Você está na página 1de 478

AS BIBLIAS FALSIFICADAS

OU

DUAS RESPOSTAS

AO SR. CONEGO JOAQUIM PINTO DE CAMPOS


PELO

CHRISTÃO VELIO

abrina Linna

ลง

RECIFE

Typ. Commercial de G. Š. de Mira .


1867
1
BS 470
P55A2

ADVERTENCIA

Devemos conſessar, que nunca , em nossa vida litte


raria, tomamos sobre nós uma tarefa mais fastidiosa, que
a que deu lugar a este livro .
Escrevemos com repugnancia -tal era a gravidade do
assumpto, principalmente apadrinhado com o nome res
peitavel e venerando do illustre Sr. Arcebispo da Bahia .
Uma circumstancia imprevista , e talvez meramente
accidental, chamou -nos a terreiro nesta luta . O Sr. Ar
cebispo , em uma sua pastoral, fallou de alguns vicios e
erros de uma biblia impressa em Nova-Yorck ; e o Sr.
-

Conego Pinto de Campos, aproveitando este ensejo , disse


que tambem estavão horrivelmente falsificadas as biblias
impressas em Londres .
Ha muito que pensamos em dar uma educação chris
tòa á infancia , principalmente a do sexo feminino ; visto
que a educação, que recebe agora , he puramente pagaa
e idolatra ; em que desaparece inteiramente a idea de
Deos, substituida pelo culto material das imagens .
Com este intuito começamos a distribuir, entre as
familias de nossa intima amisade, alguns exemplares do
novo testamento impresso em Londres ; e haviamos já es
palhado bastantes, quando o Sr. Conego Campos se lem
brou de qualificar as biblias de Londres de venenosas,
cheias de erros e heresias, que se introdusião no seio
>

das familias para as corromper !


410
Diga qualquer outro, que não nos, o que faria em
nosso caso ! Tachados de corruptores e de envenena
dores, poderiamos deixar a nossa reputação á mercê do
Sr. Padre Campos ? Não .
Reagimos , tanto mais quanto tudo o que dissera o
Sr. Campos era uma serie de falsidades revoltantes con
tra a evidencia ; porque o novo testamento , impresso em
Londres , e ultimamente em Lisboa, não contem um só
erro , uma só alteração ; estando em tudo conforme com
a grande biblia do Padre Antonio Pereira .
A nossa resposta sahio no Jornal do Recife de Janei
ro de 1866, e foi reimpressa no Rio de Janeiro em um
folheto, e distribuida gratuitamente por pessoa, que não
conhecemos, mas que obteve, por intermedio de um
amigo , a nossa permissão .
Entretanto cumpre advertir, que sahio com muitos
erros typographicos e saltos, alem de umas notas , que o
editor acressentou de sua conta , e que vinhão bem fora
do texto ; portanto tomamos a deliberação de reimpri
mil - a de novo neste livro .
Essa nossa resposta provocou uma replica do Sr. Pa
dre Campos : não para provar as falsidades das biblias
de Londres , o que era moralmente impossivel : não para
dar uma satisfação ao publico, por haver asseverado ,
debaixo de sua palavra honrada, uma falsidade reconhe .
cida ; mas para dar prova provada da sua vastissima
erudição em materia de biblias, de Purgatorio , de Inqui
sição , de Prottestantismo, e de invocação dos Santos .
Com effeito, a sciencia não podia ter melhor inter
prete ! O Sr. Padre Campos decididamente inventou a
polvora (perdoe-nos a hyperbole , que nos arranca a cons
ciencia do seu profundo saber) . O seu trabalho, publi
cado a retalho no Diario de Pernambuco de Junho e Ju
lho do anno proximo passado , he um monumento de
gentilesa e força de estilo, de ornamento oratorio , e de
nervo va forma e na materia ; emfim tem todas as dimen
sões dos solidos : longum, latum , et profundum .
Pode ser erronea a apreciação, que fizemos da re
plica do Sr. Padre Campos ; mas cumpre confessar, que
he um prodigio de engenho e d'arte. Pode alguem
perguntar : a que vinhão, na questão das biblias falsifica
das, o Ephraim do Sr. Dr. Ignacio de Barros Barretto, o
Purgatorio, a Inquisição religiosa, a invocação dos Santos
e outras muitas cousas, que o Sr. Padre Campos introdu
zio de novo, e fora do escolio ?
Nós mesmos não saberiamos responder ; e a não ser
um repto formal, para nos confundir em uma luta tão
desigual, não comprehendemos o fim que teve o Sr. Pa
dre Campos nessa nova provocação .
Finalmente , seja o que fôr, julgamos que era do nas,
so dever aceitar a luva , que o Sr. Padre Campos nos lan
çou , e apanhamol- a, posto que constrangidos , visto como
achamos prematura esta discussão. Todavia, se o Sr.
Campos acreditou sair-se gloriosamente desse empenho ,
talvez se engane ; não por nós, fracos lutadores, mas pela
gravidade da materia .
A nossa segunda resposta trará o cunho da nossa
sinceridade ; assim como da dør profunda, que nos acom
panha ao vermos os Santos Evangelhos arrastados pela lama
por aquelles que se dizem seos ministros.
Já que fomos obrigados a fazer um livro, apro
veitamos a occasião para reimprimir alguns artigos soltos
sobre questões importantes de direito patrio ecclesias
tico, como a do Beneplacito imperial, e da ausencia dos
bispos de suas dioceses sem licença do governo, dos Di
zimos e do Concilio de Trento como lei do paiz .
He um trabalho feito sobre materia importante ;
ao menos servirá de guia para outros, que se queirão
dedicar ao estudo da nossa legislação ecclesiastica .
Para preambulo basta -vamos pois a materia .
Recife 27 de Janeiro de 1867 .
AS BIBLIAS FALSIFICADAS

PRIMEIRA RESPOSTA
ARTIGO I

Debaixo deste titulo publicou o Diario de Pernam


buco, no mez de Dezembro proximo passado, tres arti
gos assignados pelo Sr. Conego Joaquim Pinto de Cam
pos ; artigos que nos não moveriam a uma resposta ,
se o seu autor não lhes tivesse associado tambem o res
peitavel nome do Sr. Arcebispo da Bahia .
Dizemos que os artigos do Sr. Campos nos não mo
veriam a dar - lhe uma resposta , não pela pessoa do au
tor, a quem muito acatamos, mas pela linguagem desabri
da de que usa , pela jactancia com que conclue, sobre
tudo pela intolerancia judaica, com que não supporta
sequer a presenca de um protestante ; entretanto que
esse protestante é tão christão , senão mais, que qual
quer de nós; perdoe -nos S. S.
E porém , visto que somos obrigados a responder
ao Sr. Arcebispo, não deixaremos tambem sem respos
ta o Sr. Conego, porque uma resposta chama a outra .
De principio teremos de englobar ambas as respostas,
pois que o Sr. Conego tomou para si as observações do
Sr. Arcebispo ; depois trataremos de cada um por sua
vez .
Não invocaremos o Divino Espirito-Santo para esse
nosso trabalho ; porque do que dissermos pouco será de
nossa lavra , já outros varões doutos o tinhão dito (se
inspirados ou não é cousa que pouco importa ). Mas
chamaremos em nosso auxilio toda a mansuetude, toda
a longanimidade de Nosso Senhor Jesus Christo para que
possamos perdoar as injurias que o Sr. Padre Campos
lançou sobre o bom senso , sobre a moralidade do povo
brasileiro .
Vamos tomar sobre nós um peso, que nos acabru
nha , é verdade ; mas cumpre pôr um obstaculo á essa
reacção religiosa , que vai apparecendo; e póde trazer
8

sérios embaraços para o governo do paiž, phanatisando


o povo , não com a verdadeira doutrina, porque esta não
a querem os santões, mas com toda essa pompa de men
tiras , de falsidades e de calumnias, com que se apregoam
os unicos catholicos no mundo, com menoscabo dos ho
mens mais honestos, mais intelligentes e mais sinceros
do paiz.
Cumpre entretanto não esquecer o que fizeram cer
tos vigarios por occasião da lei do senso - principiis obs
tà . - Cumpre por um freio á audacia , com que se procu
ra desvirtuar e polluir o mister
que ha que
de mais sagrado para o
qualquer porcarico,
homem , a Religião ! E'
que qualquer bufarinheiro, como diz o Sr. Padre Cam
pos , não se apregôe elle mesmo catholico por excellen
cia , com injuria da moralidade do nosso paiz.
Porque é , que depois que se trata da emigração dos
Estados-Unidos , não ha foriniga, por pequena que seja,
que não crie azas , e não queira voar ? Porque essa aza
fama de periodicos, esses escriptos cheios de fel e vina
gre, essas falsidades, essas calumnias tão repetidas , essas
Biblias falsificadas agora, quando desde aa nossa indepen
dencia ellas correm no Brasil sem a menor difficuldade,
sem o menor reparo ? Isto terá logo a sua explicação .
Entretanto cumpre -nos desde já asseverar, que nada disto
se entende com o Sr: Conego Campos, e muito menos
com o Sr. Arcebispo , pessoas a quem respeitamos , e as
quaes nem por sombra desejariamos ferir nem molestar.
Diz o Sr. Conego, no seu segundo artigo (Diario de
Pernambuco de 6 de Dezembro ultimo) que, ajudado por
um amigo tinha feito suas notas sobre as falsificações das
Biblias impressas em Londres, quando deparou com uma
pastoral do Exm . Sr. Arcebispo da Bahia, onde encontrou
a resenha dessas falsificações, quasi conforme com a que
tinha feito ; mas acatando no trabalho do metropolita o
cunho da autoridade, o preferio : e assim copía a parte
da pastoral, que faz a resenha daquellas falsidades.
Ora , o Sr. Arcebispo diz , que a Biblia , que se vendia
por infimo preço, era traduzida em vulgar pelo Padre
João Ferreira A. de Almeida, ministro protestante em
Batavia , e impressa em Nova - Yorck ; diz mais que essa
-

Biblia estava com o antigo testamento truncado, faltan .


