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A Viagem e uma Viagem1

Para Ítalo Moriconi,

Esta outra pedagogia.

Ainda, a Melancolia

"A história pode dignificar uma moral (uma política); o


espaço, por sua vez, vai favorecer uma estética e
produzir uma ética."
Michel Maffesoli.

A melancolia não é só uma sensibilidade constituída a partir da experiência da

passagem do tempo, de sua finitude, na dolorosa dificuldade de esquecer num mundo que

prima pela rapidez, mas ela se torna mesmo base de uma formação (Bildung) adequada à

contemporaneidade. O fio condutor é a imagem da viagem. Mas antes de chegarmos lá, é

preciso comprender a importância do retorno dessa imagem, dentro de novos parâmetros de

espacialidade, talvez mesmo de sua centralidade em tempos pós-modernos (JAMESON,

1996), bem como a atualidade do debate da formação. A eventual preponderância do espaço

sobre o tempo não conduz a posturas desistoricizantes, como na visão de Jameson do

fenômeno pós-moderno, nem à anulação da memória, da história em favor do aqui e agora

(PEIXOTO, N.: 1987, 107), mas a uma postura mais próxima de Benjamin, para quem, "o

movimento temporal é captado e analisado em uma imagem espacial" (apud CHIAMPI, I.:

1994, 18).

1
Versão anterior publicada em Lugar Comum, 7, jan/abril 1999, NEPCOM/Universidade Federal do Rio
de Janeiro.
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Não se trata de opor de forma simplista a modernidade temporal a uma pós-

modernidade espacializada, mas entender que na constituição do cronotopo (espaço-tempo)

moderno, o tempo histórico emerge como elemento fundamental no século XIX , radicalizado

por um ethos vanguardista, celebrando o “novo como utópico e radicalmente outro”

(HUYSSEN, A.: 1993, 6) e entrando em crise com a alta modernidade, quando as tentações

em falar de todos os tempos ou de uma atemporalidade mítica ganham força. No cronotopo

emergente a partir do pós-guerra, e mais acentuadamente, a partir dos anos 70, é o espaço que

se evidencia como elemento articulador de nossas ansiedades. O que não implica um

esquecimento da categoria tempo no cenário pós-moderno (idem, 3 e 7), nem também simples

apagamento do tempo e do espaço, como pretendem analistas do impacto das imagens

sintéticas e virtuais (PARENTE, A.: 1993, 19), mas uma redefinição cronotópica.

Por que e para que aprender? É possível uma vida enquanto aprendizado? São

perguntas como essas que podem repor a atualidade da discussão em torno da Bildung

(formação), não para repetir seu conteúdo iluminista que implicava a socialização do indivíduo,

na passagem da infância para a vida adulta, e ao mesmo tempo, a constituição de um sujeito

singular e autônomo, a partir de um aprendizado interior, progressivo e por etapas; mas para

problematizá-lo. Esse debate é profícuo à medida que leva em consideração novas

configurações da subjetividade, derivadas da crise do individualismo, a fim de reinventar a

ponte entre vida e conhecimento, o que será feito através de uma breve história do

Bildungsroman (romance de formação).

Ao centrarmos a formação na mediação entre arte e sociedade, não se pode deixar de

falar do Bildungsroman, especialmente, a partir das contribuições de Mikhail Bakhtin. Ao

estabelecer sua tipologia, Bakhtin desloca uma noção de formação unicamente vinculada ao
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contexto histórico-ideológico do Iluminismo, para situar a problemática da formação no

horizonte mais amplo do "realismo" dos séculos XVIII e XIX.

É nessa tipologia histórica, enfática da estruturação do herói-protagonista, a partir de

sua concepção de mundo e da composição romanesca (BAKHTIN, M.: 1984, 213), que a

categoria do romance de formação se insere. O herói se apresenta como homem em formação

(idem, 225). As modificações por que passa levam o sujeito romanesco a ser constantemente

repensado e reestruturado (idem, 227), compondo a unidade dinâmica do romance. Uma

contribuição do romance de formação é a descoberta e assimilação do tempo histórico (idem,

229), sempre integrado a um espaço concreto (idem, 249). O que conduz a uma percepção

"realista" do tempo, ou seja, a uma visão linear e progressista da história, por distinguir

passado, presente e futuro (idem, 246/7).

