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_____________ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO CONDIÇÕES DE INCLUSÃO SOCIAL

ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO
CONDIÇÕES DE INCLUSÃO SOCIAL

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SUMÁRIO

Alfabetização e letramento: condições de inclusão social .......................................... 3


FORMAÇÃO ............................................................................................................. 21
ALFABETIZAÇÃO .................................................................................................... 23
PARA REFLETIR ..................................................................................................... 30
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 35

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Alfabetização e letramento: condições de inclusão social

Paulo Freire, um dos mais ilustres educadores da história brasileira, dizia


sobre a vontade orientada em “querer bem” em se tratando de uma ação engajada
em prol da Educação. A partir dessa expressão – a de querer bem – o seu legado
excepcional, cujos apontamentos destacam a “arte de educar” que, segundo ele, não
implica uma atitude piegas, mas, ao contrário, um exercício profissional consciente,
o qual não abdica desse estado d’alma – o de querer bem – na construção de um
objetivo comum, associado às contribuições da ciência, para melhor ensinar a ler e
a escrever.
Não é fácil cultivar essas qualidades e, sobretudo, conservá-las ao longo da
trajetória do trabalho docente. São inúmeros os desafios em se tratando da tarefa
meticulosa e delicada que é a da educação. Mas, sem nenhuma dúvida, é mais difícil
- sem essas qualidades - prosseguir num exercício contínuo de consciência
profissional. É trágico e desumano quando reconhecemos (em nós mesmos ou em
nossos colegas) condutas de cinismo e de hipocrisia que contribuem mais para a
alienação do que, propriamente, para o desenvolvimento pessoal e profissional.
Tendo em vista os múltiplos olhares e perspectivas que esse tema abrange
nos campos da Linguagem e da Cultura e, por consequência, nas áreas da
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Educação, da Sociologia, da Literatura, da Política e da História , então, a construção


de um estudo que assume uma redefinição temática, necessária em favor de um
caminho epistemológico mais objetivo, específico e ajustado ao tratamento da leitura
e da escrita, ambas, no âmbito escolar e social, portanto, inseparáveis, enquanto
duas modalidades fundamentais – ler e escrever – para uma perspectiva de
progressão e inclusão social e cultural. Isto porque os atos, as práticas, as
modalidades e as circunstâncias de leitura e de escrita não estão veiculados
(apenas) às instituições escolares e aos seus processos pedagógicos, mas seus
usos e às suas práticas, tais como exigem as diversas dinâmicas, circunstâncias e
os mais diferentes contextos do mundo social e cultural.
Vamos destacar, desse modo, alguns elementos que determinaram a
alteração do título inicial, pois obviamente não se trata de uma mera reformulação no
tratamento do tema, o qual privilegia a dimensão da leitura como condição de
inclusão social.
A substituição do termo leitura em favor do duplo emprego - alfabetização e
letramento - deve-se, entre outras razões, à relação e dependência das
nomenclaturas “leitura” e “escrita” aos processos sociais e culturais, portanto,
frequentemente associadas apenas à alfabetização e ao letramento escolar, embora
um indivíduo alfabetizado e letrado possa ter frequentado, ou não, uma instituição de
ensino. Sabemos que as estruturas de ensino orientam certas aprendizagens e
certos usos da leitura e da escrita.
Nesse sentido o título adotado
abrange não apenas a leitura, como
também a escrita, afim de alargarmos
nossa discussão e concepção sobre
essas duas modalidades da
linguagem, dentro e fora do contexto
escolar e, portanto, em contraponto
com uma questão de fundo importante, qual seja, o problema da inclusão social no
Brasil. O papel fundamental das escolas e das estruturas sociais e culturais em favor
dessa mesma inclusão.
Desse modo a centralidade dada à alfabetização e ao letramento ressignifica
a dimensão multifacetada desses dois processos (combinados) em favor não apenas
da aprendizagem da leitura, mas também dos usos da escrita, os quais representam
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nas sociedades atuais duas modalidades de comunicação indispensáveis e


indissociáveis à questão da inclusão social e cultural de um indivíduo ou de um grupo.
Assim, o título atribuído – Alfabetização e Letramento: condições de inclusão
social(?) – pretende, aqui, reinaugurar o debate em torno de uma reflexão que não
desconsidere o peso escolar, portanto, o papel da função metodológica, processual,
cumulativa e organizada necessária à especificidade do ensino e da aprendizagem
do sistema alfabético e ortográfico, ambos, ligado à aquisição da tecnologia da leitura
e da escrita.
Sobre essa apropriação é que se faz possível a construção de competências
indispensáveis aos diferentes usos, funções e práticas sociais ligadas à cultura
letrada. Dito de outro modo a alfabetização e o letramento se objetivados como
condições de inclusão social permitem, então, redimensionar e ressignificar a
importância da aprendizagem da leitura e da escrita em um amplo contexto de
letramento, ou seja, num contexto em que a alfabetização – ponto de partida ao
acesso da leitura e da escrita – ocorra sob circunstâncias, situações, processos e
condições que permitam o desenvolvimento de habilidades, atitudes, competências
e modalidades que avançam para além das primeiras exigências no uso da língua
escrita.
Além disso, o fio condutor que perpassa esse segundo título redimensiona
para além do espaço escolar, as relações de ordem social, política e cultural na
sociedade, pois a alfabetização e o letramento, no Brasil e no mundo, são processos
que ultrapassam a esfera estritamente escolar e institucional. É verdade que no caso
brasileiro a escola assume um lugar central, quase, exclusivo quanto ao acesso e à
promoção da aprendizagem da leitura e da escrita. Essa constatação espelha,
evidentemente, as condições das estruturas políticas, sociais e culturais em nosso
país, embora em diferentes sociedades do mundo a estrutura escolar continua a ser
esse espaço essencial às condições de acesso e de inclusão social, principalmente,
no mundo do trabalho.
A frase sob a forma interrogativa – Alfabetização e letramento: condições de
inclusão social (?) – quer, finalmente, problematizar e reiterar a mudança de foco na
abordagem da leitura e da escrita ocorrida, principalmente, nas últimas décadas do
século XX, tanto no Brasil, quanto na França, nos Estados Unidos, na Inglaterra, em
Portugal e outros países (considerados) ocidentais. Nesse mesmo período a ênfase
ideológica, presente nos discursos políticos e sociais, quanto à tributação (e relação)
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de uma (forte) dependência entre a condição de cidadania de um indivíduo (ou de


um grupo) e as suas competências como sujeito alfabetizado e letrado.
É curioso que tenha ocorrido em um mesmo momento histórico, em
sociedades distanciadas tanto geograficamente quanto socioeconomicamente e
culturalmente, a necessidade de reconhecer e nomear práticas sociais de leitura e
de escrita mais avançadas e complexas que as práticas do ler e do escrever
resultantes da aprendizagem do sistema de escrita. Assim, é em meados dos anos
80 que se dá, simultaneamente, a invenção do letramento no Brasil, do illettrisme, na
França, da literacia, em Portugal, para nomear fenômenos distintos daquele
denominado alfabetização, alphabétisation. Nos Estados Unidos e na Inglaterra,
embora a palavra literacy já estivesse dicionarizada desde o final do século XIX, foi
também nos anos 80 que o fenômeno que ela nomeia, distinto daquele que em língua
inglesa se conhece como reading instruction, beginning literacy, tornou-se foco de
atenção e de discussão nas áreas da educação e da linguagem, o que se evidencia
no grande número de artigos e livros voltados para o tema, publicados, a partir desse
momento, nesses países, e se operacionalizou nos vários programas, neles
desenvolvidos, de avaliação do nível de competências de leitura e de escrita da
população – segundo Barton (1994, p. 6), foi nos anos 80 que the new field of literacy
studies has come into existence. (...). Entretanto, se há coincidência quanto ao
momento histórico em que as práticas sociais de leitura e de escrita emergem como
questão fundamental, em sociedades distanciadas geograficamente,
socioeconomicamente e culturalmente, o contexto e as causas dessa emersão são
essencialmente diferentes, em países em desenvolvimento, como o Brasil, e em
países desenvolvidos, como a França, os Estados Unidos, a Inglaterra. Sem
pretender uma discussão mais extensa dessas diferenças, o que ultrapassaria os
objetivos e possibilidades deste texto, destaco a diferença fundamental, que está no
grau de ênfase posta nas relações entre as práticas sociais de leitura e de escrita e
a aprendizagem do sistema de escrita, ou seja, entre o conceito de letramento
(illettrisme, literacy), e o conceito de alfabetização (alphabétisation, reading
instruction, beginning literacy). Nos países desenvolvidos, ou do Primeiro Mundo, as
práticas sociais de leitura e de escrita assumem a natureza de problema relevante
no contexto da constatação de que a população, embora alfabetizada, não dominava
as habilidades de leitura e de escrita necessárias para uma participação efetiva e
competente nas práticas sociais e profissionais que envolvem a língua escrita. Assim,
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na França e nos Estados Unidos, para limitar a análise a esses dois países, os
problemas de illettrisme, de literacy/illiteracy surgem de forma independente da
questão da aprendizagem básica da escrita.
A proposição interrogativa - Alfabetização e letramento: condições de inclusão
social (?) – é, pois, uma outra forma de enunciação (e de provocação) acerca da
(suposta) relação direta, regular ou automática entre esses dois conceitos
fundamentais - alfabetização e letramento - e a condição de cidadania ou, se
preferirem, de inclusão social e cultural de cada indivíduo.
Essa correlação simétrica parece-me abusiva se consideramos os problemas
relativos à alfabetização no curso da história da educação brasileira e os problemas
conceituais entre alfabetização e letramento, ora confundidos, ora dicotomizados, ora
sobrepostos, ora diferenciados como processos consecutivos, o primeiro, o de
alfabetizar e, o segundo, por neologismo, o de letrar, os quais, na perspectiva deste
texto, merecem ser, re-interrogados como “condições-chaves” à inclusão social.
Nesse sentido se pretendemos atribuir à alfabetização e ao letramento um
papel relevante ou decisivo à conquista da cidadania faz-se necessário, pois, uma
segunda pergunta: sob quais critérios de inclusão social associamos a alfabetização
e o letramento?
Trata-se, nessa perspectiva, de desmistificar o valor da escrita e, por
conseguinte, da leitura como condições absolutas ou únicas à inclusão social,
embora nos discursos oficiais, escolares, universitários e mediáticos o letramento
tem se afirmado como a condição (de excelência) para a progressão da inclusão
cultural, social e econômica.
Assim, desse modo, segredamos os grupos sociais, de um lado, os letrados
e, do outro, os “não letrados” ou “ os menos letrados”; os “incluídos” e os “excluídos”.
De alguma forma acabamos, pois, por reproduzir séculos de appartheid social e
cultural, por intermédio dos conceitos, dos usos e das apropriações em torno da
leitura e da escrita. A escola é nesse faroeste (nesse jogo de forças e relações de
poder) a vilã da história, quando, de fato, as responsabilidades e as falências sociais
e culturais dizem respeito aos efeitos e consequências do sistema econômico
capitalista.
No entanto, não se trata de promover nas diversas instituições educacionais
uma espécie de “lavagem de mãos”. Todos temos nossa parcela de responsabilidade
e além do enorme esforço por parte das estruturas de ensino cabe, igualmente, o
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compromisso engajado de associações, empresas, empresários, políticos, bem


