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DA FISSURA COM O MUNDO À TESSITURA DA FORMA: O


CONCEITO DE EPOPEIA NEGATIVA EM MORTE E VIDA
SEVERINA, DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO

Fernando Oliveira Santana Júnior


Universidade Federal de Pernambuco*

RESUMO: Este trabalho tem por objetivo analisar o poema dramático Morte e vida
severina (2007), de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), de acordo com o conceito
de epopeia negativa, do filósofo Theodor Adorno (2003), incluindo reflexões de Georg
Lukács (2000), Arturo Gouveia (In: GOUVEIA; MELO, 2004), entre outros autores.
Ademais, a escolha de Morte e vida severina para este trabalho também é justificada
pela tese de que a produção literária brasileira Pós-Geração 45 é contemporânea (Cf.
MERQUIOR, 1979, In: PORTELLA, 1979; MERQUIOR, 1980).

PALAVRAS-CHAVE: João Cabral de Melo Neto; Morte e vida Severina; epopeia


negativa.

INTRODUÇÃO: À GUISA DE JUSTIFICATIVA

A escolha de Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, para


este trabalho decorre de uma tese relevante, sustentada pelo crítico literário
José Guilherme Merquior: a literatura produzida a partir de cerca de 1940 faz
parte de um marco “pós-modernista”. Merquior sustenta que essa nova fase é
oriunda da “emergência, desde o fim da Guerra, de uma cultura literária
essencialmente diversa da modernista, embora dela herdeira e até, várias
vezes, epígona” (In: PORTELLA, 1979, p. 89). Dito de outro modo, o término da
Primeira Guerra e a eclosão da Segunda Guerra ocasionaram um
deslocamento das temáticas das obras literárias. No caso do romance
brasileiro, por exemplo, as questões sociais darão lugar às questões
existenciais e/ou ontológicas, com ênfase no mergulho da subjetividade
fragmentada das personagens, através de uma prosa filosofante e mítica da

*
Mestrando em Teoria da Literatura [o autor escreve em 2009, época de seu mestrado] pelo
PPGL-UFPE (Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de
Pernambuco).
2

condição humana, como Clarice Lispector e Guimarães Rosa1. A despeito de


os escritores pós-modernistas serem contemporâneos da primeira e da
segunda geração modernista, eles “chegaram à idade intelectualmente adulta
num universo já bem diferenciado das estruturas sociais do princípio do século
[XX, e das décadas de 20 e 30]” (MERQUIOR, In: PORTELLA, 1979, p. 89). Ou
seja, da industrialização-urbanização se vai para a reificação humana gerada
pela sociedade de consumo, entre outros problemas (Cf. MERQUIOR, In:
PORTELLA, 1979, p. 90-92). Dentro do marco pós-modernista proposto por
Merquior, é possível situar a obra de João Cabral, especificamente a produção
após esse marco.
Dentro do que ele chama “Pós-Modernismo”, iniciado cerca de 1940, a
lírica cabralina é considerada por esse autor como “alegorismo ético” (In:
PORTELLA, 1979, p. 91). Por “lírica de João Cabral”, caracterizada por um
“alegorismo ético”, se entende obras como “Cão sem plumas” e “Morte vida
severina”, por exemplo. Nelas, o “rio” alegoriza um questionamento ético da
condição existencial humana, vitimada pela miséria, pela seca, pelo sistema
político (sobressaindo o coronelismo) passivo diante desses ingredientes
caóticos que vitimam o sertanejo, especialmente. A urbanização veloz da urbe
moderna ignora a rarefação do homem do campus: no Brasil, “a literatura pós-
modernista se defronta com a aceleração do processo de modernização”
(MERQUIOR, 1979 apud PORTELLA (Org.), 1979, p. 90).
Já no ensaio Musa morena moça, do livro O fantasma romântico e
outros ensaios, de 1980, José Guilherme Merquior, fazendo um levantamento-
identificação das correntes da poesia brasileira contemporânea, situa a poesia
cabralina na tradição imediata após 1954 (Cf. 1980, p. 134). À vista disso,
Morte e vida e severina – obra de 1954-55, portanto dentro do marco proposto
por Merquior – pode ser considerada contemporânea. “Contemporânea”, nesse
contexto, denota a pertença a um marco surgido após as gerações
modernistas, considerando que o que Merquior chama de “pós-moderno”
corresponde à contemporaneidade, iniciada em cerca de 1940.