A partir dessa perspectiva, pode-se compreender a importância do romance de

formação para se discutir o modo de inserção do sujeito no mundo e até a composição de uma

mundivisão, vinculada ou não ao Iluminismo. O romance de formação, nesses termos, não

seria didático, exemplar para o leitor, mas útil para identificar as tensões de uma geração, de

uma época.

Dentro desse quadro e a partir do paradigma, o Wilhelm Meister de Goethe, no qual o

indivíduo se forma, ao mesmo tempo que contribui para a mudança da sociedade em que vive,

pode-se observar uma fratura desse modelo, ainda no século XIX, na medida do conflito entre

indivíduo e sociedade. Configuram-se duas tendências, podendo mesmo serem superpostas:

romances de formação de estetas, de artistas, em que beleza e arte se opõem ao mundo

burguês, como Às Avessas de J. K. Huysmans, Retrato do Artista quando Jovem de James

Joyce e Tonio Kröger de Thomas Mann; e romances sobre jovens burgueses, comuns que não
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contestam frontalmente sua época, mas com a qual não estão satisfeitos, havendo um recuo

para a interioridade e onde uma certa compreensão do mundo se relaciona com a impotência

da ação, próximos à tipologia lukacsiana do romance de desilusão, como A Educação

Sentimental de Gustave Flaubert e A Montanha Mágica de Thomas Mann.

O Homem, mito ocidental e base da Bildung em crise, só encontra um substituto,

depois dos anos 60, quando ele, na sua pretensão universalista, é atacado pela problemática de

outras identidades, femininas, homossexuais, étnicas, culturais e pós-coloniais. Mais além do

estilhaçamento do Humanismo, uma nova formação está intimamente relacionada a identidades

mutantes, fragmentadas, em trânsito, instáveis, adequadas à diversidade e simultaneidade de

tempos individuais e sociais. Como cantam os Titãs: “tudo ao mesmo tempo agora”. Nesse

último caso, em detrimento de um tempo interior tão explorado nas obras-primas da alta

modernidade, o espaço exterior, não mais emoldurado por mitos ocidentais tradicionais, nem

mergulhado no fluxo da consciência ou no mundo onírico, volta a ser valorizado através das

imagens da estrada, e, num sentido mais amplo, da viagem, em meio a um mundo de

proliferação de imagens midiáticas2, como nas obras de Peter Handke, João Gilberto Noll e

Antonio Tabucchi, constituindo novos romances de formação. A estética da viagem é uma

das marcas do desejo de querer contar estórias e ao narrar persistir na busca de fazer

sentidos em meio à dispersão contemporânea.

Os dilemas de uma formação contemporânea não serão bem situados, sem a

incorporação de filmes e músicas, dada a sua penetração, em especial, nas gerações de jovens,

2
Para a associação entre imagens, narrativa e deriva, com referências à literatura brasileira,
especialmente à obra de João Gilberto Noll, ver César Guimarães (1997), Marli Scarpelli (1999) e Idelber
Avelar (2000).
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das últimas décadas. Lembro, só para dar alguns exemplos, "Juventude Transviada" de

Nicholas Ray para os rebeldes sem causa dos anos 50, "Like a Rolling Stone" de Bob Dylan

para hippies e afins ("When you got nothing/ You got nothing to lose"), a desilusão pós-68 em

"Sem Destino" de Dennis Hopper, o anarco-niilismo punk cantado por Joey Ramone ("I don't

care about the world/ I don't care about that girl... I don't care"), a desterritorialização em

filmes de Wim Wenders, Jim Jarmusch, Gus van Sandt (“Garotos de Programa”), Theo

Angelopoulos ("Paisagem na Neblina") ou em "Lugar Nenhum" dos Titãs ("Não sou brasileiro/

Não sou estrangeiro/ Sou de lugar nenhum"). Talvez a emergência mesmo da sensação de se

sentir estranho, estrangeiro, esteja vinculada à valoração do adolescente, como "exilado

interior" (PEIXOTO, N.: 1987, 86). "Because we're young/ Because we're gone/ So young

and so gone" (Suede, "So Young").

