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Ainda, a Melancolia
passagem do tempo, de sua finitude, na dolorosa dificuldade de esquecer num mundo que
prima pela rapidez, mas ela se torna mesmo base de uma formação (Bildung) adequada à
(PEIXOTO, N.: 1987, 107), mas a uma postura mais próxima de Benjamin, para quem, "o
movimento temporal é captado e analisado em uma imagem espacial" (apud CHIAMPI, I.:
1994, 18).
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Versão anterior publicada em Lugar Comum, 7, jan/abril 1999, NEPCOM/Universidade Federal do Rio
de Janeiro.
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moderno, o tempo histórico emerge como elemento fundamental no século XIX , radicalizado
(HUYSSEN, A.: 1993, 6) e entrando em crise com a alta modernidade, quando as tentações
emergente a partir do pós-guerra, e mais acentuadamente, a partir dos anos 70, é o espaço que
esquecimento da categoria tempo no cenário pós-moderno (idem, 3 e 7), nem também simples
sintéticas e virtuais (PARENTE, A.: 1993, 19), mas uma redefinição cronotópica.
Por que e para que aprender? É possível uma vida enquanto aprendizado? São
perguntas como essas que podem repor a atualidade da discussão em torno da Bildung
(formação), não para repetir seu conteúdo iluminista que implicava a socialização do indivíduo,
singular e autônomo, a partir de um aprendizado interior, progressivo e por etapas; mas para
ponte entre vida e conhecimento, o que será feito através de uma breve história do
estabelecer sua tipologia, Bakhtin desloca uma noção de formação unicamente vinculada ao
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sua concepção de mundo e da composição romanesca (BAKHTIN, M.: 1984, 213), que a
(idem, 225). As modificações por que passa levam o sujeito romanesco a ser constantemente
229), sempre integrado a um espaço concreto (idem, 249). O que conduz a uma percepção
"realista" do tempo, ou seja, a uma visão linear e progressista da história, por distinguir
formação para se discutir o modo de inserção do sujeito no mundo e até a composição de uma
seria didático, exemplar para o leitor, mas útil para identificar as tensões de uma geração, de
uma época.
indivíduo se forma, ao mesmo tempo que contribui para a mudança da sociedade em que vive,
pode-se observar uma fratura desse modelo, ainda no século XIX, na medida do conflito entre
Joyce e Tonio Kröger de Thomas Mann; e romances sobre jovens burgueses, comuns que não
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contestam frontalmente sua época, mas com a qual não estão satisfeitos, havendo um recuo
para a interioridade e onde uma certa compreensão do mundo se relaciona com a impotência
depois dos anos 60, quando ele, na sua pretensão universalista, é atacado pela problemática de
tempos individuais e sociais. Como cantam os Titãs: “tudo ao mesmo tempo agora”. Nesse
último caso, em detrimento de um tempo interior tão explorado nas obras-primas da alta
modernidade, o espaço exterior, não mais emoldurado por mitos ocidentais tradicionais, nem
mergulhado no fluxo da consciência ou no mundo onírico, volta a ser valorizado através das
proliferação de imagens midiáticas2, como nas obras de Peter Handke, João Gilberto Noll e
das marcas do desejo de querer contar estórias e ao narrar persistir na busca de fazer
incorporação de filmes e músicas, dada a sua penetração, em especial, nas gerações de jovens,
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Para a associação entre imagens, narrativa e deriva, com referências à literatura brasileira,
especialmente à obra de João Gilberto Noll, ver César Guimarães (1997), Marli Scarpelli (1999) e Idelber
Avelar (2000).
