Você está na página 1de 15

Introdução

Introdução

1. Natureza e âmbito do acolhimento familiar


Paulo Delgado

Este capítulo apresenta os princípios, os pressupostos, os protagonistas e as


dimensões fundamentais do acolhimento familiar. Refere-se aos antecedentes jurídicos e
sociais da medida e comenta o panorama atual que a caracteriza no âmbito do sistema
de proteção português. Prossegue com uma reflexão sobre o percurso escolar das
crianças acolhidas, sobre o tempo de duração no acolhimento e termina com uma
referência ao contacto com a família de origem.

1.1. A família como contexto de desenvolvimento

O conceito de família pode ser abordado de diferentes perspetivas, entre as quais


a que a define como a relação íntima, estável e interdependente entre adultos,
associada ou não à filiação e à socialização das crianças (Minuchin & Fishman, 1997;
Palacios & Rodrigo, 1998; Segalen, 1996; Singly, 2000). No presente, o conceito de
família é cada vez menos circunscrito a laços de sangue, casamento, parceria sexual
ou adoção, tendendo a englobar aquele grupo cujas relações sejam baseadas na
confiança, suporte mútuo e num destino comum. A família afirma-se segundo critérios
intangíveis e relacionados com motivações e sentimentos, como a intimidade e o
compromisso, destaca-se pelos laços de intimidade e de dependência que se
prolongam a longo prazo de uma forma estável e do qual resultam o desenvolvimento
das pessoas nela implicadas (Bronfrenbrenner, 1996). A edificação do sentimento de
si e do sentimento pelos outros, assente na memória de um passado comum que
acompanha os sucessivos processos de mudança, associa-se à possibilidade de viver e
sentir-se seguro e realizado num espaço familiar (Alarcão, 2000; Gameiro, 1998;
Relvas, 1996; Wall, 2005).

A família desempenha um conjunto de funções nomeadamente de reprodução, de


socialização, de educação dos filhos, e também funções afetivas, de proteção e de
segurança, proporcionando a estabilidade emocional dos seus membros. Como contexto
de desenvolvimento das crianças, Palacios e Rodrigo (1998) identificam e descrevem
pormenorizadamente as funções seguintes:
Introdução

- Assegurar a sobrevivência das crianças, o seu crescimento e a sua socialização


nas condutas básicas de comunicação, diálogo e simbolização;

- Proporcionar um clima de afeto e de apoio sem o qual o saudável


desenvolvimento psicológico não é possível;

- Garantir a estimulação que permita adquirir capacidades para a relação com o


ambiente físico e social assim como para responder às exigências colocadas pela
adaptação ao mundo em que vivem;

- «Abrir» a família a outros contextos educativos com quem vai partilhar a tarefa
da educação;

- Proporcionar apoio para as diversas transições vitais que o sujeito terá de


realizar, nomeadamente a busca de parceiro(a), de trabalho, de casa, de novas relações
sociais, etc..

A diversificação dos modelos familiares é outro traço marcante da atualidade


(Relvas & Alarcão, 2002). À família nuclear somaram-se nos últimos tempos diferentes
modelos de família que constituem alternativas ao padrão de vida dominante. Todas elas
já existiam no passado, de forma mais ou menos marginal ou ditada pelos
acontecimentos, pelo que a mudança assenta no número crescente destas novas formas
de família e, principalmente, na sua aceitação social (Burguière, Klapisch-Zuber,
Segalen & Zonabend, 1986). A par do modelo de família com duas ou três gerações,
assente de forma crescente nas uniões de facto, encontram-se agora diferentes formas de
família, legitimadas no afeto, na realização pessoal e na livre escolha. Esta
transformação é indissociável de uma época que privilegia, entre os seus valores, o
respeito pelo indivíduo e pela liberdade das suas escolhas, independentemente das
potencialidades ou vulnerabilidades a que as suas decisões conduzam (Lipovetsky,
1988, 1994). É inseparável ainda do conhecimento e da divulgação crescente das
necessidades das crianças, das consequências dos maus tratos e da importância da
vinculação no processo de desenvolvimento (Ainsworth, Blehar, Walters, & Walls,
1978; Bowlby, 1969, 1988).

