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DOI: 10.1590/s0103-4014.2021.35101.

022

A forma simbólica da modernidade


Cecilia Marks I

U assimdialética
ma de perdas e ganhos:
Franco Moretti introduz sua
originalmente em 1986, portanto antes
de Moretti desenvolver sua metodologia
tese de o romance de formação ser a for- pluridisciplinar para estudar a história da
ma simbólica da modernidade. “Perdi literatura, demonstra que ali já germi-
minha subjetividade, mas encontrei um navam conceitos que o autor expandiu
mundo, disse Goethe a propósito da via- posteriormente.
gem à Itália [...]: a vida ofereceu menos De acordo com Mikhail Bakhtin
do que o esperado – porém ofereceu (2010, p.121), graças à sua capacidade
algo a mais, e inesperado” (p.11). Teó- de renovação permanente, o gênero lite-
rico que cunhou o conceito de “distant rário “sempre é e não é o mesmo, sem-
reading” em contraposição à prática pre é novo e velho ao mesmo tempo. O
da “close reading” – interpretação ren- gênero renasce e se renova em cada nova
te ao texto que se consolidou ao longo etapa do desenvolvimento da literatura
do século XX –, Moretti propõe em O e em cada obra individual de um dado
romance de formação manter um olhar gênero”. No caso do romance de forma-
distanciado das obras em si para as anali- ção, essa passagem é bem marcada por
sar como representantes de seus respec- um momento histórico definido e por
tivos contextos e momentos históricos. uma obra específica.
Assim, ao abrir mão da leitura imanente Moretti considera o romance de for-
para alçar voo e alcançar uma visão ex- mação a forma simbólica e hegemôni-
tensiva, é dada a possibilidade de estabe- ca da modernidade em decorrência das
lecer conexões de enredos e personagens grandes mudanças sociais e econômicas
com movimentos sociais que abalaram a provocadas pela dupla revolução, a in-
dinâmica das relações entre indivíduo e dustrial e a burguesa. Organizado em
sociedade, abarcando desde aspectos da quatro grandes blocos, que por sua vez
vida pessoal e cotidiana até a esfera pú- separam-se em capítulos, esses divididos
blica e política. em vários subtítulos instigantes, numa
Para desenvolver sua argumentação, estrutura que remete ao formato de ár-
o ensaísta transita por um extenso arco vore, o livro compreende um período de
de ideias, dialoga com diversas linhas de pouco mais de um século, entre o sur-
pensamento, contestando-as ou emba- gimento do paradigmático Os anos de
sando seu raciocínio – de teóricos como aprendizado de Wilhelm Meister, de Go-
Lukács, Bakhtin, Adorno e Barthes a ethe, publicado em 1795-1796, e o de
filósofos e historiadores como Hegel, algumas obras modernistas do início do
Tocqueville, Burckhardt e Habermas, século XX, até 1914 – essas abordadas
além de Freud e Darwin, entre outros. em um ensaio adicional.
Mesmo assim, chega a uma amarração Uma vez que a definição de romance
coesa, embora algumas vezes constranja de formação tornou-se bastante elástica
o leitor a uma dispersão de propósitos. e abrangente, Moretti opta por utilizar
Essa característica da obra, publicada o termo original Bildungsroman apenas

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para o romance de Goethe e Orgulho narrativa, que deságua em uma vida coti-
e preconceito, de Jane Austen, os quais diana equilibrada e estática, diga-se que
considera tradicionais. Os demais títulos almejada e plena, embora exteriormente
do corpus são designados genericamen- a modernidade siga em progressão con-
te romance de formação. A apreciação tínua – “velocífera”,1 numa formulação
dos dois livros citados conduz a parte de Goethe. Nesse sentido, a formação
inicial do estudo, fincando as bases da moderna não se dá abruptamente, como
argumentação. Nessa escolha também um rito iniciático, mas é uma construção
se fundamenta a diferença estabelecida significativa visando a uma finalidade.
pelo autor entre os movimentos revo- Isso posto, é preciso frisar que a ju-
lucionários e as transformações sociais ventude não perdura para sempre, é
ocorridas na Alemanha e na Inglaterra, passageira, e acaba por trair seus prin-
de um lado, e na França, de outro, com cípios. Sob esse aspecto, o autor salien-
seus respectivos reflexos nas obras anali- ta as diferenças entre a forma simbóli-
sadas e emanações por estas provocadas. ca romance de formação na Alemanha
No Bildungsroman tradicional, o e Inglaterra – onde atuava para evitar
protagonista é jovem e culto, em busca os “efeitos irreversíveis” da Revolução
de um sentido para a vida. Suas aspira- Francesa, segundo Moretti (p.123)2 –
ções chegam a ser experimentadas, mas em comparação com a França e a Rússia.
não se efetivam de fato, pois ao final da No Bildungsroman tradicional há uma
trajetória ele as abandona em prol de ou- condução teleológica, que encontra o
tras vivências, que o encaminham para a equilíbrio, a conciliação de interesses das
conformidade ao mundo e à realidade, duas classes hegemônicas – a decadente
harmonizando-se o herói com a socie- aristocracia e a emergente burguesia. Já
dade para a qual se formou durante sua nos romances franceses e russos apre-
jornada rumo à maturidade. Aqui, fica sentados na segunda parte do livro, a
implícito o já mencionado aparato da característica é de ruptura, de uma ju-
troca, tão caro ao pensamento burguês. ventude desencantada com os valores re-
Assim, para Moretti, a juventude é a volucionários, que, de resto, compõem
imagem que reflete a configuração so- um ideário professado mas dificilmente
cial, econômica e histórica da moderni- praticado. Mesmo assim, o protagonis-
dade, adquirindo centralidade simbólica ta de O vermelho e o negro, de Stendhal,
por “acentuar seu dinamismo e instabi- não quer trair suas convicções nem re-
lidade” (p.30). Se no Bildungsroman é nunciar à busca do “sentido da vida”,
permitida à irrequieta interioridade juve- não pretende firmar um compromisso
nil explorar o espaço social, esse processo com o sistema. Ao contrário das primei-
de aprendizagem se conclui de maneira ras, essas narrativas não se fecham nem
harmoniosa sem gerar frustrações, pois correm para um final harmonioso, pois
a internalização de valores ocorre de não há destino alternativo, senão a mor-
maneira a cumprir o que Moretti apon- te, a loucura, o desterro, para esses tipos
ta como o “paradigma ideal da sociali- condenados pela ordem social por não
zação moderna: desejo fazer aquilo que, abdicarem dos ideais juvenis.
de todo modo, deveria ter feito” (p.50). Moretti ilumina com perspicácia o
A individualidade é a força centrípeta da paradoxal conflito entre liberdade e au-