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das últimas décadas. Lembro, só para dar alguns exemplos, "Juventude Transviada" de
Nicholas Ray para os rebeldes sem causa dos anos 50, "Like a Rolling Stone" de Bob Dylan
para hippies e afins ("When you got nothing/ You got nothing to lose"), a desilusão pós-68 em
"Sem Destino" de Dennis Hopper, o anarco-niilismo punk cantado por Joey Ramone ("I don't
care about the world/ I don't care about that girl... I don't care"), a desterritorialização em
filmes de Wim Wenders, Jim Jarmusch, Gus van Sandt (“Garotos de Programa”), Theo
Angelopoulos ("Paisagem na Neblina") ou em "Lugar Nenhum" dos Titãs ("Não sou brasileiro/
Não sou estrangeiro/ Sou de lugar nenhum"). Talvez a emergência mesmo da sensação de se
interior" (PEIXOTO, N.: 1987, 86). "Because we're young/ Because we're gone/ So young
suspeita de um orgulho antropocêntrico, senão substituída pela deriva e pelo acaso. A noção
sobrevivência residual (MORICONI, I.: 1991, 268). Se para Rousseau, a máscara não é o
homem, a medida está deixando de ser o homem em detrimento da imagem. E nesse teatro de
o que importa. É necessário saber jogar, mesmo que seja a última partida. O desafio desse
constante troca, seu eu mutante sem se deixar dissolver no puro movimento, na velocidade, no
vinculada a introduzir o caos na ordem (ADORNO, T.: 1992, 195), o vislumbre de uma
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formação contemporânea se não nega, pelo menos redimensiona o ímpeto destrutivo da arte
moderna. Não se trata de resgatar a arte como meio privilegiado de formação, nos moldes de
Schiller, mas pensar uma existência estetizada. O que não implica necessariamente a dissolução
dos limites entre arte e vida, mas a consideração da vida cotidiana como jogo de máscaras.
idealizadora da maturidade. Aprendizado não só por conceitos, mas por imagens e sensações,
pequena.
continuidade ao século XIX, a cidade como unidade geo-imaginária tem sido franqueada,
indissociabilidade entre imagem e cidade. E a cada tipo de imagem, nosso olhar muda e a
cidade, também. As relações de proximidade e distância são repensadas. Que cidade é esta
em que meu vizinho é mais aquele com que falo toda manhã na internet do que a pessoa
do apartamento ao lado que mal cumprimento? Claro, a cidade como espaço de liberdade
e anonimato, solidão, sempre nos possibilitou fazer o nosso próprio mapa, nossos espaços
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de afeto e encontro. Seria então apenas um alargamento de fronteiras a ponto das cidades
se misturarem com em “Até o Fim do Mundo” de Wim Wenders sem que vejamos mais os
trajetos realizados entre as diversas cidades por que os protagonistas passam? Se o mundo
é uma cidade é porque a cidade não nos diz mais nada e as fronteiras são tantas e múltiplas
que as noções tradicionais de cidade e bairros como continuidades espaciais bem precisas
precisa ser repensada? Diante desses debates, a volta da viagem é problemática, marcada por
uma certa inutilidade, quando, cada vez mais, há circulação veloz de idéias e imagens. Porém, é
Mas "se para sobreviver, há que se aprender a não sentir, mesmo que isso exija algum
aprendizado" (John Rechy, Fourth Angel), há também que se aprender a sentir, ultrapassar a
mera sobrevivência, ousar empreender uma educação dos sentidos e sentimentos. Afinal,
"achar nosso lugar no mundo, é um abrigo antes gregário que geográfico"(Amir Labaki).
Dessa forma, o que me guia nessa busca é que o significado da viagem deixou de ser o
ou o autômato cada vez mais tem o nosso rosto. As trips psicodélicas, herdeiras dos transes
(todos somos estranhos), em que o desafio da pluralidade conduz não a uma estratégia
plural, composto por fluxos, uma máquina de desejos, nos termos de Deleuze e Guattari, ao
embates de nossa época como um ator secundário observando os protagonistas atuarem. Força
tão frágil, mas necessária, especialmente em tempos de falta de utopias. Com Apolo e Dioniso
mortos em batalha, talvez o velho deus Chronos reviva cobrindo com memória e esquecimento
Um Aprendizado à Deriva
de identidades geradas a partir do gênero, etnia e raça, ou ainda, classe social, nação e cultura.
Tabucchi, atravessa essas categorias e vai além, sem reduzi-las a uma síntese apressada no
necessariamente submetidos a uma ordem cronológica" (MORICONI, I.: 1987, 24). Trata-se
quer que esteja, vendo tudo e todos como o mesmo, e o retorno nostálgico e mitificado a
conservadorismo moral.
perplexidades. Viagem não mais como perda de ilusões, nem simples fuga. Todo o livro é um
aprendizado através da imagem tradicional da viagem mas que não se situa nem no confronto
com o radicalmente outro, que seria representado por uma Índia sensual e mística, milenar,
exótica, nem com o mesmo, possivelmente uma Índia modernizada, vista apenas como uma
igual e o diferente, o arcaico e o moderno, e não é à toa que isso se dê num lugar de fricção,
num entre-lugar.
infância para a maturidade, com eventuais conflitos geracionais, na medida em que sua idade é
indefinida. Pressupõe-se que não seja muito jovem devido ao trabalho especializado que
realiza: a busca de documentos raros. No entanto, a viagem à Índia se constitui num momento
concisão anti-emotiva da escritura não devem ser entendidas como indiferença frente à viagem,
mas como uma postura de observação atenta, ainda que não apaixonada. O protagonista, ao
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buscar um olhar singular sobre a Índia, é também a si mesmo que ele está conhecendo melhor.