Com a crise do Homem, é a própria categoria de autonomia do sujeito que se torna

suspeita de um orgulho antropocêntrico, senão substituída pela deriva e pelo acaso. A noção

de um sujeito emancipado que se desenvolve linear e organicamente mediante a progressiva

interiorização do saber se torna numa fantasmagoria ideológica, que só volta como

sobrevivência residual (MORICONI, I.: 1991, 268). Se para Rousseau, a máscara não é o

homem, a medida está deixando de ser o homem em detrimento da imagem. E nesse teatro de

aparências, a máscara (novo mito civilizacional? se é que precisamos de mitos fundadores...) é

o que importa. É necessário saber jogar, mesmo que seja a última partida. O desafio desse

sujeito, decorrente da crise do Homem e do individualismo, é articular suas máscaras em

constante troca, seu eu mutante sem se deixar dissolver no puro movimento, na velocidade, no

mercado de imagens. Se o papel da arte moderna, em especial a de vanguarda, poderia ser

vinculada a introduzir o caos na ordem (ADORNO, T.: 1992, 195), o vislumbre de uma
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formação contemporânea se não nega, pelo menos redimensiona o ímpeto destrutivo da arte

moderna. Não se trata de resgatar a arte como meio privilegiado de formação, nos moldes de

Schiller, mas pensar uma existência estetizada. O que não implica necessariamente a dissolução

dos limites entre arte e vida, mas a consideração da vida cotidiana como jogo de máscaras.

Paira insistente sobre o aprendizado contemporâneo a marca da dúvida e da inutilidade.

Aprendizado, que, como veremos, se dá não por acúmulo ou etapas (nascimento-infância-

juventude-maturidade-velhice-morte), mas por epifanias e momentos, em que os tempos se

mesclam incessantemente, desmistificando um aprendizado pela experiência cronológica,

idealizadora da maturidade. Aprendizado não só por conceitos, mas por imagens e sensações,

memória e esquecimento. Qualquer experiência é válida, perda e ganho, mesmo se a alma é

pequena.

Para o delineamento dessa formação contemporânea, exige-se um repensar da

espacialidade, partindo da identificação da imagem da cidade moderna como labirinto, espaço

de anonimato, solidões e tribos, fragmentação e heterogeneidade, cristalizada desde Edgar

Allan Poe e, sobretudo, Charles Baudelaire. No entanto, se há elementos que persistem em

continuidade ao século XIX, a cidade como unidade geo-imaginária tem sido franqueada,

remodelada pelo alargamento que as imagens reproduzidas tecnicamente fazem do espaço

(ver CAIAFA, J.: 2001). A fotografia, o cinema, a Tv e o computador estabelecem uma

indissociabilidade entre imagem e cidade. E a cada tipo de imagem, nosso olhar muda e a

cidade, também. As relações de proximidade e distância são repensadas. Que cidade é esta

em que meu vizinho é mais aquele com que falo toda manhã na internet do que a pessoa

do apartamento ao lado que mal cumprimento? Claro, a cidade como espaço de liberdade

e anonimato, solidão, sempre nos possibilitou fazer o nosso próprio mapa, nossos espaços
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de afeto e encontro. Seria então apenas um alargamento de fronteiras a ponto das cidades

se misturarem com em “Até o Fim do Mundo” de Wim Wenders sem que vejamos mais os

trajetos realizados entre as diversas cidades por que os protagonistas passam? Se o mundo

é uma cidade é porque a cidade não nos diz mais nada e as fronteiras são tantas e múltiplas

que as noções tradicionais de cidade e bairros como continuidades espaciais bem precisas

precisa ser repensada? Diante desses debates, a volta da viagem é problemática, marcada por

uma certa inutilidade, quando, cada vez mais, há circulação veloz de idéias e imagens. Porém, é

entre continentes desterritorializados e cidades globalizadas que caminha o entediado

personagem alegórico do viajante, do estrangeiro.

