, que nao tern poder para
eduzir a seletividade. acabar corn os conflitos bélicos), as agéncias judiciais, como ob-
E característica deste grupo minoritário e atípico de jetivo imediato, devem agir de conformidade a um discurso que
pi isioneiros nao ter-se comportado condizentemente ao modelo estabelece os limites máximos de irracionalidade tolerávelna seleçao
stereotipado e ao papel, e sim ern condiçöas de competitividade incritninadora do sistema penal.
que o colocararn em situaflo de vulnerabilidade diante do sistema No entanto; essa nao é a única tarefa para limitaçäo da ir-
r nal. racionalidade a ser programada pelo sistema penal e que, devido a
outra diferença qualitativa entre a ação do poder do sistema penal
4. Um novosentidopararasgarantiaspenais. Ja que a seleçäo e a guerra, nao tern paralelo no direito humanitário. A prisao em
JUS prisioneiros de guerra é determinada pela possibilidade de situaçäo de guerra, em princIpio, tern duraçao indeterminada e
Ltlilizaçâo da fora por parte do poder ao tempo de guerra, ao depende de circunstâncias gerais e alheias ao fato que a motivou
clireito humanitario so resta limitar seu discurso sobre os prisio- concretamente, isto é, pode cessar com o firn do ato bélico, por
r ¡ros quase que exclusivamente ao seu tratamento. decisao bilateral acordada, por decisäo unilateral, etc., ou seja, a
Corno a seleçâo dos presos políticos caracteriza-se pelo eleva- condiçäo de prisioneiro de guerra, de modo geral, permanece in-
:iissimo grau dc irracionalidade corn que o poder em conjuntura definida. A prisaò política, por outro lado, requer limite, porque
ç.(lítica a ela procede, o discurso jurídico-penal que deseje reduzir pode ser por períodos muito mais prolongados que os de guerra e
s sua violência deve valer-se desse dado, dessa irracionalidade resulta de um ato de poder que se pretende "normal" e "per-
;e letiva. manente", razáo pela qual 6 absolutamente indefinido; já a guerra,
Por isso, a fim de programar urna açâo que reduza a violência por mais que se prolongue, por ser urna situaçâo "extraordinaria",
J agência judicial, deve-se ter ern mente que esta dispóe de um espera-se que um dia termine; a açäo do poder em conjuntura
n der de decisao seletiva meramente secundário, que intervém quan- política 6 mostrada como algo que jamais pode acabar.
ju a seleçäo já está feita, que as demais agências procurata reduzir O discurso jurídico-penal deve preocupar-se, portanto, com a
s ;ua intervençâo e, quando nao podem evitá-la, adiam-na sempre
duraçào, gravidade e extensäo da prisão, rnarcaçäo ou internaçáo
pi e possível. em conjuntura política. A condiçao de prisioneiro político dever ser
A reduçäo do âmbito de controle e o adiarnento da sua limitada no tempo e ein seus efeitos, em obediência a critErios de
.ELervenção controladora sao estratégias utilizadas para se limitar máxima irracion alidade tolerável.
s içäo do poder seletivo secundario da agência judicial.
Em resumo, conclui-se que das particularidades próprias da
Quando se deseja prograrnar uma intervençäo para reduzir a açäo de poder em conjuntura política, o discurso jurídico-penal
zi)lência da agênci-a judicial, a racionalidade que implica. requer que planeje a intervençáo da agência judicial para reduzir os níveis
ji e a intervençáo se faca conforme a um discurso que estabeleça:
a) os limites máximos de arbitrariedade e erro seletivo para as
39.0segundo componente do discurso, ou seja, a ruga à distorçäo cronológica neutralizante
gências nao-judiciais e da intervençaojudicial, é matéria própria do discursojun'dico-penal processual.

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de violéncia deve incumbir-se do estabelecimento de limites que
É chegado o momento de se expurgar do discurso tal contra-
assinalem os padroes máximos de irracionalidade que o exerc(cio
diçao que, tornando-o hipócrita - em que pese a boa vontade e a
do poder do sistema penal nao pode ultrapassar, agindo segundo
critérios estranhos ao direito humanitário, o qual se baseia na boa fé dos que a sustentam -, tem cotho resultado gravissimo
natureza mesma do ato de poder que objetiva limitar.
.
obstar nao só o scu dinamismo como também o cumprimento da
Os padroes máximos de irracionalidade do sistema penal - dc tutela efetiva da dignidade da pessoa humana: o discurso
nao necessária ao discurso quepretende reduzir a violência de guerra jurídico-penal deve planejar as decisOes judicials, de forma a que
estas possarn estender tais principios até as máximas possibilidades
- se referenz: de realizaçäo pennitidas pelo poder decisOrio dessas agências, e que
j a) às restriçoes a sereni impostas ao exercicio do poderpara
«standards» de realízaçao assini obtidos e em permanente
selecionar os candidatos à prisUo e ao treinamento a fim de que
assumam o papel de inimigos de guerra; anipliaçao possain ser convertidos em limites Máximos de ir-
a duraçäo, intensidade e extensão da condiçao deprisioneiro
.

racionafidade tolerada (porfalta de poder que a reduza ainda mais)


político. , exercfrio dopoderseletivó (incriminador) e reativo (que deteriora
e condiciona) dos sistemas penais.
Quanto ao tratamento dado aos prisioieiros, os relatos däo -

notíci..t de que são bastante similares aos de prisioneiros de guerra, As garantias que a agência judicial deve oferecet (garantias
-

embor se reconheça, como dado diferencial, que o prisioneiro penais) significam o máximo de realizaçäo que pode alcançar em
político deve ser protegido pela agêneia judicial, que deverá per- scu exercício de poder, no que se refere aos tais principios
-

tubar o mais que possa o treinamento a que são submetidos os limitadores de irracionalidade e de violência.
Ê absurdo pretender que os sistemas penais respeitem o
prisioneiros nos campos de concentraçâo por razoespolfticas, me-
Ihor dizendo: que se dificulte ao máximo a assunção do papel de principio de legalidade, de reserva, de culpabilidade, de
estrangeiro ou inirnigo de guerra que se pretende impingir ao
hurnanidade e, sobretudo, de igualdade, quando sabemos que,
prisioneiro. estruturalniente, estão preparados para os violar a todos. O que se
pode pretender - e fazer - é que a agéncia judicial empregue todos
Em certa medida, esta será tarefa do discurso jurídico-penal,
esforços de forma a reduzir cadà vez mais, até onde o seu
i

mais especialmente do discurso processual penal e do discurso do


direito de execução penal. poderperniitiG o número e a intensidade dessas violaçoes, operando
internametate a nivel de contradiçdo coin opróprio sistema, afi'n de
'

obtee desse modo, urna constante elevaçöo dos níveis reaLs de


5. As garandas como limites máximos de irracionalidade. O
discurso jurídico-penal liberal e a própria ideologia dos Direitos realizaçdo operativa desses principios.
Cada caso que o poder das demais agências submete à agência
Humanos abrigam a contradiçáo, quando justifieam um ato de
e pretendem limitá-lo a partir de sua legitimaçâo (racio-
judicial deve ser decidido conforme a regra de "mínima
nalizaçao legitimante) justificante. violaçao/tnáxinta realização" dosprincípios garantidores da pend.
Esta regra nos devolve ao chamado "direito penal liberal",
Por esse motivo, sempre se referiram às garantiaspenais como quanto aos limites da decisáo repressiva, e restringe ainda mais o
principios aos quais supostamente o sistema respeita em sua
seu ambito, mas scm o escolbo de urna justificaçäo racionalizadora
operatividade (ou que deve respeitar, embora nao haja a preocu-
pação se são respeitados ou nao), mas que na realidade concreta,
(para legitimar) que nao mais contaminará a regulação das
decisoes corn a sua ditadura dedutiva.
u
em qualquer parte do planeta, e sobretudo em nossa região mar-
Da perspectiva de um discurso jurídico-penal pautado no
ginal, os viola a todos,
realismo marginal, entende-se por garantiaspenais o compromisso
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235

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d r
agências judicials penais para exercer seit poder de modo a
y agências judiciais, irá assinalando "padroes" que deverao avançar
dc, dir cada caso conforme a regra de "mínima violaçäolmáxinia cada vez mais em direçao à reduçäo da viblência. Por conseguinte,
re c4 izaçdo" dos principios que servem para limitar a irracionalidade as garantias devem operar de tal modo que ospadrOes avancem, o
(i fc lência) do exerc(cio de poder do sistema penal, configurando, que significa dizer que os principios penais litnitadores devem ser
d 's e modo, um "padrao" -provisorio, por serprogressivo e "aber- considerados como "abertos" ou "inacabados".
tc ou "inacabado"
Ç - de máxima irracionalidade (violéncia) A única forma de se manter esta progressividade da Iimitaçäo
tc le -ada (porque a agência judicial carece de poder para irnpor um repressiva e de fazer corn que os princIpios penais permaneçam
nl y. or). sempre "abertos" ou "inacabados" consiste em sustentar um certo
o discurso jurídico-penal que se expressa como se estes grau de contradiçäo entre oLdiscurso jurídico-penal da agência de
p:lii cípios «se realizassem" é encobridor, pois oculta a incapa- ideológica e opadrao obtido pelas agencias judiciais.
ci W de estrutural de sua plena e completa realizaçäo (a contradiçáo Esta èontradiçao dinarnizaclora exige que o discurso jurídico-
e. I Tutural que faz da sua piena reaiizaçâo sinônimo de penal acadêmico ou universitário esteja sempre m-ais além do
di s tparecimento do exercício de poder que o sistema penal im- padräo alcançado pelas agências, de forma a constituir, deste
pica). modo, um estímulo à jurisprudência.
realizaçáo desses "principios" só pode ser um
O máximo de A agência de reproduçâo ideológica deve exercer a crítica
pudto, que poder da agência judicial deve fazer por elevar
o permanente das agências judicials e políticas (legislativas), certa-
ci.Iorme a sua capacidade, que deve administrar. niente. Essa é a única maneira de fazer com que urna agência de
A urgência deste esforço impôe que se renuncie à ilusäo de reproduçäò ideológica se transmude em agência de dinamizaçäo
st a rcalizaçáo. O discurso das garantias realizadas nao é mais que ideológica do sistema penal.
ujû parte do discurso legitimante: da mesma forma que este dis- A saída realista do discurso dessa agéncia foi reehaçada por
cI.r o oculta o poder limitado da agéncia judicial sob a falsa todos os programas mais ou menos autoritários, totalitários ou
alaência de que o seu exercício controla todo o sistema penal, o repressores. Isto é um claro sinai de que seu discurso é perigoso
disurso das "garantias realizadas" dseja a obediência piena e para o exercício de poder coin tais características; se eles o con-
irestrita aos principios limitadores, ocultando a magnitude do sideram perigoso, é porque implica um relevante exercício de
dis ;onhecimento e da violaflo estrutural dos mesmos. poder, pois, do contrário, limitar-se-iam a ignorá-lo. Este é um
Há um principio de legalidade, por exemplo, como princIpio argumento mais que convicente para afastar qualquer pretensäo ao
als rato limitador, é verdade; mas existe urna garantia de legalidade "utopismo" ou no abatimento moral grave causado pelas atitudes
sca ente como decisäo para cada caso, de acordo com a "máxima próprias da traurige Linke ("esquerda triste").
re a. izaçáo/mínima violaçäo" desse princIpio, e o conjunto das Assim, por exemplo, nos últimos lustros alcançou-se um certo
dt'c söes terá como resultado opadruo de legalidade, obtido com o padrdo a respeito do principio de culpabilidade, bem como a
mîimo esforço da agéncia judicial. conseqüente negação de constitucionalidade às chamadas
'medidas pós-delituais" imputáveis a adultos, oque provocou o seu
6. 0 discurso jur(dico-penal e o "padräo" alcançado pela desaparecimento em várias legislaçoes (Uruguai, Brasil) e reduçao
aêz:cía judicial. E Obvio que o conceito que acabamos de oferecer, em outras (Argentina). O padruo seguinte será obtido quando a
s gurantiaspenais, näo é estático. realizaçâo do princIpio ehegar à reincidência, até alcançar
A progressiva "realizaçäo máxima/violaçäo mínima" dos conclusao análoga e resultado.
pi ir.cipios penais, conforme o exercício de poder decisório das