1
Merquior põe Guimarães Rosa entre “alguns dos pós-modernistas mais representativos” (In:
PORTELLA, 1979, p. 89).
3

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A EPOPEIA CLÁSSICA

A epopeia clássica se define – na Poética, de Aristóteles, como


“imitação metrificada de seres superiores” (In: ARISTÓTELES; HORÁCIO;
LONGINO, 2005, p. 24). A exaltação que Aristóteles rende à epopeia ainda é
reiterada noutros momentos da Poética, ao atestar a excelência como marca
registrada das composições homéricas (In: Idem, 2005, p. 22), e que “Homero
imita pessoas superiores” (In: Idem, 2005, p. 20). Essa excelência não é
apenas notada na construção metrificada, mas também no objeto da epopéia:
os seres ou as pessoas superiores. Assim, não só pela metrificação, mas
também pelo objeto da mimesis, definimos a epopeia clássica como a diegesis
da totalidade ontológica, totalidade que parte dos “seres superiores” para ser
posta em forma métrica condizente com a excelência desses seres.
Antes de refletirmos sobre o caráter desses seres superiores, é
oportuno tecermos mais considerações em torno da epopeia clássica. A
excelência dos seres superiores mimetizados na epopeia decorre, também, do
fato de que “a epopeia explora as origens do universo e do homem, procurando
compreender a ação sobre o mundo [...]” (SCHÜLER, 1985, p. 08). Assim, a
totalidade ontológica épica inclui o mito como componente essencial2. Tendo o
mito como fundamento essencial para a explicação do Cosmos, até mesmo
para as lacunas caóticas (a guerra entre gregos e troianos, por exemplo), a
narrativa épica registra a transcendência: “[As epopeias] são kosmoi, mundos
ordenados para ordenar o mundo, em conflito com as tendências da
desagregação que atuam dentro deles mesmos” (SCHÜLER, 1985, p. 08).

2
Conforme André Jolles, o mito nasce como forma simples e antecedente das formas literárias
por meio de um processo de profunda observação reflexiva do Homem diante do Universo.
Uma disposição mental mediante um processo que se dá pela contemplação, seguida pelo
espanto diante da imagem da totalidade cósmica, gerando a pergunta-busca, culminando com
a resposta: “essa resposta é de tal natureza que não é possível formular outra pergunta; a
pergunta anula-se no mesmo instante em que é formulada; a resposta é decisiva” (JOLLES,
1976, p. 89). Tudo isso sucede, no ser humano indagador, diante da necessidade de perscrutar
os mistérios da Criação e do Sagrado. Consequentemente, o mundo grego legou, por exemplo,
a cosmogonia Os trabalhos e os dias, de Hesíodo, para explicar, em termos míticos, a origem
dos seres superiores.
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Quando a ordem-mundo sofre um abalo caótico, tornando-se fissurado, uma


nova ordem é suscitada com o escopo de devolver ao mundo a ordem cósmica
original. Noutras palavras, da fissura ocasionada por Helena à luta de Ulisses
contra os pretendentes da esposa desse herói, o percurso épico se traduz em
linhas de terras e mares narrativos que atingirão o ápice da montagem
ontológica restaurada. Ademais, tendo o mito como meio de explicar o
Cosmos, “a epopeia [é] [...] narrativa com deuses” (Idem, 1985, p. 16). Para dar
movimentação à presença do mito na narrativa épica, o herói aparece como
impulsionador da fusão entre o humano e o divino.
Conforme Donaldo Schüler, “a excelência do herói detecta-se em duas
esferas: no destro manejo das armas e na habilidade de falar” (1985, p. 16).
Poder bélico e poder verbal, força e razão, explosão da guerra e contenção
racional do pensamento externado pela fala, eis a constituição do herói da
narrativa épica clássica, aliados às forças dos deuses gregos. Dessa forma, a
identificação entre o herói e o Universo revela uma essência, não havendo
fissura entre interior e exterior, não havendo distinção alguma entre eu e
mundo. Assim, Homero não concebia um mundo fissurado, pois, para o autor
da Ilíada, “a realidade se explicava nos termos da mitologia grega”, de modo
que “em seus poemas, história e mito se confundem” (GULLAR, 1989, p. 08).
A excelência do herói clássico homérico não se explica apenas pelo elo
dele com os deuses da mitologia grega, mas também pelo viés ideológico,
fincado no mundo terreno, denotando que mitologia grega e ideologia se
coadunavam na poética homérica. Esse vínculo é confirmado pelo poeta
Ferreira Gullar:

[...] O fato de que o sistema de conhecimento greco-romano se


apoiava em elementos mitológicos não significa que aqueles poetas
se mantivessem alheios à realidade de seu tempo, nem que sua
poesia se realizava desligada das contingências pessoais, nacionais
e até mesmo políticas (1989, p. 10).

Segundo Donaldo Schüler, “o homem exaltado por Homero é


univocamente o aristocrata, de quem destaca virtudes modelares” (1985, p.
15). Dito de outro modo, “os heróis clássicos são heróis da classe alta, que
procuram demonstrar a ‘classe’ dessa classe” (KOTHE, 1987, p. 12). Diante
disso, ao atestar que a epopeia e a tragédia mimetizam “seres superiores”,
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Aristóteles levava em conta o fato de os heróis épicos e trágicos pertencerem à


aristocracia helênica. Agindo assim, Aristóteles parece ser “um ideólogo da
classe dominante, a aristocracia”, segundo infere Kothe (1987, p. 09), de modo
que essa leitura nos faz entender a inferioridade da comédia, na qual o povo é
personagem3. Ademais, a superioridade sobressai para o herói épico, cujo
percurso é essencialmente elevado do que o do herói trágico, “cujo percurso é
o da queda” (Idem, 1987, p. 12), mas uma queda que faz possível um Édipo se
elevar após a punição. Essa superioridade também é confirmada por Hegel,
exemplificada através da Odisseia:

Os heróis épicos podem certamente ter desejos e conceber fins, mas


o que mais interessa não são nem os desejos, nem os fins, mas tudo
o que acidentalmente lhes acontece. As circunstâncias são-lhes
superiores, por vezes mais ativas do que eles. Assim é que, por
exemplo, o regresso a Ítaca constitui um fim real de Ulisses. Ora, a
Odisseia não no-lo apresenta apenas na realização ativa desse fim,
mas narra demoradamente tudo o que lhe acontece no decurso das
suas peregrinações, o que suporta, os obstáculos que se lhe
deparam, os perigos que encontra, as emoções que sente (1997, p.
468. Grifo nosso).

O acontecimento é uma marca da superioridade do herói épico grego,


mas esse acontecimento (o retorno a Ítaca, por exemplo) é marcado pelas
intempéries dos ciclopes, das sereias. Diante de um percurso de
4
invencibilidade, mesmo com o sofrimento , em conformidade com Georg
Lukács, as ações do herói clássico grego se adéquam “às exigências
intrínsecas da alma: à grandeza, ao desdobramento, à plenitude” (2000, p. 26).
A “grandeza” corresponde à superioridade, o “desdobramento” ao percurso
crescente da invencibilidade e a “plenitude” à totalidade ontológica harmoniosa
com os mitos. Assim é a era da epopéia, conforme Lukács, embora o filósofo
húngaro já dê um alerta a respeito de uma fissura vindoura, implodida
sintomaticamente pelo romance, como veremos:

3
A obra homérica, com seus heróis, contribuiu para a legitimação dos aristocratas gregos, pois
estes, nessa obra, eram considerados descendentes desses heróis, os quais, por sua vez,
descendiam dos deuses gregos, “completando-se assim um ciclo de legitimação da aristocracia
à base de um direito divino” (KOTHE, 1987, p. 18).
4
Nesse tocante, “o herói épico é um herói potencialmente trágico, mas é um herói cuja história
deu certo” (KOTHE, 1987, p. 23, 24). À vista disso, instaura-se uma epopeia positiva.
6

Ao sair em busca de aventuras e vencê-las, a alma desconhece o


real tormento da procura e o real perigo da descoberta, e jamais põe
a si mesma em jogo; ela ainda não sabe que pode perder-se e nunca
imagina que terá de buscar-se (2000, p. 26).

Desse modo, na era épica, vida e essência são uma coisa só, sem
sombra de cisões fragmentadoras, pois esse mundo-era é “um sistema
homogêneo de equilíbrio adequado, pois o homem [o herói grego] não se acha
solitário” (LUKÁCS, 2000, p. 29), mas unido aos deuses. O mundo épico dos
gregos revela, assim, uma totalidade em que o perfeito ocorre sem fissuras,
“porque nele tudo amadurece até a própria perfeição [...]. Totalidade do ser só
é possível quando tudo já é homogêneo, antes de ser envolvido pelas formas
[do romance moderno]” (Idem, 2000, p. 31). Portanto, “[...] em Homero, [...] o
transcendente está indissoluvelmente mesclado à existência terrena, e seu
caráter inimitável repousa justamente no absoluto êxito em torná-lo imanente”
(LUKÁCS, 2000, p. 45).
Explicando o que Lukács quis dizer com “imanência do sentido da
vida”, Nicolas Tertulian diz em seu ensaio sobre A teoria do romance:

Quando Lukács fala da “imanência do sentido da vida” como


característica do período histórico que engendrou a epopeia pensa na
existência de uma conjunção harmoniosa das aspirações do indivíduo
com a estrutura da vida coletiva. Os fins do indivíduo concordam
espontaneamente com os da coletividade, a ação veste perfeitamente
a alma, a exterioridade das relações sociais é o receptáculo orgânico
da interioridade (2008, p. 113).

Por essa razão, conforme Hegel, “todas as epopeias verdadeiramente


originais nos oferecem a imagem do espírito nacional, tal como se manifesta na
moral da vida familiar, na guerra e na paz, nas necessidades, nas artes, usos e
interesses, enfim uma imagem completa [...] (1997, p. 455). Assim, a totalidade
– na epopeia grega – denota uma unidade plena entre o indivíduo heróico,
ajudado pelos deuses, e o povo-coletividade ao qual o herói pertence, sem a
fissura da solidão (Cf. LUKÁCS, 2000, p. 67). À vista disso, “os heróis [gregos]
são retratados em acabamento, não em processo” (GOUVEIA, In: GOUVEIA;
MELO, 2004, p. 56)5.