como de outros agentes e setores da esfera pública e privada, em prol da diminuição
das diferenças sociais, econômicas e culturais que são escandalosas no Brasil.
Um segundo risco decorrente da correlação direta e automática entre
letramento e cidadania tem sido a visão distorcida sobre o processo de alfabetização.
Assim, no campo educacional, assistimos ao retorno de velhas concepções
(redutoras) sobre a alfabetização. Ela é considerada, ora como o resultado de um
processo meramente mecânico ligado à aprendizagem da escrita, ora o resultado da
escolha metodológica acerca do método (um ou outro) voltado para o ensino da
leitura.
O equívoco tradicional, senão histórico, é o
de reafirmar que a escolha pelo método sintético
ou analítico (palavração, sentenciarão, global,
fônico ou silábico) constitui o ponto central ou
determinante sobre o sucesso ou fracasso dos
processos de ensino-aprendizado.
As estratégias de aprendizagem ligadas: à
linguagem oral, à linguagem escrita, à gama de conhecimentos linguísticos
concernentes às relações fonema grafema, à apropriação do código alfabético e
ortográfico, além das complexas aprendizagens relativas à construção da
textualidade e da enunciação entre pensamento e linguagem estes, sim, são os
aspectos - em sua complexidade e interdependência psico e sociolinguística - que
incidem sobre a qualidade da trabalho pedagógico do alfabetizador e, portanto, da
qualidade das competências de um sujeito alfabetizado. Este indivíduo antes, ao
longo e depois de toda a sua vida escolar, ou seja, em suas experiências pessoais,
familiares, sociais, profissionais e culturais, ele vai vivenciar circunstâncias e
situações que favorecem, concomitantemente, os seus níveis de letramento e suas
condições como sujeito letrado.
Como adverte Magda Soares, a alfabetização encontra-se ameaçada em sua
especificidade, ou seja, como um objeto de conhecimento a ser ensinado em direção
à construção do sistema de escrita e de uso da linguagem. A perda da natureza
específica desse objeto de conhecimento linguístico implica, segundo a autora, quer
se considere o sistema alfabético, quer o sistema ortográfico num risco de
apagamento ou de “desinvenção da alfabetização” em favor da predominância de
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um conceito parcial (senão destorcido) sobre o letramento - sua compreensão e


apropriação, em particular, no âmbito escolar.
Magda Soares afirma ainda que: a convivência com a cultura escrita e com
objetos escritos não pode assegurar (por si só) a aprendizagem, a construção e a
apropriação de tantas habilidades e múltiplas competências linguísticas específicas
à tecnologia da leitura e da escrita.
Desse modo, a reflexão sobre a alfabetização e o letramento como condições
mediadoras à inclusão social e cultural sustenta-se, aqui, numa escolha conceitual
mais ampla e necessária à compreensão sobre o papel da leitura e da escrita, tanto
no interior do trabalho escolar, quanto na vida social e cultural.
Assim, parece importante sublinhar que o termo leitura está quase sempre
associado aos diferentes e múltiplos materiais, objetos e suportes textuais editados,
difundidos e distribuídos. Além disso, essas diferentes leituras ou esses textos
impressos que circulam na sociedade exigem (em contrapartida) leitores e usuários
da escrita cada vez mais habilitados, qualificados, heterogêneos e competentes. Sob
esse aspecto não parece existir dúvida sobre a especificidade e a importância de um
processo por meio do qual são construídas e desenvolvidas um conjunto de
competências, conhecimentos, habilidades e atitudes relativos à leitura e à escrita,
bem como os usos efetivos da língua escrita. Trata-se, indiscutivelmente, da
alfabetização.
No entanto, quando nos referimos aos usos
complexos, diversificados, cumulativos e
qualificados da leitura e da escrita, por meio de
práticas sociais que envolvem a linguagem oral e a
competência com a linguagem escrita a isso, então,
chamamos letramento. Essa distinção, senão
conceitual, é absolutamente necessária para a
organização do trabalho escolar e para o sucesso
dos sujeitos alfabetizados e letrados, principalmente, aqueles inseridos numa
instituição de ensino.
Como afirmou Magda Soares no artigo Letramento e Escolarização, publicado
em 2003, na coletânea sobre o “Letramento no Brasil”:
Alfabetização e letramento são, pois, processos distintos, de natureza
essencialmente diferente; entretanto, são interdependentes e mesmo indissociáveis.
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A alfabetização – a aquisição da tecnologia da escrita – não precede nem é pré-


requisito para o letramento, isto é, para a participação em práticas sociais de escrita,
tanto assim que analfabetos podem ter um certo nível de letramento: não tendo
adquirido a tecnologia da escrita, utilizam-se de quem a tem para fazer uso da leitura
e da escrita; além disso, na concepção psicogenética de alfabetização que vigora
atualmente, a tecnologia da escrita é aprendida não, como em concepções
anteriores, com textos construídos artificialmente para a aquisição das “técnicas” de
leitura e de escrita, mas através de atividades de letramento, isto é, de leitura e
produção de textos reais, de práticas sociais de leitura e de escrita.
Nesse sentido, no mesmo artigo, a autora reitera aspectos relevantes sobre
esses dois processos distintos, porém, recorrentemente imbricados como se a
compreensão de um equivalesse ao segundo e vice-versa. Disso, talvez, a
concepção equivocada, amplamente difundida, a qual pressupõe que o letramento é
uma consequência direta da alfabetização, logo, se existem problemas ligados ao
letramento eles são atribuídos às deficiências do processo escolar ligados à
alfabetização ou, ainda, à falta dessa escolarização na trajetória de uma criança, de
um jovem ou adulto.
No que se refere, particularmente, ao letramento sua discussão - dentro e fora
da escola - implica outros fatores, nem sempre consensuais, seja por parte das
declarações divulgadas pela mídia, seja nos discursos entre os próprios profissionais
da educação. No caso da alfabetização e do letramento, ambos, apoiam-se em
processos linguísticos cujos conhecimentos e habilidades são sempre cumulativos;
até esse ponto nenhum problema ou dúvida. No entanto, se o processo de
alfabetização pode ser objetivado, a partir de definição temporal, isto é, de um
percurso estabelecido entre um ponto de começo e outro de conclusão, a mesma
correlação temporal não pode ser regularizada quando se trata do letramento.
Segundo diferentes países e seus modelos sociais e escolares, certas convenções
ou critérios estimam o percurso escolar para a alfabetização entre o período de 2, 3,
4 ou 5 anos de escolaridade, ou seja, a partir da faixa etária de crianças entre 4, 5, 6
ou 7 anos de idade.
O processo de alfabetização pode ser ainda controlado e verificado por
recursos ou estratégias de acompanhamento e de avaliação objetivos e concretos.
Desse modo é sempre possível determinar o estado de alfabetismo ou de
analfabetismo de uma pessoa ou de um grupo social. Contudo, a mesma equação
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não pode ser categoricamente estabelecida ou pré-fixada ao se tratar do letramento.