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7. Exposiçao eperspectivas dosprincipiospenaisfundamentais, V - Principios Para a Limitaçâò da Violência por
¡imitadores e inacabados. No capítulo seguinte, abordaremos as Caréncia de Elernentaríssimos Requisitos Formais
perspectivas de um direito penal concebido do ponto de vista de
um realismo marginal, tal quai o estabeiecemos quando cons- 1. Principio de reserva legal ou de exigência máxirna de
truímos a teoria do delito e suas conseqüências jurídicás. legalidade em sentido estrito. De conformidade corn este princIpio,
entanto, se bem que corn a brevidade própria do ensaio, exigir-se-á o máximo respeito à legalidade das penas e de todos os
de acordo corn o estilo dessa proposta, afigura-se-nos como neces- seus pressupostos.
sário assinalar previamente a que principios limitadores in Entendendo-se a pena - como já o fizcrnos -corno urn
acabados devemos estar atentos na construçäo das teorias de que conceito obtido por exclusáo e por incorporaçâo de dados ônticos,
nos ocuparemos mais adiante, bern como apontar algumas de suas concluimos que ele resgata grande parte do espaço punitivo reser-
perspectivas. vado ao exercício do poder dos juristas, como também declara nao
A enunciaçäo desses princIpios nao é taxativa, e nem pode só a inconstitucionalidade de numerosas gestöes de conflitos,
pretender sé-lo, posto que os direitos "implícitos", reconhecidos decididos a partir de modelos punitivos, como também, de modo
em quase todos os textos constitucionais e na doutrina jurídica geral, todas as cominaçöes penais que, sob pretexto de nao serern
correspondente, o surgimento de "novos" Direitos Humanos (que, punitivas, nao respondem ao requisito de legalidade.
na verdade são "vclhos", sendo novo apenas o seu recònhecimento
como Direito Humano) e a eclosao de novos conflitos por efeito da Principio de máxima taxatividade. À luz deste principio,
2.
revoluçäo técnico-científica demandam uma dinámica criadora de resultam claramente incostitucionais os tipos penais sem limites
principios ou dc reconhecimento jurídico, ou ainda reclamam certos, as escalas penais com máximos indeterminados e pressu-
cuidados quanto à realizaçäo dos já conhecidos, sendo, por tudo postos penais administrativizados, que nAo conheccm a tipicidade
isso, impossível umä catalogaçäo taxativa. Os principios ¡imitadores legal, hem como os que, pertencendo à Órbita judicial, ficam
nao são sornente inacabados em sua realizaçao, mas tambérn o são entregues à tipicidade de construçáo judicial.
quanto à sua enunciaçäo e catalogaçào. O principio, ora cni exanic, implica a proscriçAo de qualqucr
Consideramos conveniente adotar urna classificaçäo dos integraçäo analogica de lei penal, impondo sua interprctaçáo
princIpios úteis à limitaçao da violência do sistema penal em: rigorosa como regra geral.
principios para a limitaçäo da violéncia por caréncia de elementarEs-
sirnos requisitos formais, corn exclusao das hipóteses sobre a gros- 3. Principio da irretroatividade. É conseqüência do primeiro
seira disfuncionalidade dosDireitos Humanos, e corn isenção, ainda, principio, em funçao da possibilidade abstrata de se ter co-
de qualquerpretensào de responsabilidade pessoal por sua notOria nhecimento prévio da proibiçäo e da cominaçâo.
irracionalidade40.
Principio de máxima subordinaçäo à lei penal substantiva.
4.
Implica o desconhecimento de icis, relamentos, decretos,
disposiçöes, acôrdáos, etc., que, no dominio processual executivo
ou administrativo, introduza limitaçóes a direitos que ziào sejam a
conseqüência necessária e inevitável da realizaçâo do que dispoern
40.0 desdobramento se inspira no quadro esquemático de Baratta ("Capftulo
as leis penais.
Criminológico", Maracaibo, 13,1985), queé um dos mais completos, corn as modificaçôes
impostas pelo ponto de vista que aqui defendemos.

238 239

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Enquadran-se tiesta hipétese as penas introduzidas por via de
risão preventiva, de condenaçào por delitos, nao autorizados ou todas tentativas subjetivistas e arbitrarias de "moralizaçâo" do
r áo impostas em sede penal, etc.
exercício do poder do sistema penal.
A pena, como resposta a urna açäo que nao afeta o direito de
ninguém, é urna aberração absoluta que, como tal, nao pode ser
S..Frinc(pio de representaçao popular. As leis penais 56 podem
s criadas pelas agências legislativas constitucionais corn repre-
r
admitida, porque lesiona de modo excessivo o principio da
s ntação popular. As leis penais "de direito"
racionalidade republicana.
ou "de fato" somente
s räo reconhecidas na medida em que beneficiern
o criminalizado
ou candidato à criminalizaçäo, e sempre que tal benef(cio nao tenha 3. PrincIpio da tníniniaproporcionalidade. Conquanto a pena

r sultado de urna açäo


resulte sempre irracional, ela excede o limite do ìntolerável quando
calcutada dos usurpadores do poder o conflito que ela pressupöe seja de lesividade ínfima ou
k gitimo a urn de beneficiar-se ou a seus
aliados circunstanciais. desprezíveu (principio de insignificância) ou quando, em nAo o
sendo, a pena prevista ultrapasse, de modo grosseiro, o limite do
fr! - Principios Para a Limita çäo da Violéncia razoável quanto à proporcionalidade corn a gravidade do confuto
Por Exclusâo de Pressupostos de Disfuncionalidade ou da lesäo.
Grosgeira Para os Direitos Ilunianos
4. PrincIpio do respeito mínimo à hunianidade. Quando em
Principio da linîitaçao ,náxinza da resposta contingente.
1. nivel de previsäo abstrata ou, em caso concreto e por circunstAncias
F Inciona sorncntc como um indicador re or pari particulares ao mesmo, a pena repugne os rnais elementares sen-
¿Iag ucia judicial.
SnIpre que urna reforma repressiva seja introduzida scm suficiente timentos de humanidade, envolva urna lesao gravissima à pessoa em
e ampio debate público e participativo, scm razAo de sua circunstAncia, ou incorpore um sofrirnento de que já
consulta a técnicos
' sponsáveis, respondendo demagogicamcnte a reclamos das padeceu o sujeito em razAo do fato, a agência judicial, em funçâo
ências de publicidade do sistema penal ou de grupos interessados do principio republicano de governo, deve exercer seu poder de
que pegam de surpresa a ingenuidade das agéncias dispensar a pena ou de imputa-la legalmente mínima, fato juridica-
legislativas,
e be às agéncias judiciais desvelar-se quanto
à áualise crítica do mente admissível, que pode parecer supralegal, mas é, por outro
Leucto, esgotando o uso dos demais princípios
a fim de declarar a lado, intraconstitucional.
a onstitucionalidade da mesma. A agéncia
judicial deve velar pela
upremaçia constitucional, que exige das agôncias legislativas urna 5. PrincIpio de idoneidade relativa. Ern que pese o fato de a
t ca republicana. intervençâo do sistema peiial nunca resolver os conflitos, exceto
por acaso, existe urna incapacidade geral e estrutural para isso, bem
Principio de lesividade. A irracionalidade da açào repres-
2. como urna outra igualmente absoluta e que nem sequer admite
i' a do sistema penal nao pode chegar ao muita discussâo, por resultar evidente que o legislador pretende
ponto de pretender
n-putar urna pena sem a pressuposiçâo de um confuto no somente descarregar-se de um conflito de forma bastante grosseira.
quai
e ;ulte afetado um bem jurídico. A agência judicial deve pressionar a agência legislativa para
Este principio deve ter valor absoluto nas decisöes da agéncia que esta nAo tente desembaraçar-se dos conflitos corn aparentes
judicial, já que a sua violaçao funciona como porta de entrada a soluçoes que, em realidade, somente ocultam tais conflitos. É ex-
tremamente positivo que se busque urna soluçAo punitiva, mas é

:.4n
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inadmissível que, para isso, se caja no ridículo e se admita que a
VII - Principios Para a Limitaçâo da Violéncia Por
agência judicial dele participe.
Exclusâo de Qualquer Pretensao de Imputaçâo
Pessoal Em Razáo da Sua NotOria Irracionalidade
6. PrincIpio ¡imitador da lesividade à v(tima. A vítima de um
delito acaba sempre prejudicada consideravelmente, porque, em
O desenvolvimento destes principios se conecta niuito mais
regra, o sistema permanece impertubável; quando interfere, nao é que os demais à temática do capítulo scguinte, quando se concebem
tenor o estrago, em conseqilência da expropriaçäo do confUto, as bases da teoria do confito como um conjunto de limites
endo inadmissível que a agência judicial, alémdestes prejuízos, que a
agência judicial deve comprovar nao violados, afim de que possa dar
tolere ainda que a irracionalidade do sistema penal chegue ao
vez ib conseqüências penais.
¿úmulo de intervir quando, concretamente, esta intervençáo pode
Na elaboraçao desses limites concorrem os principios
acarretar prejúízos ainda maiores.
anteriormente expostos, que náo se referem propriamente à pena
Pode ser que a lei nao seja exjnessa a respeito, mas os
e à sua quantifïcaçao; entretanto, os que aqui
principios elementares de respeito à dignidade humanaimpöem um convém tratar
referem-se exclusivamente ao que designamos por "teoria de
limite à utiliiaçäo - e conseqüente coisificaçáo da pessoa delito", que veremos a seguir.
humana: à utilizaçáo da pessoa do criminalizado para o exercício
de um poder verticalizante; pará tanto se usa a vítima mediantea
expropriaçáo (diríamos confisco) de seu direito lesado, resultando
sempre excessivo, pois que a agência judicial também tolere que se
use ainda mais a vítima, inflingindo-lhe um sofrimento com a
intervençao do poder do sistema penal contra a sua vontade.

7. PrincIpio de transcendéncia mfnima da intervençäo punitiva.


Toda intervençào do sistema penal ultrapassa a pessoa do
criminalizado de modo estrutüral e inevitável. O criminalizado
pertence a um grupo que, como regra gera!, sofre as conseqüências
da criminalizaçao. Ninguém pode evitar essa transcedência, a náo
ser mediante a supressao da pena.
Nâo obstante, a mesma pode extremar-se por circunstâncias
particulares, ou o legislador pode prever penäs que transcendam
desnecessariamente. Em ambos os casos, a agência judicial deve
exercer seu poder de forma que este náo exceda os níveis normais
de transcedência, que significam o máximo de violéncia irracional
que neste sentido se pode admitir.

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CAPÍTULO SEXTO

A LIMITAÇÂO DA VIOLENCIA SELET1VA PELA


CHAMADA
"TEORIA DO DELITO"

L POR UMA PAUTAÇAO DECISORIA NAO


LEGITIMANTE. 1. A funçâo teórica da "construçäo do
delito". 2. '0" delito náo existe. 3. Os requisitos
elementares e mínimos para a pautaço decisOria. 4. O
debate sobre a natureza do injusto. 5. A nterpretaçáo
globalizada dos tipos periais como instrumento
limitador. -JI. A CRISE DA CULPABILIDADE. l."A
deslegilima çao da reprova bi idade". 2. Etica,
reprovahilidade e culpabilidade. -
TOS DE RESPONSABILIDADE. I. Qucm é
lit. OS REQUISI-
"rçsponsável"? 2. A culpabilidade pela vulnerabilidade
como base da resposta criminalizante. 3. Níveis de vul-
nerabilidade e culpabiliciade. 4.. O esforço pessoal para
vulnerabilidade. S. Quanti[icaçao penal e culpobilidade
pela vulnerabilidade ou pelo esforço pessoal para a vul-
nerabilidade. 6. Será preciso urna nova "töpica"? 7. A
culpabìlidae pela vulnerabilidade é do ato ou do autor?
8. Pena scm culpabilidade ou a possibilidade de
aber-
raçáo tolerävel. (A perigosidade do sistema penal.)

I - Por Urna Pautaçâo Deciséria Nào Legitimante

1. Afun çao teórica da "construçäo do


delito". O poder seletivo
do sistema penal elege alguns candidatos à
criniinalizaçäo, desea-
cadeia o processo de sua crirninalização e submete-o
à decisáo da
agencia judicial, que pode autorizar o prosseguirnento da
açào
criminalizante jA em curso ou decidir pela suspensäo da mesma. A
escollia, como sabemos, é (cita em funçäo da pessoa
(o "born