5
Como lembra Arturo Gouveia, “em Os trabalhos e os dias, [...] os heróis pertencem à quarta
raça, antecedida da raça de bronze, de prata e de ouro. [...] Os guerreiros épicos, [...] inscritos
numa ordem cósmica incomensurável, carregam em sua própria essência o que Lukács chama
7

2 A EPOPEIA NEGATIVA

Conforme dissemos, Lukács, em sua obra A teoria do romance, falando


sobre a era da epopeia, já sinalizava que chegaria um tempo em que uma nova
forma épica apresentaria uma fissura com a tessitura perfeita da epopeia
clássica grega. Em síntese, “o percurso do herói moderno é a reversão do
percurso do herói antigo” (KOTHE, 1987, p. 65). É o romance que assinalaria a
inadequação da epopeia à era moderna6, cujo início se dá através de Dom
Quixote, de Cervantes, tendo novo modelo de herói que se depara com uma
realidade fissurada, “a experiência do mundo desencantado” (ADORNO, 2003,
p. 55). Uma realidade que não cabe mais no conceito de herói cavaleiro
medieval, tampouco no de herói clássico grego. O mundo moderno se dilata
numa realidade que não dá mais conta de si mesma, diferente do que ocorria
na epopeia clássica. Dom Quixote mostra, segundo Lukács, um “idealismo
abstrato”, “mentalidade que tem de tornar o caminho reto e direto para a
realização do ideal” (2000, p. 100). No entanto, o que Dom Quixote vê é uma
realidade heterogênea, em que as reações e as ações quixotescas “não
possuem em comum nem alcance nem qualidade nem direção do objeto”
(LUKÁCS, 2000, p. 101). Dito de outra forma, “[...] a mais autêntica e heróica
evidência subjetiva não corresponde obrigatoriamente à realidade” (Idem,
2000, p. 107). Está fundada, pois, a estética da fissura, da fragmentação: o
romance moderno, no qual não há a harmonia entre o eu e o mundo. Ademais,
como atesta Walter Benjamin, “a matriz [a origem] do romance é o indivíduo em
sua solidão” (1985, p. 54). Assim, “a tensão entre as aspirações do indivíduo e
a objetividade reificada do ‘mundo’ constitui o princípio gerador da nova forma
épica [o romance]” (TERTULIAN, 2008, p. 113). Não se vê mais um indivíduo

de totalidade extensiva e espontânea. Em outras palavras: o símbolo (enquanto representação


de uma coletividade e exemplo positivo para o futuro) que emana dos personagens épicos
deriva diretamente de sua ação [...]” (In: GOUVEIA; MELO, 2004, p. 60).
6
Hegel ensinou que a poesia épica cedeu “definitivamente o seu lugar ao romance” (1997, p.
494), instaurando-se como a “epopeia burguesa moderna”, na qual a fissura entre “a poesia do
coração” (a essência heróica épica) e a “prosa das circunstâncias” (a realidade prosaica,
fragmentada do mundo moderno) é tônica de desequilíbrio (Cf. HEGEL, 1997, p. 492).
8

épico coletivizado, mas um indivíduo fissurado na própria solidão, diante de


uma realidade sem harmonia cósmica.
A nova forma épica, o romance, não mostra a superioridade da
invencibilidade do herói grego. Como lembra Kothe, “segundo Weinrich, as
obras modernas, para poderem ser artisticamente superiores, têm como que
uma proibição de heróis positivos e de felicidade” (1987, p. 60).
Se a prosa moderna não prioriza um herói positivo, mas, sim, negativo,
logo, instaura-se uma epopeia negativa. Esse conceito foi lançado por Theodor
Adorno, em seu ensaio A posição do narrador no romance contemporâneo: “De
fato, os romances que hoje contam, aqueles em que a subjetividade liberada é
levada por sua própria força de gravidade a converter-se em seu contrário,
assemelham-se a epopéias negativas” (2003, p. 62). Não obstante, segundo
Arturo Gouveia, “esta curiosa expressão impõe-se, em uma primeira leitura,
como uma noção dispersa, circunstancial, de uma contingência sem aparente
aprofundamento teórico” (In: GOUVEIA; MELO, 2004, p. 12). Essa expressão
fundada por Adorno não recebeu, em outras obras do filósofo, um
desdobramento semântico mais específico, de modo que “o leitor sente essa
enorme lacuna no texto”, segundo Arturo Gouveia (In: Idem, 2004, p. 12).
Ademais, assim como a conclusão do ensaio de Adorno, a expressão
“epopéias negativas”, ainda segundo Arturo Gouveia, “parece truncada” (In:
GOUVEIA; MELO, 2004, p. 13). Diante disso, Arturo Gouveia vasculha outras
obras de Adorno7, entre outras coisas, para desenvolver um aprofundamento
teórico dessa expressão, em consonância com as reflexões adornianas sobre o
sujeito no capitalismo e na indústria cultural. Posteriormente, Arturo Gouveia
aplica o conceito de epopeia negativa em contos de Hilda Hilst e de Caio
Fernando Abreu, mostrando, com essa análise, que esse conceito não se
restringe ao romance, mas pode ser visto em contos, por exemplo. Neste
trabalho, apenas nos deteremos nos pontos em que Arturo Gouveia contribui
para a conceituação de epopeia negativa, estando em conformidade com a