3
9

do -lhe os seguintes livros- Thobias, Judith , o Ecclesias


tico , a Sabedoria, os dous dos Maccabeus , os Capitulos
de 11 a 16 do livro de Esther ; alguns versos do cap. III
de Daniel e os caps. XIII e XIV do mesmo Propheta, e a
prophecia de Baruch .
Diz igualmente o Sr. Arcebispo que Luthero regeitara
os livros do Velho Testamento , que acabamos demeocio
nar, mas que Calvino os aceila ; e como na citada Biblia
de Nova Yorck faltam esses livros, é conclusão inevitavel
que a tal Biblia não é calvinista. Ao mesmo tempo diz
igualmente o Sr. Arcebispo, que Luthero tambem regeita
do Novo Testamento os seguintes livros- A Epistola de
S. Paulo aos Hebreus , as Epistolas de S. Thiago e S.
Judas, a segunda de S. Pedro, a segunda e terceira de
S. João , e o Apocalypse ; mas que Calvino os aceita ; 0
que quer dizer que, estando completo o Canon do Novo
Testamento na Biblia do l'adre Almeida, segue-se que a
tal Biblia não é lutherana. De que communhão, pois,
será a tal Biblia ?
Uma Biblia traduzida na Batavia ! é cousa de que
nunca ouvimos fallar ; o Sr. Arcebispo diz , poréra , que
é impressa em Nova - Yorck ; aceitamos pois a Biblia como
diz S. Exc . , portanto damos como vista uma Biblia im
9

pressa em Nova-Yorck, com pequenas alterações, e tão


insignificantes, que não valia a pena fallar dellas.
Mas o Sr. Conego Campos não falla da Biblia de
Nova -Yorck , e sim das de Londres ; foi sobre uma Bi
blia impressa em Londres, que elle fez as suas notas
quasi conformes com as do Sr. Arcebispo ; e para que
não ficasse duvida , mais adiante o Sr. Conego se expressa
assim :
« E porventura será só a Biblia traduzida pelo Pa
< dre Almeida, que se acha falsificada, truncada e vicia
« da ? Não ; a do Padre Pereira, impressa em Londres,
« contém as mesmas falsificações, como tive occasião de
« verificar. »
O que quer dizer , que o Sr. Padre Campos verificou
por si mesmo, nas Biblias impressas em Londres , as mes
mas falsificações ou alterações, que contém a Biblia de
Nova-Yorck !
10

Pois bem, dessas Biblias impressas em Londres , pos


suimos tres edições , a saber ; uma de 1855, outra de
1858 e outra de 1864. As de 1855 e 1864 contém am
bos os testamentos ; mas a de 1858 é somente do Novo
Testamento ; tão perfeito e tão completo, como está na
edição de Lisboa de 1794, que possuimos, com todas as li
cenças e com o retrato do Principe Regente, a quem o Pa
dre Antonio Pereira dedicára essa sua segunda edição . ( 1 )
Para provar o que dizemos , apresentamos tres exem
plares das Biblias de Londres com as tres referidas da
tas, e os deixamos em exposição ao publico nesta typo
graphia, para que verifique se contém as falsidades, que
o Sr. Campos leve occasião de verificar.
As edições de 1855 e de 1864 não contém no Ca
non do Velho Testamento os livros de Tobias , Judith ,
Maccabeus , Ecclesiastico , Baruch , etc. , acima menciona
dos , mas todas tem o Canon do Novo Testamento com
pleto, sem falha de uma virgula . E como o Sr. Padre
Campos só se refere as falsificações do Novo 'Testamento ,
que foram as que elle verificou de accordo com a pastoral
do Sr. Arcebispo, pedimos-lhe que apresente tambem , ou
deixe na mesmatypographia , um dos quatorze exemplares 1

das Biblias de Londres, que possue, para convencer-nos


da sua verificação pessoal.
E' mister que o Sr. Conego prove , que se dão nas
Biblias de Londres as mesmas falsificações das de Nova
Yorck, como elle assevera . E como os livros do Velho
Testamento , que contém essas Biblias de Londres, são os
unicos que os Santos Padres e Theologos reputão funda
mentaes da nossa fé, e sobre que se apoião os dogmas
do christianismo ; e como igualmente todo o Novo Tes
tamento está completo e perfeito, segue - se que essas Bi
blias de Londres são canonicas, como adiante provaremos.
O que ha porém de singular é que, para tornar
mais baratas essas edições , e mesmo porque pouca gen
te lê o Velho Testamento, fizeram-se em Londres varias
( 1 ) O Sr. Dr. Aquinu, que possue uma rica collecção de li
vros sagrados, apresentou outras Biblias, impressas em Londres,
com as datas de 1808, 1815 e 1621. Tambem apresentou outra im
pressa em Nova - Yorck, edição stereotypica , todas perfeitas e com
pletas;

1
11

maior per
edições somente do Novo Testamento , com a maior
feição que é possivel, como se verá do exemplar que ex
pomos ao exame do publico ; e são justamente esses pe
quenos livros, correctos, legitimos e verdadeiros, con
tendo os quatro Evangelhos de Nosso Senhor Jesus Chris
to , que o Sr. Vigario Capitular mandou queimar com tan
9

to encarniçamento ! O que mais faria Satanaz ?


Em que lei se fundou o Sr. Vigario Capitular para
mandar apprehender e queimar livros, induzindo as
autoridades policiaes a commetterem um crime, como
commetterão as da Escada ? Ainda quando os livros fos
sem dos que trata o art . 278 do nosso Codigo Criminal ,
isto é , que negassem a existencia de Deus , ou a immorta
lidade da alma, sabe o Sr. Dr. Farias, que é jurisconsul
to, que para apprehendel-os, seria mister uma queixa , e
para condemnal-os um processo em regra, feito por au
toridade competente, que não é o Sr. Vigario Capitular.
E , porém , mandar apprehender, condemnar á pena
de fogo, e fazer executar essa sentença , tudo de propria
autoridade, sem a menor forma de processo ! inandar
queimar livros ! e que livros ! contendo toda a verdade
fundamental da nossa religião ; contendo emfim os qua
tro Evangelhos de Nosso Senhor Jesus Christo , é não só
um attentado contra as leis do nosso paiz , contra a auto
ridade civil , contra a liberdade de consciencia , como igual
mente um inaudito sacrilegio , um insulto a religiosidade do
nosso povo, o escandalo dos escandalos .
Pois bem , a autoridade civil que deixe ir por dian
te semelhante escandalo, que não lhe ponha côbro, e de
pois não se queixe ; salvo se pretende anarchisar esta
provincia, para fazer depois o que se praticou em 1849
e nos seguintes annos . E' verdade que esse attentado se
repete até na propria provincia do Rio de Janeiro-sua
alma , sua palma! Se o governo não aprendeu com os es
candalos , que se derão a pretexto da lei do censo, não
havemos de ser nos que o metteremos a caminho . Con
su pan se lo coma . ( 1 ) Entretanto vamos ao que importa .
( 1 ) Allusão a um communicado do Diario de Pernambuco de
11 de Dezembro ultimo .
12

ARTIGO II

Sobre os livros do Velho Testamento , que faltam na


intitulada Biblia da Nova-Yorck, e cuja regeição o Sr.
Arcebispo attribue a Luthero , nós fallaremosmais adian
te ; e então provaremos, que não foi Luthero que os re
geitou , mas sim todos os Santos Padres e Doutores da
Igreja até o V seculo da éra christã ; e ainda depois mui
tos padres e theologos não os tiveram por canonicos,
mesmo além do Concilio de Trento , que os canonisou no
seculo XVI.
Por ora vamos occupar- nos tão somente com as fal
sificações do Novo Testamento , cujo canon , diz o Sr. Ar
.

cebispo , está completo-mas os seus livros viciados a tal


ponto, que os erros pullulam por toda a parte . Parece,
pois, que não ha um só livro , um só capitulo, um só ver
so do Novo Testamento, que não esteja viciado ou alte
rado . - Será verdade, Sr. Arcebispo ?
Pois bem , em todos os quatro Evangelhos o Sr. Ar
cebispo só achou uma pequena variação ou alteração de
palavra. No cap. 1.º do Evangelho de S. Lucas, cujo
verso o Sr. Arcebispo não citou, mas que é o 28 , diz o
Padre Antonio Pereira na sua edição de 1794 (não a que
fez em 8.0 , mas a de 4.º maior em 7 volumes) o seguin
te : « Entrando pois o anjo onde ella estava, disse-lhe :
Deos te salve, cheia de graça : o Senhor é comtigo : Ben
ta és tu entre as mulheres . »
Pedimos ao Sr. Conego Campos , que vá confrontar o
texto do Padre Antonio Pereira com os das Biblias de
Londres, que deixamos expostas , para que se convença
de que é o mesmissimo, sem tirar nem por uma virgula .
Bem se vè, que não são tantos os vicios e erros, como
diz o Sr. Arcebispo, visto que nos quatro Evangelhos ,
contendo 89 capitulos , e milhares de versos, só achou uma
pequena variante , isto é, na Biblia de Nova -Yorck, que
nas de Londres o verso 28 está perfeito, e tão completo
como na do Padre Antonio Pereira.
Outro erro ou vicio, notado pelo Sr. Arcebispo na
Biblia de Nova-Yorck, é na segunda Epistola de S. Paulo
a Timotheo. S. Exc. tem um modo singular de exprimir
se que dá trabalho para achar o que elle quiz dizer, por
13

que não cita o cap. nem o verso, e apenas diz— « na se


gunda Epistola de S. Paulo a Timotheo falta-lhe a ultima
proposição . - Sobrius eslo . )
Pois bem; é o verso 5.º do cap . 4.° da citada Epis
to la , cuja traducção pelo Padre . Antonio Pereira é a se
guinte - Tu , porém , vigia , trabalha em todas as cousas,
faze a obra d'um Evangelista, cumpre com o teu minis
terio . Sé sobrio . » Rogamos outra vez ao Sr. Conego ,
que vá confrontar nesta parte o Padre Antonio Pereira
com os tres exemplares de Londres, que estão nesta ty
pographia , e verá a mais perfeita exactidão .
Diz tambem o Sr. Arcebispo, que o cap . 6 ,º dos ac
tos apostolicos da Biblia de Nova Yorck tem um verso de
mais , sendo dividido o 6.º em dous, e por isso o verso
que devia ser 22 tem a numeração de 23 . Ora aqui ha
erro, talvez de impressão, porque o cap . 6.º citado tem
sómente 15 versos, nem trata do que refere o Sr. Ar
cebispo ; portanto o Sr. Padre Campos é o culpado, por
que nem ao menos cotejou a pastoral de S. Ex. com os
seus apontamentos ou suas notas. Se o tivesse feito",
conheceria então o engano para corrigil- o .
Seja, porém , o que for, podemos asseverar desde já
ao Sr. Campos, quenão ha tal erro nem vicio nas Bibli
as de Londres. Pois bem, em todos os 28 capitulos dos
>

actos apostolicos só achou o Sr. Arcebispo um vicio que


notar na Biblia de Nova - Yorck -- logo não pullulão os
erros por toda a parte, como disse no seu preambulo.
Continúa S. Ex . « No cap . 9 v . 27 da Epistola aos
Corinthios diz S. Paulo , etc. ) Ora ha duas epistolas aos
Corinthios, porque não disse S. Ex. qual dellas ? Pois
bem , é da primeira , cuja traducção pelo Padre Antonio
Pereira , é a seguinte - Mas castigo o meu corpo , e o
reduzo á servidão : para que não succeda, que havendo
pregado aos outros, venha eu mesmo a ser reprovado. »
Ainda bem , Sr. Conego , lá estão os exemplares de Lon
dres , ide confrontal-os com o Padre Antonio Pereira , e
vereis que nem vós nem o Sr. Arcebispo , catando e es
quadrinhando as Biblias de Londres, acharáð um só erro
nem vicio, nem alteracão .
>