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candidato" é escoihido a partir de um estereotipo), mas à agência opera o sistema penal nessas hipóteses eonflitivas, veremos
.JA-L1t-'

que na imensa maioria dos casos este nao intervém


judicial sO é permitido intervir racionalmente para limitar essa (furtos, subor-
nos, estupros, etc., que somente em número
violência seletiva e física, segundo certo critério objetivo próprio e ridiculamente ínfimo
diverso do que rege a açâo seletiva do restante exercício de poder chegam à agéncia judicial), em outros intervém somente em
alguns
do sistema penal, pois, do contrário, nâo se justificaria a
sua casos e contra determinadas pessoas (homicidios, ou seja, nos
casos
"explicaria" em que historicamente o maior número foi cometido
intervençào e nem sequer a sua existência (somente se pelo proprio
funcionalmente). Estado, e quase nunca chegam ao conhecimento das
agências
de judiciais), em outros tantos casos nunca intervém, apesar
E born insistir em que a agência judicial deve persuadir-se da grande
que nao dispóe de suficiente poder para eliminar totalmente a freqüência corn que ocorrem (adultérios), aiguns até passaram
da
violênciana fase seletiva. moda (duelo), outros jamais se apresentaram (infidelidade
.
diplo-
Seu reduzido poder a coloca entre a disjuntiva de decidir ou mática), etc.
deixar tods a decisäo ao arbítrio do poder das demais agências de Resulta bastante evidente que esta disparidade de hipóteses
e
de reaçOes ao sistema penal nao podem dar lugar
seleçáo primária (este último fato sucede no ámbito do controle a nada unitário.
social onticarnente punitivo, mas se subtrai à agência judicial, Entretanto, o discurso jurídico-penal parece desprezar estes
söndo isto ocultado mediante as racionalizaçóes que implicam os dados, oferecendo um "conceito unitário" de delito, mediante
urna
"elementos negativos" do discurso jurídico-penal e, segundo se complexa elaboraçao teórica denominada, usualmente,
"teoria do
supóe, são próprias do exercício ilícito do poder do sistema penal). delito", que afirma (com algumas variaçöes, conforme
seu autor)
A decisáo criminalizante da agência judicial é sempre "má", ue "delito é uma açao típica, antijurídica e ulpável".
mas menos "má" que a decisáo arbitrária do poder das outras É claro que este "conceitojurídico de delito" nada
mais é que
agéncias, de modo que nos pouquíssimos casos a cia submetidos a smntese dûs requisitos que devem estarpresentes
tnt qualquer açäo
melhor é que os decida, porque poderia ser muito pior se nao o conflituosa de um autor selecionado pelo poder do sistema
penal,
fizes se. para que a agência judicial responda afirmativamente quanto
ao
Reconhecer alegitimidade da intervençáo decisoria da prosseguimento doprocesso de criminalizaçaoja em curso.
agência judicial como "valor inconcluso" nao implica introduzir Parece-nos claro que um conjunto de requisitos nao chega
a
nenhuma racionalidade no exercício de poder do sistema penal, e constituir um conceDo: ninguém se atreveria a afirmar
que o ates-
sim apenas limitar sua irracionalidade operativa em curso a
tal tado de óbito e a condiçáo de represebtante da. família;
enquanto
ponto que a agência possa exercer o seu poder neste sentido. requisitos exigidos pela autoridade administrativa para
o sepul.
Na tarefa de programaçäo do critério pautador, limitador e tamento em um cemitério, sejam suficientes para constituir urn
náo legitimante, um dos capítulos mais importantes é constituído "conceito de morto" apropriado à administraçao dos cemitérios; e
pela chamada "teoria do delito", formada pelo conjunto dûs requi- nem que a vacinaçáo, a corrente, a focinheira e demais
apetrechos
sitos que, em todo caso, devem dar-separa que a agén cia judicial nao utilizados quando levamos urn cAo a passear fundem um
conceito
suspenda ou interrompa o exercício de poder do resto do sistema de "cAo" adequado à administraçao municipal.
penal. Reificar categorias de requisitos, de forma a se falar "do"
delito, quando se sabe que "o" delito nao existe, é quase um
"0" delito nao existe. A parte especial de qualquer código
2. equívoco lingüístico, pois onticamente falando sO existern conflitos
- penal elenca urna quantidade de açóes conflitivas totalmente arbitrariamente selecionados, e, juridicamente, somente um con-
- heterogêneas quanto ao seu significado social. Se observarmos

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junto muito heterogênco dc hipóteses conflituosas, corn rnuito boa resulte rninimarnente racional, tais dados devern ser selecionados
v'ntade, podem ser chamados de "delitos". de acordo corn algum fundarnento antropológico ou, pelo menos,
Neste sentido, "delitos" seriam as condutas conflituosas que nao recusar urna base antropológica; por isso, náo deve tomar corno
dio lugar a urna decisdo crirninalizante afirmativa por parte da dados limitadores ou reguladores outras coisas que nao seja urna
ui ência judicial, que decide nao interromper a criminalizaçao em conduta ou ação do criminalizado. Qualquer outro dado resultaria
t rso, ao passo que, por outro lado, "teoria do delito" é somente o contrário ao conceito de hornern corno pessoa e, por conseguinte,
5 omen/uris" de urnaparte do discurso jurídico-penal que explicita claramente antijurídico.
de forma orgânica o conjunto dos requisitos que a agincia judicial Este é, pois, o nfvel mais elementar dos requisitos que a agên-
th ve exigir antes de decidir-se afirmativamente pelo prosseguimento cia judicial deve constatar pâra responder afirmativarnente ao e-
th 'processo de criminúlizaçdo. xercício de poder criminalizante já iniciado.
Este conjunto mais ou rnenos orgánico de requisitos constitui Em urn nivel de requisitos que supera o elementarisrno do que
o nivel máximo de seletividade tolerada, ou seja, que traduz urn já assinalarnos, E exigivel no mínimo que a conduta desta pessoa
jr ograma corn vistas à reduçâo da violência seletiva e ilegítima apresente algumas características objetiváveis a partir de urn cri-
p;aticada pelo sistema penal. tério previamente estabelecido por urn ato do qual participa a
Na caracterizaçáo dos requisitos podemos distinguir um nivel representaçao popular. Nao obstante, esta tampouco é onírnoda,
elementar (a açao) e um nivel mínimo (tipicidade e antijuridici- podendo unicamente caracterizar condutas que impliquem urn con-
d;de). flUo gerado pela lesividade (efetiva ou potencial) da conduta.
Dizernos, tradicionalrnente, que, quando os requisitos ele- Este conjunto de requisitos mínimos rnaterializa o que se
mentares e mínimos se cumprern, achamo-nos diante de um "injusto denomina por lipicidade e anhijuridicidade, ou seja, um injusto.
pnal"; tais requisitos são pressupostos mínirnos de possibilidade A conflituosjdade e a lesividade da ação nao sao limites arbi-
di resposta judicial que consente corn a progressáo criminalizante, trários nern "metajurídicos", mas impostos pela mais elementar
nias nao irnplicam como necessária à produçäo da resposta, pois racionalidade republicana: em tempo de guerra, "inimigo" é
e::iste outro nivel de requisitos que corresponde à resposta mesma. qualquer um que tenha realizado ou seja capaz de realizar urna
Referem-se a dois níveis de perguntas, relacionados aos seguintes açao bélica corno integrante de um grupo arrnado; mas em conjun-
n quisitos: tura política, a simples capacidade de levar a cabo a açao lesiva nao
a) A crirninalizaçao em curso E capaz de reconhecer "algo" pode ser relevada, porque, em princípio, qualquer pessoa E capaz
e)nflituoso como pressuposto de seu próprio poder violento? de praticar urna açao conflituosa e lesiva ("Nao ha falta que eu nao
,b) Neste caso, é admissível aceitar, nesta hipótese ern par- tenha me sentido capaz de cometer", sentenclou Goethe). Para se
iular e relativamente a este autor concreto, a resposta seletiva? selecionar criminalizantemente urna pessoa, é exigível que, no
Esta segunda pergunta é a que se responde ao nivel dos mínimo, tenha iniciado ou praticado urna açao, e que esta açao seja
n quisitos que o discurso jurídico-penal denomina tecnicamente efetivamente conflituosa por sua lesividade real ou potencial: a
ci ipabilidade. mera capacidade de realizaçao, suficiente em tempo de guerra, nao
satisfaz o poder em conjuntura política.
3. Os requisitos elementares e mínimos para a pautação A "perigosidade" positivista nada mais é que a tentativa gros-
e/cisOria. Para limitar a irracionalidade da violência seletiva, a seira de ignorar esta diferença e identificar completamente o
agência judicial deve pautar seu plano decisorio na exigEncia de delinquente com o "inimigo", e algo parecido sucede tambérn a
n quisitos objetivos. Para que esta exigEncia de dados objetivos certos "dispositivos internos" da dogmática contemporanea, os

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i quais fazem as suas vezes. Por outro lado, como o "inimigo de da arbitrariedade seletiva em nada impede a sua inegável
guerra" existe, e o "inimigo político" se "fabrica" a perigosidade des]egitimaçao.
é senão a constataçáo do grau de aceitação do modelo
estereotipado por parte da pessoa criminalizada. 4. 0 debate sobre a naturen, do injusto. A discussào
Como a ação do poder do sistema penal seguirá conservando sobre se
o "injusto" "é" objetivo (ou predominantemente objetivo) ou
sua irracionalidade, apesar da limitaçâo que o poder da agência complexo (mais ou menos subjetivizado) vincula-se a urna opçao
judicial lhe imponha - de vez que um ato violento e arbitrário nao entre "desvalor do resultado" e "desvalor do ato", associando-se
: perde tais características pelo simples fato de que se profba -, a
também à disputa entre "conceito jurídico-penal" e "conceito
agência deverá proceder sempre a uma interprctaçáo restritiva e
ôntico-ontológico" de ação humana no discurso jurídico-penal.
rigorosa do traço legal que predetermina a açáo que Ihe serve como Deste modo, chegou-se a propor uma opçao mais geral e abran-
limitadora. O principio dö legalidade, mullas 'ezes enten- gente ¿ntre:
dido como "tipo-garantia", nao pode ter outro fundamento que a
necessidade de limitar a violência seletiva do poder penal. E urna a) conceito jurídico-penal de açáo, desvalor do resultado e
espécie de "direitopenal mínimo " hofe consagrado quase que univer- injusto objetivo e
b) conceito ôntico de açao, desvalor do ato e subjetivizaçao
sairnente e que se tratou de racionalizar, limitar e burlar das mais do injusto.
diferentes formas. A vertente que partiu da segunda opçäo teve, para alguns
A "construçâo" de uma "teoria do injusto" (como parte da autores, um desenvolvimento qu os levou a abandonar o conceito
"construçâo" da "teoria do delito") encerra tamb6m um equívoco ântieo de açào e até mesmo a minimizar a importáneia dà açäo,
lingüístico, que conduz à ilusào de presumir -que o sistema penal subtrair os componentes subjetivos de "ánimo", suprimir ¿ resul-
opere captando as açóes típicas e antijurídicas mecánica ou auto- tado material-da tipicidade, relativizar ou restringir o conceito de
mati ca mente. bem jurídico e postular que o direito penal tutela somente orien-
Este "uso da linguagem" jurídica nao pode levar-nos a perder taçöes étieas, isto é, impóe-lhe uma ética até quase convertê-lo em
de vista - em momento algum - que o sistema penal escolhc uni discurso nioralizante destinado a castigar ou corrigir "eidadaos
pessoas arbitrariamente e que os requisitos de tipicidade e an- mal-educados", como se a sociedade fosse uma "irnensa esçola" e
tijuridicidade (sintetizados na categoria de "injusto penal") nada o direito penal um conjunto de advertencias para criañças indis-
mais são que os requisitos mínimos que a agéncia judicial deve ciplinadas.
esforçar-se por responder a Jim de permitir que o processo de A vertente que partiu da primeira opçào, anterior em muitos
criminalização, em curso, sobre a pessoa arbitrariamente anos à segunda, já chegara a punir o que nao eram açöes; a deixar
selecionada, possa avançar. impunes açöes aberrantes do poder sob o argumento de quenáo
Nada mais sao que instrumentos de que se vale a agéncia eram açöes; a cair por conta da pura causaçáo do resultado na
judicial para limitar um exercício de poder claramente arbitrário; responsabilidade objetiva; a estender a lesividade até o mima-
muitas pessoas existem que fizeram o mesmo que o escolhido e nao ginável mediante um nebuloso conceito de "perigo abstrato" ou a
foram selecionadas; outras ainda que nao o fizeram e foram esco- degradaçào do bem jurídico a uma categoria formal; a censurar à
Ihidas pela agêneia; o poder seletivo e punitivo continuará a ser pessoa selecionada sua personalidade ou temperamento e, afinal, a
exercido para justificar a necessidade da arbitrariedade. O diseur- urna etização do saber penal que pouco ou nada tern a dever à
so jurídico-penal sobre o injusto como nível mínimo de limitaçáo vertente anteriormente descrita, se bem que, neste caso, tenha-se
operado mais ou menos ocultamente.