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todeterminação – uma das bandeiras da nada, faz surgir, nos romances franceses
Revolução Francesa e que se encontra no do século XIX, “novas constantes estru-
cerne da modernidade – e os limites im- turais [que] colocam, por assim dizer, o
postos pelo próprio capitalismo visando romance de formação em sintonia com
à conformidade e adequação ao modo seu tempo” (p.141). Neles, os processos
de produção. Ou seja, o indivíduo mo- de individualização e de socialização são
derno é livre, desde que adequadamente incompatíveis, e Moretti enumera algu-
socializado/formado para atender às ne- mas das principais antíteses recorrentes
cessidades do sistema – “Em outras pala- em romances pertencentes às duas cor-
vras, é preciso renunciar a ser ‘moderno’ rentes: casamento versus adultério; feli-
ou renunciar a ser ‘indivíduo’” (p.272). cidade versus liberdade; individualidade
Essa condição sine qua non, conforme versus perda da identidade.
Moretti, remete à teoria evolucionista de Contudo, enquanto em Stendhal o
Darwin, tão cara ao autor, de que sobre- sentimento de desilusão se impõe, em
vive o que melhor se adapta e não o mais Balzac, Lucien de Rubempré é o “herói
forte. Por outro lado, nessa nova ordem da mobilidade social” (p.208), imedia-
a humanidade se viu “fadada” à liberda- tista e pragmático. Na Comédia Hu-
de, pois, ao romperem-se as estruturas mana as contradições já se mostram as-
de subserviência, a liberdade pode ter se similadas e o motor do progresso e do
tornado um fardo cansativo e doloroso, sucesso pessoal é incorporado à narrati-
resultando em medo e solidão (p.113). va, que desvela a relatividade dos valores
O romance de formação se estrutura desse modelo social, em que a moda e o
sobre essas “drásticas antíteses” (p.31) e, consumo pautam as relações de maneira
justamente pelo seu caráter contraditó- superficial e efêmera. Aqui, a narrativa
rio, tornou-se a forma simbólica da mo- da juventude coloca “em relevo a força
dernidade; por ser tão paradoxal quanto desumana e indiferente do novo mundo,
a cultura moderna, que exige a coexis- que reconstrói — como se fosse uma au-
tência de valores opostos para se man- tópsia — a partir das feridas infligidas ao
ter e se reproduzir. Por sua flexibilidade, indivíduo” (p.254).
ecletismo e capacidade de adaptação, o No bloco final do livro, Moretti se
romance de formação superou outras detém em particularidades observadas
formas narrativas – romance histórico, na Inglaterra – “única nação europeia
epistolar, alegórico, satírico, Künstler- em que 1789 não se afigurou como o
roman –, que seguem modelos mais ano zero da modernidade” (p.277) –,
rígidos. “E vice-versa, naturalmente: caracterizada por estabilidade de valo-
quanto mais uma forma foi capaz de fle- res, firme regulação jurídica, hierarquia
xibilidade e compromisso, melhor pôde e conformismo. No cânone literário in-
governar-se no turbilhão sem síntese da glês do período, o autor observa uma
história moderna” (p.36). desvalorização da juventude e, antes,
Diferentes dos heróis integrados do um desígnio pela manutenção de esco-
Bildungsroman, a personificação de su- lhas feitas pelo herói na infância, o que
jeitos cindidos, fragmentados e incoe- denomina de “romance de conserva-
rentes, trilhando caminhos sinuosos e ção” (p.279) mais do que de formação.
instáveis, sem uma finalidade determi- Assim, essas narrativas se aproximam