Mas "se para sobreviver, há que se aprender a não sentir, mesmo que isso exija algum

aprendizado" (John Rechy, Fourth Angel), há também que se aprender a sentir, ultrapassar a

mera sobrevivência, ousar empreender uma educação dos sentidos e sentimentos. Afinal,

"achar nosso lugar no mundo, é um abrigo antes gregário que geográfico"(Amir Labaki).

Dessa forma, o que me guia nessa busca é que o significado da viagem deixou de ser o

descobrimento de continentes e povos desconhecidos, num planeta globalizado, mapeado

imageticamente e invadido pelo turismo de massa. Mesmo na ficção científica, o extraterrestre

ou o autômato cada vez mais tem o nosso rosto. As trips psicodélicas, herdeiras dos transes

místicos, na busca de estados outros da consciência, há muito foram domesticadas, e seu

declínio simbólico se situa, de fato, no limiar de uma nova ordem subjetiva.

Talvez, exaurida a lógica da diferença (alguns são diferentes) que desnaturalizou e

problematizou a perversidade histórica e redutora de uma lógica identitária (todos somos

iguais), base para um imperialismo masculino, heterossexual, burguês e euro-norte-americano,

travestido de humanismo universalista, seja a hora de falar de uma lógica do estranhamento


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(todos somos estranhos), em que o desafio da pluralidade conduz não a uma estratégia

político-teórica de gueto mas à manutenção de estratégias específicas que desafiem a sociedade

e, mais, à visualização de uma transversalidade, presente na multiplicidade de adesões pessoais,

variedade dos looks, unissexualização galopante, bricolage ideológico, enfim, a um sujeito

plural, composto por fluxos, uma máquina de desejos, nos termos de Deleuze e Guattari, ao

invés das velhas e modernas dualidades indivíduo/sociedade, sujeito/objeto, eu/outro.

O homem melancólico, que é sempre um homem estético, perambula frente aos

embates de nossa época como um ator secundário observando os protagonistas atuarem. Força

tão frágil, mas necessária, especialmente em tempos de falta de utopias. Com Apolo e Dioniso

mortos em batalha, talvez o velho deus Chronos reviva cobrindo com memória e esquecimento

todas as ruínas. E, na noite do humanismo, os fragmentos e as sombras voltem a significar.

Um Aprendizado à Deriva

"El que viaja puede encontrar una serpiente en la mesa


donde se reúnen los maestros cantores; el que no viaja
puede encontrar un maestro cantor en una serpiente."
Lezama Lima

Há várias formas de descontruir, ampliar o sujeito individualista, em particular, através

de identidades geradas a partir do gênero, etnia e raça, ou ainda, classe social, nação e cultura.

Contudo, a identidade do sujeito contemporâneo, visualizado em Noturno Indiano de Antonio

Tabucchi, atravessa essas categorias e vai além, sem reduzi-las a uma síntese apressada no

humano, no universal. É um sujeito em permanente diálogo, confronto interno e externo. "A

experiência subjetiva na condição pós-moderna dificilmente se globaliza num sentido obtido

pela auto-reflexão. Ela é tematizada como sucessão de episódios justapostos, não


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necessariamente submetidos a uma ordem cronológica" (MORICONI, I.: 1987, 24). Trata-se

de uma subjetividade adequada a um mundo onde a velocidade é constante, entre a simples

adesão à roda-viva da novidade, ao simples elogio do estrangeiro, do estranho entediado onde

quer que esteja, vendo tudo e todos como o mesmo, e o retorno nostálgico e mitificado a

valores de simplicidade, do cotidiano, da família, não raramente acoplados a um

conservadorismo moral.