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A qualquer dos dois caniinhos escoihidospara legitimar o exer- Nao há açäo que nao esceja aconipatiliacia dc uni resultado,
C de poder do sistema penai, pode-se inferir urn conjunto de
(CÍO como parte dc um pragnia, porque itau la exte It()riJ.Ç4ì(! LIC ut'Iu
letnentos reguladores do discurso jurídico-penal que, em lugar de
t vontade que näo implique urna transforrnaçäo do mundo.
ervirpara limitar a violência seletiva modeladora do sistema penal, Nao é possível desvalorar o ato scm desvalorar o resultado (se
rsultaram úteis à mesma, pelo menos na versão de inúmeros dos náo houve transformaçào do mundo ou se nao se sabe em que
jeus mais ilustres autores. consistiu ou a pie tipo de transformaçäo tendia a que já operou,
Quando nos desembaraçamos de qualquer pTojeto de racio- náo há razäo para se desvalorar a açäo) e tampouco é possivel
I alizaçáo legitimante e nos dedicamos a reconstruir o discurso desvalorar o resultado sem fazer o mesmo com o ato (porque o
i indico-penal assumindo a deslegitimação do poder do sistema "resultado" o é de uni "ato", corno termo relativo; sem "ato", nào
renal como um dado da sua realidade operativa, ocorre-nos que o seria um "resultado", mas uzn.simples acontecer).
requisito mais elementar que este discurso pode conter é a açäo ou Se concebermos desta forma a "subjetivização" do injusto,
onduta humana. nao haverá perigo algurn para a funçao limitadora que pauta as
É tao elementar que jamais podemos tolerar que se "invente" decisoes da agénciajudicial: se acrescentarrnos os dados objetivos,
m conceito de açäo humana que nao corresponda a dados önticos, que nos são úteis para limitar a violência seletiva, os requisitos
; ois a agência judicial jamais pode consentir em que a crimi- subjetivos, teremos como resultado mais requisitos, ou seja,
r alizaçäo em curso prossiga em seu avanço se, ao menos a nivel dos teremos no nosso dispor um instrumento limitador bem mais com-
requisitcis mais primários, corn que deve limitar a arbitrariedade pleto. -

sletiva, nao consegue identificar urna açào da pessoa crirnina- De modo algum a soluçäo pode aehar-se na admissäo ou na
I zuda. repulsa aos elementos subjelivosdo injusto, vale dizer, aos requisi-
Encontrarno-nos diante da necessidade de elaborar um dis- tos subjetivos dentre os mínimos requisitos da resposta
cursolimitador e nao ha limite cuja eficâcia nao seja neutralizada criminalizahte da agencia judicial. A questao reside em evitar
cuando se estabelece um discurso cujas bases gnoseológieas per- cuidadosamente que tais requisitos sejam manipulados de forma
them que seja manipulado de forma tal que a cor dos olhos pode
r. arbitraria e em fazer com que sua incorporação adquira o sentido
sr interpretada corno "açäo". Com um discurso táo perverso, de urn somatório de requisitos e nao o de urna substituiçáo ou
lEerodes poderia ser juiz de qualquer república e se dizer deslocamento dos requisitos objetivos.
rspeitador dos Direitos Humanos. Os dados ôntieos que devem ser incorporados ao discurso
Diante de semeihante perspectiva, é evidente que o conceito jurídico para limitar o exercício arbitrario do poder são destruidos.
ntico de açâo é por demais elementar para conter a arbitrariedade quando se escarnoteia tanto a objetividade quanto a subjetividade
sletiva do sistema penal. e, por outro lado, a manipulaçao arbítrária de qualquer limite do
Do ponto de vista de um discurso que regule decisaes de injusto neutraliza a funçao ¡imitadora do discurso jurídico-penal,
f nrtra a limitá-las, tampouco é admissivel que se encampe a falsa mesmo que näo importe se o discurso se baseie em um dado ob-
cpçao entre desvalor do ato e desvalor do resultado: o desvalor de jetivo ou subjetivo.
ambos é sempre necessário à resposta judicial que aprova a pro- O caso mais evidente de ineorporaçâo limitadora de dados
gressäo criminalizante e qualquer escolha entre um dos dois subjetivos - e de sua patologia manipuladora - 6 oferecido pelos
s guificará parcialmeite, o que equivale a reduzir a capacidade chamados "elementos do ânimo", modernamente denomiñado
limitadora do discurso jurídico-penal. "disposiçâo interna" (innere Gesinnung). Na criaçäo ou invençâo
de novos tipos e, em especial, "políticos", significam a extensáo do

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arbitrio seictivo ans inimigos políticos e a prescrvaçáo dos "amigos pois um dos requisitos mais elemetitares para nao obstaculizar unta
políticos", mesmo que façani exataniente o mesmo,1 ou seja, é a resposta criminalizarite da agéncia judicial é que, pelo menos, a
consagraçâo como regra para a agência judicial da mesma ar- açäo humana que se imputa à pessoa arbitrariamente selecionada
bitrariedade seletiva coni que opera o sistema penal. Entretanto, seja conflituosa em razâo de sua lesividade. Deste modo, a neces-
quando os elementos subjetivos de ânimo estâo compreendidos em sidade de um beni jurídico afetado apresenta-se, em verdade, como
tipos "tradicionais" (tipos que formam parte do conteúdo penal outro limite máximo de irracionalidade tolerada, que nao pode ser
generalizado em legislaçäo comparada), resultam em instrumentos ultrapassado sent que se caia no absurdo total: admitir a inter-
limitadores extremamente úteis, pois do contrário, o limite imposto vençäo do sistema penal quando nAo há confito ou quando o
pelos novos dados objetivos seria demasiado ampld (atente-se para confuto é gerado sean que o direito de aigném seja afetado, mas
a aleivosia, para o furto calamitoso, para o somente seus valores, gostos ou opiniöes.
A curandeirismo, etc.).
outra opçào a que se prétende associr às anteriores é ainda Se é certo que o sistema penal nao resolve nenhum confUto
e
mais grave: nao ha alternativa entre "tutela de bens jurídicos" ou sim os decide, resulta evidente que sua violência seletiva
seria
"proteçáo a regras morals mínimas". Na pratica operativa, o sis- totalmente descontrolada, caso se admitisse sua intervençäo, me-
tema penal nao exerce sea poder para tutelar bens jurídicos nem xistindo confuto alguna ou que o conflito fosse gerado pelos simples
regras sociais mínimas, e nem é eficiente para nenhum dos dois gostos pessoais dos que operant a seletividade (conflitos por
objetos. Qualquer das afirmaçoes náo passa de racionalizaçáo dis- alguém usar cabelos longos, barba, ponchos, bigodes, suíças,
cursiva legitimadora do exercício de poder do sistema penal; se os polainas, biquíñi, etc.).
encararmos conio dados de realidade ou como prograinaçäo A recente objeçáo dogmática segando aqual a teoria
dosbens
suscetível de realizaçáo, nao faremos mais que cair em ¿utra ilusáo. jurídicos nao se prestarla para fundamentar a necessidade de sua
Neste sentido, nenhum dos dois termos da opçäo nos pode servir tutela penal, o que estaria comprovado nas múltiplas hipóteses em
para construir urn discurso regulador das decisôes da agéncia judi- que sua lcsño é tolerada, pretendendo dcmonstrar corn isso que
sua
cial que nao scja legitimador. cssência é "scr-em-funçäo", termina afirmando que a "sociedade
A nIvel dc busca de elementos reguladores nao legitiniantcs nao é urna instituição para conscrvaçâo de maximizaçào
de bens
- que é o que nos interessa -,
sucede outra coisa diferente: jurídicos" e, conseqûentcmentc, a "normalizaçao penal" só é
trata-se antes de encontrar um requisito de racionalidade bem explicável através do filtra da "nocividade social" E interessante .

elementar que opor-Ihe à irracionalidade seletiva substancialmente por ser, ao menos, sincerissima: o organismo (ou funcionalismo,
se
irracional. se preferir) confessa abertamente que a tutela de
bensjurídicos nao
Neste nivel surge a necessidade da exigência invariável da pode justificar o direito penal, pois este se justifica por sua fun-
existência de una bernjurídico afetado (por lesào ou por perigo, mas cionalidade e que a afetaçáo de bens jurídicos interessa sempre que
scm estender confusamente o perigo ao infinito das "abstraçóes"), moleste a sociedade, por ser "nocivo" a ela, isto é, ao poder.

1. Convém recordar que na década de trinta, na Argentina, pretcndeu.se


incriminar os
extremistas anárquicos e nao os nazistas, por exemplo, sob o argumento de que 2. Da mesma forma Jakobs, op. cit., 36-35. Recorde-se um interessante
os parágrafo do "veiho"
primeiros agrediam o Estado, e os segundos o defendiam, oque gerou acirrada Organicismo: "Quanto ao motivo pelo quai um generai, autor de
discussäo uma degoiaçáo, nAo é
entre dois catedráticos, autores dc um projeto de código penai. Em considerado criminoso, é muilo simples y parece-me já te-io explicado.
sentido correto, a Antes de chegar
doutrina italiana boje destaca a incompatibilidade entre o princi'pio da ao ato crinjinoso, necessitamos da noçâo do crime. Ejá
fornecemos esta noçAo de modo
ofensividade do
delito (equïale ao art. 19 da nossa Constituiçâo) e o deslocamerito da completo: nao basta que os atos sejam cruéis ou injustos, mas é
responsabilidade à preciso que sejam nocivos
Gesinnung (cf. Ferrando Mantovani, DifiEro Penale, Fádua, à sociedade" (Garofalo, op. cit. págr 132-133).
1988, pág 288).

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Fica subentendido que devecnos convir em que a tutela de
a outra de muito mais importância que aquela com que concorre
hens jurídicos nao justifica o exercício de poder do sistema penal,
[nas, enquanto para nós nada ha que ojustifique, para esta moderna
(fato "co-penalizado").
Isto nao o urna ficçao de racionalidade inexistente, certa-
versäo dogmática, para o direito penai, nossa vida se resume em um
mente, na agência político-legislativa, pois é a agência judicial que
'ser-em-funçáo-de", o que implica confessar que minha vida tem
constrói estas regras para orientar-se, já que deve restringir a
valor para o poder penal na medida em que interessa a esse poder.
arbitrariedade seletiva do sistenma penal, e para isso deve valer-se
Cremos que este organicismo jurídico transcendental nao pas-
racionalmente dos instrumentos que a agência político-legislativa
a, como já vimos,3 de uma expressâo extrema da total decadência
io pensamento jurídico-penal dos nossos dias, em que lamentavel- produz e Ihe entrega irracionalmente.
Basta que se consulte quaiquer legislaçao penal para, sem
nente merguihou um ampio setor doutrinário.
muito esforço, prevenir-se das contradiçoes, lacunas, defeitos se-
mânticos, relaçoes totalmente insensatas, disposiçóes nao derro-
A interpretaçäo globalizada dos tipos penais como instru-
s.

nento ¡imitador. A intervençáo limitadora da agência judicial deve gadas, mas que em outro contexto social assumem um sentido
valer-se de um instrumento legal escrito (tipo) que destaque a açáo imprevisto quando de sua sançäo, etc., que surgem como resultado
conflituosa relevante (pressuposto fático legalmente indicado). Co- da produçäo desordenada de leis penais que se agudiza a cada dia,
em razäo da improvisaçäo com que as agências legislativas respon-
no sabemos, isto nao deve ser entendido no sentido de que a vida
dem à manipulação da opinião instrumentalizada pelo aparato de
social se configura tendo por base um respeito generalizado a essa
aorma, nem tampouco partindo da afirmaçao ingênua de que "o
propaganda do sistema penal.
Sua interpretaçao de forma contraditória 6 somente o pres-
legislador" quer que assim se configure, pois na imensa maioria dos
suposto necessário para que possa ser usada como instrumento
casos essas normas sao violadas ante a mais completa indiferença
limitador, mas isto nao implica, de modo algum, cair na ficçáo,
do "legislador" imaginário e de outras agências do sistema penal.
segundo a qual todo ato do poder republicano é racional ou se
Conseqüentemente, a dedução da norma e do objeto de "tu-
presume como tal, mas significa unicamente que a agéncia judicial
tela" nao ¿mais do que um instrumento da limitaçäo minimamente
racional de que a agência judicial deve valer-se para restringir a cumpre o mandato .- ou deve cumpri-lo, como imperativo jus-
arbitrariedade seletiva do sistema penal, no cumprimento de sua humanista e constitucional - de limitar racionalmente a arbitra-!
funçáo racional e ético-política de promover intestinamente a con- riedade seletiva do sistema penal.
A abordagem globalizada da norma no conjunto normativo e
tradiçâo dentro do exercício de poder do sistema penal.
a interpretaçâo deste de forma restritiva e coerente nao 6 mais que,
Pois bem: quando no caso concreto entra emjogo outra norma
o resultado desta atribuiçao limitadora, que constitui a razào de ser
que ordena ou formenta a açao que o tipo parece proibir, afigura-
da agência judicial e do poder dos juristas no sistema penal.
se-nos obvio que näo pode ser considerada proibida. Algo análogo
sucede quando a conduta recai na descriçao típica, mas no caso
concreto näo afeta nenhum bem jurídico ou o afeta de modo des- II - A Crise da Culpabilidade
prezível de täo ínfimo, ou ainda quando a afetaçäo nao é tao
insignificante, mas que resulta ridiculamente mínima se comparada 1. A deslegitima çäo da "reprovabilidade". Advertimos
anteriormente que nestas páginas nào nos propusemos a recons-
truir detalhadamente toda a dogmática penal, e sim assinalar as
3. Ver supra, pág.S5.
possíveis linhas básicas para uma reconstruçao como tronco!