Nos países de modelo ocidental, a fase de expansão do Estado-Providência


conduz, nas últimas décadas do século XX, à delegação ou partilha de funções
familiares noutras instituições, como as educativas, as assistenciais, ou de gestão
doméstica, nomeadamente as creches, as escolas, os centros de dia, os centros de saúde,
Introdução

as empresas de serviços e outras pessoas estranhas à família, como as amas. Só com esta
disseminação a família pode conciliar “as suas necessidades com as suas
responsabilidades” (Orte, 1999, p.78). Esta necessidade de independência e de
autonomia implica novas dependências nas relações e nas vinculações que a família
estabelece com o meio que a rodeia (Alarcão, 2002). Se a família perdeu parte das suas
funções, conserva não obstante uma parte essencial da educação, no desempenho das
suas funções de “transmissão de valores, da formação de atitudes cívicas e políticas, dos
ideais de vida e da orientação profissional” (Quintana, 1993, p.21). A família é
insubstituível como «escola dos sentimentos», na expressão de Rosich (2001), pois tem
um papel decisivo na configuração da personalidade dos indivíduos.

A transferência da função educativa justifica, inclusivamente, a confiança da


responsabilidade parental a outra pessoa ou a uma entidade pública, sempre que a
família não cumpre as funções referidas por Palacios e Rodrigo (1998) e coloca a
criança numa situação de perigo. No âmbito da proteção da infância, a intimidade
familiar deve ser preterida, de modo célere e precoce, no interesse superior da criança,
quando o seu desenvolvimento é ameaçado (Garbarino & Barry, 1999). Nestes casos,
surge um conflito de direitos entre o exercício das responsabilidades parentais e o
interesse da criança que deve ser arbitrado cuidadosamente, atendendo às
consequências que uma intervenção menos ponderada pode provocar no bem-estar da
criança. A criança que é retirada da sua família transporta uma «carga pesada», tendo
que lidar com a separação e com as causas que levaram à separação e que se associam,
regra geral, a maus tratos sofridos (Cairns, 2002). Como afirma Palacios (2012), o
acolhimento esteve, está e estará relacionado com uma adversidade inicial, com a
separação e com a integração numa nova realidade familiar e social.

Ao longo deste capítulo recorremos ao termo «criança» para significar a pessoa


que ainda não atingiu a maioridade, independentemente da sua idade, e de ser, por
esse facto, «criança» ou «jovem». Criança, expressão idêntica ao menor do Direito
Civil, ainda hoje remanescente, e criança no sentido que lhe é atribuído pela
Convenção dos Direitos da Criança. A expressão «equipa de acolhimento» é utilizada
para designar as equipas da entidade de enquadramento da medida, a Segurança
Social, que tem por função selecionar, acompanhar, apoiar e avaliar as famílias de
acolhimento no respetivo âmbito de competência territorial.
Introdução

1.2. Acolhimento familiar: conceitos e princípios gerais

O acolhimento familiar é um modo de proteger crianças e jovens cujo processo de


desenvolvimento se encontra ameaçado. Este contexto de perigo compromete a
possibilidade de continuar a viver no local em que se encontra, integrando-se, em
alternativa, por um período mais ou menos longo, numa nova família. A opção pelo
acolhimento, o acompanhamento da colocação, a revisão da medida e a decisão que lhe
põe um termo é da responsabilidade de uma entidade com competência reconhecida
legalmente, no âmbito do sistema de proteção da infância e juventude.

É uma medida complexa, porque contém inúmeras variáveis, atores e dimensões.


Resulta da ocorrência de circunstâncias graves, que obrigam à retirada da criança do
espaço onde habita, regra geral a casa dos seus pais, de quem desempenha funções
semelhantes ou de quem tem a guarda da criança. Encontramo-nos perante um quadro
em que os maus tratos verificados impedem a continuação da coabitação, e o recurso a
outras medidas menos gravosas, não impeditivas da vida em comum.