7
Por exemplo, em Prismas: crítica cultural e sociedade, diz Adorno: “a insuficiência do sujeito
que pretende, em sua contingência e limitação, julgar a violência do existente (...) torna-se
insuportável quando o próprio sujeito é mediado até a sua composição mais íntima pelo
conceito ao qual se contrapõe como se fosse independente e soberano” (apud GOUVEIA, In:
GOUVEIA; MELO, 2004, p. 26).
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intenção adorniana. Na parte final deste ensaio, faremos uma breve aplicação
do conceito de epopeia negativa em Morte e vida severina, de João Cabral de
Melo Neto.
É oportuno atestar algo que Arturo Gouveia não menciona em seu
ensaio: a germinação do conceito de epopeia negativa n’A teoria do romance,
de Lukács: “[...] a extensão do caminho que o herói tem de percorrer
dentro de sua própria alma [...]. [...] Com o colapso do mundo objetivo,
também o sujeito torna-se um fragmento (2000, p. 42 / 52. Grifo nosso).
Interessante é que Arturo Gouveia parafraseia Lukács – quiçá
inconscientemente – ao dizer sobre os personagens da epopeia negativa: “a
única via da experiência é mergulho em si mesmos, uma vez que as
experiências externas são hostis e improdutivas” (In: GOUVEIA; MELO, 2004,
p. 41. Grifo nosso). Portanto, entendemos que Adorno foi influenciado por
Lukács na definição do romance moderno como epopeia negativa, pois nessa
travessia épica, o herói não conquista o mundo exterior (como o clássico), mas
procura conquistar o mundo interior, fissurado com o mundo externo reificador.
O isolamento do personagem, segundo Arturo Gouveia, faz parte do
conceito de epopeia negativa:

[...] Conceito de epopeia negativa: o isolamento do personagem não é


apenas uma opção de fuga ou subterfúgio; é antes produzido por
uma gigantesca máquina de opressão e subjugação. Quanto menos
esta máquina aparece citada claramente no enredo, mais eficaz é o
seu poder de destruição, porque é menos visível e palpável pelos
personagens (In: GOUVEIA; MELO, 2004, p. 42).

A epopeia clássica, geralmente, gravita em torno de uma coletividade;


mesmo havendo um indivíduo, esse herói é coletivizado, pois ele age em nome
do grupo-povo-nação a que pertence. Já na epopeia negativa “é muito
sintomática a restrição do foco a poucos personagens, às vezes um só –
procedimento muito coerente com a descrença em intervenções coletivas”
(GOUVEIA, In: GOUVEIA; MELO, 2004, p. 43). Dito de outro modo, a narrativa
épica negativa gravita em torno de um indivíduo caracterizado pelo isolamento,
vencido pelo sistema opressor. Mesmo que haja um grupo nas narrativas da
epopeia negativa, esse grupo é marcado pela fragmentação existencial, ainda
10

assim, de indivíduos sitiados por um isolamento, pela alienação do foco


narrativo, a qual frisa personagens individualizados na imersão do fracasso.
É possível ver afirmações de Adorno no ensaio A posição do narrador
no romance contemporâneo que podem elucidar o conceito aparentemente
esparso de epopeia negativa. Atacando a apreensão de suficiência do real
levada a cabo pelo realismo/naturalismo, com seus romances das teses
científicas em voga, Adorno mostra uma crise na narratividade. Isto é, a
narração em terceira pessoa, detendo o conhecimento do mundo, com
objetividade, face ao romance do século XX se vê solapada (Cf. ADORNO,
2003, p. 55). Essa atitude do realismo/naturalismo é a do “preceito épico da
objetividade”, usando as palavras de Adorno (2003, p. 55), na qual o narrador,
na condição de sujeito deveria manter um distanciamento do narrado (Cf.
HEGEL, 1997, p. 447), mantendo o controle do relato, com suficiência. No
entanto, o romance do século XX, face às guerras mundiais, à reportagem, à
indústria cultural e – sobretudo – ao cinema, conforme Adorno, precisaria se
concentrar na falta de condição de dar conta do relato realista (Cf. 2003, p. 56).
Assim, o real das guerras mundiais, por exemplo, desintegrou “a identidade da
experiência” (ADORNO, 2003, p. 56). Diante disso, a postura do narrador
permite, no romance moderno (do século XX), a insuficiência de apreensão do
narrador, pois: como narrar a desmontagem do humano ao se presenciar a
guerra? Não cabem mais as experiências de aventuras que as pessoas
costumeiramente narravam: a velocidade da indústria cultural e a guerra, por
exemplo, demandam a fragmentação. Assim, “o romance foi forçado a [...]
entregar-se à representação da essência e de sua antítese distorcida”
(ADORNO, 2003, p. 57). Os romances realistas dizem que as coisas são como
elas são8, mas ainda reproduzem “a fachada”, segundo Adorno, não
penetrando na “reificação de todos os indivíduos”, de “uma sociedade em que
os homens estão apartados uns dos outros e de si mesmos” (2003, p. 57-58).
O ponto nevrálgico para entender a diferença entre o romance realista e o
romance do século XX consiste em que neste:

O narrador parece fundar um espaço interior que lhe poupa o passo


em falso no mundo estranho, um passo que se manifestaria na

8
“A aparência como algo rigorosamente verdadeiro” (ADORNO, 2003, p. 61).
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falsidade do tom que age como se a estranheza do mundo lhe fosse


familiar. Imperceptivelmente, o mundo é puxado para esse espaço
interior [...] monologue intérieur (ADORNO, 2003, p. 59).

Proust é um exemplo dado por Adorno, nesse sentido, para mostrar


que “a categoria épica fundamental da objetividade” (2003, p. 59) foi suprimida.
Outro elemento que suprime a objetividade épica é exemplificada, segundo
Adorno, por Kafka. Chocando o leitor, Kafka, destrói “a tranqüilidade
contemplativa diante da coisa lida”, não permitindo “mais a observação
imparcial”, causando um encolhimento total entre leitor e narrativa, quebrando
o distanciamento da objetividade épica (ADORNO, 2003, p. 61). Depois,
Adorno lança uma definição de sujeito literário que coaduna com o conceito de
epopeia negativa: “o sujeito literário, quando se declara livre das convenções
da representação do objeto, reconhece ao mesmo tempo a própria impotência,
a supremacia do mundo das coisas, que reaparece em meio ao monólogo”
(2003, p. 62). Com isso é preparada uma linguagem deteriorada, “uma
segunda linguagem [épica negativa], destilada de várias maneiras do refugo da
primeira [épica, realista], uma linguagem de coisa, [...] como a que entremeia o
monólogo”, composta pela massa alienada da linguagem primeira (ADORNO,
2003, p. 62).
Da onisciência da objetividade, o narrador, no romance moderno, se
desagrega na impotência da subjetividade, diluindo-se no espaço narrativo e
nas personagens, desprendendo-se da aparente inalcançabilidade posicional
desde os tempos homéricos até o realismo/naturalismo. Diante disso, “a
epopeia negativa [...] configura os romances de vanguarda pela impotência e
pela precariedade dos personagens” (GOUVEIA, In: GOUVEIA; MELO, 2004,
p. 25). Assim, conforme Arturo Gouveia, “a epopeia negativa ganha terreno
exatamente no excesso de introspecção dos personagens” (In: Idem, 2004, p.
26), pois esses personagens não são mais os invencíveis heróis épicos
clássicos, mas frágeis diante do sistema opressor. Nos romances marcados
pela epopeia negativa, os personagens “não têm condições concretas de
estabelecer rupturas, ainda que breves, contra a opressão do mundo externo”,
conforme Arturo Gouveia (In: Idem, 2004, p. 37). Portanto, os obstáculos não
são vencidos, como na epopeia homérica, as personagens da epopeia negativa
12

são vencidas pela realidade da opressão: o mundo é fissurado, e a


desintegração do herói épico negativo com esse mundo é tônica constante.

3 A EPOPEIA NEGATIVA: UMA LEITURA POSSÍVEL PARA MORTE E VIDA


SEVERINA

Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, possibilita um


questionamento próprio ao sujeito literário do século XX: que é o mundo
externo, se com ele tal sujeito se vê mais distanciado negativamente, numa
espécie de recuo em direção às entranhas do ser? Além desse
questionamento, há – nessa obra cabralina – a universalização da topografia
da seca, que também se pauta – segundo entendemos – num movimento de
negativização da condição da dignidade humana do narrador Severino. Dito de
outro modo, a secura geofísica leva o narrador a se negativizar frente à
existência externamente seca e miserável, vendo-a cada vez mais como a
secura da alma e, por fim, um caminho para a secura da vida, a esvaecer na
“morte severina”.
É possível observar em Morte e vida severina – através da trajetória de
Severino – uma epopeia nordestina negativa. Mesmo que esse Auto de natal
pernambucano tenha em comum com o gênero épico o épos (verso), por
exemplo, há um distanciamento entre o herói negativo Severino e o herói
clássico homérico. Em termos genéricos, o herói clássico traça uma epopeia da
invencibilidade, não se enfraquecendo diante dos conflitos, vindo a instaurar
pleno domínio de seu mundo exterior, mantendo-o sob controle o eu e a
natureza. O universo conquistado pelo herói épico clássico é extrínseco,
marcado pela morte dos inimigos ao fio da espada e da flecha, sob a elevação
da condição heróica a uma titânica e inexorável força sobre-humana. Todavia,
o Severino cabralino – ao sair retirante pelo mundo exterior seco – instaura um
herói diferente e oposto do padrão de Homero. Diante dessa inadequação de
Severino ao padrão homérico de herói, é possível ver – no nordestino retirante
– um épico negativo e o herói problemático lukacsiano, inadequável à realidade
circundante.
13