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Se as diferenças entre um direito penal liberal, mais ou menos
regulador de decisóes limitadoras e nao legitimante do exercício de tradicional, e as que aqui expusemos, no âmbito dos requisitos de
poder que pretende limitar. elementares e mínimos, são relativamente pequenas, o mesmo nao
Até o aqui já exposto, é possível conservar, é claro que corn podemos dizer, a este nivel, quanto aos requisitos de respon-
vários retoques e algumas reformulaçôes parciais, bern como corn sabilidade que a doutnina denomina "culpabilidade". Neste etapa
a adverttncia sobre seu caráter de "inacabado", que deixa as colo- de análise dos requisitos limitadores da arbitraniedade seletiva
caçöes abcrtas a majores limitaçöes do poder irracional do sistema surgem elementos que náo nos é possível continuar sustentando,
penal, o que usualmente se considera como "teoria do injusto". produzindo-se - agora sim - uw "esvaziamento" da culpabi-
Sem dúvida que a perspectiva do realismo marginal deverá lidade.
penetrar mais profundamente nas exigências da tipicidade de for- Desde 1907, se vem sustentando a chamada teoria "norma-
ma global; a teoria das razöes de justificaçâo (corn implicaçôes na tiva" da culpabilidade (após o redescobnimento de Aristóteles);
legítima defesa e no estado de necessidade, no exercício de direitos corn maiores ou menores variaçóes, defendeu-se que a "culpa-
em genl, etc.) dará lugar a maiores pìecisöes quanto à exigência bilidade é reprovável".
de bens jurídicos e de sua afetaçAo, provocará uma.reinterpretaçäo -
Entretanto, o conceito de culpabilidade normativa a repro-
do alcance proibitivo dos tipos penais atendendo à gravidade das vaçâo personalizada - entrou em crise corn a deslegitirnaçâo do
sançóes corninadas ou à inconstitucionalidade de algumas delas, exercício de poder do sistema penal. A seletividade do sistema
conforme o caso, etc.; mas, em que pesem todas estas alteraçöes, penal neutraliza a reprovação: "Por que a mim? Por que nao a
que nos levam a apoiar-nos, neste momento, mais solidamente, em outros que fizeram o mesmo?, são perguntas que a reprovação
um direito penal limitativo e garantidor, as linhas mais gerais da normativa nao pode responder.
"teoria do injusto" se mantêm de pé. E possível e necessário admitir, como cnitério de limitaçáo à
Em grande parte isso se deve ao fato de que os requisitos, arbitrariedade seletiva, que nao se pode. formular quanto a um
enquanto limites máximos tolerados no exercício de um poder sujeito nenhum juízo de reprovaçâo - ou quando isto resulta muito
legitimado, se acham "objetivados", e o estão no sentido de se problemático ouinsignificante - se, razoavelmente, näo era pos-
referirem unicamente à existência real de uma açâo conflituosa por sível exigir dele que agisse de outra maneira, por ser-Ihe inipossfvel
sua lesividade (tipicidade e antijuridicidade), com o qual unica- ou muito difícil ter em mente ou compreender a antijuridicidade
mente se diz que há. "algo" ao que talvez se possa responder de em razäo de uma pertubaçäo psíquica incapacitante, transitória ou
forma a nao deter a criminalizaçâo em curso. permanente, de um erro de proibiçâo ou de compreensäo, ou quan-
A agênciajudicial, no entanto, de modo algum pode pretender do já compreendendo o que seja criminalidade, seu ámbito de
extrair daí, sem mais nem menos, a resposta criminalizante. Esta autodeterminação estava tao reduzido pelas circunstâncias ob-
instância, que vai desde a existência de "algo ao qual talvez se possa jetivas que também a exigibilidade aparecia como sumamente
responder judicialmente admitindo essa progressäo criminalizante reduzida; nesta hipótese, náo é possível admitir que a agência
em curso" (que se costuma charnar de "injusto" na doutrina do- judicial responda afirmativamente ao prosseguimento do processo
rninante), até "alguma toisa à qual a agéncia judicial Mo pode de criminalizaçao. Neste caso, nao se pode reprovar ninguém e, por
responder de outra forma senäo admitindo essa progressäo crinii- conseguinte, tampouco aquele que foi selecionado e que se encontra
nalizante já iniciada" (que significa o que se costuma chamar de diante da agência judicial.
"culpabilidade"), requer, sem dúvida alguma, urna referência dire- A verdade é que nao se pode contradizer tal afirmaçao, e sim
ta e personalizada ao autor, em sua condiçäo pessoal e na situaçäo acrescentar que, conseqüentemente, quando nao se apresentarem
particular em que tena levado efeito tal conduta.
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pressupostos, a agônciajudicjal ñao pode opor nenhum obstá-
14is

ao prosseguimento da eriminalizaçao ein curso e, menos ainda,


0 pabilidade de fato ou "pelo injusto" (caindo na culpabilidade de
"caráter" ou pela "conduçâo da vida"), defendeu-se urn conceito
( 11

1](teflder que em tais situaçóes o "grau de reprovaçäo" determine na


a la menos que a quantidade da pena que a agôncia judicial des-a
diferente de culpabilidade para a quantificaçäo penal (de "fato"
teoria do delito, de "caráter" na teoria da pena), as conscqüências
I

t :1 5rar, pois isso significa consentir em que a agênciajudicial opere


da reincidência nao podiam ser justificadas, etc.
e 'z funçao de uni juizo de reprovaçao substancialmente viciado,

i: o, que um jzdzo de reprovaçao seletivo é, por si, vazio de qualquer o princIpio segundo o qual a pena - ou o seu máximo - se

C ético.
:teúdo mede pela culpabilidade foi mais um enunciado que um conteúdo.
'l

Sua única vantagem consistiu em neutralizar o vergonhoso juízo


de
A regra, segundo a quai a culpabilidade pelo injusto resulta anteriormente
"perigosidade" dobiologisino racista que imperas-a
cc essáriapara que a agênciajudicial responda autorizando a conti-
FI

,l trção doprocesso de criminalizaçao, parece-nos irrefutavel; trata- - o que constitui um mérito consideras-el -
e recolocar a questâo

s le um critório mais para limitar racionalmente o poder seletivo sob a perspectiva ética; porém, superada pela aberraçáo positivista,
d o sistema penal, maspor estar deslegitimado conio juízo ético, sua utilidade foi muito pequena, porque no plano ético nunca
dele
n ?i resulta nenhuma motivczçao que justifique o esforço de urna logrou resolver os problemas e, mais ainda, tratou-se de manipulá-
r .syosta crimina(izan(eporpar(e da agência judicial. lo de formaa obter as mesmas conseqüências práticas conseguidas
Cabe advertir que a cutpabilidade normativa parece sempre corn a "perigosidade", só que por urna via prÇtensamente ética.
t r estado em crise, ou seja, qua a düvida acerca do valor ético do
Por outro lado, basta que nos dctenharnos porurn instantc a
j íode culpabilidade nao é um fenômeno atual, mas que a observar a realidade, a conhecer os moradores habituais dos cam-
pos de concen(raçäo por motivos políticos, para yermos que
os
ni'iidaa'e estaria ein sua radicalizaçao. Questionou-se algurnas
aprisionados por esse tipo de poder, como prisionciros da guerra
vìes se osjuízes nazistas seriam culpáveis, em razäo do treinamen-
t) egal exclusivamente positivista que receberam.4 Em 1972 es- suja da política, em sua imensa maioria são menos inteligentes ou
touron um célebre escándalo quando uni tribunal alemâo absolveu menos hábeis, o que, em se admitindo a questáo da quantificaçäo
u ri médico que has-ia cooperado na seleçào de pacientes incuráveis penal pela reprovabilidade, geraria a dúvida acerca de se, aimai,
para serem exterminados, atentando-se para a sua juventude ao estaria reprovando o injusto ou a falta de habilidade e, se se con-
t Po do fato e para a sua formaçäo em urna universidade total- sidera que a reprovaçäo des-a ser rnaior em caso de reincidência, a
n.e ite dominada pela propaganda nazista.5 reprovaçäo seria pela sua insistente incompetência para o delito.
Além disso é realmente difícil estabelecer o grau de É claro que todas estas reflexöes semiente têm valor no campo
r' provabiJid'definitivamdnte, este costuma resultar quase tao especulativo, posto que na realidade operativa do sistema penal
abitrário quanto a perigosidade e outros similares. Na prática, a cada nova prisáo näo faz mais que confirmar a pessoa quanto ao
r provabilidade nunca foi critério útil à quantificaçao da pena, e a modelo já estereotipado, como mecanismo reprodutor de violência.
p.)reza dogmática nessa matéria é a meihor prova de que sempre o certo é que, tanto nos delitos "comuns" quanto nos poucos
s ocultou urna faléncia dogmática ou discursiva, dificilmente crimes do sistema penal, o questionamento deslegitimante sempre
d'i culpável. Violaram-se freqüentemen as regras da cul-
espreitou a culpabilidade, e este foi seu grande problema, que näo
pode ser "encoberto" nem lógica nem eticamente.
Há alguns anos pretendcu-se situar a culpabilidade sob
4. V r Gustav Radbrucft, Gaedk)j, Unrecht und Ubergeseizches Recht, ein consideraçóes político-criminais, ou seja, se intentou abandonar a
F .echtspMlosophle" Stuttgart, 1970, pág. 347.
culpabilidade normativa e recolocá-la a partir de urn conceito
fun-
5 r Harto Otto, op. cit., págs. ii9-180,
cional de culpabilidade. lsto nao deixa de dcmonstrar a crise de

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legitimidade que afeta todo o poder penal e de exprimir a lenta Deixando de lado os matizes da tentativa de limitar a "etiza-
degradaçao do discurso jurídico-penal; à pergunta "Por que a çáo" da culpabiuidade, pode-se afirmar que com a expressáo "re-
mim?" esta tese responde: "Porque é útil para mim". provaçào jurídica" se quis significar que se tratava de um juízo de
Nao se deve duvidar que a culpabilidade é o capítulo em que reprOVação que, como tal, continha motivos éticos, por ser umjuízo
a doutrina contemporánea demonstra maior ético limitado em conformidade corn urn critério predeterminado e
desequilIbrio, acredita
fazer grandes descobertas e, enfim, resolve antigos ao qual se irnpunharn restriçôes fortemente jurídicas acerca dos
argumentos em
mejo à intensa desorientaçäo duca e antropológica6. quais a disparidade de critérios era bastante notória.
De qualquer rnaneira, seu òaráter de juízo ético continuou
2. Etica, reprovabilidade e culpabilidade. Desde que sendo a sua essência, e o "jurídico", sua mera limitaçao quantitativa
se aban-
donou o conceito descritivo ou psicológico da culpabilidade e se ou extensiva, mesmo nas versöes mais "liberais" da culpabilidade
passou a concebê-la normativaniente, quase sempre se exigirarn norrnativa.
dela ponderaçoes éticas. A seletividade operativa do sistema pena,! e o uso da pena
A acentuada etizaçáo do direito penal atingiu também como instrumento reprodutor da violéncia e legitirnador de um
a cul-
pabilidade e, à medida que esta reediçao tornava nebulosos alguns exercício de poder (muito mais ampio e estranho ao poder dos
limites entre a ética e o direito, entre o pecado e o delito, a correçäo juristas) mostram hoje claramente que as razôes éticas - essência
e a pena, comprornetia a funçào garantidora do
discurso jurídico- da reprovaçäo de culpabilidade - näo sao mais que meras
penal. racionalizaçöes, corn o que a reprovaçao mesma resulta deslegi-
Para salvar a culpabilidade de urna irnersáo completa na ética, timada.
tendo em vista ser este o ruais vulneravel capítulo deste fenômeno, A atual tentativa de superaçâo deste obstáculo mediante a
um respeitável setor doutrinário insis-tiu em que, a culpabilidade funcionalidade implica o retorno a um novo conceito descritivo de
constituía urna reprovaçäo "jurídica" e nao "ética" ou puramente culpabilidade, manipulado corno "verdade funcional", que nao faz
ética. Nao obstante, na medida em que a culpabilidade seguiu ruais que confessar sua deslcgitimaçao ao reduzir o homem a um
significando "reprovabilidade", nao podia livrar-se de componen- simples melo a serviço do equilibrio do "sistema" (poder)..
tes éticos, posto que urna reprovaçáo sem conotaçöes éticas é urna Esta crise, que se observa em todo o direito penal, vejo à tona
contradictio in adjectio. corn singular clareza na culpabilidade, que náo em vào tern sido o
mais distorcido dos "caracteres do delito". O maior indicio da crise
é a renúncia à culpabilidade como reprovaçâo e sua reformu!ação
como critério político-criminal útil ao serviço do "sistema".
6. Na douttina alema distinguem-se as posiçôes mais ou menos tradicionais
baseadas na A nosso ver, resulta claro que, se alguma legitimidade pode
responsabilidade pela autodeterminaçAo (Jesehech, Weltel, Stratenwerth, Blei,
Maurach-Zipf, Baumann-Weber, Rudoiphi, ArthurKaufmann); as utilitaristas, através do pretender o exercício do poder dos juristas, este nao pode renunciar
estnxtural-funeionalismo (Jakobs, Achenbach); as que se assentam em perspectivas aos reus motivos dtícos, pois scm eles nao M legitimidade e situ
psicanalistas e de psicologia social, fundando-a na exigéncia coletiva de retribuiçäo
(Streng); e, por último, os qoe pretendem suprimi-la e substituí-la por outre
utilidade (para o poder).
"paradigma"
(Ellseheid-Hassemer, Scheffler) (cfJürgen Tiemeyer, Zur Möglich/ctit eines Corn os critérios tradicionalmente adotados pela doutrina
erfahzunp-'.4ssenschaflich gesicherten Schuldbegnff, em ZS:W, 1983-100, págs. 567 e segs.). parece que se delineia uma situaçâo scm soluçäo: a culpabilidade
A reafirtnaçao enfática de Jescheck a favor da autodeterminaçAo (ver Lehrbuch des como reprovabilidade está em crise, tornando-se insustentável
Strafrechts, 4, Auflage, 1983, pág. 370) confirma que, definitivamente, mantém-se intacta
a velha disjuntiva: ou se aceita a responsabilidade pela eleiçAo ou se devido à deslegitimaçâo da reprovação, dado que a seletividade e
cai no positivismo ou
na mediatizaçâo do homem. a reproduçáo da violencia subtraem-lhe todo sentido ético. Por