Basta considerar as práticas, os usos, as modalidades, os comportamentos e os
hábitos de leitura e de escrita em suas variações históricas e culturais em cada
tempo, espaço e contexto, seja num mesmo país, seja entre diferentes países. Como
afirmou Magda Soares:
Alfabetizado-analfabeto podem ser considerados termos dicotômicos, não
sendo impossível classificar as pessoas em um ou outro desses dois grupos
excludentes, mas entre letrado-iletrado não há dicotomia, os dois termos não
constituem categorias distintas e opostas. Alfabetização é um contínuo, mas um
contínuo de certa forma linear, com limites claros e pontos de progressão cumulativa
que podem ser definidos objetivamente; letramento é também um contínuo, mas um
contínuo não linear, multidimensional, ilimitado, englobando múltiplas práticas com
múltiplas funções, com múltiplos objetivos, condicionadas por e dependentes de
múltiplas situações e múltiplos contextos, em que, consequentemente, são múltiplas
e muito variadas as habilidades, conhecimentos, atitudes de leitura e de escrita
demandadas, não havendo gradação nem progressão que permita fixar um critério
objetivo para que se determine que ponto, no contínuo, separa letrados de iletrados.
Do processo de alfabetização pode-se esperar que resulte, ao fim de determinada
tempo de aprendizagem, em geral pré-fixado, um “produto” que se pode reconhecer,
cuja aquisição, ou não, atesta ou nega a eficiência do processo de escolarização; ao
contrário, o processo de letramento jamais chega a um “produto” final, é sempre e
permanentemente um “processo”, e não há como decidir em que ponto do processo
o iletrado se torna letrado.
Trata-se, então, de refletir sobre diversos níveis de letramento, principalmente,
se compararmos diferentes leitores, usuários da escrita e produtores de texto ou,
ainda, quando analisamos as inúmeras situações de uso da leitura e da escrita que
demandam de todos nós - crianças, adolescentes, jovens, adultos ou idosos - uma
performance, cada vez mais, sofisticada e diversificada como pessoas “letradas”. No
caso do letramento ele ultrapassa as convenções temporais ou pedagógicas,
prescritas em currículos escolares herméticos ou em processos letivos: semestrais
ou anuais. Estamos todos envolvidos em dinâmicas sociais, culturais, intelectuais e
históricas que solicitam, cotidianamente, diferentes habilidades e competências para
lidarmos com os inúmeros eventos de letramento.

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Precisamos, pois, considerar a “leitura”, a “escrita”, a “alfabetização” e o


“letramento” sempre numa perspectiva plural. Nese sentido uma consequência direta
- para os alfabetizadores, os professores, os mediadores da leitura, os formadores
culturais, os coordenadores pedagógicos, os agentes sociais e comunitários, os
educadores de creche e todos os envolvidos em projetos educativos - diz respeito ao
papel escolar e, portanto, à necessidade de serem criadas e recriadas condições e
circunstâncias de ensino-aprendizado ajustadas às novas dinâmicas sociais,
culturais, econômicas e tecnológicas ligadas ao mundo do trabalho e aos seus
desafios quanto aos múltiplos usos da cultura escrita.
Assim, nossa reflexão sobre a Alfabetização e Letramento como condições à
inclusão social requer uma atenção não apenas sobre a necessidade criteriosa em
relação à seleção das leituras, dos objetos e suportes textuais dados a ler e a
escrever. Nossa atitude atual, como educadores e cidadãos, exige cuidado na
organização de relações escolares em favor de usos diversificados da leitura e da
escrita se queremos qualificar, continuamente, as práticas de alfabetização e de
letramento dos alunos. Uma atitude que implica, evidentemente, a qualidade das
práticas de letramento dos professores como: falantes, leitores e usuários da língua-
escrita.
Trabalhar em prol da alfabetização e do letramento implica, pois, na
construção de um ambiente democrático, voltado para a construção da cidadania de
cada leitor, sua liberdade de expressão, o desenvolvimento criativo de sua linguagem
oral, o desenvolvimento de uma consciência fonêmica (relações fonema grafema),
fluência nos atos de leitura oral e silenciosa, individual e coletiva, uma educação
estética, o aprimoramento do vocabulário, da capacidade de inferência, de
compreensão, de interpretação, de verbalização das ideias e a convivência com
textos - manuscritos e impressos – e, sobretudo, a convivência direta com livros, com
uma boa literatura nacional e estrangeira, os usos dessa literatura e da biblioteca
(dentro e fora das salas de aula) e, enfim, o acesso e o uso efetivo, o mais possível,
com diferentes suportes materiais e tecnológicos, pois cada um, ao seu modo, é uma
linguagem textual.
Sem esse esforço – o de querer bem – o de querer e realizar o melhor possível
- é difícil promover e consolidar habilidades, competências e experiências
cumulativas em favor de um rico capital cultural e linguístico. Ele que é, sem dúvida,
uma moeda forte para lidar com as exigências e sofisticações do mercado de
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trabalho, do mercado cultural, do mercado editorial e intelectual. Uma moeda forte


em favor de uma perspectiva lúcida e coerente pela inclusão social e a promoção
cultural para todos os indivíduos sem distinção de cor, raça, etnia, religião e condição
econômica.
Infelizmente os modelos sociais e econômicos gerados pelo capitalismo e pelo
neo-liberalismo reproduzem uma mesma realidade em diferentes partes do mundo,
qual seja, a exclusão de uma maioria social em favor da inclusão, apenas, de alguns
grupos sociais.
No Brasil, historicamente, o retrato da exclusão social associa dois aspectos
principais que se interelacionam: o pertencimento étnico e o pertencimento
socioeconômico. A questão da democracia racial comumente difundida, no Brasil e
fora do país, tem sido objeto de polêmica e de discussão por diferentes lideranças
associativas, universitárias, políticas e mediáticas.
Um exemplo contemporâneo sobre a problemática racial no Brasil foi a
decisão do governo, através do presidente Lula, quando ele se pronunciou pela
criação das cotas universitárias destinadas aos negros e àqueles que assumem tal
identidade num Brasil, predominantemente, mestiço, isto é, índio, negro, branco e o
que derivou essa mistura na composição de nossas mestiçagens: étnicas,
linguísticas, físicas, religiosas e culturais.
O cinema brasileiro vem, nos últimos anos, problematizando algumas
questões de fundo quanto à identidade brasileira, por exemplo, a necessidade de
uma reflexão étnica profunda e, apenas nesse sentido, portanto, sem efeitos
nacionalistas de segregação – refletirmos acerca de uma conscientização identitária
positiva e sem complexos diante do resto do mundo. Por intermédio de agentes
culturais, associações comunitárias e instituições escolares e universitárias
contemplamos um ideal pela inclusão sócio-racial no Brasil.
O filme Preto e Branco de Carlos Nader, difundido em 2004, retrata as
relações raciais entre os habitantes de São Paulo, muitos dos quais, remanescentes
de ancestrais africanos, mas em confronto com essa noção generalizada ou, que se
pretende generalizante, a da “democracia racial” no país.
Um filme anterior, o de 2001, A Negação do Brasil, pelo realizador Joel Zito
problematiza o tratamento dos negros. Para tanto, ela aborda as personagens
encenadas por alguns artistas negros, mais ou menos, presentes nas novelas
brasileiras entre as décadas 50 e 90 e, por isso mesmo, subjugados em papéis que
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camuflam ou desnudam os estereótipos, as representações, os discursos, os