Devido à decadência da burguesia e a consequente miséria do povo,


os romances burgueses – com suas idealizações de uma vida aquém da
realidade social vigente – revelam um “romantismo da desilusão”, trazendo
desde Cervantes um herói problemático fissurado no isolamento da
interioridade da alma. Eis o que sente o herói problemático diante da decepção
e da frustração provocadas pelo ufanismo burguês: “uma sofreguidão
excessiva e exorbitante pelo dever-ser em oposição à vida e uma percepção
desesperada da inutilidade dessa aspiração; uma utopia que, desde o início,
sofre de consciência pesada e tem certeza da derrota” (LUKÁCS, 2000, p.
122). Já o narrador, conforme Theodor Adorno, “parece fundar um espaço
interior que lhe poupa o passo em falso no mundo estranho, um passo que se
manifesta na falsidade do tom de quem age como se a estranheza do mundo
lhe fosse familiar” (2003, p. 59). Além da fundação de um espaço de conquista
interior há, em termos adornianos, um narrador que “reconhece ao mesmo
tempo a própria impotência, a supremacia das coisas, que reaparece em meio
ao monólogo” (ADORNO, 2003, p 62), numa epopeia negativa.
O universo de Severino é uma ambiência fracassada, fissurada, na
qual “se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de
fome um pouco por dia” (MELO NETO, 2007, p 148). Um universo que tem
como pathos a “sina [...] de abrandar estas pedras suando-se muito em cima, a
de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar algum
roçado da cinza” (Idem, 2007, p. 148). Posteriormente, Severino se encontra
com a morte invencível, revelada em seus variados momentos, ao longo do
poema narrativo: o cortejo fúnebre de um Severino, sob o coro da Irmandade
das Almas, um Severino velado pelas rezadeiras numa casa, por exemplo
(MELO NETO, 2007, 148/151/153). Severino confirme esse encontro variado
com a morte: “desde que estou retirando só a morte vejo ativa, só a morte
deparei” (Idem, 2007, p. 153). Em termos lukacsianos, Severino vê a
sofreguidão sertaneja tão distante de uma vida idealizada, sendo uma vida que
contradiz a própria vida, de modo a instaurar a certeza da derrota: a vitória da
morte, morte severina. Já em termos adornianos, diante desse espaço exterior
opressivo estranho, Severino tece seus monólogos no espaço interior da alma,
no locus de si mesmo. Severino “não têm condições concretas de estabelecer
14

rupturas, ainda que breves, contra a opressão do mundo externo” (GOUVEIA,


In: GOUVEIA; MELO 2004, p. 37). Os monólogos de Severino fazem-no
reconhecer a própria impotência e a supremacia do mundo externo, com a
sofreguidão, com a seca, com a morte, sem nada poder fazer para transmutar
esse mundo em que ele vive, em vias de derrocada existencial. Assim, a
opressão do mundo exterior, com os coronéis que matam – através dos
capangas – os inocentes nas emboscadas, torna-se maior que Severino,
agravando a travessia épica negativa dele. Severino está problematizado na
angústia da impotência de sua vitória sobre a opressão do sistema. Portanto,
esse herói problemático, esse herói épico negativo vê seu sofrimento interior
como um mundo que não tem paz, que não está em harmonia com o universo
exterior, derrotado pela seca e pela opressão tirânica.
Ulisses cruzou mares fartos de águas, para retornar à pátria, na
condição de sobrevivente de Tróia, debelando ciclopes, sereias. No entanto,
Severino se depara com uma travessia de um rio Capibaribe que seca, sem
terminar o trajeto das águas, porque esse rio estava tão pobre que não pôde
cumprir essa sina das águas fartas, em um verão que petrifica, cortando as
rachaduras da seca da vida e da alma (Cf. MELO NETO, 2007, p. 152). Não há
sereias, não há ciclopes, há o humano fragmentado.
Chegando ao Recife, Severino ouve coveiros conversando sobre a
morte “da gente retirante que vem do Sertão de longe”, “gente dos enterros
gratuitos e dos defuntos ininterruptos” (Idem, 2007, p. 166). Isso é um extremo
contraste com a morte da gente rica urbana ou citadina. O agravante da
conversa consiste na iminente possibilidade de essa gente retirante não ter
onde se enterrar, por viver na lama, sem perspectiva de uma vida melhor (Cf.
MELO NETO, 2007, p. 167). O ápice e final da conversa entre os coveiros é o
fato de o rio, debaixo da ponte, servir de mortalha para esses retirantes
sertanejos, pois mesmo que venham ao Recife morrer de velhice, “aqui
chegando, [há] cemitérios esperando” (Idem, 2007, p. 167). Com isso, Severino
não vê diferença entre o mundo exterior sertanejo, de onde veio, e esse novo
mundo exterior citadino, aonde chegou: “e chegando, aprendo que, nessa
viagem, que eu fazia, sem saber desde o Sertão, meu próprio enterro eu
seguia” (MELO NETO, 2007, p. 168). Trata-se, pois, de uma epopeia negativa,
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na qual se vê “a inadequação de um personagem ao seu destino e à sua