Variando consoante o tipo, a frequência, a idade e o contexto familiar, as


consequências negativas dos maus tratos interferem no desenvolvimento da criança, de
modo mais ou menos gravoso, de forma temporária ou definitiva (Howe, Brandon,
Hinings & Schofield, 1999). As crianças acolhidas são, naturalmente, um grupo
heterogéneo, de acordo com a idade, as privações sofridas, o tempo de permanência e o
percurso no sistema de proteção, entre outros fatores, e constituem um desafio para os
seus acolhedores. No limite, o comportamento da criança acolhida pode terminar com a
rutura da colocação ou pôr em causa o equilíbrio da própria família de acolhimento
(Sinclair, Wilson & Gibbs, 2005; López, Del Valle, Montserrat e Bravo, 2011).

O acolhimento familiar pretende ser um lugar de hospitalidade, um tempo de


partilha, que não deve ser unilateral mas gerar reciprocidade entre acolhedores e
crianças acolhidas. Como espaço de generosidade, não pode prescindir de modelos
teóricos e critérios científicos que acrescentem aos laços de proximidade, próprios das
relações afetivas, as competências profissionais indispensáveis para o desempenho da
atividade (Luckock & Lefevre, 2011; Schofield & Beek, 2009).

A conceção do acolhimento familiar acompanhou as mudanças históricas,


económicas e culturais ocorridas nas últimas décadas, passando de uma medida
alternativa à própria família para uma ajuda temporal à criança e à sua família, com o
Introdução

objetivo de possibilitar a reunificação familiar (Neil, Cossar, Lorgelly & Young, 2010).
A família de origem da criança acolhida não pode ser alheada da colocação. O
aperfeiçoamento progressivo da intervenção ao nível da preservação familiar tem
permitido aumentar o número de casos em que a criança permanece com a sua família,
fruto de um trabalho específico de apoio sócio-educativo, o que significa, em
contrapartida, que o grau de dificuldade dos casos que são encaminhados para o
acolhimento tende a aumentar (Amorós & Palacios, 2004).

Em França, depois de um longo processo de profissionalização, procura-se


assegurar a implicação dos pais no processo, reconhecendo-se a importância de basear o
processo de recuperação e de terapia familiar nas vantagens e eficiências da família
biológica. O acolhimento converte-se numa das sete categorias profissionais do trabalho
social no âmbito do apoio familiar, passando desde 2005, a ser uma alternativa
profissional, também para acolhedores masculinos (Ramon, 2012).

Para as crianças acolhidas, a nova realidade implica, em princípio, a conexão entre


duas famílias, a sua, de origem, e a família acolhedora, que se deve constituir como um
contexto de segurança e de estabilidade. Decorrida a adaptação inicial, podem surgir
problemas de diversos tipos, como, por exemplo, de integração social, escolar ou de
identidade. A nova família deve ser um espaço que permita novas relações, novos
vínculos, que respeite expectativas e afetos, e que concilie esta nova realidade com a
busca de origens e o contacto com o património afetivo, cultural e social da criança
acolhida.

Para os acolhedores, decorrido o período de «lua de mel» do início da vida em


comum, é necessário ajustar a convivência, reorganizar a vida quotidiana e gerir os
problemas que possam surgir, ao nível do comportamento, da comunicação, da
integração na escola e no contacto com a família de origem. A par dos comportamentos
problemáticos, das perturbações emocionais ou das dificuldades de integração, vêm as
recompensas, associadas ao sentimento de ajuda, às mudanças ocorridas no
desenvolvimento e ao que se recebe em troca, intensamente, no relacionamento com a
criança. A complexidade do acolhimento é sublinhada por David (2000), quando
relaciona “as dolorosas mas necessárias desilusões que suscita aos acolhedores” com “o
seu inestimável valor, não apenas para a criança mas também para os seus pais e para a
própria família de acolhimento” (p.64). Os desejos das crianças acolhidas não diferem
das aspirações de outra criança: querem sentir-se amadas, integradas, e escutadas, que a
Introdução

sua vida seja o mais normal possível, que respeitem as suas origens, que os planos para
a sua vida sejam claros e previsíveis e que o acolhimento constitua uma oportunidade
para desenvolverem as suas competências na família, na escola ou no emprego (Sinclair,
Wilson & Gibbs, 2001).