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01 LI lado, nao resulta possível construir a culpabilidade sem urna
O
eticamente em relaçao a um exercício de poder deslegitimado.
b ética, sob pena de se reduzi-la a um instrumento proveitoso ao Consequentemente, é esta a responsável9.
p cl r, que deslegitimaria a intervençäo judicial que a utilizasse,
Se considerarmos que no plano filosófico é corrente o enten-
m ., ao mesmo tempo, a conservaçäo desta base na forma dimento de que é "responsável" quem tem a faculdade de com-
preender as conseqüências de seu comportamento e, por
tr 'cicional näo é mais que uma racionalizaçäo.
È obvio que, a partir de perspectivas mais ou menos usuais, conseguinte, de corrigi-lo conforme essa previsäo, a "responsabi-
ac himo-nos diante da "quadratura do círculo"7. lidade" da agéncia judicial (pela criminalizaçáo) é clara, especial-
mente se distinguimos cuidadosamente "responsabilidade" de
"imputabilidade" (fora do sentido técnico-dogmático-jurídico, é
lit Os Requisitos de Responsabilidade claro), posto que a criminalizaçäo nao é "imputável" à agôncia
judicial.
1. Quem é "responsável"?Vimos que podern ser considerados Um resultado é "imputável" quando reconhece a livre decisao
re q iisitos mínimos para uma resposta judicial afirmativa em de alguém como causa e, neste sentido, é Obvio que a agência
re a ;âo ao avanço da criminalizaçao os que se resumern na chamada judicial náo Ihe pode imputar um processo que geralmente já está
"t( ria do injusto". Quando esses requisitos ocorrem, a agência em curso, nem tampouco pode exigir que a sua livre decisáo respon-
juJkiai reclama urna pauta ¡imitadora que The seja prOpria, fun- da, o que sO contribui para limitar tardiamente e em funçäo de um
dz di na funçao que deverá desempenhar no interior do sistema exercício de poder extremamente reduzido e condicionado.
p' que é afunçao de contradiçäo.
n il, Prosseguindo corn a analogia que já ressaltamos, pode-se
Quando tais requisitos mínimos so postos em exccuçâo, a dizcr que a Cruz Vermelba Internacional seja responsável na guerra,
a öucia judicial deve responder consentindo ou negando a pos- mas de modo algum se pode imputar-/he a guerra, o que seria um
si d idade de levar adiante o processo de criminalizaçäo em curso total absurdo:
e, a. caso de consenti-la, fixando-Ihe limites. No mais puro sentido Aresponsabilidade pela criminalizaçâo (ou pela continuaçâo
et:nológico, a partit do "injusto", a responsabÜldade (ou possibi- da criminalizaçäo em curso) corresponde exclusivamente à agência
lii Lade de resposta) é da agéncia judicial. judicial e esta deve assumi-la, desde que se tenha comprovado a
A deslegitimo ç4o do exercício de poder seletivo e orb itrário do presença dos requisitos objetivados (ou do objeto), nos casos que
st ma penal "passa" a responsabilidade do processado à agência o poder seletivo arbitrario do sistema penal submete à sua decisäo.
ju!i'iial. Oprocessado f4 nao é mais "o" responsáve4 pois nao tern A agência judicial tern fugido a essa responsabilidade ao largo
r que responder legítimamente (já que o submete a um poder da história. A "verdade" foi obtida primeiro pela luta e sO depois
.s egitimado). A responsabilidade é da agência judicial, que deve pela inquiriçáo10 mas à medida que penetramos mais na técnica e
re Lponder perante o processado e a comunidade, dando conta da na metodologia jurídicas, convencemo-nos deque a ordália era uma
foi-nia corn que exerce ou administra a sua reduzida quota de poder
liì,itador. A etizaçáo do direito penal,como assimilamos anterior-
9. "Responsabilidade", tanto em sua etimologia latina uarito gemânica
mrte8,näó consiste em urna série de requisitos éticos a serem refere-se a "resposta". Em ing1s parece tero mesmo sentido, poisse
(Verantwortlichkeit),
fcrriulados à agência judicial; e esta é que deve comportar-se diz (Abbagnamo, cit., pág. 749) que foi constatada no EI Federalista corn o sentido de
'governo responsável" e, em geni, corn o significado de responsabilidade politica (El
Federalista escñto em 1788 por los Sres. Hamilton, Madison y .T', sobre la Nueva

7. Ex ressâo corn que se designa a impossibilidade de urna coisa. (N. da tradutora.) Constigu clon, con um apéndice, etc., cred. de Ildefonso Isla, Buenos Aires, 1887, pág. 432).
8. (e :supra, pág. 207. 10. Foucault, Elsabery las farinas jun'dicas, cit.

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forma de intervençáo superior e direta na deeisào judicial, que poderia nela basear-se, devido à sua falta de racionalidade como
retirava toda a responsabilidade do juizt1 e pouco falta para que
nao aceitemos que a decorrência de sua desqualificaçäo ética.
ordália tenha desaparecido corn o inquérito, Se prescindirmos de seu contexto seletivo e da deslegitimaçâo
que nada mais é que uma "ordália legal", isto é, que a agência
judicial a depreende da "lei" e do "legislador", que são conceitos . que mesmo suporta, estaríamos reiterando em cada caso o ar-
o
gumento com que a maioria da Corte Suprema dos Estados Unidos
que se agitam 4'espiritos suçeriores"A exegese nao é nada mais que rechaça a evidéncia da discriminaçâo racial na aplicaçâo da pena
umafonna de ordálla légal 2 de morte14.
"escândalo" desencadeado por Magnaud no final do século A funçäo da culpabitidade pelo injusto, em que se esgota o
passado13 foi urna tentativa de aceitaçáo da responsabilidade, que conteúdo da culpabilidade segundo boa parte das teorias legitiman-
levou à crise a burocratizaçâo corporativa da magitraturã fran- do exercício do poder do sistema penal - especialmente nas do
cesa. direito penai mais "liberal" e garantidor -,seria, do ponto de vista
O momento mais crítico dessa aceitação por parte do discur- da fossa perspectiva exclusivamente reguladora das decisöes, mais
so jurídico-penal, que se conhece como "teoria do delito" é scm importantes como funçâo negativa (um requisito a mais de limite
dûvida, a "eulpabilidade", e por isso tern sido o nivel de requisitos máximo de irracionalidade açeitável) que como funçäo fundamen-
doutrinariamente menos estavel e mais preocupantes. Sua verda- tadora, para o que nao se presta. Encontrar-nos-íamos diante de
deira natureza e sua problemática se revelararn à medida que foi outro limite à arbitrariedade seletiva e, na melhor das.hipóteses,
sendo expurgada de conteúdos estranhos a si propria. Nao em vão como um indicador máximo da magnitude tolerável da resposta,
se disse que cia se "esvaziara" quando "dolo" e "culpa" passaram mas isto caso se conseguisse determiná-la dentro de um contexto
a ser estrutura típicas: o suposto "esvaziamento" (que nunca se lirnitador mais ampio, ou seja, como parte de outra colocaçao
deu) nao era mais que a elirninaçao do material estranho que diversa e mais abrangente.
ocultava um vazio teórico real, que significava a resposta de acci-
taçäo da responsabilidade pela criminalizaçao da parte da agência 2. A culpabilidade pela vulnerabilidade conio base da resposta
judicial (ou poder dos juristas). crinjinalizante. A expressao "culpa" tern sentido de "dívida", ainda
Nao nos cabe duvidar quc a resposta criminalizante da ins- que urn easicihano esteja ein desuso (conserva-o no "Pai-Nosso").
tância judicial deva respeitar os limites que ¡be irnpöe a culpa- Em alemao tern esse duplo sentido (Schuld) na linguagem corrente
bilidade pelo injusto, porque nâo .pode haver resposta e jurídica: Falar de "culpabilidade", pois, implica que se deve
criminalizante racionalmente aceita quando a autonomia corn que "algo", e nos discursos legitimantes do sistema penal considera-se
o sujeito realizou a açäo é ínfima ou nula, ou mesmo muito du- que esse "algo" é o "injusto" e que se "cobra" eom a pena.
vidosa. Esta culpabilidade pelo injusto assinalaria mais um limite à Para nós, se é que o "injusto" foi cometido, o sistema penal na
irracionalidade aeeitável, mas a resposta criminalizante näo prática nao "cobra" nada por ele, porque a pena náo resolve o
confito que produz a lesividade da açâo e, por conseguinte, nao
está legitimada. Logo, se existe uma "culpa", esta nao pode ser
11.A equivalência funcional do "juizo de Deus" a' 'legalidade enquanto fuga â avahada pelo sistema penal, onde, por definiçao estrutural, se
responsabilidade já nc referimos a ela em nosso ensaio Sociologia Procesal Pernil,
México, 1969, pág.44, como um parámetro extremamente ingenuo.
12:Sobre a "racionailzaçao funcional" do processo penal é importante considerar a
pá.
perspectiva de Ma Weber, FIjitO ria Económica General, México, 1964, 286-2E7.
13.Vcrsupra,pá. 218-219. 14. Versupra, pág 84.

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(t contra ausente o titular do bem afetado, que é o verdadeiro
modo, quanto maiorforo esforço, e a conseqüente contribuiçaopara
rdor desse "pagamento'! .
o fortalecirnento do sistema, que a pessoa fez para colocar-se em
Por conseguinte, näo é a "culpabilidade" pelo injusto que situação de vulnerabilidade ao seupoder menorserá o espaço de que
M de ser apurada pela agência judicial para que sua intervençäo dispôe a agência judicial para obstaculizar urna resposta
le cisOria seja racional e, conseqüentemente, legítima. Tarnpouco se
crirninalizante ou para diminuir a intensidade da resposta.
nta de que a agência judicial nao reprove nada, mas que encontre O esforço feito pela pcssoa para colocar-se em situaçâo de
ri critério racional, que nao resulte eticaniente desqualificado, a vulnerabijidade näo é algo que a agênciajudicial reprove à pessoa,
h rtir do qualpossa orientar suas decisOes.
e nem que confira um rótulo original e independente para que esta
Vimos que a agênciajudicial exerce um poder muito limitado.
the cobre sua culpa pela vulnerabilidade, mas Mo pode evitar que
4.kO obstante, temum certo poder que, por limitado que seja, deve
o poder do sistema penal a cobre, simplesmente, sem com isso pôr
1 tadministrá-lo racionalmente. em crise seu prOprio exercício de poder limitàdo.
A agência judicial penal carece do poder necessario para
A legitimidade da resposta criminalizante da agência judicial
roctuzir a grande mudança social que a consecuçäo do objetivo surge da necessidade que Ihe impöe o limitado poder que dispöe e
n diato ou utópico de sua estratégia exigiria (i aboliçâo do sistema
de maneira alguma legitima a pena: a Cruz Vermelha Internacional
enal) e, conseqüentemente, a única coisa que deve fazer é o que procede de modo legítimo comprovando que o tratamento dos
ts:á ao seu alcance, ou seja, reduzir progressivamente sua própria
prisionciros de guerra foi ajustado pela Convcnção de Gcnebra e
'o1ência seletiva e arbitrária, com vistas a urna atitude aberta ou com isso näo legitima a guerra nem sua conseqüência (a prisäo de
'i: 'acabada".
guerra).
Sua responsabilidade criminalizante será major quanto menor
Podc-se pensar cm urna rcprovaçäo, posto que a magnitude do
e.a seu poder limitador no caso concreto e vice-versa. Em cada
esforço para alcançar a situaçáo de vulnerabilidade implica urna
aso, haverá um "espaço" de exercício de poder diferente e, quanto
contribuiçáo para o fortalecimento da ilusäo do sistema penal, que
nnor sejà o espaço, menos poderá evitar a criminalizaçäo, e vice- a agência judicial çoder-lhe-ia reprovar como contrário ao seu
tersa.
esforço para limitar a violênciado sistema penal, mas nao é neces-
Mas, qual é esse "espaço"? O ¿tue Ihe assinala os limites ao sário imaginar semelhante desaprovaçao, porque o critório surge
CLI poder em cada hipótese particular?
diretamente do espaço de poder que o esforço pela vul-
Cremos que está mais ou menos claro que uma pessoa se nerabilidade, empreendido pela pessoa, deixa à agência judicial:
cIoca em situaçäo de vulnerabilidade quando o sistema penal a
quando o esforço e a contribuiçao são grandes, o poder decisório da
ceciona e a utiliza como instrumento para justificar seu próprio agéncia judicialfica muito reduzido.
xrcfcio de poder. Nao se trata de urna questão axiológica, mas de uma regra que
E o grau de vulnerabilidade ao sistema penal que decide a
¡he impOe o 'princ(pio de realidade": quem dispóe de dinheiro sufi-
eçáo e nao o cometimento do injusto, porque há muitissimos
ciente para solucionar todas as demandas deve reparti-lo de forma
uds injustos penais iguais e piores que deixam o sistema penal
que pare ça racional e que impeça que ¡he retire arbitrariamente a
ulilerente.
adrninistraçao do dinheiro; a necessidade originada pela sua
Na prática, o grau de esforço que urna pessoa realiza para
!ocarse em situa çûo de vulnerabilidade é diretamente propor- limitaçao ¡he indicará o critério. Algo análogo logo ocorre no exer-
o
cIclo de poder da agência judicial: deve administra-la conforme o
c na! àfortalecçdora quota de ilusao que os aparatos de propaganda
espaço que em cada caso lhe deixa a grandiosidade do esforço que
discursos de justifica çäo do sistema penal «inventarn ". Deste realizou a pessoa para colocar-se em situaçäo de vulnerabilidade.
['t'
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3. NIveis de vzglnerabilidade e cuipabilidade. O nivel de vul-
funçäo desta ordern de fatores, mas dos que constituem o esforço
.