0 que ha, porém , de singular, é que o Sr.Arcebis


po traduzio o verso 27 da citada Epistola de S. Paulo di
14

verso do Padre Antonio Pereira, porque este traduzio


servitulem por serviilão, e o Sr. Arcebispo por escravi
dàu ! tornando assim o texto do Padre Antonio Pereira,
senão viciado, ao menos alterado ; em tanto que o mes
mo Antonio Pereira traduzio perfeitamente. -Servitu
tem por servidão, e não por escravidão , como fez o Sr.
Arcebispo ! Servitus não é servilium , posto que se pos
sa tomar a palavra servitus como escravidão no sentido
lalo. Parece que o Sr. Arcebispo quiz mostrar mais es
ta discrepancia na Biblia do Padre Almeida, que tambem
traduzio servituten por servidão, como o Padre Anto
>

nio Pereira .
No cap. 10 v . 12 da mesma Epistola aos Corinthios,
lá dizem as Biblias de Londres o mesmo que o Padre
Antonio Pereira, sem mais nem menos uma virgula.
« Aquelle, pois, que crê estar em pé, veja não caia .)
Diz ainda o Sr. Arcebispo, que Luthero e Calvino
investirão contra o sacramento do matrimonio ( sempre
Luthero e Calvino para tudo ! pobres diabos !), e por
isso falsificarão o verso 32 do cap. 5.º da Epistola de S.
Paulo aos Ephesios, pondo em lugar de Sacramento a
palavra myslerio ! Eis -ahi a traducção do Padre Anto
nio Pereira . « Este sacramento é grande, mas eu digo
em Christo , e na Igreja. )
Pois bem , Sr. Conego Campos, comparai o Padre
Antonio Pereira com as Bibliás de Londres, que ficam
expostas, e vereis que não ha nellas a menor alteração ,
nem vicio , nem falsificação ; portanto as Biblias de Lon
dres são canonicas, e não lutheranas nem calvinistas .
Quanto á falsidade da Biblia de Nova -Yorck , trocan
do a palavra sacramento pela palavra mysterio, ajustare
mos nossas contas com o Sr. Arcebispo mais adiante .
S. Ex . continuando diz , que o cap. 5.º da primei
ra Epistola de S. João é talvez o que inais falsificado se
acha, porque contem nada menos de oito alterações ;
e então cita verso por verso, comparando o que diz a Bi
blia de Nova - Yorck com a vulgata, que elle traduz, ou
serve-se da traducção do Padre Antonio Pereira, para
mostrar as modificações entre uma e outra .
De qualquer modo, o que se acha na Biblia do Pa
dre Antonio Pereira é justamente , sem um til de diffe
15

rença , o que se acha nas Biblias de Londres expostas ,


que o Sr. Conego pode comparar . Os versos citados
como adulterados ou falsificados são os seguintes -6 ,
10 , 13 , 15, 17 , 18, 19 e 20 do cap . 5.º da primeira Epis
tola de S. João , dirigida aos Parthos , segundo diz S.
Agostinho.
Podiamos copiar da Biblia do Padre Antonio Perei
ra os versos da carta de S. João , para que o Sr. Conego
Campos não tivesse o trabalho de compulsal -os em outro
lugar ; mas tenha paciencia, por quem é ; faça - o para
livrar -nos do incommodo de copial-os, e aos composi
tores de compol-os ; assim se poupa tempo e dinheiro .
Ora pois, aqui parou o Sr. Arcebispo -nem um vi
cio ou falsificação achou mais S. Ex., apezar de pullu
larem os erros por toda a parte . Eis- ahi portanto a
enormidade desses erros e vicios ; --Um nos quatro
Evangelhos , um na carta de S. Paulo a Timotheo , outro
na carta do mesmo Apostolo aos Corinthios, outro na
carta aos Ephesios, outro no cap . 6.° dos Actos aposto
licos ; isto é, cinco pequenas alterações ou modificações ;
que com oito somente na primeira carta de S. João, fa
zem treze alterações na volumosa collecção da Biblia
Sagrada !!
A verdade é . que a Biblia do tal Padre Almeida pa
rece restrictamente traduzida do original grego, donde
tambem a traduzio S. Jeronymo , e todos quantos fizerão
traducções do Novo Testamento ; visto que todo elle , a
excepção do Evangelho de S. Matheus, foi escripto nesta
lingua. Mas tambem é verdade, que o tal Padre podia
saber muito hollandez , e mesmo inglez, muito grego e
muito latim , porém portuguez, sabia- o pessimamente,
ou já se havia delle esquecido. Com effeito -gozo ha
-

jas em graça aceita-- póde ser tudo menos portuguez .


No lugar , porém , do Sr. Arcebispo (perdoe-nos S.
Ex .) em vez de condemnarmos todas as Biblias em por
tuguez, advertiriamos simplesmente aos nossos dioce
sanos, que tivessem cuidado com uma Biblia, impres
sa em Nova -Yorck, que continha alterações essenciaes
em materia de doutrina da Igreja, para que não a los
sem ou não a comprassem --isto teria sido mais chris
tão !
16

E ' singular, que existindo uma traducção portugue


za, na qual se poderião fazer todas as alterações que se
quizesse, fosse emprehendida uma nova traducção só
mente pelo gosto de fazer nella treze pequenas mudan
ças, isto é , variações no modo de traduzir ; principal
mente quando a nova traducção pecca pelo estylo , e pela
graça . Emfim , não conhecemos a tal Biblia ,> e por isso
não podemos adiantar-nos mais .
Resumamos : do que temos dito até agora segue
se : 1.º que as Biblias de Londres não contem um só
erro, ou alteração dos que notou o Sr. Arcebispo na de
Nova - Yorck ; e pur consequencia, que o Canon do Novo
Testamento na de Londres é tão perfeito como o da edic
ção de 1794 de Lisboa , e tão orthodoxo como o desta :
2.º que o Sr Conego Campos não notou , nem podia no
tar nas Biblias de Londres os mesmos vicios ou erros da
Biblia de Nova Yorck ; portanto que não foi sincero
quando asseverou , que por si mesmo teve occasiūo de
verifical-os.
Entretanto desculpamos até certo ponto o Sr. Cone
go Campos ; elle acreditava demasiado noSr. Arcebispo ,
e deduzio de si para si, que todas as Biblias deviam ter
as mesmas alterações ; e ainda seria mais desculpavel ,
se não tivesse asseverado, que as havia verificado por
si mesmo . E porem o Sr. Conego é um pouco jactan
cioso, e quiz dar de si uma prova, não da sua alta intel
ligencia , de que ninguem duvida, mas de trabalho e de
perseverança. Vá que seja.
Emfim deixemos por ora o Sr. Conego Campos, e
voltemos ao Sr. Arcebispo .

ARTIGO III

Trataremos agora dos livros do Velho Testamento ,


que faltão no Canon da Biblia de Nova Yorck .
Diz o Sr. Arcebispo da Bahia (na pastoral que o $ .
Conego copiou no seu segundo artigo do Diario de Per
nambuco de 6 de Dezembro ultimo) que Luthero regei -
tou alguns livros do antigo Testamento, como os de
Baruch, de Tobias, de Judith , do Ecclesiastico, o da
Sabedoria , e os 2 dos Macabeos ; devia tambem acres
17

centar os capitulos 11 à 16 do livro de Esther, os ver


sos de 24 a 90 do capitulo 3 de Daniel , e os capitulos
13 e 14 do mesmo Propheta .
Diz mais o mesmo Sr. Arcebispo , que Luthero tam
bem regeitára do Novo Testamento os seguintes livros :
a Epistola de S. Paulo aos Hebreos , as de S. Thiago e
S. Judas, a segunda de S. Pedro, a segunda e terceira
de S. João, e o Apocalypse . Pois bem , o Sr. Arcebis
po póde asseverar em sua consciencia, que todos esses
livros forão sempre aceilos, pela Igreja Catholica, e que
föra Luthero o primeiro que os regeitára ?
Devemos dizer, que não querendo fiar-nos somente
no Padre Antonio Pereira, procuramos uma Vulgata para
ler nella os prefacios de S. Jeronymo , tanto dos livros do
>

Velho como do Novo Testamento ; e a Vulgata, que te


mos á vista é a Xistina -Clementina da edicção de Ver
neza de 1760. Achamos algumas pequenas differenças
dos prefacios da versão do Padre Antonio Pereira , mas
isto será devido a outra edicção de que elle se servira ,
visto que não diz nem aponta qual entre tantas, que se
seguiram a . de 1592 ; isto é , a correcta pelo proprio
Clemente VIII .
Fazemos esta declaração para que o Sr. Arcebispo
saiba qual a Vulgata de que nos servimos, e possa rec
tificar por ella o que dissermos. Agora prosigamos.
Até o seculo V , todos os catalogos omittem os livros
acima mencionados -0 que quer dizer que até essa
-

epoca nenhum desses livros era reputado canonico, des


de o catalogo de Militão , Bispo de Sardes, que floresceu
a meiados do II seculo, e do que nos deixou Origines no
meio do III seculo , o de Santo Athanasio no principio, e
o de S. Gregorio Nanzianzeno a meiado do seculo IV,
até S. João Damasceno , que floresceu a meiados do se
culo VIII , todos estes Padres e theologos omittiram em
seus catalogos os citados livros, de que falla o Sr. Ar
cebispo ; e o Padre Antonio Pereira acrescenta mais
Santo Hilario (Bispo de Poitiers ), Santo Epiphanio. S.
Cyrillo de Jerusalém , S. Filastrio, Santo Amphiloquio,
Rufino de Aquilea, amigo intimo de S. Jeronymo, e o
proprio S. Jeronymo no prologo Guleato (apologetico ).
Todos esses Padres e Doutore's excluirão , uns de
3
18

seus catalogos , e outros não admittiam , como canonicos,


os livros do Velho Testamento , que não se acham nas
Biblias de Londres ou na de Nova -Yorck ; livros que
só começarão aа apparecer em alguns catalogos no se
culo V. (1) O primeiro que fez menção desses livros ( Ju
dith, Tobias, Ecclesiastico, Sabedoria , Macabeos, etc.)
foi o Papa Innocencio I em principio do seculo V --de
pois o VI Concilio de Carthago, depois Santo Agostinho,
e ultimamente o Papa S. Gelasio no fim do mesmo
seculo .
Cumpre advertir que os livros do Novo Testamento,
que o Sr. Arcebispo menciona como regeitados por Lu
thero , tambem forão excluidos dos catalogos dos Santos
Padres atéo seculo V ; seguindo igualmente a sorte dos
do Velho Testamento mencionados ;; quando não todos
juntos, ao menos destacados, como por exemplo : Origi
nes e S. Amphiloquio pôem em duvida algumas das sete
Epistolas catholicas -S. Cyrillo de Jerusalém , S. Grego
rio Nanzianzeno , e o Concilio de Laodicea omittemo
Apocalypse, etc.
Era tal a divergencia entre os Padres e theologos
dos primeiros seculos, que elles mesmos dividirão es
ses catalogos em livros proto -canonicos , e deutero - cano
nicos, ou canonicos da 1.a e da 2.a ordem . Os da 1.a
ordem, ou proto- canonicos, são aquelles livros , que to
das as Igrejas tiverão sempre por divinos sem a menor
discrepancia , e são justamente aquelles que se acham
no Canon do Velho Testamento , que trazem as Biblias
de Londres, sem um til de differença .
São igualmente da 1.a ordem, ou proto -canonicos, os
seguintes livros de Novo Testamento. -Os 4 Evangelhos
.