A criança acolhida pode ser proveniente de uma instituição de acolhimento, de


outra família de acolhimento, ou, inclusive, de um processo de adoção fracassado. Em
todos os casos, são crianças que se encontram dentro do sistema de proteção o que nos
leva a acrescentar outro dado fundamental para a clarificação deste conceito, a da
supervisão de uma entidade pública com competência em matéria de proteção da
infância. Na qualidade de que se reveste, é decretada por uma entidade administrativa
ou judicial, na sequência de um processo próprio, devidamente planificado, e a sua
execução deve ser acompanhada e revista periodicamente pela mesma entidade ou por
outra que aquela nomeia.

Após a integração da criança na família de acolhimento, e enquanto decorrer a


estadia, a equipa de acolhimento competente tem a responsabilidade de suportar, ajudar,
promover e avaliar a colocação, até ao momento em que cessa, seja qual for a causa da
cessação. A medida não se esgota com a colocação, bem pelo contrário, e combina, no
acompanhamento, o apoio com a avaliação (Schofield, Beek, Sargent, & Thoburn,
2000), procurando assegurar que se encontram reunidas, junto dos acolhedores, as
condições necessárias para um desenvolvimento adequado da criança, seguir a evolução
da sua família biológica e analisar continuamente as condições ou pressupostos em que
se baseia o projeto de vida para a criança.

O acompanhamento adequado exige, deste modo, uma considerável percentagem


do tempo de trabalho da equipa de acolhimento, que não deve ser menosprezado
(Cleaver, 1999). O seu primeiro passo é o de assegurar à família biológica que
continuam a ser os pais da criança, apesar de não se ocuparem dela no quotidiano diário
(David, 2000), e o de aproveitar e salientar as suas potencialidades ou pontos fortes, a
base ou ponto de partida para o processo de recuperação (Amorós & Palacios, 2004). A
família biológica constitui uma fonte de identidade. De acordo com as circunstâncias e a
evolução de cada caso, é uma identidade que deve ser reafirmada, modificada ou da
qual se deve desistir (Sinclair, 2005).

Os acolhedores não dispõem de uma liberdade na tomada de decisões equivalente


a que caracteriza a relação com os seus filhos, nem o comportamento das crianças
Introdução

acolhidas se pode comparar, na maioria das situações, aos comportamentos daqueles


últimos. Roubar, mentir, destruir, bater, tomar drogas, fugir, são alguns desses
comportamentos. No estudo que desenvolveram, Sinclair, Gibbs e Wilson (2004)
apuraram que dois terços dos acolhedores incluídos na sua amostra já tinham vivido
uma de uma série de seis situações particularmente difíceis: rutura do acolhimento,
alegações de maus tratos, graves dificuldades no relacionamento com a família
biológica, tensões na família em virtude das dificuldades no acolhimento, retirada de
crianças contra o seu parecer e outro tipo de desacordos com a equipa dos Serviços
Sociais.

A existência do acolhimento familiar e a força que manifesta são a “repetida


demonstração que, face a essa origem, há espaço para o amor, bom senso, competência,
humor, empenho e resiliência” (Sinclair, Baker, Wilson & Gibbs, 2005, p.250). Quando
assim sucede, são os acolhedores que configuram, mesmo que provisoriamente, a
imagem e o conteúdo que a família em si deve conter, como espaço de afeto, de
segurança e de abrigo.

1.3. Antecedentes jurídicos e sociais do acolhimento familiar. O quadro


normativo atual.

A história do acolhimento familiar em Portugal pode ser escrita através do


reconhecimento de quatro fases ou etapas evolutivas. A primeira, corresponde à fase das
origens, a segunda à etapa da institucionalização, a que se segue um período de
expansão que corresponde à terceira fase. Por fim, desembocamos na fase do retrocesso,
que carateriza o presente.