situação” (BAKHTIN, 2003, p. 425). Diante disso, “o descompasso entre a
interioridade [nesse caso, a de Severino] e mundo [exterior – Sertão e Recife]
torna-se, assim, ainda mais forte (LUKÁCS, 2000, p. 118). Logo, o espaço
interior de Severino – durante seu monólogo, ao buscar uma estabilidade
interior – é mais verdadeiro que o simulacro da realidade opressora
circundante, “mundo estranho”, no qual se manifesta a impotência da conquista
externa épica do herói clássico, seguindo o pensamento de Adorno. Por isso,
há uma entrega passiva do herói negativo Severino à problemática que o
cerca, reflexo da impotência, de modo que essa entrega resulta na profunda
introspecção psicológica, e esse percurso interior instaura a epopeia negativa9.
A epopeia negativa de Severino chega ao cerne decisivo e fatal,
durante o monólogo interior, quando o retirante se aproximou de um dos cais
do Capibaribe: “a solução é apressar a morte a que se decida a pedir a este rio
[...] que me faça aquele enterro que o coveiro descrevia: caixão macio de lama,
mortalha macia e líquida [...]” (MELO NETO, 2007, p. 168). Assim, a
estranheza de ser reificado no mundo exterior recifense não deixa de ser
familiar a Severino, pois a estranheza do mundo de onde proveio – o sertão – o
lança fatalmente na mesma impotência reificadora, considerando que – no
Recife – a opressão do rico sobre o pobre persiste. Diante dessa constatação,
Severino, durante a conversa com José, mestre carpina, decide atirar-se da
ponte e da vida, e isso leva o sertanejo retirante a ver, na morte, um isolamento
final da opressão da existência severina. Isso é um choque com a epopeia
grega, sob o ponto de vista do herói problemático e épico negativo: não um
mundo sujeitável à força da espada e da flecha, mas um mundo que opõe
fracasso-morte à vitória-vida. Assim, “o isolamento do personagem não é
apenas uma opção de fuga ou subterfúgio; é antes produzido por uma
gigantesca máquina de opressão e subjugação” (GOUVEIA, In; GOUVEIA;
MELO, 2004, p. 42). Não obstante, o nascimento do filho de José, mestre
carpina, parece suscitar a esperança de uma vida severina que triunfe sobre a
morte severina. Uma leitura possível, pois as palavras do mestre carpina

9
“A epopeia negativa ganha terreno exatamente no excesso de introspecção dos personagens”
(GOUVEIA, In: GOUVEIA; MELO, 2004, p. 26).
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penetram no mundo interior de Severino, soerguendo a esperança da vida a


ser enfrentada: “a melhor resposta” para o questionamento do retirante
sertanejo, ainda que seja “a explosão [da continuidade] de uma vida Severina”
(MELO NETO, 2007, p. 178). Contudo, o aparente incentivo a sair para o
enfrentamento da vida severina do mundo exterior não parte de Severino, mas
destes personagens: o mestre carpina e o filho nascido deste. Nessa acepção,
sem a intervenção desses personagens, Severino iria para a sina dele: ter as
águas do rio, na condição de mortalha líquida, o final da epopeia negativa. Já
que o poema cabralino “finda” em aberto, talvez Severino tenha mesmo
continuado, na cidade, a vida severina, vendo a impotência de sua vida deixar
de ser severina.

CONCLUSÃO

Através da leitura proposta neste trabalho para Morte e vida severina, o


“alegorismo ético” identificado por Merquior, nessa obra, é visto como sinal
pós-modernista (MERQUIOR, In: PORTELLA, 1979, p. 91). A negatividade da
secura da condição humana, expressa pelo e no narrador Severino, transcende
a década de 1950, de modo que tal negatividade também operacionaliza
leituras contemporâneas e/ou atuais de Morte e vida severina. Essa
operacionalização suscitada pela leitura dessa obra põe o leitor de hoje em
contato com uma condição humana seca que não ficou restrita à época em que
esse Auto de natal pernambucano foi escrito – a década de 1950 – mas que
ainda teima em ser condição humana pós-moderna.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura I. São Paulo: Duas Cidades, 2003.

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São Paulo: Unesp / Hucitec, 1993.

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MELO, Anaína Clara de. Dois ensaios frankfurtianos. João Pessoa: Idéia, 2004.

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memorável, conto, chiste. São Paulo: Cultrix, 1976.

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formas da grande épica. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.

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MERQUIOR, José Guilherme. Os estilos históricos na literatura ocidental. In:


PORTELLA, Eduardo. Teoria Literária. 3. ed. Rio de Janeiro: Edições Tempo
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SCHÜLER, Donaldo. Literatura grega. Porto Alegre: Marcado Aberto: 1985.


(Série Revisão, 15).

TERTULIAN, Nicolas. Georg Lukács: etapas de seu pensamento estético. São


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