e osActos apostolicos ; todas as Epistolas de S. Paulo , me


nos a ultima aos llebreos ; a 1.a de S. Pedro, e a 1.a
de S. João .
São, porém , da 2.a ordem, ou deutero-canonicos,
isto é, livros sobre os quaes existio por muitos seculos
duvida de sua canonicidade, os seguintes do Velho Tes
tamento; « Baruch , Tobias , Judith , Sabedoria , Ecclesias
tico, os 2 dos Macabeos, alguns capitulos de Esther e de
( 1 ) Isto mesmo é inteiramente falso, como fica provado na
nossa segunda resposta .
19

Daniel, etc. ) ; e do Novo Testamento : cinco das sete


Epistolas catholicas , a de S. Paulo aos Hebreos, e o
Apocalypse.
Diz o Padre Antonio Pereira , que S. Jeronymo era
o primeiro a duvidar das 5 Epistolas catholicas, da Epis
tola aos Hebreos e do Apocalypse ; e que na carta a
Dardano diz, que a Epistola aos Hebreos não era ad
mittida pelos latinos, nem o Apocalypse pelos Gregos .
Ora, quando na Igreja latina se começou a abraçar os
livros deutero -canonicos do Novo Testamento , continua
rão a ser regeitados os do Velho Testamento ; o que
se conforma justamente com as Biblias de Londres, ad
mittindo o Canon completo do Novo Testamento, e regei .
tando os livros deutero- canonicos do Velho Testamento .
-Que parte teve nisto Luthero ? ( 1)
O que é certo é , que até o Concilio Florentino ( a
meiado do seculo XV), nenhuma autoridade da Igreja ha
via decidido a questão de preferencia, nem havia decre
tado o Canon dos livros sagrados ; isto é , nenhum Con
cilio ecumenico havia igualado os livros da 1.a com os
da 2.a ordem ; sendo licito portanto duvidar - se da ca
nonicidade destes , como duvidarão, e não só duvidarão,
como regeitarão -nos, como não canonicos , todos os Pa
dres e Doutores das Igrejas .Grega e Latina até o V se
culo da era christā .
O que ha de mais importante ainda é que, ao mes
mo tempo que o Papa Innocencio I , e os Concilios de
Carthago declaravão canonicos todos os livros de um e
outro Testamento , que hoje vemos canonisados pelo Con
cilio de Trento , S. Jeronymo, no preſucio dos Livros de
Salomão (attenção, Sr. Arcebispo !) disse, que os livros
de Tobias, Judith , Sabedoria, Ecclesiastico , etc. , os lia
a Igreja , mas que os não recebia como canonicos ; e isto
mesmo repetio Rutino, na exposição do symbolo , affir
mando , que os ditos livros os lia a Igreja aos fieis, como
(1 ) Luthero na sua traducção da Biblia, a mais fiel de to
da a Alemanha, e talvez da Europa , não omittio os deutero- ca
nonicos de um e outro Testamento , -pelo contrario traduzio 10
dos sem a menor excepção . A traducção completa com lúdos
esses livros apareceu pela primeira vez em 1534.
20

pios , mas não como livros, d'onde a mesma Igreja tiras


se os seus dogmas.
Ainda depois de publicado o decreto de S. Gelasio,
S. Gregorio Magno, citando um texto dos Macabeos, pre
venio aos leitores, que lhe não estranhassem citar livros
posto que não canonicos -si ex libris licet non cano
nicism
A meiados do seculo XV, fez o Papa Eugenio IV
passar no Concilio de Florença um decreto, que entre
outras cousas trazia o Canon de um e de outro Testa
mento, como fôra approvado, pouco mais de um seculo
depois, pelo Concilio de Trento . Sem embargo, Santo
Antonino, Arcebispo de Florença , que sobreviveu ao
mesino Concilio Florentino, na sua summa theologica
disse , que os livros de Judith, Tobias, Sapiencia, Eccle
siastico , Macabeos, etc. , na opinião de S. Jeronymo não
erão de tanta auloridade como os outros da Escriptura
Sagrada .
Diz ainda mais o mesmo . Santo Antonino, que S.
Thomaz, e Nicolao de Lyra (sobre Tobias) são da mes
ma opinião, isto é, que estes livros (deutero -canonicos)
não são de tanta autoridade , que se possa delles tirar
argumento efficaz nas cousas, que são de fé.
De tudo isso se deduz , que a opinião, que desses
livros fazia S. Jeronymo no século IV, era a mesma de
S. Thomaz no seculo XIII , e de Nicolao de Lyra no
seculo XIV . Ora, contemporaneo de Santo Antonino
foi o grande Bispo de Avila Affonso Tostado, o qual,
>

na prefação ao Evangelho de S. Matheus, declara que


os citados livros de Judith , Tobias, Sapiencia, etc. , os
permettia ler a Igreja, e ella mesma os lia nos seus
officios, mas que os não tem por canonicos, nem obrigu
os fieis a recebel-os. Aqui acrescenta o Padre Antonio
Pereira as razões porque a Igreja não tem por desobe
dientes os fieis, que os não recebem .
Ainda ha outro testemunho irrefragavel da não ca
nonicidade desses livros, é o celebre Cardeal Cayetano ,
que floresceu 90 annos depois do Concilio de Florença ,
no fimde seus Commentarios sobre os livros historicos
do Velho Testamento , impressos em Roma no anno de
1532. Pois bem esse cardeal excluio da classe dos li
21

vros divinos todos os livros citados do Velho Testamento .


Ainda mais , tendo o Concilio de Florença contado entre
os livros canonicos do Novo Testamento a carta de S.
Paulo aos Hebreos, o Cardeal Cayetano, no prologo dos
seus commentarios, fallando dessa carta , nega que ella
fosse de S. Paulo , ou que fosse canonica .
Frei Francisco de Jesus Maria Sarmento , no prolo
go da sua traducção ou paraphrase da Biblia Sagrada,
que foi impressa em Lisboa, com todas as licenças , no
anno de 1778 , diz que todos os livros sagrados, tanto
do Velho como do Novo Testamento, se dividem em pro
10-canonicos, e deutero-canonicos, ou da 1.a e da 2.a or
dem ; e depois de os nomear, um por um, classifica co
mo deutero- canonicos os livros de Tobias, Judith, Ba
ruch , Sabedoria , Ecclesiastico, Esther, e Macabeos do
Velho Testamento ; e do Novo , a carta aos Hebreos, as
de S. Tiago, e S. Judas , a 2.a de S. Pedro , 2.a 3.a e o
Apocalypse de S. João .
Diz mais o mesmo Sarmento , que se chamão prolo
canonicos os livros , de que a Igreja nunca duvidou, e
deutero- canonicos aquelles de que teve duvida, até que
illustrada pelo Espirito Santo os julgou canonicos ; isto
é , que a Igreja os lia , e admittia em seus officios como
Os outros .
Do que não resta duvida é que , até o Concilio de
Trento , não havia o menor accordo entre os catholicos
sobre o Canon de um e outro Testamento ; e que foi es
te Concilio quem fixou a concordancia entre os livros
proto e deutero-canonicos. Mas de que modo os fixou
elle ? qual a biblia approvada ? ou qual a Vulgata , que
devia regular dahi em diante ? Qual era a Vulgata urt
thenlica de que falla o mesmo Concilio ?
Finalmente diremos, que muitos padres dos primei
ros seculos da Igreja, como Militão, Origenes, S. Hila
>

rio , S. Athanazio , S. Cyrillo de Jerusalem , S. Epiphanio ,


e os Padres do concilio de Laodicea , omittirão em seus
catalogos os livros chamados depois deutero -canonicos ;
que S. Jeronymo, Rufino, e S. Gregorio Magno os tive
rão tambem por não canonicos ; a ponto de dizer o pro
prio S. Jeronymo, no prefacio do livro de Judith, que
apezar de haver o Concilio de Nicea contado entre os li
22

vros sagrados este livro , elle continuava a duvidar da


sua canonicidade .
Diz ainda mais o mesmo S. Jeronymo, no prefacio
do livro de Tobias, que não achando este livro no Ca
non dos Hebreos, o traduzira unicamente para obede
cer ao mandado dos Bispos (A Vulgata Xistina-Clemen
tina de Veneza , que temos á vista). Tambem pedimos
ao Sr. Arcebispo, que leia a prefação do padre Antonio
Pereira ao mesmo livro, e verá o que elle diz sobre as
contradicções dos differentes textos, e ainda mais a cri
tica de Calmet e Houbigant sobre a chronologia de To
bias.
Alem de todos esses argumentos ha para nós um
irrespondivel , e vem a ser : que no Novo Testamento es
tão citados todos os livros do Antigo Testamento cha
mados proto - canonicos, e delles se fazem allusões ; em
quanto que não se acha citado , nem mencionado , nenhum
dos livros deutero-canonicos , nem delles se faz a me
por allusão ; isto prova decididamente que o Canon
hebreo era o unico, que os apostolos admittião .(1)
Mas o Concilio de Trento declarou canonicos todos
esses livros, e somos obrigados a tel-os como taes. E'
verdade que pela carta de lei de 8 de Abril de 1569
(não achamos em nenhuma collecção das extravagantes
semelhante lei, e apenas nos referimos ao Conde de Ira
já nos seus elementos de Direito Ecclesiastico) , mandou
El-Rei D. Sebastião, que se guardasse o Concilio de
Trento em todas as suas partes ; mas não foi aceito nem
publicado em todos os estados catholicos , como diz o
mesmo Conde de Irajá , pois que só o receberão in in
tegrum dous pequenos estados (a Saboya , e outro de que
agora não nos recordamos).
E' tambem verdade, que o dito Concilio fôra publi
cado na França (o contrario diz o citado Conde de Irajá)
mas foi cassado depois em todas as suas partes por ares
tos de todos os parlamentos do reino . Felippe II, fiel á
politica de seu pai, nunca consentio que se publicasse
em Hespanha, apezar de o haver promettido solemne
( 1 ) Assim o diz clarameute o Papa Xisto V nos seus prolego
menos da Escriptura Sagrada , que vem a frente da Vulgata Xis
tina, e depois na Vulgata Xistina-Clementina, pagina 12 .
>
23