A etapa das origens abarca o longo período de tempo desde a fundação do país até
à década de 70 do século XX. À semelhança da adoção, o acolhimento familiar sempre
existiu na sociedade portuguesa como prática acordada entre famílias ou como destino
para um grupo de crianças órfãs ou abandonadas, provenientes, em grande parte, dos
casos da assistência desenvolvida pela Igreja Católica. O acolhimento assenta no
espírito de grupo, nos laços comunitários, construídos na solidariedade da família, da
vizinhança ou da localidade. No decurso deste longo período de evolução, o
acolhimento em colégios, asilos e reformatórios consolida-se como a principal medida
de proteção da infância, à semelhança do que sucede nos outros países europeus,
Introdução

destacando-se o papel das ordens religiosas, das Misericórdias e da Casa Pia de Lisboa.
No decurso desta etapa, o acolhimento familiar é privado, uma vez que resulta do
acordo entre as partes, as famílias ou os grupos envolvidos (Delgado, 2011).

O acolhimento familiar como medida de proteção de crianças em perigo,


decretada no âmbito de um processo administrativo ou judicial e sujeito à tutela ou
controlo da Administração Pública ou entidades competentes e reconhecidas
publicamente para o desempenho dessas funções, surge apenas na etapa da
institucionalização. Com a publicação do Decreto-Lei n.º 288/79, de 13 de agosto, dá-se
cobertura legal à colocação de fato, promovida por iniciativa dos serviços de ação social
do Estado ou das instituições privadas de solidariedade social. De acordo com o novo
quadro normativo, o acolhimento familiar é a colocação temporária de crianças cuja
família natural não esteja em condições de desempenhar cabalmente a sua função
educativa, em famílias consideradas idóneas, que devem proporcionar um meio
substitutivo que garanta a segurança, o afeto, e o respeito pela personalidade, pelo
nome, origem e identidade (art. 1º).

A terminologia jurídica reflete o espírito da época, nomeadamente nos vocábulos


«menor» ou «família natural», e nos parâmetros da medida, que depende sempre da
concordância prévia dos pais ou tutores e não limita o poder paternal nem o seu
exercício. A colocação pode ser remunerada ou gratuita (distinguindo-se desde já o
subsídio de manutenção e a retribuição dos serviços) e formaliza-se por intermédio da
celebração de um documento escrito, onde consta o período previsível da estadia, os
contactos com a família de origem e o consentimento dado por estes últimos para o
acolhimento. A estadia é transitória, porque a finalidade da medida é o regresso à
família de origem, que deve contar com o apoio dos serviços e instituições adequadas
para recuperar a plenitude do exercício das suas funções naturais (art. 2º), de modo a
garantir o desenvolvimento ético, social e cultural da criança, temporariamente
ameaçado ou interrompido (art. 3º).

O Decreto-Lei que institucionalizou o acolhimento familiar foi revogado passados


13 anos, pelo Decreto-Lei n.º 190/92, de 3 de setembro. Durante o período de vigência
do Decreto-Lei n.º 190/92 entra em vigor a Lei de proteção de crianças e jovens em
perigo (Lei n.º 147/99, de 1 de setembro), que inclui uma vez mais o acolhimento
familiar no elenco das medidas de proteção, procede à sua definição e enumera os tipos
de famílias de acolhimento e as modalidades de acolhimento familiar. As medidas
Introdução

aplicáveis podem decorrer no meio natural de vida da criança, através de medidas de


apoio junto dos pais, junto de outro familiar, de confiança a pessoa idónea ou de apoio
para a autonomia de vida, quando não é necessário retirá-la do seu contexto, ou
implicarem uma colocação, como sucede no caso no acolhimento familiar, no
acolhimento em Instituição ou na confiança com vista a futura adoção. As medidas de
colocação ficam reservadas às ocorrências graves, que comprometem a permanência da
criança no seu meio de vida, e constituem um último recurso, uma vez que a
intervenção só pode interferir na vida da criança e na da sua família na medida do que
for estritamente necessário.