preconceitos, as afirmações e as negações das raízes negras. Raízes africanas,
árabes, italianas, portuguesas, indígenas, francesas, alemãs, holandesas, enfim,
mestiças – parte da nossa herança, tradição, cultura e brasilidade - nessa grande
árvore Pau Brasil que é corpo, memória, riqueza e ancestralidade sobre quem somos
nesse nome abrangente - Brasa, Brasis, Brasil – país continente, cuja marca de
originalidade é a sua multiculturalidade e pluralidade racial e humana.
A democracia racial, social, escolar e política no Brasil deve deixar de ser um
discurso ou um ideal para assumir a sua dimensão real, necessária e urgente como
construção objetiva para todos, afim de ser assegurado o mínimo de estabilidade que
permita progressos presentes e futuros do país.
O exercício dessa democracia, sua busca, tentativa, luta, ganhos e perdas
aparecem desde os movimentos de resistência político-estudantil, ocorridos durante
e ao final da ditadura militar no Brasil, em prol da escolarização para todos, a
liberdade de expressão, o direito ao trabalho sem discriminação, o lugar das
mulheres na sociedade, a integração da população negra, a reforma agrária e
tributária, a expressão das ideias, a liberdade partidária, a conquista de certos
direitos sociais e trabalhistas e, enfim, outros direitos e deveres civis que integramos,
ora com passos de recuo, ora com os de avanço.
Desse modo nossa discussão sobre a alfabetização e letramento não pode
perder de vista ou negar certos aspectos da vida social e cultural mais ampla como:
as lógicas da política econômica, tanto no passado, quanto no presente e, assim,
suas graves consequências educacionais em se tratando das condições diferenciais
entre ensino privado e ensino público; a cor do analfabetismo brasileiro, enfim, o
retrato social por detrás desse analfabetismo e, por consequência, a reprodução das
desigualdades sociais, econômicas e culturais no país.
A alfabetização numa perspectiva de democracia escolar, racial, social e
cultural é, pois, apenas a primeira condição (ou mediação) para uma possível
promoção de um indivíduo ou de um grupo. Os dados sobre o letramento, no entanto,
vêm sendo frequentemente utilizados como um sinal diferencial, ou seja, como um
critério de seleção ou de qualificação. Dados mediatizados como um peso entre dois
pratos de uma mesma balança – a da inclusão social – cujos extremos mantêm um
modelo insustentável de segregação entre os sujeitos, uns, mais incluídos, outros,
os mais excluídos no quadro sociocultural brasileiro.
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Assim, o letramento pode, como uma faca de dois gumes, ser utilizado e
veiculado pela mídia, pelos especialistas e pelos políticos para justificar as lacunas
sócio-econômicas entre indivíduos incluídos e excluídos. Sabemos que em se
tratando, por exemplo, de política cultural - nacional e internacional - um público, mais
ou menos, letrado terá acesso e poderá usufruir, diferentemente, dos serviços, dos
produtos e dos bens materiais e simbólicos que são disponibilizados. Cada parcela
desse público - mais letrado ou menos letrado - será objetivada pela mídia e pela
indústria do consumo a partir de estratégias diferenciadas. O mercado seleciona e
decide os níveis de acesso e de qualidade das ofertas e dos serviços para os que
possuem maior letramento e, em oposição, para os que não possuem um alto nível
de letramento.
Assim, num mesmo país (e comparativamente entre dois países distintos)
vemos certos equipamentos sociais, instituições, produtos, bens, suportes e
dispositivos culturais, sociais, sanitários, médicos, escolares e intelectuais serem
socializados (ou não), serem oferecidos (ou não) segundo, principalmente, dois
crivos sociológicos que se sobrepõem e se contrapõem: o perfil socio-econômico da
população e o nível de escolarização, alfabetização e letramento.
O filme - “Os Promesseiros” - realizado por Chico Carneiro e veiculado em
2002, é elucidativo sobre essa questão. Em Belém, existe uma festa profanoreligiona
conhecida pelo nome tradicional: Círio de Nazaré. Nela, todos os anos, reúnem-se
milhares de peregrinos ou romeiros10. Nesse filme assistimos o percurso de três
“pagadores de promessas” que se deslocam pelos afluentes entre as cidades de Boa
Vista e Belém. Durante quatro dias, numa trajetória feita em uma pequena canoa,
eles distribuem alimentos e roupas às populações dos rios Apeú, Inhamyogi e o
Guama. Os ribeirinhos são unânimes em declarar que a falta de escolarização da
população infantil e o analfabetismo da população adulta são fatores determinantes
da situação de pobreza em que vivem, desde o nascimento, pois sem estudo não
tem remédio e o irremediável instala-se e se reproduz. Desse modo, eles denunciam
o abandono que sofrem por parte das instituições governamentais locais, segundo
eles, presentes somente durante os processos eleitorais.
Uma outra interpretação possível ao título do filme - “Os Promesseiros”- não
é o circuito da fé, através dos gestos devotados, dos feitos sobre-humanos dos
“recebedores de graças” e das peregrinações de três “pagadores de promessa”, os
quais navegam em águas incertas levados pela solidariedade humana esta, sim, a
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expressão mais legítima da “profissão de fé” ou “procissão pela fé” abordada pelo
filme.
A interpretação implícita, quase, a moral da história no segredo das vozes e
no silêncio das imagens, diz respeito aos políticos que se fazem passar por
“promesseiros”, ou seja, por gente de boa-fé quando, na verdade, não pagam suas
promessas de campanha contra o problema da precarização escolar dessa zonas e
a baixa acentuada de preços na compra-e-venda dos frutos locais pelos
intermediários.
Este, sim, um agravante para a situação de empobrecimento dessa população
que é dependente de uma economia familiar e local.
As mulheres ribeirinhas choram as lágrimas do analfabetismo e tudo que ele
teceu, urdiu, tramou e alinhavou em suas vidas e a de seus pais. Segundo elas: o
subemprego, os castigos corporais, as migrações urbanas, o alcoolismo, os
problemas de saúde e a perda da dignidade diante do ciclo da pobreza, da
desinvenção da alfabetização com cada sala-de-aula fechada, em cada município da
localidade e, enfim, a desescolarização reproduzida da geração dos pais para a dos
filhos e, assim, para a dos netos.

Desse modo a escolha parece evidente. O engajamento em favor da


mobilização pela alfabetização, pelo letramento e pela inclusão cultural não parece
deixar dúvidas, tendo em vista que a escola ainda é uma instituição social que pode
e deve promover o acesso às leituras, gerar competências, participar do direito pela
alfabetização e pelo letramento, socializar os usos da leitura, da escrita e da
literatura, favorecer a multiplicidade das modalidades e práticas de escrita,
desenvolver uma ação criadora e um projeto democrático pela circulação e pelo
acesso dos objetos, suportes e materiais textuais que dinamizam as práticas culturais
mais atuais.

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Com o processo de globalização temos a impressão de uma maior circulação


e, portanto, de uma abertura comercial, social, intelectual e cultural quanto aos
acessos e à distribuição de certas mercadorias, certos serviços e produtos culturais,
bens materiais e imateriais para as populações, notadamente, as dos centros
urbanos.
Porém, todos nós sabemos que não basta disponibilizar uma oferta sobre um
dado serviço, um equipamento tecnológico, suportes textuais ou produtos culturais
se não temos condições para o seu acesso e, principalmente, se não estamos aptos
para usá-los, apreendê-los, usufruí-los e integrá-los em nosso dia-a-dia.
A suposta “abertura” possibilitada pelo mercado globalizado está condicionada
ao poder de capital de cada indivíduo ou grupo social e, no que se refere ao consumo
e usufruto das ofertas propostas, esse novo mercado de consumo é seletivo, tanto e
quanto são as normas e conjecturas internacionais.
O acesso, portanto, dependente de recursos e investimentos financeiros,
como por exemplo, para a aquisição de livros, a frequentação ao cinema, ao teatro,
à ópera, aos espetáculos musicais, à realização de um curso, à aquisição de certos
bens e objetos materiais para, inclusive, sonhar com uma viagem e efetivamente
poder realizá-la. Contudo, se há falta de dinheiro para a alimentação, a educação
pessoal e dos filhos, para o uso dos transportes, para uma consulta e receita
médicas, logo, de consumidores “ativos” passamos à posição de consumidos
“passivos”.
Reitera-se, então o fosso entre urbanos e suburbanos, entre letrados e
iletrados, entre os que vivem e os que sobrevivem, entre alfabetizados e analfabetos
funcionais, enfim, uma lacuna cuja distância é marcada essencialmente pela relação
de desigualdade, de assimetria, de irregularidade e de exclusão social entre: aqueles
que participam da produção de bens e serviços, aqueles que consomem, usufruem,
integram e aproveitam os bens matérias e simbólicos da cultura e, finalmente,
aqueles que vivem à margem desses processos e de seus benefícios.
Nesse sentido o trabalho da escola, da universidade brasileira, em particular,
da pública, bem como a atuação de outras instituições sociais, associativas e
culturais requer um esforço coletivo. Um trabalho organizado em favor da
alfabetização e do letramento de crianças, jovens e adultos perdura fundamental.
Esses espaços legitimados pela sociedade são, igualmente, espaços potenciais ao
desenvolvimento de ações, atividades e eventos de leitura e escrita relacionados não
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apenas às demandas pedagógicas e escolares, mas sobretudo às necessidades


concretas da realidade social e cultural mais ampla.
Assim, é na escola, como também no seio da família, dos programas culturais
(municipais, estaduais, regionais e nacionais) e das ações privadas e públicas pela
promoção da vida social, da cultura e do lazer que certos objetos, equipamentos,
comportamentos, práticas e eventos de letramento precisam ser mais amplamente
divulgados, socializados e facilitados para a população.
Desse modo, essa população infantil, jovem e adulta poderá efetivamente
contar com as condições necessárias à apropriação, ao desenvolvimento e à
acumulação de experiências com a cultura escrita. Tornar-se um cidadão, o qual é
capaz de reivindicar, adquirir e lutar pela permanência de direitos fundamentais,
bens, valores e equipamentos ligados à inclusão social e à progressão de seu capital
cultural. Portanto, a bandeira de luta é a mesma do passado, do tempo de Freire e
outros. Uma luta, talvez, com outras facetas e nuances, as quais apelam pelo
compromisso de cada um nesse projeto comum que é o da alfabetização e do
letramento escolar, social e cultural das populações.
Paulo Freire, de um outro modo e com outras palavras, apontava para os anos
80 a necessidade de reencontrarmos ou de reconstruirmos um projeto pedagógico
comum, uma bandeira de luta nacional ou um ideal ativo em favor do engajamento
que nos leve às ruas, quando a luta pertencer às ruas. Um objetivo que nos posicione
como multiplicadores da leitura e da escrita, pois as nossas armas são/estão
mediadas pela leitura, pela escrita, pela literatura e pelo acesso à cultura letrada,
bem entendido, muito além da banalização da cultura oferecida pela maioria dos
canais de televisão.
Freire denunciou, à sua maneira, a nossa inércia, a nossa desmobilização, a
nossa neutralidade, anestesia, passividade, quase, insensibilidade: a de
convivermos com o “iletrismo”, o analfabetismo ou o semi-analfabetismo e encontrar
nessa mesma realidade o nosso lugar no mundo, como se tal discriminação ou
exclusão social fosse naturalmente constitutiva à realidade social. Dito de um outro
modo, quando caímos na armadilha do capitalismo selvagem, cujo cinismo sugere a
todos a conformidade social, a progressão do individualismo, como se a vida
“naturalmente” separasse vencidos e vencedores.
Paulo Freire certamente encontraria palavras e interveria contra esse quadro
preocupante, tantas vezes, caótico acerca da realidade brasileira e mundial.
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Acreditamos sempre em um mundo melhor, nos milagres brasileiros ou numa