mente a Pio IV, como diz o Dr. Llorente na sua defeza


do projecto sobre a Constituição civil do Clero . Toda
a Allemanha não o aceitou nem podia aceitar; portanto
o Concilio de Trento, apezar da sua supposta ecumeni
cidade não obriga senão a uma pequena parte do povo
christão .
Mesmo em Portugal póde-se dizer, que não vigora
senão na sua sessão 24 - de reformalione matrimo
nii- . Pelo antigo direito patrio ecclesiastico nenhuma
bulla, decreto, rescripto ou breve pontificio, ou dispo
sição canonica tinha effeito em Portugal, nem obrigava
aos portuguezes, uma vez que fossem contrarios aos
>

usos, costumes, leis, emfim ao direito consuetudinario


do reino. O primeiro inconveniente foi o exercicio do
Grão -mestrado das tres ordens militares, e a extensão dos
seus privilegios e regalias, como se vê dos estatutos da
ordem de Aviz. (Tit . 5. Defin . 52) .
Não sendo pois aceito em tudo quanto podesse ir de
encontro aos privilegios das ordens militares , tambem
deixou de ter execução na parte que se opunha aos esty .
los do reino . (Vid . dec . de 3 de Novembro de 1776 ).
Ainda temos outra prova a favor da nossa opinião,
é que a 4.a sessão, que declarou canonicos todos os li
vros deutero- canonicos de um e outro Testamento, foi
julgada não ecumenica por muitos padres e theologos
de toda a Europa, porque áa ella só assistirão 5 Cardeaes
e 48 Bispos , numero insuficiente para constituir um con
cilio geral de toda a christandade. Ora , diz Palavicci
no, que esta duvida fôra proposta no proprio Concilio,
mas que nunca elle a decidira .
ARTIGO IV

O que significa, pois , o silencio do Concilio ? é que


tacitamente confirmou a opinião desses theologos ; e é
esta tambem a do mesmo Palaviccino , tanto que elle
acrescenta depois, que o Concilio não decidio a duvida,
porque para annullar a 4.a sessão , seria uister annul
lar desde a primeira , visto que para todas ellas tinha
concorrido igual numero de padres .
Ora Paulo Sarpi (Fra Paolo) , na sua historia do
24

mesmo Concilio , ainda foi mais explicito , dando lugar


a Hody para dizer na sua obra . -Dos textos originaes
das Biblias- impressa em Oxford (1705), que a sessão
4.a do Concilio de Trento , que declarou canonicos todos
os livros da Vulgata, não obrigava, porque nella não
houve numero para constituir um Concilio ecumenico ,
unico que pode obrigar os fieis a estarem pelas suas de
finições dogmaticas ,
Supponhamos a ecumenicidade da sessão 4.a ; ainda
assim varios theologos catholicos , diz o padre Antonio
Pereira na sua prefação geral , como Martianay e outros,
affirmão , que a intenção do Concilio Trindentino, no seu
catalogo dos livros sagrados, não foi declara - los todos
de igual autoridade entresi ; ( 1 ) mas declara-los capazes de
se lerem todos na Igreja, em contraposição dos apocri
phos e hereticos , porque fóra sempre està a intenção
dos Papas Innocencio e Gelasio, e dos padres d’Africa.
Mais um argumento para mostrar, que apezar da
apparente igualdade, com que o Concilio de Trento consi
derou os livros proto e deutero - canonicos , theologos
profundos, como Melchior Cano Bispo das Canarias, e
outros, disserão, que negar a canonicidade dos primei
ros fóra heresia, mas a dos segundos apenas um erro ;
proposição que o padre Antonio Pereira procura com
bater, mas somente com a sedica sentença da inspira
ção do Espirito Santo ; emquanto outros se fundão nas
tradicções da mesma Igreja, e no conceito de muitos
padres de grande autoridade.
Do que temos dito póde alguem pensar, que tam
bem regeitamos os livros deutero - canonicos. Longe
disto - os aceitamos taes e quaes decretou o Concilio
de Trento : nem vemos que para a fé importe regei
tal- os ou acceital - os, quer na opinião dos padres de
Carthago , quer como pensava o Cardeal Cayetano e ou
tros theologos modernos . O nosso fim foi provar, que
não foi Luthero o primeiro ou o unico, que os regeitou.
Luthero foi beber suas inspirações nos quatro pri
meiros seculos da Igreja, e regeitou esses livros pelas
mesmas razões porque muitos Santos Padres e Doutores
( 1 ) Isto é tanto mais verdade quanto que assim se acha dito
e confirmado na Vulgata Xistina -Clamentina ( Prolegomenos etc. )
25

os haviam regeitado. E porque os aceitou o Concilio de


Trento , igualando os livros proto - canonicos aos deutero
canonicos ? A razão principal foi porque Luthero havia
regeitado os ultimos :visto que o Concilio de Trento
fôra convocado tão somente para impedir o progresso da
reforma, condemnando as doutrinas de Luthero e de seus
sequazes ; convinha portanto approvar o que Luthero
havia regeitado. Esta foi a causa principal, e não porque
assim já o havia decretado o Concilio de Florença , como
diz Pallavicino na sua historia do Concilio de Trento.
Diz o padre Antonio Pereira que « por livros intei
ros, com todas as suas partes, » se entendem , por exem
plo, no Testamento Velho, todo o livro de Esther, como
se acha no hebreo , mas tambem os sete ultimos capi.
tulos, de cuja canonicidade tinham duvidado o Cardeal
Hugo, Nicolao de Lyra e Dionizio Cartuxo-não só todo
o livro de Daniel, como traz . o Caldeo ; mas tambem a
oração de Azarias, o hymno dos tres meninos, a histo
ria de Suzana , e a historia do Dragão , que a Vulgata to
mou do grego, etc.
Protestamos contra o que aqui diz o padre Antonio
Pereira, porque o Concilio de Trento, na sessão 4.a ce
lebrada a 8 de Abril de 1546 --Decreto das escripturas
canonicas-menciona , entre outros livros , os de Esther e
de Daniel sem commento nem addicção . Mas a Vul
gata, accrescenta o padre Antonio Pereira , assim os traz,
e é a Vulgata antiga, que o Concilio approvou . Qual
Vulgata ? É' a 2.a vez que fazemos esta pergunta ; res
ponderemos á ella mais adiante.
Tambem protesta contra o padre Antonio Pereira o
que disse Xisto de Senna na sua Bibliotheca Santa , e de
pois delle Luiz Dupin nos seus prolegomenos biblicos ;
ambos os quaes regeitam como não canonicos os ulti
mos sete capitulos de Esther, porque não se acham no
texto hebreo ; seguindo - se dahi que tambem não é ca
nonico tudo quanto falta em Daniel, segundo o mesmo
texto .
Com effeito o Sr. Arcebispo deve encontrar em qual
quer das Vulgatas, que mencionamos, depois do verso 23
do cap . 3 de Daniel, a seguinte nota ou epigraphe de S.
Jeronymo- « Quæ sequuntur in hebræis voluminibus non
4
26

reperi » “E depois do verso 90, tambem a seguinte ad


>

vertencia- « Hucusque in hebræo non habetur: el que po


suimus, de Theodolionís editione translata sunt ) -
No fim do cap . 12 do mesmo Daniel vem outra nota
ou advertencia do mesmo S. Jeronymo, que é a seguinte :
- Hucusqae Danielem in hebræo volumine legimus.
Quæ sequuntur usque ad finem libri, de Theodotionis edi
tione translata sunt > Seguem-se depois os capitulos 13
e 14, isto é , a historia de Suzana, a impostura dos sa
cerdotes de Bello, a morte do Dragão , e como Daniel se
livrou do lago dos leões, cujos capitulos foram traduzidos
da edição Theodociana .
Creio pois que S. E. não poderá provar, queesses
versos e capitulos de Daniel , traduzidos do herege Theo
docião, foram contemplados pelo Concilio de Trento , nem
que foram sempre admittidos pela Igreja até a Vulgata de
Xisto V, que os contemplou ; ainda que regeitados de novo
em todas as edições, que se fizeram da Biblia segundo o
texto hebreo .
Agora convém responder á uma pergunta , que já fi
zemos, e vamos repetir .-- Qual a edição da Vulgata, que
adoptou o Concilio de Trento , e julgou authentica ? E'
provavel que fosse a versão latina, que se attribue a S.
Jeronymo . Antes porém desta versão existiam outras
muitas , entre ellas uma , a que os padres d’Africa cha
mavam Ilalu ou Italica ; e é desta, segundo o texto grego
ou versão dos setenta , que usava a Igreja até o tempo de
S. Gregorio Magno (principio do seculo VII), em que se
começou a usar daVulgata de S. Jeronymo, que era se
gundo o texto hebreo .
E porque só então se começou a usar da versão de
S. Jeronymo, depois de tantos annos , visto que a versão
deste padre foi feita a fim do seculo IV ? Dicant Paduani !
Diz porém o padre Antonio Pereira, que a Vulgata
latina , de que fallou o Concilio Tridentino, era uma mes
cla de ambas, isto é , da Italica e da Jeronimiana . Que
ainda assim o Concilio não a considerou livre de erros ,
tanto que ordenou , que a Vulgata fosse impressa o mais
correctamente que fosse possivel á diligencia humana
emendatissime imprimatur. – Logo achou o Concilio, que
na Vulgata haviam corruptelas, de que era preciso ex
27