Conforme o disposto no artigo 46º da Lei de proteção, o acolhimento familiar


consiste na atribuição da confiança da criança ou do jovem a uma pessoa singular ou a
uma família, habilitadas para o efeito, visando a sua integração em meio familiar e a
prestação de cuidados adequados às suas necessidades e bem-estar e a educação
necessária ao seu desenvolvimento integral.

No âmbito da proteção, passa a distinguir-se o conceito de «risco» do conceito de


«perigo», no pressuposto que nem sempre o primeiro justifica, por si só, a intervenção
protetora do Estado ou sociedade (Carvalho, 2004; Guerra, 2000). O sistema de
proteção passa a dividir-se em dois grupos principais: as medidas de promoção e de
proteção integradas na Lei de Proteção de crianças e jovens em perigo, e as medidas
tutelares educativas, associadas à prática de crimes, previstas na Lei Tutelar educativa,
Lei n.º 166/99, de 14 de setembro. Até à reforma legal, o sistema de proteção abrangia a
delinquência juvenil, as situações a ela associadas, como a pré e para-delinquência e as
situações de perigo. Para todos os casos estava previsto o mesmo processo e as mesmas
respostas, nomeadamente a medida mais grave, o internamento, que era cumprido em
conjunto, nas mesmas instituições. Uma das características mais marcantes do sistema
de proteção infantil era o uso quase exclusivo do acolhimento em instituição, uma
intervenção que neste contexto foi sinónimo de institucionalização, restringindo
significativamente os direitos das crianças e dos seus pais (Delgado, 2006a).

Os princípios orientadores da intervenção, as suas finalidades, as medidas


aplicáveis, as entidades responsáveis pela intervenção, entre outros parâmetros da Lei
de proteção, foram objeto de diversos estudos (Gersão, 2000; Guerra, 2003, 2004;
Furtado & Guerra, 2000; Delgado, 2006a) assim como a caracterização do processo de
promoção e de proteção (Delgado, 2002; Pinto, 2006).
Introdução

Esta é a terceira fase, a da expansão, que se prolonga desde 1992 até 2008, em que
a medida se consolida como uma opção para a colocação de crianças e jovens, atingindo
uma expressão quantitativa que não voltará a ter até ao presente. Em 2002 o sistema
chegou a ter 4731 famílias de acolhimento. Neste universo, 1533 famílias de
acolhimento não tinham laços de parentesco e as restantes 3198 tinham laços de
parentesco com a criança acolhida. À data, encontravam-se acolhidas em família 6480
crianças (Delgado, 2007).

Em 2004 o número de crianças acolhidas baixa ligeiramente para 6277 e o


número de famílias para 4408. A quantidade de famílias de acolhimento sem laços de
parentesco permanece estável (1558) registando-se uma quebra no número de famílias
de acolhimento com laços de parentesco (passam a ser 2850). No mesmo ano
encontravam-se acolhidas 1682 em Centros de Acolhimento Temporário e 8001 em Lar
de Infância e Juventude, perfazendo um total de 9683 crianças em acolhimento em
instituição (Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias,
2006). A análise destes dados permite concluir que, em 2004, encontravam-se 15960
crianças e jovens em situação de acolhimento, um número significativamente superior
às 8938 que se encontravam acolhidas em 2011. Por outro lado, apesar de predominar o
acolhimento em instituição, que representava cerca de 60% do total das colocações, o
acolhimento familiar tinha uma expressão significativa, que se veio a alterar com o
início da quarta fase, que denominamos de retrocesso.

O Decreto-Lei n.º 190/92 manteve-se em vigor mais de 15 anos, até ser publicado
o Decreto-Lei n.º 11/2008, de 17 de janeiro, que estabelece o novo regime de execução
do acolhimento familiar, atualmente em vigor. Como consequência da sua entrada em
vigor, operou-se uma classificação restrita do âmbito da medida, permitindo a colocação
apenas na família sem laços de parentesco, o que fez diminuir, de modo expressivo, o
papel do acolhimento familiar no âmbito das medidas de colocação. Por outro lado,
apesar do novo diploma consagrar o alargamento e aprofundamento dos requisitos e
condições de candidatura no processo de seleção dos acolhedores e apostar no aumento
do nível social e económico das famílias de acolhimento, associado a níveis mínimos de
escolaridade, não se procedeu à divulgação da medida nem se desenvolveram processos
de seleção de novos acolhedores. A aplicação de critérios mais rigorosos no
acompanhamento e na avaliação do desempenho dos acolhedores, essenciais para a
transparência e para a defesa os princípios, valores e finalidades da proteção, associada
Introdução