espécie de jeitinho, no final, tudo dá certo! Se não é verdade, o discurso difunde esse
comportamento, dito, autenticamente brasileiro. Assim, sustentados pela nossa
difundida alegria e infalível esperança, espalhamos aos quatro cantos que Deus é
brasileiro. Agarrados (ou não) à Ele, temos uma sorte de convicção ou de confiança
contra as crises sucessivas. O que, de alguma forma, parece ter propiciado a nossa
forma de resistência; uma resistência sem rostos sisudos.
No entanto, algumas vezes, sem percebermos ou, ao contrário, muitas vezes
conscientes, reconhecemos que não se trata de ter ou não ter fé, um credo ou uma
religião. Trata-se de algo que os discursos políticos, nacionais e estrangeiros,
exploram num tom messiânico, profético e alienante na tentativa de camuflar a
realidade, embaçar a objetividade e jogar com um “sentimentalismo nacional” que
falseia não, apenas, as escolhas políticas neoliberais, mas anestesia nossa ação
escolar e comunitária, social, popular, participativa, solidária e consciente pela
mudança em prol da inclusão.
Paulo Freire, Carlos Marighella, Carlos Lamarca, outros resistentes da
ditadura e militantes contra a conservação das estruturas de desigualdade
chamaram a nossa atenção para o cuidado, após um longo processo de censura e
de repressão, para o risco de desmobilização social e de apagamento da memória
contra os mecanismos de exclusão da ordem social hegemônica. Esses militantes,
de ontem, de alguma forma anteciparam e advertiram quantas às inúmeras
dificuldades para a implantação de uma verdadeira democracia no Brasil em favor
da inclusão social, racial, escolar, cultural e política.
A linguagem, porta esse ideal de comunicação e de condição humana porque
ela não estabelece, à priori, fronteiras de cor, de etnia, de grupo social, de religião
ou qualquer outra. A linguagem e, por extensão, a alfabetização e o letramento
podem constituir esse projeto comum, ou seja, o núcleo de uma ação organizada,
cujos objetivos e projetos escolares, literários, universitários e sociais apelam pela
inclusão e, portanto, por uma democracia nacional pelo direito social ao letramento
cultural, durante e após a escolarização de crianças, jovens e adultos.
Para tanto, a escola precisa continuar sendo um espaço laico,
preferencialmente, público e um lugar de integração social, independentemente, das
correntes, seitas, religiões ou preferências de fé. Um espaço laico, tanto no setor
público, quanto no privado, cuja formação consciente encontra-se engajada para não
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reproduzir as desigualdades no seio da sociedade e para não contribuir para novos


apartheids.
Ela coloca em questão a ideia muito generalizada de que existe uma forte
correspondência entre saber ler e escrever e a questão da inclusão social. Quantos
não defenderiam tal relação de reciprocidade? Quantos entre nós sustentariam a
correlação entre alfabetização, letramento e inclusão social e cultural?
No entanto, o valor da alfabetização e do letramento pode ser relativizado se
contraposto por fatores sociológicos, ou seja, se comparados o letramento das
populações alfabetizadas num mesmo país ou entre dois países e duas culturas
diferentes. Quantos entre nós, considerados em sua comunidade ou país como
pessoas “letradas” ou “mais letradas” que esse ou aquele e, apesar disso,
encontram-se em situação de exclusão, seja social, seja intelectual, seja política ou
econômica. Quantas pessoas menos “letradas”, no mundo inteiro, encontram-se
favorecidas por uma situação de inclusão política, social ou econômica? Ou,
finalmente, quantos entre nós sabem ler e escrever, mas não podem ou não sabem
usufruir dos bens culturais e imateriais de nossa cultura escrita, artística, literária,
nacional e mundial.
O letramento não pode ser mensurado e traduzido por um valor estável e
absoluto. Da mesma forma ele não pode ser aferido em número estatístico sem uma
ampla combinação de elementos. Ele não deve ser estabelecido em uma lista de
critérios e condições a serem seguidos, etapa por etapa, como uma bula de remédio
que prescreve dosagem e horário para o tratamento contra uma determinada
doença: o iletrismo.
O mundo fez-se grafocêntrico. Em qualquer buraco da terra a palavra escrita
faz sua (s) aparição (ões) e tem, por isso, seus efeitos. É impossível, no Brasil ou
alhures, falarmos de iletrismo. Mesmo o mais analfabeto dos homens (se é que essa
categoria existe) é capaz de relacionar-se com a sociedade letrada, como também
os mais letrados (políticos, empresários, intelectuais e outros) têm ou mantêm
relações com a sociedade letrada tão insólitas, quão contraditórias.
Em se tratando da alfabetização e do letramento, no âmbito escolar, se
necessária uma certa organização pedagógica quanto aos níveis e processos de
ensino e de aprendizagem da língua-escrita, ela deve garantir - ao longo e ao final
da trajetória educativa - a construção de competências apoiadas em práticas culturais
e sociais que favoreçam os usos da leitura e da escrita na escola e fora dela. Cada
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contexto histórico solicita dos leitores e dos usuários da escrita um saber ler e um
saber escrever específico: ao seu tempo, lugar e às múltiplas situações de
comunicação associadas ao letramento.
Assim, cada escola precisa estar, suficientemente, aberta e flexível às
mutações do mundo social e cultural, bem como aos desafios, demandas,
possibilidades e contradições da vida atual.

FORMAÇÃO

A necessidade de formação (contínua) da equipe pedagógica faz parte dessa


demanda e representa uma das estratégias fundamentais para a democratização do
letramento cultural - de alunos e professores -, pois, ao contrário, ela formará uma
população alfabetizada, mas pouco letrada quanto ao universo linguístico e cultural
global.
A escola pode e deve promover leitores que serão capazes à realização de
atividades puramente escolares, o que não significa necessariamente, que ela
formará leitores qualificados às diversas exigências do letramento social e cultural,
no dia-a-dia, no mundo do trabalho, no campo da economia ativa, nas esferas
culturais, nos ciclos intelectuais e nas rodas de sociabilidade fora da escola e da
família.
Não vamos afirmar com isso que toda demanda do mundo social e do trabalho
é, necessariamente, legítima, coerente e adequada à todos. A escola pode e deve
transcender certos limites e contradições sociais, através do investimento na
iniciativa criadora, no desenvolvimento do espírito crítico e político, na construção
coerente das leituras e interpretações do mundo social, na construção do gosto

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estético: apurado, refinado, observador e sensível às artes, à literatura e à cultura


geral.
A escola deve, inclusive, discutir com seus alunos certas práticas, certos usos
e “desusos” como, por exemplo, nossa pressa desenfreada, nosso fervor atual pelos
jogos eletrônicos, divertimentos efêmeros que, por vezes, nos distanciam da atenção
para com os outros, a comunicação espontânea e a solidariedade como conduta
coletiva.
Escrever meios não significa escrever pela metade, suprimindo letras ou
simplificando palavras como no tempo das antigas mensagens telegráficas que eram
contabilizadas letra por letra. Ora, o progresso tecnológico gerou maneiras
infinitamente rápidas e eficazes para a comunicação, no entanto, os sociólogos
urbanos atestam uma alteração no comportamento social em desfavor da
comunicação espontânea, principalmente, nas grandes capitais.
Nunca tivemos tantos meios e recursos de comunicação reunidos e
disponibilizados em um mesmo século, contudo, a urgência urbana, uma espécie de
stress permanente demonstra, principalmente, nos países mais desenvolvidos, o
crescimento do sentimento de abandono, de solidão, do individualismo como traço
social marcante, assim como o reforço da desconfiança mútua, o crescimento dos
índice de suicídio entre jovens de 18 a 25 anos, a incidência da depressão, uso e
recurso às drogas pesadas ou farmacêuticas.
Os correios podem ser eficazes
e eficientes, mas quem mantém o
hábito epistolar pelas
correspondências familiares,
amorosas ou entre amigos? Não se
trata de saudosismo, mas de uma
reflexão perpendicular em relação aos
“usos” e aos “desusos” de práticas antigas em detrimento de novas práticas sociais.
A perda de certos hábitos tradicionais, como a leitura em voz alta, os serões
de leitura, as rodas de sociabilidade em torno da poesia que, no fio do tempo, se
perdem, se transformam, se sobrepõem e se contrastam num mundo onde o valor
da escrita está bastante consolidado, mas o valor de certas práticas orais e de leitura
têm, progressivamente, sofrido um certo apagamento parcial ou total.

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Nesse sentido há letramento e letramentos e não é um jogo de palavras, mas


está em discussão a reflexão sobre a importância de alargarmos, o mais possível,
nossas ambições quanto aos objetivos educacionais, pedagógicos, sociais e
culturais em favor da qualidade e da diversidade dos processos, das aprendizagens,
das experiências, das modalidades e das competências no uso e usufruto da
linguagem e da comunicação oral e escrita.
É preciso lembrar que durante séculos o tratamento da leitura e da escrita foi
circunscrito à uma espécie de “condição ideal de alfabetização” voltada para
determinados indivíduos. Na Antiguidade e na Idade Média ler ou, apenas, escrever
denotava uma capacidade, um privilégio e um atributo objetivo relativo ao status
social daqueles poucos indivíduos que sabiam ler ou escrever ou sabiam ler e
escrever.
A questão da democratização do direito e do acesso à leitura e à escrita
parece, aos olhos de muitos, uma conquista assegurada pelas supostas vantagens
do mundo eletrônico contemporâneo. Porém, o Programa Internacional de Avaliação
de Estudantes (PISA) nos informa que o Brasil apresenta um dos piores
desempenhos na área da leitura, isto, em função da média geral obtida pelos alunos
no último exame, além do baixo nível de proficiência obtido por crianças brasileiras
em exames nacionais e internacionais.