Noturno Indiano aponta para além de uma simples constatação de um mal-estar, de

perplexidades. Viagem não mais como perda de ilusões, nem simples fuga. Todo o livro é um

aprendizado através da imagem tradicional da viagem mas que não se situa nem no confronto

com o radicalmente outro, que seria representado por uma Índia sensual e mística, milenar,

exótica, nem com o mesmo, possivelmente uma Índia modernizada, vista apenas como uma

imitação mal-sucedida do Ocidente. O aprendizado se dá pelo estranhamento que está no

sujeito viajante e na Índia. O estranhamento implica um jogo entre o distante e o próximo, o

igual e o diferente, o arcaico e o moderno, e não é à toa que isso se dê num lugar de fricção,

num entre-lugar.

Retomando as características do romance de formação em Noturno Indiano, identifico

o protagonista em formação, embora não se trate mais da clássica situação de passagem da

infância para a maturidade, com eventuais conflitos geracionais, na medida em que sua idade é

indefinida. Pressupõe-se que não seja muito jovem devido ao trabalho especializado que

realiza: a busca de documentos raros. No entanto, a viagem à Índia se constitui num momento

relevante para o personagem. Seu temperamento reservado do protagonista junto com a

concisão anti-emotiva da escritura não devem ser entendidas como indiferença frente à viagem,

mas como uma postura de observação atenta, ainda que não apaixonada. O protagonista, ao
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buscar um olhar singular sobre a Índia, é também a si mesmo que ele está conhecendo melhor.

A procura do amigo Xavier, suposto motivo da viagem, além das razões de trabalho, seria uma

representação de alteridade, assim como a Índia exótica, que aos poucos vai se tornando uma

busca de autoconhecimento. O protagonista parece se perder na Índia como seu amigo Xavier.

Cria-se um jogo de identidades múltiplas, intercambiantes, como a dos deuses indianos. Menos

que uma problemática de duplo, heterônimos, há um jogo de máscaras lúcido, irônico. E é

desse jogo que advém o conhecimento de si. O aprendizado constitui-se menos uma quebra de

idealizações, ilusões (que seria o não-encontro de Xavier) do que um reencantamento de um

mundo estranho mas próximo, desafiante. A Índia se internalizou dentro do protagonista como

elemento estranho mas em diálogo.

O aprendizado decorre da própria consciência da inutilidade da viagem (p. 25), apesar

de ter sido através dela (viagem) que se chegou a essa percepção. O estranho está em todo

lugar, em todos nós. Num mundo de imagens, os lugares e as culturas diferentes nos chegam

cada vez mais pelos meios de comunicação de massa do que por vivências cotidianas

tradicionais. "É preciso ver o menos possível" (p. 89). Nosso problema é a saturação de

imagens e não sua falta. Os lugares interessam menos por eles mesmos e mais por sua interação

com o protagonista e seus encontros. O que não impede de situar esta novela numa tradição

pós-vanguardista em que a dimensão do espaço exterior volta a ser colocada com insistência,

através de uma estética do olhar em detrimento do mergulho no abismo da interioridade.

Já o tempo da viagem aparece como uma suspensão na vida do protagonista, de cuja

vida anterior pouco se sabe no que se refere a sua vida anterior. A noção de tempo linear, com

passado, presente e futuro distintos parece não ser mais útil, portanto não teria sentido para

uma formação contemporânea seguir um tempo histórico progressivo na medida em que ele
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não corresponderia mais a uma experiência típica da atualidade. O tempo do romance é menos

um tempo suspenso do que, simplesmente, o presente, para o qual convergem elementos de

passado e de algum futuro. Como as identidades pessoais e culturais são fluidas, o tempo

moldado por doze capítulos são doze cortes, momentos da viagem em lugares diferentes, mas

nem desses temos uma visão total, exaustiva, contínua. O jogo de identidades múltiplas cria

quase um tempo em espiral, em que a viagem do protagonista seria uma reencenação da

trajetória de Xavier, que o autor fez ao escrever e o leitor faz ao ler.