A procura do amigo Xavier, suposto motivo da viagem, além das razões de trabalho, seria uma
representação de alteridade, assim como a Índia exótica, que aos poucos vai se tornando uma
busca de autoconhecimento. O protagonista parece se perder na Índia como seu amigo Xavier.
Cria-se um jogo de identidades múltiplas, intercambiantes, como a dos deuses indianos. Menos
desse jogo que advém o conhecimento de si. O aprendizado constitui-se menos uma quebra de
mundo estranho mas próximo, desafiante. A Índia se internalizou dentro do protagonista como
de ter sido através dela (viagem) que se chegou a essa percepção. O estranho está em todo
lugar, em todos nós. Num mundo de imagens, os lugares e as culturas diferentes nos chegam
cada vez mais pelos meios de comunicação de massa do que por vivências cotidianas
tradicionais. "É preciso ver o menos possível" (p. 89). Nosso problema é a saturação de
imagens e não sua falta. Os lugares interessam menos por eles mesmos e mais por sua interação
com o protagonista e seus encontros. O que não impede de situar esta novela numa tradição
pós-vanguardista em que a dimensão do espaço exterior volta a ser colocada com insistência,
vida anterior pouco se sabe no que se refere a sua vida anterior. A noção de tempo linear, com
passado, presente e futuro distintos parece não ser mais útil, portanto não teria sentido para
uma formação contemporânea seguir um tempo histórico progressivo na medida em que ele
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não corresponderia mais a uma experiência típica da atualidade. O tempo do romance é menos
passado e de algum futuro. Como as identidades pessoais e culturais são fluidas, o tempo
moldado por doze capítulos são doze cortes, momentos da viagem em lugares diferentes, mas
nem desses temos uma visão total, exaustiva, contínua. O jogo de identidades múltiplas cria
de uma identidade pelo olhar. Em cada um dos doze capítulos, há um encontro noturno
importante para o protagonista. Apesar dos saltos temporais e espaciais, o ambiente é de uma
difusão contínua, de uma imagem embaçada, de uma peça suave, um noturno. Talvez, como já
foi observado sobre outro livro de Tabucchi, O Jogo do Reverso, mais do que a viagem, é o
sentimento de viagem que propicia a suspensão no tempo e na distância, que sempre rima com
sonho (PIRES, J.: 1990, 8), ou melhor, com o devaneio, propiciado pela falta de sono, como
se depreende da própria nota inicial: "Este livro, além de uma insônia, é uma viagem. A insônia
pertence a quem escreveu o livro, a viagem a quem a fez" (p. 7). A viagem é, segundo
Tabucchi, acima de tudo, um clima, uma solitude, esse estado discretíssimo de merencória e
solidão (PIRES, J.: 1990, 9). Se retomamos Fernando Pessoa, viver é perder países, no caso de
Tabucchi, acrescenta-se "viajar, ruir de sonhos" (idem). E embora haja um fim prático da
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viagem, o encontro de manuscritos, este não é descrito ao fim do livro. Não é isto que importa,
para Índia e um mapa de Bombaim (pags. 11/12) se dilui aos poucos. O protagonista inicia um
sensação de ser só dois olhos que olham, enquanto eu estava em outra parte, sem saber onde
de caráter místico. A viagem do livro se torna uma metáfora para a vida e o corpo é visto
como uma mala (p. 34). A viagem enquanto um aprendizado é incessante e configura-se
conscientemente como um itinerário particular (p. 38), uma peregrinação sem lugar de
chegada. Como um ritual, o que importa é a sua realização. Nessa viagem, o jogo de
identidade do primeiro. As referências a Xavier também servem para o protagonista. Ele possui
"um destino triste" (p. 18) que seria o de não ter uma identidade, de ter se transformado em um
"pássaro noturno" (p. 53). No encontro com o profeta jainista, aparece claramente a perda de
identidade do protagonista: "você é um outro" (p. 60). No sonho da igreja com um louco, ele é
reduzido a um fantasma (p. 68). Apesar das opiniões contrárias do membro da sociedade
teosófica (p. 53) e do ex-carteiro de Filadélfia (p. 77), o protagonista não deixa de persistir na
procura. E sua procura tem seu fim não no encontro com Xavier mas no ato de passagem do
olhar para o contar (cap. XIII). Ele conta a estória de um filme semelhante a sua estória para
uma ouvinte desconfiada de fragmentos, querendo um sentido, uma idéia central (p. 91),
Afinal ver não é mais ser, mais se vê, menos se é (GLUCKSMANN, C.: 1986, 74). "O sujeito
atento (ao espetáculo do mundo) e distraído (por seu espetáculo íntimo) é sujeito pela metade,
sujeito dividido, sujeito que nunca se engaja realmente, nunca dá ao real uma adesão integral.