ALFABETIZAÇÃO

Se a alfabetização foi, no passado, um indicador social e um conceito


historicamente definido quanto ao ensino-aprendizado do sistema alfabético da
escrita sabemos, atualmente, que a alfabetização representa um, entre outros,
indicadores (diferenciais) sobre inclusão social, embora saber ler e escrever, ou seja,
decodificar e codificar sinais fonéticos e gráficos representa, apenas, uma primeira
conquista no processo de alfabetização e letramento, de cada indivíduo, durante o
processo escolar ou para além dele.
O conceito estável de alfabetização - saber ler e escrever e, por extensão,
assinar o próprio nome – prevaleceu até o Censo de 1940, baseado nas declarações
de cada entrevistado do IBGE. Na década seguinte o conceito alterase: ser capaz de
ler e escrever um bilhete simples, o que significa dizer, uma primeira aproximação
em função de uma prática de leitura-escrita. A partir da década de 80 verifica-se,
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_____________ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO CONDIÇÕES DE INCLUSÃO SOCIAL

então, uma progressiva extensão do conceito de alfabetização em direção ao


conceito de letramento, ou seja, não apenas saber ler e escrever, mas a apropriação
e uso da leitura e da escrita.
Assim, o conceito de alfabetização passou, a partir da década de noventa, a
ser confrontado, adjetivado e co-habitado por novas terminologias e nomenclaturas
oriundas, tanto do impacto causado pelos estudos da Psicogênese e da
Sociogênese, bem como as contribuições do paradigma cognitivista e
socioconstrutivistas, concomitantes à difusão de novos equipamentos, tecnologias e
instituições. Esse remodernismo (sustentado pelas novas tecnologias de
comunicação) exigiram (e ainda exigem) novas habilidades e usos com a escrita, os
quais ultrapassam a mera decodificação e codificação dos sinais grafofonêmicos.
Assistimos, no final dos anos noventa, quase a negação ao tradicional
conceito de analfatetismo, uma vez que o emprego do conceito de analfabetismo
funcional inclui não apenas os chamados “analfabetos” como todos aqueles que,
embora sabendo ler e escrever não estão suficientemente habilitados aos usos da
língua escrita.
Um filme emblemático sobre os dilemas brasileiros dos anos noventa é Central
no Brasil. Obra sensível de Walter Sales sobre a solidariedade, a solidão e a exclusão
social, cujo retrato realista acerca do analfabetismo e do analfabetismo funcional foi
difundido pela personagem interpretada por Fernanda Montenegro – a escritora de
cartas na Estação da Central do Brasil – no Rio de Janeiro.
Essa mudança conceitual está relacionada, em primeiro lugar, à proposta da
UNESCO, no final da década de setenta, em favor da ampliação do conceito de
literate para functionally literate – de alfabetismo para alfabetismo funcional – e,
consequentemente, a inclusão nas avaliações internacionais de indicadores sobre o
domínio de conhecimentos e competências linguísticas para além do saber ler e
escrever (decodificar e codificar sinais gráficos e fonêmicos).
Em segundo lugar, também sob a influência da UNESCO, a decisão oficial
pelo ano de 1990 como o Ano Internacional da Alfabetização, cuja promoção e
difusão internacional favoreceu uma ampla discussão a respeito da ressignificação
do termo alfabetização e, por consequência, a renovação das práticas de ensino
aprendizagem.
Em terceiro lugar quando as Nações Unidas proclamaram a década de
20032012 como a Década da Alfabetização, suscitando a iniciativa de revisão
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conceitual da alfabetização associada aos usos de comunicação, informação,


participação e outras aprendizagens durante a vida, isto é, numa aproximação clara
com o letramento.16
Na década de oitenta a re-orientação sobre o velho dilema entre analfabetismo
e alfabetismo gerou uma espécie de revolução de ideias e de iniciativas, por meio
das quais assistimos: à criação de uma série de projetos educacionais, assim como
mudanças administrativas e desdobramentos legais em favor da alteração de cursos,
currículos e dispositivos de formação pedagógica, seja no nível secundário, seja no
superior. Nesse movimento, progressivamente, ocorreu a implementação de novas
políticas pela formação continuada de educadores, professores e mediadores
educacionais e, finalmente, a criação de instâncias de avaliação do rendimento
escolar e os níveis de letramento das populações escolarizadas 17.
A linguagem ou jargão profissional incorporou a partir dos anos noventa
nomenclaturas como: alfabetismo, letramento, alfabetismo funcional e analfabetismo
funcional.18 Além de termos ressignificados como: iletrismo, iletrado e letrado, pois
um novo vocabulário e, por extensão, uma nova semântica foram necessários para
nomear e compreender uma realidade escolar e cultural específica.
A realidade social contemporânea, as mudanças no mundo do trabalho e os
novos apelos culturais geraram demandas e conhecimentos específicos no uso da
leitura e da escrita destinados aos usos (presenciais e virtuais) da linguagem,
portanto, às inovações geradas pelos recursos tecnológicos de informação e seus
sofisticados equipamentos eletroeletrônicos.
Os desafios da “segunda” eram eletroeletrônica foram rapidamente
percebidos, através de mudanças no mundo urbano e rural e nas relações de
trabalho nacionais e internacionais. No caso brasileiro, um importante desafio a ser
ultrapassado refere-se à taxa de analfabetismo funcional, atualmente, aferida na
ordem de 38% da população alfabetizada, ou seja, uma população escolarizada que
lê, mas compreende precariamente uma dada notação escrita.
Para o IBGE os índices de analfabetismo funcional consideram todas as
frações populacionais com menos de 04 anos de escolaridade. Esse novo critério,
aproxima-se do conceito de letramento à medida, segundo Magda Soares, do (...)
estabelecimento de uma equivalência entre nível de escolarização e a capacidade
de fazer uso efetivo e competente da leitura e da escrita, isto é: a relação entre
número de séries escolares concluídas pelos indivíduos, ou seu grau de instrução, e
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nível de letramento. Esse critério fundamenta-se no pressuposto de que, atingido um


certo grau de instrução, o indivíduo terá não só adquirido a tecnologia da escrita, isto
é, terá se tornado alfabetizado e terá também se apropriado das competências
básicas necessárias ao uso das práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, terá se
tornado letrado. Para avaliar o letramento pelo critério de grau de instrução, uma
alternativa tem sido estabelecer, por inferência, uma equivalência entre determinado
grau de escolaridade e um nível de letramento considerado satisfatório – um e outro
definidos de forma relativamente arbitrária. É a alternativa que tem predominado na
bibliografia brasileira sobre alfabetização, analfabetismo e letramento: tem-se
tradicionalmente considerado que à conclusão da quarta série do ensino fundamental
corresponderia um nível satisfatório de letramento, provavelmente por influência da
antiga organização do ensino, que estabelecia o ensino primário de quatro séries
como a etapa obrigatória e suficiente para a formação do cidadão.
O percentual de analfabetos no Brasil é uma questão problemática ao longo
da história da educação do país. Até a década de 60, por exemplo, o percentual de
analfabetos foi superior ao de alfabetizados, embora até 1950 ser considerado
alfabetizado significava, essencialmente, saber assinar o próprio nome. Esse critério
agravou a situação da época e protelou efeitos e consequências, tendo em vista que
8% da população brasileira, ainda, não sabe ou, sabe precariamente, proceder a
assinatura de seu nome. Dito de outro modo, são vítimas de um analfabetismo
secular: cultural, econômico, social e, evidentemente, político gerados por programas
governamentais que sucedem equívocos e reproduzem desigualdades.
Até a década de 70, o Censo oficial apontou um índice superior de 32 milhões
de habitantes analfabetos, embora para o ano de 2000 o decréscimo registrado foi
da ordem de 17%, isto é, o mesmo percentual aferido pelo IBGE em 1872. Essa
realidade desafiadora e complexa implica um quadro interno de desigualdade social
e cultural e que se projeta no cenário internacional como uma declaração de
handicap. Uma deficiência que em relação aos europeus e norte-americanos
sustenta uma mentalidade geradora de preconceitos e discriminações, resquícios de
tipo coloniais e a manutenção de preceitos políticos e regras econômicas, desses
países, sobre o Brasil.
Contudo o dilema permanece entre analfabetismo e alfabetismo funcional,
cuja relação diferencial complexa determina, pois, uma mudança radical nos
processos escolares voltados para a alfabetização e o letramento.
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Para tentar elucidar a questão lançarei mão de algumas informações