nerabilidade é fornecido pela proporçäo do risco de seleçao, que pessoal para a vulnerabilidade, que, por outro lado, são os que
corresponde à situaçao de vulnerabilidade em que se colocou o constituent a esséncia da contribuiçãodadapelapessoapara nisten-
sujeito. tar o exerc(cio de poder que a seleciona e criminaliza. Seu poder
Diante deste fato, a agôncia judicial deve tornar-se respon- redutor da violência seletiva atinge este limite diante do quai deve
sável pela criminalizaçäo (responde consentindo em seu avanço)
deter-se, pois nao Ihe sobra espaço de poder para avançar mais.?
somente e na medida èmque careça de possibilidade razoável para Trata-se do limite máximo de violência tolerável no qual pode
exercer seu poder de outra maneira. For conseguinte, seu limitado basear sua resposta definitiva e que, de certa forma, é alimentado
poder faz corn que nao ihe reste outro recurso que "cobrar" ao autor e sustentado por todos os anteriores limites ou requisitos
seit esforço para alcançar a situaçäo de vulnerabilida«e. Passaremos limitadores.
a precisar este enunciado básico. O esforço pessoal para a vulnerabilidade nao constitui um
A vulnerabilidade (ou o risco de seleçáo), como todo perigo, fator, e sim urna ordern de fatores, da qual o grau de autonomia
reconhece graus, segundo a probabilidade de seleçáo, podendo decisória do "injusto" e somente um deles, ,e a cujo respeito insis-
estabelecer-se níveis, conforme a situaçúo em que se tenha colo- tiremos seguidamente, mas anotemos, por eñquanto somente isto,
cado a pessoa. precisando que é eminentenientegraduável. O que indubitavelmeute
Esta situaçdo de vulnerabilidade é produzidapelosfatores de resulta claro é que queinparte de urna baixa condiçao ouposiçäo de
vulnerabilidade, que podem ser classificados em dois grandes vulnerabilidade deve realizar um esforço de proporçao consideró vel
grupos: posiçäo ou estado de vulnerabilidade e o esforço pessoal para alcançar urna posicao que o situe em nivel de alta viiI-
para a vulnerabilidad e. nerabilidade e vice-versa. Da mesma forma, já que a vulnerabilidade
A posi çäo ou estado de vulnerabilidade & predominantemente é também graduável, alguém quejá se encontre em urnaposiçöo de
social (condicionada socialmente) e consiste no grau dc risco ou alta vulnerabilidade pode realizar urn grande esforco para colocar-se
perigo que a pessoa corre só por pertencer a urna classe, grupo, em urna situacao de nivel incrivelrnente elevado de vulnerabilidade.
estrato social, minoria, etc., %cmprc niais ou menos ampio, conio Os mais notOrios csforços para aicançar situaçócs dc alta
tambam por se encaixar ein um estereótipo, dcvido às caracte- vuincrabilidade, partindo de posiçñes de nivel muito baixo de vul-
rísticas que a pessoa recebeu. nerabilidade, foram empreendidos por alguns delinquentes do
O esforçopessoalpara a vulnerabilidade é predominantemente poder (genocidas, delinqüentes econômicos, etc.), logo derrotados
individual, consistindo no grau de perigo ou risco em que a pessoa em contendas hegemônicas corn outro poder maior. A ajuda que
se coloca em razão de um comportamento particular. A realizaçâo estes prestam ao sistema penal é enorme, por reforçarem á falsa
do "injusto" é parte do esforço para a vulnerabilidade, na medida ilusäo de igualdade perante a lei e de utilidade do sistema penal.
em que o tenha decidido com autonomia. Pelo contrário, um dos casbs mais evidentes de incrível vul-
Desta rnaneira, a culpabilidade pelo injusto se converte em nerabilidade alcançada após enorme esforço, realizado a partir de
urna parte mais ampia e mais abrangente da colocaçáo da cul- uma posiçâo que já era de altissima vulnerabilidade, foi â do mar-
pabiiidade pela vulnerabilidade e assume, dentro dela, seu valor tinicano assassino massivo de anciãs em Paris, que reforçou toda a
negativo de limite máximo de irracionalidade aceitavel. prática violenta de poder em relaçao ao seu grupo de origem e, por
Destas duas ordens de fatores de vulnerabilidade, o estado ou extensáo, contra todos os colonizados, e que conchil o reforço a
puniçâo de vulnerabilidade é "incobrável". Colocada a agôncia esse estereátipo ao morrer de Aids na prisâo.
judicial diante da necessidade de responder, nao pode fazé-lo em

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trole seletivo de máxima instância, em uma culpabilidade pela vid-
A situaçdo de vulnerabilidade se situa em um nivel de risco, nerabilidade que superarla e abarcarla a consagrada culpabilidade
¡n s este, como todoperigo, requer major probabilidade de seleçáo. pelo injusto.
A p -obabilidade é sempre calculada conforme a observação plural E neeessário proceder como em uma espiral e, como a cúpula
01 t iassiva dos fenômenos e ali se acha evidente que o sistema penal do Erunelleschi, construí-la partindo de quem sempre quis "fazer
n i) opera simplesmente como um/Viper, mas como urnfliper "car- efetiva" a responsabilidade atheia, para chegar à culpabilidade de
re g do", o que nos permite estabelecer os n(veis de vulnerabilida4e. queni sempre foi considerado como "responsável".
Näo obstante, como se pode jnlerir de tudo isto, no caso
pìr icular pode suceder que se trate de ums hipótese em cuja 4. 0 esforço pessoal para a vulnerabilidade. Partindo de dife-
"] e ilizaçäo da seleçáo" tenha recaído sobre uma pessoa cuja ângulos de análise, pode-se reconhecer uma capacidade ou
si uaçäo de vulnerabiljdade era de risco relativamente bajxo. Em condição criativa que a sociedade nap pode eliminar, sob pena de
t iipótese, veremos também que o esforço pessoal para a vul- paralisar seu dinamismo, que tampouco pode ser explicado sern
fl! f ìbiljdade e o conseqüente reforço à ilusão do sistema
penal são essa constatação. Desse modo, numa perspectiva existencial, cons-
u ix bém mujto baixos, o que nos dará um nIvel baixo de cul- tata-se a existência de um domínio de inautenticidade, no quai se
p itilidade e urna conseqüente alta possibilidade dc exercício
de aceita o das Man (o on francôs ou se casteihano) como pressuposto
p )c er redutivo e negativo de resposta crirninalizanic
por ìarte da para urna escolha "autôntiea", que seria a criativat5. Na colocaçáo
aêieia judicial. interacionista disiinguiu-se a atribuiçäo de papéis como o "mim"
Em todo caso, resulta que o que a agência judicial nao poderá ( o conjunto dos papéis determinados pelas outras pessoas, que
d iar explícito é que permite "cobrança" do esforço pessoal pela "chegam" a nos) e a parte criativa da personalidade como o "eu"5.
vHerabjlidade, porque o exercício do poder das demais agôncias Quanto mais limitada estiver lima pessoa por sua posiçào
d isterna penal o impede, devido à contribuiçào que este significa vulnerável, em-particular pela atribuição de papéis que corres-
a) nesmo. pondain ao estereOtipo em que se enclausura, menos autonomia
Por outro lado, este constitui o menor grau de sacrificio da terá para a realizaçào do "injusto" que corresponda a tais papéis e
r. LC Oflalidade feito pelaprópria agência judicial, já que sua respon- major será o esforço que deverá fazer seu "eu" para superar o
s ±ilidade na criminalização surgiria diretamente da contribuiçáo "mirn".
d pessoa que exerce o poder seletivo, que a propria agência trata Em regra, a posição ou estado de major vulnerabilidade dará
de limitar e, de modo mediato (utópico), suprimir. Nao obstante, origen a um baixo nivel de culpabilidade pela vulnerabilidade,
i )sistjrnos em que a agência judicial nao formula nenhuma porque o esforço pessoat para a vulnerabilidade por parte da pes-
"reprovaçäo" ao esforço pessoal para a vulnerabilidade, pois se soa nao é muito elevado.
trataria de urna reprovaçäo sempre deslegitimada, já que sua Considerando que o contato como sistema penal, geralmente,
t:adução em urna pena constitui urn mecanjsmo reprodutor violen- costuma fixar os papéis, os contatos anteriores com o sistema pe-
t :, mas, diante da necessidade de eleger a quem se permitirá fazer nal17 tornam cada vez menor o esforço necessário para alcançar a
2 "cobrança" e "quanto será cobrado", age valendo-se de algo mais situaçäo vulnerável, pelo que, menor resposta criminalizante cor-
p -oximado a urna reprovaçâo legítima dentre os que o exercício
ce poder do sistema penal possa lhe oferecer.
O enorme vazio que a culpabilidade tradicional deixa - que 15.Heidegger, por exemplo, em Sein und Zeit.
ii u rica pode ser bem formulada- sO pode ser preenchido conforme 16.George Herbert Mead, Espfriw persona y socieda4 cit.
lLCf. Becker,Qutsider cit.
responsabilidade da agência judicial, traduzida, segundo um con-
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p
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responderá por parte da agência judicial (ao contrário do que
normalmente se defende). Quanto menor for o eslorço da pessoa mesma forma quanto ao sistema penal, e é por isso condenada ao
para prosseguir em seu "mim" e fortalecer o seu "eu", major será fracasso. A pena nao é mais que um ato de poder, e a teorizaçáo da
a resposta criminalizante da agência judicial, mas isto nao é válido mesma nao deixa de ser urna tentativa legitimante de toda o exer-
quando o "eu" já se encontra muito debilitado e o "miin" muito cício de poder do sistema penal.
fortalecido, graças à ação do poder do sistema de seleçao arbi- Em seudo a pena irracional e parte de ato violento de poder
trária. muito mais ampio, urge a necessidade de se intensifièar o esforço
A agência judicial deve, a esse respeito, agir de forma a jurídico para limitá-la bem como à sua violéncia.
reduzir ao mínimo a reproduçäo da violência que tem por resultado A condiçäo de prisioneiro político näo resulta da razäo e sim
esta fabricaçáo de "desviados", à medida qUe seinventam este- da força. A diferença do prisioneiro de guerra, em que a condiçäo
reótipos a que os papéis devam ser atribuidos. de apriionado está limitada por um fato externo, para o prisioneiro
Partindo de tima ática "revolucionária", talvez se pudesse político nao é "natural", apresentando-se indefinida. Seudo
defender o contrário, indo ao encontro da posiçáo tradicional: inadmissível semclhante grau de irracionalidade, em que pese o
desempenhar os papóis de estereátipo implica reforçá-lo e, por limite sempre incerto que o legislador impoe, a agência judicial
conseguinte, fortalecer o poder das classes dominantes; quem as- vê-se diante da necessidade de estabelecer um limite mais preciso
sim age nao passa de um "traidor" de sua classe, um Lumpenpro- em cada suposto caso concreto.
letarier, a quem se deve punir ou marginalizar. Em cada caso que a agênciajudicial deve decidir, näopoden-
Isto implicaria tratar o criminalizado como um infectado que do impedir a criminalizaçao, necessitará de urna pauta que lhe
deve permanecer de quarentena ou, inclusive, como algo pior. Nao permita determinar a quantidade de violência irracional que a
se percebe quai seria a razäo para se exigir um esforço maior e pessoa deverá receber à título de pena.
quase sobre-humano a quem está mais debilitado para a realizaçao Na batalha ética que a agência judicial trava corn a açao do
de um esforço de contençáo de seu "mim" (dos papeis). É fora de poder a fim de impor limites à irracionalidade, é razoável que esta
dúvida que esta racionalização corresponde a urna posiçäo de guer- se dedique com maior interesse a restringir a violéncia que é exer-
ra, muito práxima à da "segurança nacional", somente admissivel cida sobre pessoas que pouco reforçaram a mesma violôncia de que
se houvesse uma guerra real, mas que, da forma corn que é enun- são objeto (e o poder que limita o da agência judicial, por fortalecer
ciada, demonstra odesconhecimento das diferenças mais marcan- o poder das agências do sistema), por serem aquelas que decidiram
tes entre açáo do poder em tempo de guerra e em conjuntura pela açAo corn grau menor de autonomia.
política- Por outro lado, a açào do poder das demais agências do
sistema penal nao deixa espaço para que se exerça um poder limi-
5. QuantiJìcaçäo penal e culpabilidade pela vulnerabilidade ou tativo de violência maior.
pelo esforço pessoal para a vülnerabilidade. O sistema penal resulta Quanto maiorforo grau de culpabilidade pela vulnerabilidade,
deslegitimado ante a constataçáo social de sua operatividade real. menor deve ser (porque também menor pode ser) o interesse da
Os discursos juridico-penais legitimantes vão sendo descartados c agéncia judicial em limitara pena.
abandonados ao largo do penoso caminho das frustraçöes do direi- Em todo caso, ten ha-se presente que a culpabilidade pela vul-
to penal como ilusoes destroçadas dos penalistas dos últimos sécu- nerabilidade nunca pode ultrapassar o limite estabelecido para a
los, porque as penas carecem de racionalidade. Qualquer tentativa autonomia da vontade na culpabilidade pelo injusto. A culpabÜidade
para restabelecer a legitimidade dessas penas equivale a agir da pela vulnerabilidade contém, en quanto parte do esforçopessoalpara
a vulnerabilidade, a culpabilidade pelo injusto, que cumpre a sua
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Em smntese: a necessidade (limite ao seu exercicio decisório de
:rïçao negativa ou ¡imitadora da culpabilidade total para a vul- poder) obriga a agência judicial a estabelecer o máximo de inten-
urabilidade, a ponto de, caso iWo haja culpabilidade pelo injusto, sidade que pode tolerar no exercício de sua responsabilidade
lt O poder conceber culpabilidade alguma para a vulnerabilidade.
criminalizante segundo urna ordern prioritária que atenda ao nivel de
A culpabilidade para a vulnerabilidade opera sempre como para a vulnerabilidade de cada pessoa selecionada
, ute máximo da violência aceita, sempre para baixo - ou pelo
pelo poder das demais agências do sistema penal, o que confere
n mos coincidindo -, coni o limite que surgiria da niera culpa- eticidade à sua decisao sern que implique aceitar-Ihe a violência
ridade pelo injusto, por se tratar de um conceito maior abrangente
i
reprodutora que nao tempoderpara eliminar.
;edutor desta. A quantificaçäo penal nao se esgota na culpabilidade para a
Insistimos em que a decisäo da agêriciajudicial é racional, na que somente demarca seu limite máximo -
3 dida em que distribuì racionalmente seu exercício de poder e, sempre que nao sejá inferior ao da culpabilidade pelo injusto -,
? ra ¡sso, usa como critério a culpabilidade, mas isto näo significa como corretivo racional, abrangente e redutor da culpabilidade
:ji e a pena seja fundada ou legitimada pela culpabilidade, mas que
pelo injusto.
igência judicial regula desse modo suas decisoes, estabelecendo E possível que emerjam consideraçóesdo prOprio discurso
nia ordern preferencial de atençäo, porque está obrigada a pautá- jur(dico penal e dos principios limitativos gerais que impôem outra
.a de algum modo, dado que a isso está obrigada nao só pelas
classe de limites à responsabilidade criminalizante da agência judi-
I( mais agências do poder penal como pela necessidade de conser-
cial, impondo a mesma rea çäo quantitativa da pena ou mesmo a sua
ar e ampliar seupróprio poder. eliminaçao. Causas pessoais de exclusão e de cancelamento da
Assim como a agência do direito humanitario näo dispóe de punihilidade podem interceder, e tambóm pode suceder que os
tder para libertar todos os prisioneiros de guerra, e, portanto, chamados principios de humanidade e de personalidade (ou näo-
ic ve dirigir sua atençäo segundo uma ordern racional de pre- transcedêneia) assinalem, no caso, limites inferiores aos indicados
rência (deverá ocupar-se primeiramente dos feridos, dos casa- pela culpabilidade para a vulnerabilidade, o que náo apresenta
ic's, etc., sem que ¡sto implique desprezar os outros por nao nenhum inconveniente lógico nem ético à agéncia judicial, na
:starem feridos ou por serem solteiros), do mesmo modo a agência. medida em que nao se trate de beneffcios ad hoc, que pretendam
ip.e deseja controlar a violência da açäo do poder em conjuntura consagrar urna seletividade ainda maior que a corrente e estrutural
clítica deve ter suas próprias pautas de preferência para ocupar- do exercício de poder do sistema penal.
;e dos prisioneiros políticos.
A escolhída culpabilidade pela vulnerabilidade como regra Será preciso uma nova "tópica"? A culpabilidade para a
6.
i o é arbitrária, porque alem de ser razoável (pareceria que o
vulnerabilidade marcará a preferência da agência judicial e pode
2rif(cio ético é menor quando se ocupa menos dos que mais agem parecer que isto implica algo como averiguar primeiramente a
ra neutralizar sua propria açao ¡imitadora de violência) nos fatos,
&
solução "correta", para depois buscar os argumentos para sustentá-
anto maior for a culpabilidade pela vulnerabilidade, menor é o la, método que adquiriu certa notoriedade nos anos cinqüenta, com
sìaço decisOrio deixado à agbicia judicial, pois as demais agências a tópica de Viehweg'8, que apelava a Aristóteles e a Cícero para
especialmente, o formidavel aparato de propaganda do sistema
enal, corn sua invençäo da realidade, ocupar-se-iam de aniquilar
negar a possibilidade de construçâo de uni "sistema" entendido -
Igência e suas legítimas tentativas limitadoras, sustentando seu
i)ercício de poder deslegitimado e pondo em risco toda a empresa 18. T. Viebweg, TOpycay jurùprudtncia, Madri, 1964 (Toptk und Jurisprudenz, 1953).
udicial de limitaçao da violência.
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-,
)