purgal -a. Foi isto o que fizeram os dous Papas Xisto V


em 1590 , e Clemente VIII em 1592.
Milhares de emendas foram então feitas, addições e
alterações, e tão escandalosas, que o mesmo Antonio Pe
reira as aponta em varios livros do Velho Testamento .
Estas emendas tiveram ainda outra razão , e era o que
disse Santo Agostinho-que quando na Sagrada Escrip
tura se encontra alguma cousa, que pareça falsa ou ab
surda, não se deve isto attribuir ao autor do livro, mas
a erro do codice ou do interprete . Eis ahi porque se
fizeram milhares de emendas, onde se julgava que havia
erro de interprete ou de copista .
Abramos um parenthesis por em quanto, e peçamos
ao Sr. Arcebispo licença para uma pequena reflexão, e
vem a ser : que o Concilio de Trento, approvando a Vul
gata, mandou - a sem embargo corrigir. Pio IV nomeou
para isto uma commissão, mas foi Xisto V quem , 23 an
nos depois , fez as correcções, e publicou uma nova Vul
gata com o seu nome. Esta Vulgata foi acompanhada
de uma Bulla, dizendo que as correcções tinham sido
feitas pela sua propria mão ; e ordenando, em virtude
do seu poder apostolico, que fosse esta edição comoau
thenticada pelo Concilio de Trento ; e que dahi por dian
te nada fosse alterado sob pena da indignação do Omni
potente Deos , e dos Santos Apostolos Pedro e Paulo .
Aqui para nós , Sr. Arcebispo, que ninguem nos ou
ça . Immediatamente houve um clamor geral contra a
edição Xistina , e dous annos depois Clemente VIII , ape
zar da indignação de Deos e dos dous Santos Apostolos,
fez aquella mesma edição duas mil emendas ou correc
ções, algumas em contradicção com as de Xisto V ; e
esta nova edição foi acompanhada de outra Bulla , revo
gando a de Xisto V, sem se importar com a ira de S.
Pedro e de S. Paulo.
Era preciso salvar pois as apparencias, e Bellarmino
attribuio os erros da edição Xistina ao impressor-mas
Lamoy provou, que as contradicções palmares de ambas
as edições eram devidas aos dous papas mencionados ,
porque ambos declararam que as taes edições se tinham
feito debaixo de suas vistas . Feita esta reflexão, de que
28

pedimos perdão ao Sr. Arcebispo, voltemos ao fio do


nosso assumpto.
Qual a parte da Vulgata actual, que pertence a S.
Jeronymo, qual a parte da Vulgata antiga chamada itali
ca ? S. Jeronymo diz que não traduzio os livros da Sa
bedoria, nem o Ecclesiastico , nem Baruch , nem os Ma .
cabeos, isto é , parte dos livros deutero -canonicos, os
quaes são da Vulgata anliga sem a menor duvida . Estas
contradicções causaram à S. Jeronymo muitos dissabo
res pelas acres censuras, que soffreu a ponto delle mesmo
declarar, que uma cousa era ser propheta e outra inter
prete. O proprio S. Agostinho , tão seu amigo, lhe de
clara em suas cartas , que o não tinha por autor infal
livel .
0 que
ainda é mais notavel é que a mesma Igreja lia
Daniel , segundo a versão de Theodocião, que era um he
rege ebionita (isto é , que negava a divindade de Jesus
Christo .) Pelo que fica dito vê- se , que a versão antiga ou
ilala não tem melhores fóros que a de S. Jeronymo, e 9

que o Concilio de Trento não considerou a Vulgata como


uma versão inspirada . Muitos padres se julgaram habi
litados para fazerem novas versões, uns segundo o texto
grego dos setenta, e outros segundo o texto hebraico do
Velho Testamento. No principio do seculo XVI , até a
reunião do Tridentino , nada menos de 5 Vulgatas appa
receram ; a quinta em 1542 de Izidoro Claro, que foi
Bispo de Fulgino, continha para mais de oito mil correc
ções nos sagrados textos .
Qual é pois a Vulgata authentica? Supponhamos que
foi a primeira , que se imprimio em Moguncia no anno de
1462, e successivamente reproduzida até a edição de Ve
neza de 1478. Assim seja ; mas para que mandou o
Concilio emendal-a ? porque a emendaram os Papas Xis
to V e Clemente VIII ? Entretanto que uma junta de car
deaes, do seio do mesmo Concilio, declarou que a nin
guem era licito contradizer a Vulgata nem n'uma syllaba,
nem ri'uma letra ! Quem entende pois semelhante moxi
nifada ? Xisto V , publica uma Biblia, correcta por elle ,
em 1590 ; dous annos depois Clemente VIII publica outra
com novas correcções ! Qual é hoje a Vulgata authentica
do Concilio de Trento ?
29

De maneira que desde Pio IV, que confirmou o Con


cilio de Trento, concluido a fim de 1563 , e successiva
mente Pio V , Gregorio XIII , até Xisto V, todos esses Pa
pas se empenharam em dar ao povo christão uma Biblia
correcta, empregando para isto os padresmais doutos da
Europa ; e sem embargo, publicada a Biblia em 1590,
logo fóra denunciada a Gregorio XIV (porque Urbano
morreu logo), como cheia ainda de mil imperfeições ;
pelo que o mesmo Gregorio XIV mandou , que a edição
Xistina fosse novamente vista e correcta ; nomeando para
isto uma commissão de cardeaes e padres os mais illus
trados . E como o pontificado de Gregorio durou apenas
um anno, Clemente VIII fez todo o empenho de continuar
aquella tarefa ; e supprimindo a edição de Xisto V , fez
publicar outra edição (1592) emendada em mais de dous
mil lugares ; não com o nome de Clemente VIII, mas
com o mesmo de Xisto V.
Nesta edição, que se ficou chamando Xistina-Clemen
tina , declarou Clemente VIII por um Breve, que seria
aquella por onde, d'ahi em diante, se fariam novas im
pressões da Vulgata . Em 1602 Francisco Lucas mandou
ao cardeal Bellarmino um livro, em que tinha compilado
todas as emendas e alterações, que os correctores roma
nos tinham feito na Vulgata , e chegavam a muitos milha
res ! (1 ) e ainda apontava outros muitos lugares nos 4
Evangelhos, que de novo se podiam emendar na fé de
muitos manuscriptos gregos e latinos , que tinha con
sultado .
D’ahi deduzem os theologos escripturarios, que os
papas e os Concilios podem mandar fazer todas as emen
das ou alterações na Biblia , que julgarem convenientes ,
uma vez que sejam conformes com os codices mais auto
risados na opinião dos mesmos theologos e padres da
Igreja catholica . E todavia qual é a Vulgata authentica ?
Quando errassem os thologos que regeitam os livros de
Tobias, Judith , Sabedoria, Ecclesiastico, etc. , erravam
com todos os padres da Igreja até o seculo V , e dahi por
diante com papas e theologos da primeira ordem até o
Concilio de Trento, e ainda depois.
( 1 ) Oitenla e lantas mil .
30

Bem vêdes , Sr. Arcebispo , que nessa luta travada


na Igreja, desde os seculos apostolicos até quasi os nos
sos dias, sobre os livros proto e deutero canonicos , não
entrou para nada Luthero , nem foi o primeiro nem o unico
que os regeitou. Bem védes igualmente , que ha muito
boas razões por ambas as partes ; mas quando vemos S.
Jeronymo (o doutor Maximo) , S. Gregorio Magno e ou
tros, declarando que consideram os citados livros não
canonicos , não seremos nós (nem vós, Sr. Arcebispo ! )
que os condemnaremos por isto .
ARTIGO V

Continuaremos ainda com o Sr. Arcebispo , pelo res


peito e veneração, que nos merece.
Diz S. Exc. que não prohibio a leitura da Biblia ; mas
declara que o saber ler não è sufficiente para que qual
quer pessoa esteja habilitada a penetrar o sentido dos
livros santos . Entretanto o cardeal Pallavicino (na sua his
toria do Concilio de Trento ) refere, que no anno de 1546
o cardeal Pacheco, bispo de Jaen, requerendo no Con
cilio de Trento , que se prohibissem todas as versões da
Escriptura nas linguas maternas de qualquer paiz , ( 1)
allegando para isto a praxe da Hespanha, que elle dizia
ter sido approvada pelo papa Paulo II , o cardeal Madrucci,
bispo de Trento , lhe respondera que, quando se tratava
de ver se uma lei era conducivel (util) ou não conducivel,
podia errar qualquer Summo Pontifice ; mas que S. Pau
lo não podiaerrar quando na pessoade Timotheo exhor
tava todos os fieis a ler as sagradas letras (Prefação
geral . )
( 1 ) Vêde o erro manifesto de semelhante prohibição no se
guinte trecho do padre Autonio Pereira (Pref . geral, p. 69) – « No
reinado de Luiz XIII tinha o cardeal de Richelieu encommendado
umanova versão franceza da sazrada Biblia a tres theologos de Pa
ris, Emeri , Daultrui , e Habert , afim de que por este meio se fa
cilitasso aos Calvinistas daquelle reino a sua reversão para a igre
ja catholica . Porque, por experiencia tinha alcançado o cardeal,
que um dos obstaculos, que detinham na heresia a muitos Hus
gonoles era a prohibição da Bibliu em vulgar, em que muitos bis
pos , e a mesma universidade, de tempos a tempos insistiam com
)
rigor .». E porém , isto que importa ! os taes catholicos parecem
apostados a darem com o christianismo em pantana !!
31