estatísticas divulgadas no mês de junho de 2005, em função do Ano IberoAmericano
da Leitura. O primeiro dado diz respeito à precariedade de espaços de leitura no
Brasil. No país a maioria dos 5.561 municípios brasileiros sequer possui uma livraria.
Existem ainda mil municípios sem bibliotecas e
apenas um pouco mais de duas mil livrarias em todo
o território, o que representa uma distribuição de
84.400 habitantes por livraria.
Apesar dessa realidade um primeiro
contraste diz respeito aos resultados
surpreendentes de venda nas últimas Bienais do Livro, no Rio de Janeiro e em São
Paulo, sem contar o sucesso sucessivo da “Primavera do Livro”, promovidos entre
2001 e 2004, pela Liga Brasileira de Editoras (LIBRE), além do crescimento ou do
surgimento de outros salões e feiras do livro em diferentes capitais e cidades
brasileiras e, finalmente, o investimento do capital estrangeiro na abertura ou
manutenção de mega-livrarias e na (mudança) da direção de algumas editoras,
tradicionalmente, brasileiras que, hoje, fazem parte de grupos financeiros
provenientes da América Latina, da América do Norte e da Europa.
Se os editores não abandonam as denúncias de uma crise editorial profunda,
paradoxalmente, não param de propalar os sucessos editorais de revistas, cds e
livros que soltam aos olhos dos leitores e são estimulados pelas campanhas
publicitárias da mídia.
A pesar da crise vivida pelo mercado editorial brasileiro nos últimos cinco anos,
o setor vive momentos de euforia. A aposta no crescimento se reflete em negócios
recentes, como a venda de 7% da Objetiva para o grupo espanhol Prisa-Santillana e
a compra de metade da Nova Fronteira pela Ediouro. Anunciadas este mês, as
fusões apontam pelo menos duas diretrizes. As empresas apostam na conquista de
um número cada vez maior de leitores e para o sucesso dessa empreitada devem
travar uma guerra para garantir a criação de catálogos cada vez mais sólidos e
diversificados. A entrada de grupos internacionais de peso como o Prisa-Santillana -
presente em mais de 20 países e dono, entre outras publicações, do jornal “El Pais”
- e da Planeta - sétimo maior grupo editorial do mundo com forte presença inclusive
na América Latina - que se instalou no Brasil em 2003, indica que os estrangeiros
estão de olho num mercado com enorme potencial para crescer. Por enquanto, são
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apenas 26 milhões de leitores ativos, que leem em média quatro livros por ano num
país com 180 milhões de habitantes. A previsão é expandir consideravelmente o
número de leitores. Além de movimentar o setor, a presença de editoras
multinacionais pode beneficiar, sobretudo, os ávidos por novidades. Editoras como a
Planeta, que está presente em diversos países, tem uma facilidade maior em
promover o intercâmbio de autores. Novos escritores estrangeiros, que talvez nunca
tivessem chance de ser publicados aqui, começam a chegar às livrarias nacionais
com uma velocidade nunca vista. “Existe uma sintonia com as outras casas da
Planeta para fazer com que a circulação da informação aconteça de maneira ágil”,
diz Pascoal Soto, diretor editorial da editora. Graças a essa troca os brasileiros
podem conhecer, por exemplo, a obra de Efraim Medina Reyes, um dos destaques
da literatura colombiana contemporânea. (Jornal Mercantil do Brasil, em 01 de julho
de 2005)
Se a leitura é um bem imaterial, ao contrário, o livro é um bem material, cada
vez mais configurado como um produto de consumo e comercializado como uma
mercadoria de valor social e cultural para um mercado bem configurado e em
expansão. O livro inscreve-se, pois, numa rede especializada de trocas, interesses e
vantagens materiais e simbólicas, cujas lógicas funcionais para a sua difusão são
claramente comerciais, segundo as tendências do mercado nacional e internacional,
no quadro do modelo capitalista de globalização.
No país, os talentos também deverão ser mais valorizados, tanto aqueles que
já têm uma posição consolidada como outros que ainda sonham em publicar o
primeiro livro. Contratos atraentes promovem uma dança das cadeiras no setor. A
Planeta, com grande penetração no exterior, atrai autores com a possibilidade de
“projetos globais”. “Minhas Histórias dos Outros”, de Zuenir Ventura, a biografia de
Paulo Coelho que está sendo escrita por Fernando Morais, e uma coleção
provisoriamente chamada de “Planeta Brasil” feita pelo jornalista Eduardo Bueno
entraram nessa categoria e serão publicadas noutros países. Paralelamente à caça
de nomes consagrados, ocorre a busca por novos escritores. A Planeta fez dessa
ideia uma de suas metas. “Temos interesse em criar um catálogo forte que contemple
as principais promessas e os autores consagrados”, diz Soto. Com pouco mais de
200 títulos no catálogo e com a expectativa de produzir outros 100 a cada ano, a
empresa pretende investir em talentos que começam a despontar como Santiago
Nazarian e Alexandre Plosky. A disputa por novatos é acirrada. Publicado
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inicialmente na Planeta, João Paulo Cuenca migrou para a Ediouro. Conhecida até
pouco tempo por manter um catálogo de clássicos universais e pela publicação de
palavras cruzadas, a editora carioca diversificou a linha de atuação. Além de Cuenca,
Paulo Roberto Pires, diretor editorial da Ediouro, aponta outras apostas: Daniela
Abade, Ivana de Arruda Leite e André Laurentino, cujo primeiro livro deve sair em
agosto. Além disso, a Ediouro acaba de aumentar seus domínios com a aquisição da
Nova Fronteira. “O autor nacional é a prioridade. Queremos que os novatos
enxerguem na editora o lugar para se lançarem”, afirma Carlos Lacerda, sócio e
editor da Nova Fronteira, dona de sólido catálogo que inclui nomes como Thomas
Mann, Guimarães Rosa, João Ubaldo Ribeiro, Cecília Meirelles, João Cabral de Mello
Neto e Agatha Christie. Tanto empenho não existe ao acaso. “Não se forma um
catálogo sólido sem um espaço para a descoberta de novos autores. Por isso têm
surgido tantos nomes nos últimos anos”, avalia Luciana Villas-Bôas, diretora editorial
da Record, a maior lançadora de títulos, um total de 28 por mês. A onda de fusões
revela também o quanto a diversidade dos catálogos é importante para a
sobrevivência das editoras. O grande número de selos lançados no mercado nos
últimos anos prova isso. A Record, por exemplo, tem mais seis selos além daquele
que leva o nome da editora: José Olympio, Bertrand Brasil, Civilização Brasileira,
Difel e Rosa dos Tempos que juntos formam uma coleção de títulos dos mais
estrelados, na qual constam textos de 22 ganhadores do Prêmio Nobel, como Gabriel
García Márquez, Pablo Neruda e Gunther Grass, além de brasileiros como Jorge
Amado, Graciliano Ramos e a premiada Nélida Piñon. A Ediouro também se
expandiu com os selos Agir e RelumeDumará antes de ganhar o reforço de autores
da Nova Fronteira. Como explica Marino Lobello, vicepresidente de comunicação e
marketing da Câmara Brasileira do Livro: “Uma editora com um grande catálogo tem
vantagem na hora de distribuir. É muito mais econômico e, por isso, tem a tendência
natural de ocupar o mercado”. Razões econômicas à parte, o resultado dessa disputa
tem tudo para agradar aos amantes da leitura, que terão uma oferta cada vez maior
de títulos. (Jornal Mercantil do Brasil, em 01 de julho de 2005)
Há cerca de duas ou três décadas assistimos a multiplicidade de livros e de
edições de alta qualidade gráfica e ilustrada, sem contar as inovações editoriais
através de sites e blogs. As edições são variadas, são qualitativamente atraentes,
segundo os mais diferentes gostos e preferências gerados pelo (e para o) público
infantil, juvenil e adultos. No entanto, no Brasil, apenas 86 milhões de habitantes são,
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de fato, leitores potenciais dentre a população total que sabe ler e escrever, ou seja,
cerca de 20% da população.
O Brasil é, indubitavelmente, uma nação de contrastes. As editoras não sabem
o que fazer e o que inventar para atrair, mais e mais, os consumidores da palavra
escrita e de jogos interativos. As editoras estão em toda parte, em quase todos os
salões do livro, reuniões anuais de professores e pesquisadores, enfim, procuram
manter seus leitores assíduos e conquistar novos consumidores potenciais.
Temos a impressão vertiginosa de que nunca termos lido como na atualidade,
o que é em parte verdadeiro, mas quem são, de fato, “esses que leem”? Somos
sempre os mesmos leitores? Uma espécie de público-leitor “de carteirinha”? O que
se lê no Norte, no Nordeste, no centro-oeste é o que se lê no sul e sudeste
brasileiros? Lê-se, de fato, mais numa região que em outra?