à não substituição de acolhedores à medida que eram afastados ou cessavam a sua


atividade, conduziu ao progressivo definhamento do acolhimento familiar e ao seu
quase desaparecimento do sistema, como teremos oportunidade de analisar em detalhe
no ponto seguinte. A evolução das colocações no distrito do Porto é prova daquele
declínio: em maio de 2005 encontravam-se acolhidas 435 crianças face às 289 que
registámos e incluímos neste trabalho em maio de 2011.

1.4. O panorama atual do acolhimento familiar

O Relatório da Caracterização Anual das Crianças e Jovens em Situação de


Acolhimento em 2011 (Instituto da Segurança Social, 2012) faz a caracterização das
crianças e jovens em situação de Acolhimento. Em 2011, encontravam-se acolhidas
8938 crianças, das quais 6826 com o acolhimento iniciado antes daquele ano. Das 2112
crianças que iniciaram o acolhimento em 2011, 837 foram desinstitucionalizadas no
decurso do mesmo ano.

O sistema revela os seguintes traços essenciais:

- um elevado número de crianças acolhidas;

- baixa mobilidade, uma vez que poucas crianças cessam o acolhimento: em 2011,
foram menos 198 crianças acolhidas que cessaram o acolhimento, se comparado com
2010;

- um contínuo movimento de desinstitucionalização, uma vez que entram menos


crianças no sistema do que as que saem: em 2006 estavam acolhidas 12.245 crianças e
jovens e em 2011, apenas 8.938, o que representa um decréscimo de 27%;

- uma longa permanência, que se reflete num acolhimento superior a 2 anos para
55% das crianças acolhidas. Constata-se uma relação direta entre o avanço da idade das
crianças e a permanência em acolhimento.

Em suma, estão menos crianças acolhidas do que nos anos anteriores mas foi
maior o número de crianças que iniciou o acolhimento em 2011 (mais 167 do que em
2010). São 64,3% os jovens que têm mais de 12 anos, revelando uma população
acolhida mais velha e situando-se predominantemente na adolescência. A diminuição do
número de entradas é um dado positivo, indiciando " uma melhoria nas dinâmicas de
intervenção garantidas junto das crianças e suas famílias ainda no meio natural de vida
Introdução

ao nível da prevenção e preservação da reunificação familiar, por um lado, e já no seio


das próprias instituições, por outro, garantindo a definição e concretização mais célere
de projetos de vida" (Instituto da Segurança Social, 2012, p.69).

Uma parte significativa das crianças acolhidas tem problemas de comportamento


(18,1%) e apresenta insucesso escolar: 23,3% das crianças com 11 anos, 48,7% das
crianças com 13 anos e 85,1% das crianças com 15 anos encontra-se num nível abaixo
do que seria adequado à sua faixa etária. Esta realidade é mais do que um desafio,
constitui uma situação de emergência que exige do sistema de proteção respostas
imediatas que possibilitem o desenvolvimento de um contexto individualizado
adequado à aprendizagem, um espaço protetor seguro, que integre e estimule a
construção do saber.

O perfil das crianças acolhidas revela um expressivo número de crianças com


problemas de saúde mental (12,5%), debilidade ou deficiência mental (13%) ou
manifestação de toxicodependência (8%). Um quadro complexo que exige respostas
especializadas e qualificadas, quer a nível das instituições quer a nível das famílias de
acolhimento, que devem dispor das competências, dos recursos e da supervisão
adequadas para assegurar e promover o seu desempenho.

O Porto destaca-se como o distrito com o maior número de crianças acolhidas em


família e em instituição de todo o país, configurando-se como um espaço territorial de
inegável interesse para a investigação nesta área.