Perguntamos nós , se ha um só povo na Europa,


mesmo na Asia , e até mesmo na Africa, e ultimamente na
Oceania , que não tenha uma ou muitas versões da Biblia
em vulgar ? Pois bem , não é só nas linguas cultas e mo
dernas da Europa , mas nas antigas e barbaras, como a
dos Coptos , Indios , Ethiopes , Syrios, Sarmathas, Arme
nios , Arabes , Persas que se acham traducções da Biblia ,
e de todas ellas ainda hoje existem codices impressos ou
manuscriptos. A terra estava cheia das doutrinas dos
profetas e dos apostolos, dizem S. João Chrysostomo na
sua primeira homilia sobre o Evangelho de S. João ; e
Theodoreto, seu discipulo , no seu 5.0 livro-de como se
devem curar as paixões dos gregos.
De sorte que o Sr. Arcebispo considera ainda hoje
os brazileiros abaixo dos Egypcios , dos Sarmathas, dos
Etyopes e dos Armenios, para que não possamos ler nem
entender os Evangelhos de Nosso Senhor Jesus Christo ,
pregado aliás á infima classe da sociedade, ao povo igno
rante e safaro da Galiléa e da Samaria ! Deixai , Senhor,
que o povo leia por si os Evangelhos de Nosso Senhor
Jesus Christo , jáque não ha quem os leia para elle ou
vir ; já que não há quem lh'os explique . Deixai, que o
povo aprenda por si mesmo a palavrade Deos vivo, pai
do genero humano ; que aprenda na sua fonte legitima
a amar a Deos sobre todas as cousas e ao proximo como
a si mesmo, visto que ninguem lh'o ensina .
Vêde, Sr. Arcebispo, que Jesus Christo fallou sem
pre ao baixo povo nessa linguagem simples, clara e con
cisa ; as vezes vehemente como o furacão, outras suave
e branda como a aura matutina. Recordai os caps . 5, 6
e 7 de S. Matheos, que encerram o famoso discurso cha
mado da montanha, e vede se ha igual entre os maiores
oradores da escola moderna ! Porque duvidais , Senhor,
da unção e da efficacia da palavra de Deos ? Porque du
vidais da fé humana, que é a fé do povo ? Porque será
mister, que um padre ignorante, até da sua propria lin
gua , venha explicar-me as sagradas escripturas, que tan
tas vezes tenho lido nos textos mais antigos ? Pois não
vos bastará a autoridade de S. Lucas (cap. 16 v . 29) ,
Actos apost. (cap . 17 v . 11 , ) 2.a Epistola a Timotheo
(cap. 3 v . 15) ?
As cartas dos apostolos foram indistinctamente diri
gidas aos povos (homens e mulheres ) ; S. João dirige a
sua segunda carta á Sephora Electa e a seus filhos , como
prova de que nem as mulheres são inhabeis para se lhes
communicar por escripto a palavra de Deos. Para que
ninguem se julgasse inhibido de ler, ou de ouvir ler as
cartas, que os apostolos escreviam a esta ou aquella igre
ja, requer S. Paulo da parte de Deos aos de Thessalonica ,
que façam ler a sua primeira carta a todos os irmãos ; e
aos Colossenses diz igualmente que , depois de lida por
elles a sua carta , fizessem que tambem a lessem os da
igreja de Laodicea .
A este respeito ainda é mais explicito o padre Anto
nio Pereira no seguinte trecho, fallando da utilidade que
todos podem tirar da lição da Escriptura Sagrada .
a Ora, se os apostolos , inspirados pelo Espirito
Santo , queriam e mandavam, que todos lessem as suas
cartas : homens e mulheres, grandes e pequenos , eccle
siasticos e seculares, quem pode duvidar, que a toda
classe de pessoas, de um e outro sexo, é de summa uti
lidade a lição das Sagradas Escripturas ? Se quando a fé
dos professores do christianismo estava tenra , e como
em leite, julgavam estes primeiros mestres da religião,
que nenhum damno lhes podia causar, mas que antes
contribuiria muito esta lição para os confirmar na mesma
fé, e para excitar em todos elles a piedade e o amor de
Deos : que perigo pode haver hoje na lição dos Evangelhos,
e cartas dos mesmos apostolos ; quando a fé se acha tão
arraigada no coração de todos os verdadeiros catholicos
romanos ; e quando as divinas letras se acham tão expla
nadas nos escriptos de tantos Santos Padres, e nos com
mentarios de tantos expositores doutissimos ? )
Quasi toda a doutrina dos Evangelhos foi dirigida
por Jesus Christo ao baixo povo, de que elle sempre an
dava acompanhado. Quem dira , porém , accrescenta o
mesmo Antonio Pereira, que a plebe judaica era mais ca
paz, e estava mais bem disposta para ouvir a palavra do
Filho de Deos , do que está hoje o povo christão ? Eram
os judeos, e podemos dizel-o , segundo, uma allegoria de
S. Paulo (Galatas , cap . 4, vrs. 22 a 24) os filhos de Agar,
.

mulber escrava, que figurava o Testamento Velho ; os


33

christãos , porém , são os olhos de Sara , mulher livre,


que figurava o Novo Testamento . Como é crivel, que se
negue aos christãos o que se concedeu aos judeos ; ou
que os filhos do Novo Testamento tenham menos parte
nos mysterios de Deos, do que os filhos do Velho Tes
tamento ?
Todos os antigos padres igualmente concordam em
aconselhar a lição das Escripturas a toda qualidade de
pessoas , sem exceptuar as do sexo feminino . S. Jero
nymo considerava de tanta importancia , e tão geralmente
util a lição das Escripturas , que até as donzellas e me
ninas de tenra idade aconselhava com empenho. Eis ahi
como o Santo Doutor dá a Leta instrucções, como ha de
educar sua filha Paula .
a Aprenda primeiramente o Salterio . Sejam estes os
canticos, com que se divirta o seu animo. Tire dos pro
verbios de Salomão os preceitos de bem viver. Costu
me-se a desprezar o mundo pela lição do Ecclesiastes.
Sirva -lhe o livro de Job de exemplo de virtude e de pa
ciencia . Depois passe a ler os Evangelhos, os quaes nun
ca lhe devem sahir das mãos. E beba com toda a ap
petencia do seu espirito os actos e cartas dos apostolos.
Em outra carta, dirigida a Gaudencio , o mesmo San
to Doutor se exprime da seguinte maneira : « Quando a
menina chegar aos sete annos , e começar a ter pejo , e a
fazer reparo no que falla, aprenda de cór o Salterio ; e
d'ahi, até os annos da puberdade, faça thesouro do seu
coração os livros de Salomão , os Evangelhos, os aposto
los e os profetas.
S. João Chrysostomo disse ainda mais , na sua ho
milia 2.a « Eu não sou monge, dizeis vós ; tendes mu
lher e filhos , e casa de que cuidar. E' uma peste o cui
>

dardes que a lição das Divinas Escripturas é só para os


monges, quando é mais necessaria a vós do que a elles ;
porque os que andam no mundo, e recebem feridas,
estes são os que mais necessitam de remedio . ) - () mes
mo Santo , na sua homilia 9.a diz o seguinte : -- « Ouvi
todos vós, que viveis no mundo , e tendes a vosso cargo
mulher e filhos, como tambem a vós manda o apostolo
ler as escripturas, e isto com grande cuidado o dili
gencia . »
.
34

O padre Antonio Pereira accrescenta, que S. João


Chrysostomo aconselhava com igual efficacia a lição das
-

sagradas letras na homilia 3.a , e no procmio sobre a epis


tola aos romanos , que a igreja manda ler todos os annos
no 2.0 nocturno da 2.a dominga depois da Epiphania.
Ora, até aqui temos provado que os mesmos apos
tolos e Santos Padres recommendaram , que os fieis lessem
as Escripturas Sagradas , tanto do Novo como do Velho
Testamento . . Mas o Sr. Arcebispo quer que não se pos
sam ler as escripturas sem annotações e interpretações,
ou sem notas explicativas do texto . Muito bem , Sr. Ar
cebispo ; lêde agora o que diz a este respeito o proprio
S. João Chrysostomo na citada homilia 9.a
« Não esperes outro Doutor ! ou outro mestre ! Tens
as palavras de Deos - ninguem te ensina como ellas !
Ouvi todos, os que tendes á vossa conta as cousas desta
vida ; e ponde promptos para o vosso uso uns livros,
que são o remedio da alma . Quando não queiraes ou
tros, tende se quer o Novo Testamento ; os Evangelhos,
os actos dos apostolos, que são uns mestres a toda hora. »
Seguindo pois este preceito temos comprado , e dado
á pessoas do nosso conhecimento, livros contendo so
mente o Novo Testamento , de uma edição de Londres de
1858 ; mas depois de cotejados, e comparados com a
edição do padre Antonio Pereira, sem que lhes falte uma
virgula . Talvez nos dirão que erramos, más erramos
com S. Jeronymo , e S. João Chrysostomo, com esses dous
famosos padres, um da igreja latina , e outro da igreja
grega ; assim como poderiamos tambem chamar em nosso
auxilio a igreja da Africa, se tanto fosse preciso .
Ainda assim ,apezar de S. Jeronymo e de S. João Chry
sostomo, desejariamos perguntar ao Sr. Arcebispo : quem
foi o interprete ou annotador de Jesus Christo, quan
do elle pregava ao povo rude e ignorante da Judéa ? Quem
ou quaes foram os annotadores ou interpretes das cartas
de S. Paulo , de S. João , de S. Pedro , de S. Thiago e S.
Judas ? Qucm explicava aos Romanos, aos llebreos, aos
Corinthios e aos Colossenses, e a Tito e a Timotheo , o que
lhes dizia em suas cartas o apostolo das gentes ? E se
esses povos e esses individuos as entendiam perfeita
mente, porque não as entenderemos nós outros, povos
35

muito mais civilisados e já amestrados nestas doutrinas


por uma tradicção de 19 seculos ?
Agora, Sr. Arcebispo, dizei-nos , porque nos rebai
xaes tanto ? Porque nos haveis de collocar abaixo dos ju
deos do começo da era christă , desses judeos , de quem
os romanos tinham tanto asco ? Porque nos suppondes
tão estupidos, que nem a palavra de Deos possamos com
prehender ? Porque nos haveis de privar do sal da vida ,
do unico alimento do espirito , que é a Escriptura Sa
grada, no dizer de todos os Santos Padres e Doutores da
igreja ?
Dai-nos , pois, o Evangelho como Jesus Christo o
pregou ; dai-nol-o simples e puro como Elle o annun
ciou, sem mancha de autoridade humana , que o pollua ,
porque Deos em pessoa , Deos de viva voz não necessita de
interprete — é uma blasphemia dizel- o .
ARTIGO VI

Passemos agora a outro ponto mais delicado. Diz


o Sr. Arcebispo que Luthero e Calvino investiram contra
o Sacramento do Matrimonio ; e como entre os monu
mentos da antiguidade christă, que attestam que Nosso
Senhor Jesus Christo elevou o contracto matrimonial á
dignidade de Sacramento, está em primeiro lugar o Ora
culo de S. Paulo na epistola aos Ephesios (cap. 5 , v . 32) ,
os falsificadores da Biblia viciaram a traducção deste texto .
O Apostolo, continúa o Sr. · Arcebispo, depois de
haver traçado a obrigação dos casados, conclue dizen
do : - «Sacramentum hoc magnum est, ego autem dico
in Christo et in Ecclesia , ) --O que quer dizer, ou diz
a traducção do padre Antonio Pereira —- «Este Sacra
-

mento é grande, mas eu digo em Christo e na Igreja .»