O aprendizado do protagonista se dá de uma forma complexa, não podendo ser

concretizado, verbalizado em uma posição fixa, determinada, no fim da novela. Talvez,

justifique-se assim o anti-clímax.

Acompanhando um pouco essa viagem, visualizo alguns deslocamentos na construção

de uma identidade pelo olhar. Em cada um dos doze capítulos, há um encontro noturno

importante para o protagonista. Apesar dos saltos temporais e espaciais, o ambiente é de uma

difusão contínua, de uma imagem embaçada, de uma peça suave, um noturno. Talvez, como já

foi observado sobre outro livro de Tabucchi, O Jogo do Reverso, mais do que a viagem, é o

sentimento de viagem que propicia a suspensão no tempo e na distância, que sempre rima com

sonho (PIRES, J.: 1990, 8), ou melhor, com o devaneio, propiciado pela falta de sono, como

se depreende da própria nota inicial: "Este livro, além de uma insônia, é uma viagem. A insônia

pertence a quem escreveu o livro, a viagem a quem a fez" (p. 7). A viagem é, segundo

Tabucchi, acima de tudo, um clima, uma solitude, esse estado discretíssimo de merencória e

solidão (PIRES, J.: 1990, 9). Se retomamos Fernando Pessoa, viver é perder países, no caso de

Tabucchi, acrescenta-se "viajar, ruir de sonhos" (idem). E embora haja um fim prático da
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viagem, o encontro de manuscritos, este não é descrito ao fim do livro. Não é isto que importa,

mas o percurso que se constrói aos poucos.

A preocupação inicial do protagonista em se situar espacialmente, através de um guia

para Índia e um mapa de Bombaim (pags. 11/12) se dilui aos poucos. O protagonista inicia um

processo de despojamento de expectativas, procurando apenas ver, estar “com a perfeita

sensação de ser só dois olhos que olham, enquanto eu estava em outra parte, sem saber onde

(p. 33). Aqui já é introduzido o estranhamento em relação a si mesmo, em meio a um contexto

de caráter místico. A viagem do livro se torna uma metáfora para a vida e o corpo é visto

como uma mala (p. 34). A viagem enquanto um aprendizado é incessante e configura-se

conscientemente como um itinerário particular (p. 38), uma peregrinação sem lugar de

chegada. Como um ritual, o que importa é a sua realização. Nessa viagem, o jogo de

aproximação do protagonista com Xavier conduz a um progressivo estranhamento da

identidade do primeiro. As referências a Xavier também servem para o protagonista. Ele possui

"um destino triste" (p. 18) que seria o de não ter uma identidade, de ter se transformado em um

"pássaro noturno" (p. 53). No encontro com o profeta jainista, aparece claramente a perda de

identidade do protagonista: "você é um outro" (p. 60). No sonho da igreja com um louco, ele é

reduzido a um fantasma (p. 68). Apesar das opiniões contrárias do membro da sociedade

teosófica (p. 53) e do ex-carteiro de Filadélfia (p. 77), o protagonista não deixa de persistir na

procura. E sua procura tem seu fim não no encontro com Xavier mas no ato de passagem do

olhar para o contar (cap. XIII). Ele conta a estória de um filme semelhante a sua estória para

uma ouvinte desconfiada de fragmentos, querendo um sentido, uma idéia central (p. 91),

expectativa que é frustrada.


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No fim da novela, vislumbra-se um sujeito mais liberto de identidades aprisionantes,

defrontado com espaços complexos, tempos históricos e pessoais simultâneos, escolhendo

tradições e sensibilidades para construir-se em permanente deriva. Um aprendizado particular,

que encena a reflexão e a memória, para os melancólicos em um mundo de imagens velozes.

Afinal ver não é mais ser, mais se vê, menos se é (GLUCKSMANN, C.: 1986, 74). "O sujeito

atento (ao espetáculo do mundo) e distraído (por seu espetáculo íntimo) é sujeito pela metade,

sujeito dividido, sujeito que nunca se engaja realmente, nunca dá ao real uma adesão integral.