Tem-se constatado ainda o aumento das crianças colocadas em instituição e a


diminuição significativa da expressão do acolhimento familiar no sistema. Esta
evolução coloca várias questões, nomeadamente a da falta de qualificação das respostas,
a da definição de critérios orientadores da escolha e avaliação das medidas, ou a
relacionada com a articulação e a circulação entre as respostas. Martins (2006)
acrescenta a este quadro a imagem negativa e depreciada das instituições de
acolhimento, interiorizada pelos seus profissionais, criando “uma situação ambígua e
ambivalente: oferece-se uma resposta de proteção infantil que não se recomenda;
critica-se veementemente uma solução que, no entanto, é mantida e prolongada;
advoga-se a extinção daquela que constitui a opção mais representativa no conjunto das
respostas de proteção infantil” (p.105).
Introdução

Os dados disponíveis são escassos, apesar da regularidade da publicação dos


relatórios anuais sobre as crianças em acolhimento por parte da Segurança Social.
Torna-se, portanto, essencial um melhor conhecimento da realidade para conceber e
planificar as respostas adequadas e para definir quais são os desafios que se colocam às
medidas de colocação (Palacios, 2012). A ausência de dados sobre um problema pode
produzir a ideia errada que esse problema social não existe.

Relativamente ao tipo de Acolhimento, encontravam-se acolhidas em 2011 um


total de 5834 crianças em Lares de infância e juventude, 2144 em Centros de
Acolhimento Temporário, destinados, em teoria, a acolhimentos de curta duração, e
apenas 485 em famílias de acolhimento. As restantes crianças distribuíam-se por outras
respostas pouco expressivas e todas de cariz institucional especializado, nomeadamente
Acolhimento de Emergência, Comunidade Terapêutica, Apartamento Lar de
Autonomização, Lar Residencial, resposta dirigida a jovens e adultos com deficiência,
Centro de Apoio à Vida, dirigido a mães adultas ou menores e seus filhos, Comunidade
de Inserção e Lar de Apoio. Estas respostas, onde se encontram acolhidos sobretudo
jovens com mais de 15 anos, acolhiam no total 475 crianças ou jovens.

O Instituto da Segurança Social (2011) reconhece que o encaminhamento é muitas


vezes efetuado para a vaga disponível que pode não ser a mais adequada à criança.
Faltam famílias de acolhimento especializadas, previstas no Decreto-Lei n.º 11/2008,
mas ainda por constituir na realidade.

Em suma, estamos face a um sistema de proteção monocentrado no acolhimento


em instituição, que acolhe cerca de 95% das crianças, tendência que se tem acentuado
nos últimos anos e que revela um panorama que não tem paralelo nos restantes países da
União Europeia (Eurochild, 2010).

A maioria das crianças com idades entre 0 e 3 anos são admitidas em centros de
acolhimento temporário (78,7%), uma percentagem menor vai para lares de infância e
juventude (14,4%) e um número residual para o acolhimento familiar (0,7%), ao
contrário do que sucede em outros países ocidentais. Na interação entre medidas, só se
registam 13 casos de transições dos Lares para o acolhimento familiar. Todavia,
assinalam-se 140 transições de acolhimento familiar para lar.

A permanência em meio institucional durante vários meses produz "atrasos de


desenvolvimento cognitivo irreversíveis" e "os primeiros anos de vida são das fases
Introdução

mais críticas e vulneráveis do desenvolvimento de qualquer criança" (Instituto da


Segurança Social, 2012, p.66). O relatório prossegue citando os exemplos dos Estados
Unidos e da Espanha, como países onde "têm sido desenvolvidos esforços no
impulsionamento e investimento da medida acolhimento familiar, em alternativa ao
acolhimento institucional. Esta política traduziu-se no aumento significativo de crianças
acolhidas por Famílias de Acolhimento e na diminuição do acolhimento em instituição.
Em Espanha, a grande aposta foi no acolhimento familiar como sendo a resposta mais
adequada para as crianças mais pequenas e a que melhor cumpre os objetivos traçados".

Você também pode gostar