I- como ordern reguladora da doutrina e pretendia encontrar a


soluçâo justa em cada caso, partindo dos dados concretos do fato. mostraria como produzir urna tensäo interna na teoria que sirva para
-
Antes de mais nada, deve ficar claro que nao estamos propon- aperfeiçoar os "padrOes" de realizaçào dos principios garantidores
do urn método corn validade geral para todo o direito e nem sequer (ou seja, os "standards" de intolerância à irracionalidade do poder
para o direito penal, mas somente um novo conceito de cul- do sistema penal). Náo é mais que um simples fato - que, como tal
pabiiidade que englobe a tradicional culpabilidade pelo injusto. e fora do contexto teórico, ocorra diariamente19 - e que nao
Pot mitro lado, o grau de culpabilidade para a vulnerabilidade desmente a necessidade de urna regulacac coerente para as
nao estarja-indicando nenhuni tipo de soluçáo "justa" - corno o decisöes (ou atividade decisoria), mas impele-a a uma permanente
pretende a "tópica" -, mas somente a decisäopossível, porque se superaçâo por via da elevaçâo dos standards garantidores ou
deriva da exist&ncia de um "espaço de poder" fora do qual nao ha limitadores.
possibilidade de decidir.
Nao obstante, quem for sincero e conhecedor dos trabaihos 7 A culpabilidadepara a vulnerabilidade é do ato ou do autor?
judiciais poderá observar sein dúvida um dado elementar da discurso Jurídico-penal tradicional desenvolveu a antftese entre
realidade: quando as circunstâncias que levarnos em conta para "culpabilidade de ato" e "culpabilidade de autor", tendo o direito
estabelecer a culpabilidade para a vulnerabilidade se acham clara- penal mais garantidor se inclinado pela primeira, e o mais
-
-
mente manifestas no sentido de urn nivel inferidr, é comum que autoritário preferido à segunda.
alguns jWzes - os menos burocratizados ou os que nao se tenham Cabe perguntar em que ponto se increve a proposta de urna
- deteriorado canalizando sua agressividade contra os culpabilidade para a vulnerabilidade.
-: criminalizados - forcem um pouco os argumentos ou intensifi- Convém observar, antes de ensaiar uma resposta, que a cul-
quem o cuidado para evitar a imposiçâo de uma pena pabilidade pela vulnerabilidade, tal qual a propomos, atém-se
ou, se
---- inevitável, a mais leve possível. estritamente à culpahilidade pelo ato (e a denominamos "cul-
Esta tendência humana precisa ser reconhecida e reaiçada, pabilidade pelo injusto"), cujos limites nao podem ser ultrapas-
pois nada tern de negativo, sendo precisamente por isso necess5rio sados por esta, constituindo urn conceito que a abrange, e que na
que a construçào jurídica a acolha, mas só que, ao fazé-lo, damo- pio das hipótescs indicará um limite máximo dc pena proporcional
nos conta de que náo se trata de uma questão metodolOgica, e sim culpabilidade pelo injusto.
de um simples dado de realidade acerca da operatividade da Estabelecidos assim os parâmetros da questäo, fica sem sen-
judicial ou de parte dela. tido se se trata de um outro dos termos da antítese tradicional, se
Considerando-se este dado, é possível que em alguns casos bern que resulta claro que pode ser qualificada como um desenvol-
..

concretos, ao analisar a culpabilidade para a vulnerabilidade como vimento superador da culpabilidade do ato ein dùeçdo a um conceito
urna inevitável e positiva reaçäo humana de um setor da agência mais limitativo da responsabilidade criminalizante da agênciajudi-
:
judicial, no caso concreto se volte para os requisitos elementares chit
- :

dodelitoeparaamesrnaculpabilidadepeloinjusto,paraversenäo Corn relaçâo ao seus efeitos quando comparados aos da cul-


se pode excluir a hipótese dos limites máximos de irraeionalidade pabilidade do autor, entendida como "culpabilidade pela per-
aceitável, e ao fazô-lo se agudizem e restrinjam os perfis destes sonalidade" ou "pelo caráter", cabe assinalar que suas
limites.
Isto náo é de modo algum urna soluçáo "tópica" que impos-
sibilite a construçáo coerente, mas urn simples dado real que nos
19. Por regra geni, obtm.se a soluçso por via processual, particularmente probatOria.

H 279

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oaseqüências são diametralmen(eopdstas às da culpabilidade diata da condiçào de prisioneiro político ou que a abrevie, mas
)ela yulnerabilidade. corn elevadlssimo grau de proba-
j
sabendo a agência judicial que,
Enquanto por via da culpabilidade de autor são mais bilidade, a pessoa será executada por alguma
agência do sistema
'reprováveis" as açòes que se ajustarn ao estereOtipo, para a nossa -: penal.
uulpabilidade pela vulnerabilidade mais frequente será que suceda Trata-se de uma hipótese que nao pode ser classificada corno
i contrário, e da mesma forma corn toda a carga axiológica que de laboratorio na realidade operativa dos nossos sistemas penais,
j retendia valorar "personalidades", "caracteres" ou a eleiçäo total nos quais a execuflo sern processo já se converteu em prática
Le urna pessoa, que nao era mais que urna "sutilizaçâo" da veiha e cotidiana.
uonhecida "perigosidade" Impöe-se aqui urna gravIssima disjuntiva entre a vida do pri-
Seudo assim, pouco importa qualificar a culpabilidade pela sioneiro e o principio regulador fundamental do exercício de poder
'ulnerabilidade como de "autor", se o preferirem, nao havendo da agência judicial.
obstáculo a que se aceite urna "culpabilidade de autor" que restrin- A gravidade do conflito é ainda major quando a autode-
ja- a culpabilidade de fato, que seria sempre mais limitativa da terminação do prisioneiro é consideravelmente baixa em razão da
o iolência penal deslegitimada que a versäo tradicionalmente aceita debilidade do-scu "eu" por efeito de anteriores intervençóes do
j 'elo direito penal "liberal". sistema penal, que o condicionaram a colocar-se em situaçóes de
alta vulnerabilidade como candidato a urna execuçáo, isto é, a ser
8. Pena sem culpabilidade ou a possibilidade da aberraçao exibido como çadáver de "inirnigo na guerra suja da conjuntura
ic'lerada. (Aperigosidade do sistema penaL) Após o exposto, parece política".
o em sentido perguntar se em algum caso a agéncia judicial, mesmo Em que pese ser a questâo extremamente delicada, cremos
o espeitando os limites legais das penas flexíveis, poderla exceder que a condiçáo de prisioneiros preserva a pesssoa (o que pode näo
orn sua decisâo o máximo de pena que Ihe impöe a culpabilidade suceder, casO o campo de concentraçào para prisioneiros políticos
pela vulneirabilidade, näo ofereça segìirança em razào de sua violência jnterna), trente a
E indubitável que nao existe nenhuma considcraçáo expressa urna séria e concreta ameaça de urna execuçäo sem processo, a
concernente ao perigo para a agéncia, ou para o seu prestigio e decisäo de reter o prisioneiro, dentro dos limites legais, pothm
poder, que a autorize a exceder esse limite máximo, pois isto ultrapassando o Limite indicado por seu esforço para a vulnera-
neutralizaria seu embasamento ótico e, portanto, retiraria a bilidade nao 6 objetável eticamente, tendo em conta que o e-
i acionalidade (legitimidade) de sua regulaçáo decisória e de seu xercício de poder da agência judicial se dá em um processo de luta
oxercício de poder. ou batalha de poderes e que, afinal, a regra decisoria que privilegia
Entretanto, a questão nao excede em proporçäo a forrnidável o valor'davida humana em uma situaçäo de necessidade nao pode
'iolôncia dos sistemas pexiais de nossa regiáo marginal, que corn ser eticanient7e criticada.
]amentável freqüncia colocam situaçöes-limite particularmente
[if íceis de resolver e a respeito das quais seria necessário aprofun-
o[ar muito mais, especialmente porque nunca foram abordadas pelo
discurso jurídico, e o poder dos juristas age como se elas nao
.xistissem.
Referimo-nos à hipótese em que a intervençâo da agéncia
judicial se traduza em urna decisao que implique a cessação ime-

so
j
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