PARA REFLETIR

Basta refletir e tirar conclusões a partir da


tiragem de livros que é muito baixa no Brasil. A média
foi aferida em dois mil exemplares para cada novo
livro editado. Além disso, existe uma diferença crucial
entre editar e difundir, publicar e distribuir. Dois mil
exemplares por livro publicado é um coeficiente
ridículo se consideradas as diferentes regiões
brasileiras, a distribuição da população nos grandes
centros urbanos de cada região e, obviamente, o
contingente populacional dessa nação. Cada
brasileiro lê uma média de 1,8, ou seja, cerca dois livros por ano enquanto os
colombianos leem 2,4 livros a cada ano, os ingleses e norte-americanos, 5 e os
franceses 10 livros novos.
Diante desses dados o artigo, intitulado: Câmara estuda propostas de estímulo
à leitura, difundido em 17 de junho de 2005, pela Associação Brasileira de Editores
de Livros (Abrelivros) é bastante categórico (embora parcial) o perfil do leitor
brasileiro quando ela conclui que: “o baixo índice brasileiro (de leitura) não indica
apenas o desinteresse da população, mas uma incapacidade para a leitura”. Esse
gênero de discurso, historicamente, tem sido reproduzido no Brasil e fora do país.
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Uma consequência grave e direta é o reforço cultural negativo que pesa, de maneira
generalizada, sobre os brasileiros. Mas, até quando iremos integrar e perpetuar esse
tipo de afirmação como se, em primeiro lugar, ela fosse verdadeira e como se, em
segundo lugar, ela dependesse, única e exclusivamente, da boa ou da má vontade
dos brasileiros em relação à leitura de livros?
A leitura, se um bem imaterial, é também uma modalidade de comunicação.
Ela implica, portanto, o movimento de enunciação do autor, o qual é recriado pelo
leitor, através do trabalho criterioso de decodificação, interpretação e inferência, mas
que não termina nos riscos negros sobre a folha branca, quando fechado o livro por
esse mesmo leitor.
A leitura - atividade encarnada de gestos - exige uma determinada habilidade,
treinamento e aprendizagem para que o leitor prossiga na ordem (implícita) do texto
e na orientação de leitura pressuposta nesse mesmo texto. Ao mesmo tempo, a
leitura implica alguma necessidade e condição de liberdade durante a construção da
compreensão, da apreensão e da interação com o mundo das palavras e o universo
representado por intermédio delas.
A leitura requer, dessa forma, uma ampla e contínua política de incentivo por
meio da produção editorial, sua circulação e difusão. No caso brasileiro, as editoras
e as instâncias governamentais precisam, incontestavelmente, realizar maiores
esforços em prol da democratização da leitura e da cultura, particularmente, no que
diz respeito à disponibilização de livros e ao acesso dos materiais de leitura. Isto,
num Brasil, cuja vastidão e diferença continentais apresenta desafios e iniciativas
próprios.
A leitura, em seu amplo conceito, não está, nessa perspectiva,
suficientemente contemplada pelos instrumentos de avaliação estatística e pelos
programas de intervenção social, cujos parâmetros, muitas vezes, reforçam uma
perspectiva de leitura, essencialmente, ligada às dinâmicas editoriais.
Quando tratamos da leitura uma lacuna parece-me evidente, pois
consideramos pouco as leituras informais que escapam aos mecanismos de
regulação estatística e seus critérios sobre o perfil do leitor brasileiro.
Lemos o jornal do vizinho, lemos diante das bancas de jornal, lemos de olho
atravessado a revista do passageiro, sentado ao nosso lado, no banco do ônibus,
lemos os out-doors e, além dessas tantas e outras circunstâncias pontuais de leitura
é preciso salientar os que leem (e o que esses leitores anônimos leem), através dos
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empréstimos entre amigos, vizinhos e colegas de profissão. Há também os que leem


em bibliotecas públicas: livros isolados ou coleções inteiras. Sem esquecer as
incontáveis leituras, pela via das escolas e de suas bibliotecas.
As estatísticas não contemplam, por exemplo, as leituras dos cordéis vendidos
nas feiras do Nordeste e, muito menos, os textos ou livros inteiros reproduzidos pelos
serviços de fotocópia, apesar da proibição legal. Uma prática, no entanto, que reflete
uma espécie de “economia alternativa”, tanto para pequenos comerciantes e
papelarias, quanto para os leitores com pequenos recursos.
O que se poderia dizer ainda sobre essas e outras leituras sem percentual,
sem controle ou registro como, por exemplo, os livros, as revistas e outros suportes
textuais que são disponibilizados e lidos através da internet? Sem contar aqueles
livros que nos esperam há meses ou anos em nossas modestas ou bem servidas
bibliotecas pessoais até que, de fato, os lemos.
Lemos também o que se pode oferecer, ainda, em alfarrábios, em sebos, em
feiras locais, em livrarias ambulantes, em bancas de revista ou, simplesmente, em
pequenas livrarias de livros novos e usados enquanto eles resistem, heroicamente,
à pressão financeira e ao poder comercial das “mega-livrarias “ e das “livrarias de
shopping center”. Assim, nesses espaços cada vez mais raros, são vendidos
velhíssimos livros ou até belas edições de segunda mão, cujos preços módicos
embalam o desejo de leitura de tantos leitores anônimos.
Há que se dizer, também, das leituras realizadas através das revistas em
quadrinho, das coleções de romance “água com açúcar” ou “cor-de-rosa”, das
aventuras policiais e, por que não? Das leituras de ficção científica, as incontáveis
edições de auto-ajuda que circulam de mão em mão, através de assinaturas pela via
postal, pelos empréstimos ou por meio de espaços menos convencionais, como
centros comunitários, associações de bairro e, até mesmo, nos salões de beleza.
Lemos pela internet, lemos clandestinamente e há os que leem em igrejas,
templos ou redutos de religião. Mas, se a média dos leitores brasileiros, segundo as
estatísticas, confirma que ainda não se lê suficientemente, então, é preciso denunciar
as leituras filtradas pelos processos de inculcação ideológica. Estas amplamente
veiculadas pelos canais e programas de rádio e, em particular, de televisão que leem
e fabricam “leituras do mundo” para um público, cada vez mais, desvirtuado dos livros
e condicionado às “leituras televisivas”.

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Nossas leituras, nossas memórias de leitura, nossas cópias sobre livros,


nossos manuscritos pessoais escondidos ou perdidos nas gavetas, os documentos
e álbuns de família, a correspondência pessoal, as letras de música, as preces, os
textos religiosos, as cantigas de candomblé, os versos da congada e do Folião de
Reis, os apontamentos sobre cursos, aulas, conferências e seminários, os protocolos
de leitura ou apontamentos sobre livros lidos, enfim, tantos vestígios, pistas e sinais
sobre nossos circuitos de leitura, informais e invisíveis aos dados divulgados pela
mídia ou pelos órgãos oficiais de avaliação.
Tudo isso é o que assegura, também e uma outra forma, a nossa liberdade
como leitores e leitoras, através de nossas práticas convencionais ou pessoais no
uso da língua escrita.
Assim, leitores que somos, que podemos ser ou que passamos a nos
constituir, paulatinamente, ao longo da vida, com e apesar das dificuldades culturais
e financeiras relativas ao acesso do livro. Haverá, pois, sempre leituras, estas e
outras, inconfessáveis e sem registro estatístico. Basta indicar tantas releituras não
contabilizadas sobre o nosso exercício mais ou menos contínuo de leitura e com a
leitura. Tantas estratégias e usos de leitura inacessíveis aos quadros e dados
estatísticos: apressados, parciais, senão ideologicamente estabelecidos, ao
reafirmarem a não-leitura no Brasil. Se nossos leitores não leem, qual será o padrão
(internacional?) Otimizado como referência? Quando leem – leem pouco ou
precariamente? Quais os modelos que sustentam tais parâmetros de aferição?
Esperam todos ou, em particular, os chamados “pequenos leitores” que com
o tempo possam não apenas namorar os livros por detrás das vitrines, mas tê-los
naquele afago, discreto, pelas mãos que alisam a lombada, a capa, as ilustrações e
as páginas dos livros que (eles) leem furtivamente: sentados no chão, em pé,
apoiados numa prateleira, trocando as pernas ou, no melhor dos casos, com o
conforto, o requinte de um pequeno sofá, colocado nas livrarias mais sofisticadas, as
quais não sabem mais o que inventar para atrair leitores e partilhar esse universo
prodigioso da escrita.
Sobre o mundo dos livros depende, certamente, do salário e das dívidas até o
final do mês para serem comprados, ou não, o tal ou os tais livros que apaixonam e
convidam a cobiça desses leitores; por livros e leituras condicionados em belas
edições encadernadas e/ou ilustradas.

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Quem sabe leremos mais livros! Para isso nesse país o preço do livro não
poderá ser multiplicado por dois, três, cinco, dez vezes, vinte, trinta ou cinquenta
vezes sobre o seu custo real, principalmente, quando se trata de uma obra recém
lançada.
Assim, é fato! Compramos livros e, quando não os temos, damos um “jeito” e
lemos em partes, em fragmentos, mas lemos. Fica, aqui, a minha própria confissão
sobre dois ou livros que recentemente li, assim, pedaço por pedaço, sentada ou de
pé numa livraria de bairro e quem não cometeu esse ou outro pequeno “pecado” pelo
prazer de uma leitura?
Quem sabe os pequenos leitores ou leitores medianos não terão, de fato, no
interior da cesta básica uma boa literatura nacional. Boa literatura! Não me refiro aos
livros, demasiadamente, açucarados, baratos, tendenciosos ou de baixa qualidade
que algumas editoras darão (ou não) um jeitinho de atravessarem junto ao fubá,
farinha, óleo, macarrão, arroz e feijão.
Temos, todos, fome de leitura e deveríamos reivindicar que nossa fome é
consensual, pois, se trata de fome cultural e quem não tem fome por grandes
tesouros e primores da literatura, do cinema, do teatro, da música e da arte brasileira
e estrangeira?
Ah! Literatura brasileira, sensivelmente, apagada pela cultura de massa e
televisiva que reduz, dentro e fora do país, a multiculturalidade dos olhares e das
perspectivas sobre os nossos brasis no Brasil.
Ah! Literatura que mero espetáculo ou produto comercial descartável; sem
memória, sem história e sem progressão no tempo e no espaço, quando aqueles
sabiam usar e se apropriar da escrita, literária e estética, em prol da cultura da
palavra.

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