Não porque critique o real, mas porque sabe que sempre há alguma outra opção, e o vagar
entre as diversas opções é o seu modo de ser". Um travelling permanente (MORICONI, I.:
1987, 26). Tal sujeito encontra seu correlato no narrador em primeira pessoa, típico dos relatos
de viagens, mas que”, longe de envolver o leitor, afasta-o e afasta o protagonista de si mesmo,
narração e tempo narrado, simultâneo à escrita e à leitura, como se fosse uma câmera.
Viajante e estrangeiro, dois lados de uma mesma moeda. Apenas o movimento, pois,
"não estar em casa significa estar mais em casa do que em qualquer outro local" (PEIXOTO,
N. B.: 1987, 82). Ser constantemente outros, exilado dentro de si mesmo, sem retorno
possível. Não há mais lar nem o que lamentar. Não é preciso mais viajar, em todos os sentidos,
para se sentir estrangeiro. Ser estrangeiro é uma condição geral, mas não a solidão, pois, o
nomadismo generalizado, mesmo sem sair do lugar, se conjuga à formação de redes sociais
Ao contrário do turista, que é aquele que já conhece a data do retorno, para usar uma
fala de "O Céu que nos Protege" de Bernardo Bertolucci, o desafio do viajante está no
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imprevisível. "Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é
seu descobrindo o muito que não teve e que não terá" (CALVINO, I.: 1993, 29).
sensibilidade de toda uma época" (PEIXOTO, N.: 1987, 87). Localizar-se passa a ser se
localizar na deriva, compondo um ethos de viajante. "Os nômades não têm história, só
geografia. Só meio, lugar de estadia provisória, via de passagem" (idem, 82). Seu próprio
território é construído constantemente pelo movimento (idem, 104). "A viagem vai então criar
o espaço entre as pessoas onde os encontros se tornam possíveis. Esses seres feitos de fluxos
desaparece
É então para viajar que viajo menos (BUTOR, M.: 1974, 9). Viajo não por viajar nem
para escrever. Viajo na escrita e na leitura. O incerto viajante, que na viagem não sabe bem o
que fazer, relendo suas notas descobre-se, com alguma surpresa, um pouco mais contente e
sereno, apesar de não mais decidido e resoluto do que, vivendo e andando por aí, pensava ser;
descobre ter dado respostas mais claras e nítidas do que gostaria às perguntas que o
atormentam, na esperança de poder, um dia, acreditar ele próprio naquelas respostas. Por que
deveria acabar em nada a nossa viagem? 3 Quando menos (ou muito) trata-se de um convite ao
devaneio, ao devaneio do caminho, dos espaços que nos chamam fora de nós mesmos e caso
se pudesse ouvir cada leitor, "cada pessoa então deveria falar de suas estradas, de seus
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entroncamentos, de seus bancos. Cada pessoa deveria preparar o cadastro de seus campos
perdidos" (BACHELARD, G.: s.d., 26/7). Por que deveria acabar em algo a nossa viagem?
"Esta viagem não leva à parte alguma. Mas não pode parar." (PEIXOTO, N.: 1987, 7), por
"caminhos que não são/ freqüentemente mais que um lapso/ entre o puro espaço/ e a estação"
Referências
BUTOR, Michel. "Le Voyage et l'Ecriture" in Repertoire IV. Paris, Minuit, 1974.
Brasília, 2001.
CALVINO, Ítalo. As Cidades Invisíveis. 5a. reimpressão, São Paulo, Companhia das
Letras, 1993.
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Reescrita afetiva de trechos do livro de Claudio Magris (1992, 121 e 409).
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GLUCKSMANN, Christine Buci-. La Folie du Voir. De l'Esthétique Baroque. Paris, Galilée, 1986.
PIRES, José Cardoso. “Prefácio” in TABUCCHI, Antonio. O Jogo do Reverso. 2a. ed.,
COELHO, Haydée Ribeiro (orgs.). 1000 Rastros Rápidos. Cultura e Milênio. Belo