Não porque critique o real, mas porque sabe que sempre há alguma outra opção, e o vagar

entre as diversas opções é o seu modo de ser". Um travelling permanente (MORICONI, I.:

1987, 26). Tal sujeito encontra seu correlato no narrador em primeira pessoa, típico dos relatos

de viagens, mas que”, longe de envolver o leitor, afasta-o e afasta o protagonista de si mesmo,

como se estivesse permanentemente a se observar, ultrapassando a barreira entre tempo de

narração e tempo narrado, simultâneo à escrita e à leitura, como se fosse uma câmera.

Viajante e estrangeiro, dois lados de uma mesma moeda. Apenas o movimento, pois,

"não estar em casa significa estar mais em casa do que em qualquer outro local" (PEIXOTO,

N. B.: 1987, 82). Ser constantemente outros, exilado dentro de si mesmo, sem retorno

possível. Não há mais lar nem o que lamentar. Não é preciso mais viajar, em todos os sentidos,

para se sentir estrangeiro. Ser estrangeiro é uma condição geral, mas não a solidão, pois, o

nomadismo generalizado, mesmo sem sair do lugar, se conjuga à formação de redes sociais

instáveis, fugazes e até midiáticas.

Ao contrário do turista, que é aquele que já conhece a data do retorno, para usar uma

fala de "O Céu que nos Protege" de Bernardo Bertolucci, o desafio do viajante está no
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imprevisível. "Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é

seu descobrindo o muito que não teve e que não terá" (CALVINO, I.: 1993, 29).

A identidade contemporânea tem um sentido espacial, talvez mesmo uma centralidade

do espaço na contemporaneidade. "O conflito entre ficar e partir constitui o mundo e a

sensibilidade de toda uma época" (PEIXOTO, N.: 1987, 87). Localizar-se passa a ser se

localizar na deriva, compondo um ethos de viajante. "Os nômades não têm história, só

geografia. Só meio, lugar de estadia provisória, via de passagem" (idem, 82). Seu próprio

território é construído constantemente pelo movimento (idem, 104). "A viagem vai então criar

o espaço entre as pessoas onde os encontros se tornam possíveis. Esses seres feitos de fluxos

só existem `in motion', em movimento" (idem, 105).

Os nostálgicos se perdem em meio à falta de referência, não aderem ao mundo. Já os

melancólicos viajantes fazem do distanciamento uma forma de se aproximar de tudo que

desaparece

É então para viajar que viajo menos (BUTOR, M.: 1974, 9). Viajo não por viajar nem

para escrever. Viajo na escrita e na leitura. O incerto viajante, que na viagem não sabe bem o

que fazer, relendo suas notas descobre-se, com alguma surpresa, um pouco mais contente e

sereno, apesar de não mais decidido e resoluto do que, vivendo e andando por aí, pensava ser;

descobre ter dado respostas mais claras e nítidas do que gostaria às perguntas que o

atormentam, na esperança de poder, um dia, acreditar ele próprio naquelas respostas. Por que

deveria acabar em nada a nossa viagem? 3 Quando menos (ou muito) trata-se de um convite ao

devaneio, ao devaneio do caminho, dos espaços que nos chamam fora de nós mesmos e caso

se pudesse ouvir cada leitor, "cada pessoa então deveria falar de suas estradas, de seus
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entroncamentos, de seus bancos. Cada pessoa deveria preparar o cadastro de seus campos

perdidos" (BACHELARD, G.: s.d., 26/7). Por que deveria acabar em algo a nossa viagem?

"Esta viagem não leva à parte alguma. Mas não pode parar." (PEIXOTO, N.: 1987, 7), por

"caminhos que não são/ freqüentemente mais que um lapso/ entre o puro espaço/ e a estação"

(Rainer Maria Rilke, "A Pequena Cascata" de Quadras do Valais).

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