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dos contos de fada, cuja estrutura é de e a lista de edições nacionais do corpus
polarização e qualquer ambiguidade é estudado, embora alguns títulos, tanto
dissipada no final. Os personagens são dos romances analisados como da bi-
pautados por uma espécie de taxonomia bliografia teórica, disponham de edições
e dependem de coincidências narrativas e traduções mais recentes e atualizadas.
para promoverem o andamento do enre- A publicação de O romance de forma-
do (p.295), prática que levará, de acordo ção reveste-se de relevância, pois a obra
com Moretti, à forte tradição inglesa de pode dialogar com uma tradição recen-
romances de terror e de suspense. O au- te, porém consistente, que se estabele-
tor, entretanto, faz questão de indicar as ceu no país a partir dos anos 1990, com
exceções: “George Eliot... e tudo muda. estudos como O cânone mínimo, de Wil-
Junto a Jane Austen ela é a única escri- ma Maas, e Labirintos da aprendizagem,
tora que soube renunciar ao modelo do de Marcus Mazzari, autor com quem
conto de fadas judiciário e se mediu com divido a organização de Romance de
a problemática europeia do romance de formação – Caminhos e descaminhos do
formação” (p.324). herói (no prelo), volume composto por
A análise das transformações ocorri- 26 ensaios de diversos pesquisadores,
das no romance de formação desde o seu abordando obras de diferentes origens e
surgimento é complementada por con- períodos.
siderações sobre um pequeno rol de ro-
mances modernistas, de Conrad, Mann,
Notas
Musel, Walser, Rilke e Kafka. Moretti
constata que essas obras-primas não ini- 1 Trata-se de uma “referência alegórica ao
ciaram uma nova etapa na história do incipiente ritmo ‘velocífero’ (neologismo
criado por Goethe) da modernidade e ao
romance de formação europeu, mas sim
seu caráter autônomo” (Mazzari, 2019).
a encerraram de vez. Isso porque, nessas
2 Nesse sentido, o autor parece desprezar
narrativas – inseridas em uma realidade
o tom irônico insinuado por Goethe em
moderna já consolidada – o protago-
Os anos de aprendizado de Wilhelm Meis-
nismo do indivíduo é soterrado pelas ter, conforme aponta Mazzari (2018):
instituições, essas sim instrumentos de- “Goethe designou Wilhelm Meister
liberados de coerção. Esse é “o mundo como ‘pobre cachorro’ numa conversa
do romance de formação tardio”, que registrada pelo chanceler von Müller em
repercute ainda hoje. janeiro de 1821: ‘mas apenas com perso-
Tais reflexões constam de um ensaio nagens como essas que se podem mostrar
publicado em 1990, incorporado ao li- claramente o jogo inconstante da vida e
vro, assim como o prefácio autocrítico as incontáveis e diversas tarefas da exis-
tência, e não com caracteres sólidos e já
do autor, redigido em 1999, em que esse
formados’”. No que se refere ao posicio-
aponta as limitações de ordem geográfi-
namento de Goethe com relação à Re-
ca, social e histórica da obra e esclarece volução Francesa, nas Conversações com
alguns caminhos teóricos percorridos Eckermann (4 de janeiro de 1824), há
posteriormente. Outros aspectos positi- a seguinte manifestação do escritor: “É
vos são as referências contidas em notas verdade que eu não poderia ser amigo da
de rodapé remeterem a edições acessíveis Revolução Francesa, pois seus horrores
ao leitor brasileiro, o índice onomástico estavam muito próximos de mim e me in-

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dignavam diariamente, de hora em hora,
ao passo que não era possível prever suas
consequências benéficas. E eu também
não podia assistir indiferente à tentativa
de trazer para a Alemanha de maneira ar-
tificial semelhantes cenas que, na França,
eram consequência de uma grande neces-
sidade. Mas nem por isso era amigo de
um despotismo arbitrário” (Eckermann,
2016, p.521-2).

Referências
BAKHTIN, M. Problemas da Poética de
Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010.
ECKERMANN, J. P. Conversações com
Goethe nos últimos anos de sua vida: 1823-
1832. São Paulo: Editora Unesp, 2016.
p.521-2.
MAZZARI, M. V. Os anos de aprendiza-
do de Wilhelm Meister: “um magnífico
arco-íris’’. Revista Literatura e Sociedade,
v.1, n.27, 2018.
_______. A dupla noite das tílias – Histó-
ria e natureza no Fausto de Goethe. São
Paulo: Editora 34, 2019.
MORETTI, F. O romance de formação.
Trad. Natasha Belfort Palmeira. São Pau-
lo: Todavia, 2020.

Cecilia Marks é mestre e doutora em Le-


tras pelo Departamento de Teoria Literária
e Literatura Comparada da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo. Atua como
pesquisadora independente e mediadora
de leitura. @ – ceciliamarks@uol.com.br /
https://orcid.org/0000-0002-9524-3114.
Recebido em 20.5.2020 e aceito em
23.5.2020.
I
Universidade de São Paulo, Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São
Paulo, Brasil.

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