- Na Biblia porém de Nova - Yorck acha -se assim tradu
zido o mesmo texto : « Grande é este mysterio, etc. )
Então diz o Sr. Arcebispo , que esta alteração foi para
desviar a idea de Sacramento, que o texto sugere, e por
este modo atenuar a autoridade do Apostolo .
Antes porém de entrarmos no amago da questão) ,
diremos que todo o Novo Testamento foi escripto em
grego, a excepção do Evangelho de S. Matheus, unico
36

escripto em hebraico ; que a propria Epistola de S. Pau


lo aos Romanos foi escripta em grego, apezar de saber
o Apostolo perfeitamente a lingua latina, pelo que fora
criticado em seu tempo ; que a traducção da Vulgata,
na parte do Novo Testamento, foi feita do proprio texto
grego ; nem havia outro porque era o texto original.
Pois bem, no texto grego de todo o Novo Testamen
to se encontra vinte e sete vezes a palavra Mysterion. S.
Jeronymo (foi elle ? vá que seja ), traduzio dezanove ve
zes a citada palavra Mysterion por mysterium , e em oi
to lugares por Sacrumentum ! " Ora, porque traduzio S.
Jeronimo a mesma palavra por mysterium a maior par
te das vezes, e por Sacramentum somente algumas ve
3

zes ? Póde o Sr. Arcebispo asseverar que fora S. Je


ronymo o traductor infiel, que fizera semelhante altera
ção, visto que era impossivel que outro qualquer a ti
vesse feito até fins do seculo IV ?
Desde o segundo seculo começarão a apparecer
traducções dos livros sagrados ; Santo Agostinho diz
que no seu tempo erão varias as versões, além da Itali
ca adoptada pelos padres d’Africa. Mas nenhuma del
las podia trazer a variante de Mysterio para Sacramento ,
visto que os dous primeiros Sacramentos forão institui
dos pela Igreja justamente a fins do seculo IV ou prin
cipio do V: e alguns dizem que muito depois .
A palavra Sacramentum é puramente latina, e sig
nificava juramento ; e era especialmente applicada ao
que nos chamamos juramento de bandeiras --isto é, o
juramento que prestava aquelle que se alistava na mili
cia .. A palavra grega mysterion não podia portanto sig
nificar Sacramento, nem a palavra latina Sacramentum
tinha a significação que hojë se lhe dá, isto é , signal
sensivel de um effeito interno e espiritual, que Deos
opera nas nossas almas , como a regeneração, e a remis
são dos peccados , o dom da graça e do Espirito Santo .
Quando pois se fez aquella alteração , quando foi
substituida na Vulgata a palavra mysterium pela palavra
Sacramentum em oito lugares ? talvez no sexto ou se
timo seculo , talvez muito depois. Nós appellamos para
o Sr. Arcebispo : a lingua grega lhe deve ser muito fa
miliar, visto que é um grande theologo ; pois hem , com
37

pare o texto grego de S. Paulo, e veja se o padre Al


meida o falsificou, traduzindo neste lugar a palavra
mysterion por mysterio , como em dezanove vezes o fez
o proprio S. Jeronimo, e em vinte duas vezes o padre
Antonio Pereira .
Entretanto vejamos como o mesmo padre Antonio
Pereira entendeu o texto grego , apezar da versão latina
da Vulgata , que devia ter presente, e que lhe servio de
texto para a sua traducção . Pois bem , das vinte e se
te vezes , em que aparece no texto grego do Novo Tes
tamento a palavra mysterion , o padre Pereira truduzio
vinte duas vezes (a Vulgata latina somente dezanove ve
zes) a palavra mysterion por mysterio , uma vez tradu
zio segredo , e somente em quatro lugares traduzio Sa
cramento , e porque ? Com effeito , como traduzir a
>

mesma palavra por dous differentes modos, e tão diffe


rentes, que transtornam completamente o sentido da ora
ção ? Vejamos.
Na traducção do padre Antonio Pereira da 1.a car
ta de S. Paulo a Timotheo (cap. 3 v . 16. ) acha-se o
seguinte : « E visivelmente é grande o sacramento de
piedade ; com que Deos se manifestou em carne ; foi
justificado pelo Espirito , foi visto dos Anjos , tem sido
pregado aos gentios , crido no mundo, recebido na glo
ria . ) Agora perguntamos nós - qual é o sacramento
-

da piedade, quem o instituio ? O que é manifestar -se


em carne senão o mysterio da Encarnação ; e quem
fez desse mysterio um sacramento ?
Agora porém substituamos no mesmo lugar em vez de
sacramentoa palavra mysterio, e teremos o sentido com
>

pleto de todo o verso ; porque foi na realidade um mys


terio da Sabedoria Divina tudo isto que refere o Aposto
lo ; isto é , o mysterio da Redempção, desde a encarna
ção até a Ascencão de Nosso Senhor Jesus Christo.
Sempre ouvimos dizer mysterio da Encarnação , mas
nunca sacramento , que a propria Igreja desconhece !
Ainda outro exemplo -na carta aos Ephesios cap .
-

3 acha-se assim traduzido o v . 3 - - Posto que por re


velação se me tem feito conhecer o sacramento, como
acima escrevi em poucas palavras . » --Ora, nos dous
primeiros capitulos não fallou o Apostolo de sacramento
38

algum, nem de cousa que se referisse a sacramento na


accepção da palavra , como entende a Igreja ; apenas
falla da Redempção, que é outro mysterio e não sacra
mento .
Substituí agora a palavra Sacramento por mysterio,
e vereis como fica completo o sentido ; e vem a ser que
por revelação se lhe fez conhecer o mysterio como áci
ma escreveu ; isto é, o mysterio da Redempção, descri
>

pto nestas palavras (cap . 2 v . 1 ) « E elle " é quem vos


deu a vida quando vós estaveis mortos pelos vossos de
lictos e peccados . » De sorte que por essas miseraveis
substituições se desvirtua todo o sentido do Apostolo , e
se perverte a sua doutrina ! que miseria, Sr. Arce
bispo !
Prova tanto mais que o Apostolo , no citado cap . 3 ,
v . 3 da carta aos Ephesios, não usou da palavra sacra
mento , mas da palavra mysterio , quanto que o mesmo
Apostolo completa o seu pensamento no v . 4 immediato ,
dizendo - Onde , pela lição podeis conhecer a intelli
gencia, que tenho no mysterio de Christo . » Logo foi
desse mysterio, e não de sacramento , que fallou S. Pau
lo no verso anterior. Isto Sr. Arcebispo é mais claro
que a luz meridiana .
Vá mais outro exemplo - na mesma carta de S.
Paulo aos Ephesios (cap. 1 , v . 9) lê -se na Vulgata o se
9

guinte : -Ut notum faceret nobis sacramentum volun


tatis suæ, etc.). Aqui não pode dar -lhe volta o padre
Antonio Pereira e traduzio assim -cafim de nos fazer
conhecer o segredo da sua vontade, etc. Pelo menos ha
senso commum na traducção do padre Antonio Pereira,
porque mysterion em grego tambem significa segredo ;
mas sacramento , Sr. Arcebispo ! onde está o sacramen
to da vontade, quem o instituio ?
Agora vos pedimos, Sr. Arcebispo , que leais a
nota (g) que vem na Vulgata abaixo deste mesmo ver
so, e que o padre Antonio Pereira não traduzio, nem
se refere á ella , contentando - se com somente corrigir
a estupida alteração da Vulgata . A nota , que é exten
sa , começa assim : - Adeo ut nobis notum fecerit ar
Cunum , seu mysterium illud, quod a sola ejus voluntate
pendebat, etc. ) Vede pois como a nota veio corrigir
39

a alteração do texto , declarando que se deve entender


por segredo ou mysterio o que no citado verso se lè sa
cramento !!!
Do mesmo modo fallou S. Paulo pa dita carta aos
Ephesios (cap . 5.v. 32) , que o padre Antonio Pereira
traduzio da seguinte maneira :-Este sacramento é gran
de, etc. , ) --No texto grego se diz mysterion em lugar
de sacramentum, que traz a Vulgata ; e mysterion, nos
diccionarios gregos, que consultamos, significa myste
rio , segredo , ceremonia secreta , doutrina secreta (po
litica ou religiosa) , cousa incomprehensivel, ou difficil
de explicar ; mas não sacramento, que era cousa des
conhecida em tempo de S. Paulo , e sobre tudo na lin
gua grega .
E porque traduzio o padre Antonio Pereira por sa
cramento a mesma palavra que 22 vezes traduzio por
mysterio ? A razão é clara : o padre Antonio Pereira
era clerigo catholico, e achou que não devia alterar um
texto, posto que falsificado, que servia a Igreja de fun
damento para um dos seus dogmas . Mas isto não quer
dizer, que S. Paulo não usou da palavra mysterio, e que
os que traduzem a palavra mysterion por mysterio com
mettem uma falsificação; pelo contrario é a Vulgata que
falsificou o texto de S. Paulo, e o padre Antonio Perei
ra não teve outro remedio senão reproduzir a falsifica
ção da Vulgata .
Como provaes, Sr. Arcebispo, que errão os Ellenis
tas que traduzem o v . 32 do cap . 5 da carta aos Ephe
sios.-
« Este mysterio é grande , etc., D em lugar de
« Este sacramento é grande, etc. » ? Como provaes que
a palavra grega mysterion significa umas vezes myste
rio , outras segredo, e outras sacramento ? S. Paulo
quiz fallar do mysterio , em virtude do qual o homem
deixa pai e mãi para unir-se a sua mulher, vindo a fi
car assim dous em uma mesma carne ; e então exclama
-este mysterio é grande .
Se a Igreja entende que, para apoiar a instituição
do sacramento do matrimonio, convém pôr na bocca de
S. Paulo cousas que elle nunca disse, faça - o muito em
bora ; mas não crimine a quem se cinge ao texto original ,
e traduz o que verdadeiramente disse o Apostolo . Ninguem
40

emfim provará que S Paulo, nem neste, nem nosluga -


res citados , deu á palavra mysterion outra significação
que a de mysterio ou cousa ardua e difficil de compre
hender .
Entretanto cumpre-nos declarar, que tudo isto que
>

temos dito só serve para provar, que Luthero e Calvino


tiverão tanta parte nessas alterações, como na exclusão
dos livros deutero -canonicos do antigo Testamento .
Agora só nos resta pedir ao Sr. Arcebispo , que ve
ja neste nosso artigo tão somente uma discussão littera
raria , sem attribuir a erro de fé o que possa ser da nos
sa intelligencia . Para nós temos uma fé robusta nas
Escripturas ; tanto que fóra dellas não admitlimos outra
discussão. A historia, a legislação e a moral começa -
ram com o Velho Testamento ; a primeira idéa de Deos
é bebida no Pentateuco .
Jesus Christo modificou a legislação e a moral , e
mudou a face do mundo pela igualdade, liberdade e fra
ternidade, principios desconhecidos nos livros antigos .
Com o Novo Testamento começou outra era , a da idade
media , durante a qual a doutrina de Jesus Christo foi
posta a prova entre a bigorna e o martello ; mas , ape
zar de moída, nunca a poderão delir. Hoje ella trium
pha apezar da reacção, e creio que o mundo será salvo
quando o Evangelho fôr a unica lei do genero humano.
ARTIGO VII.

Vamos agora occupar-nos com o Sr. Conego Cam


pos , a quem ainda devemos uma resposta.
Quanto ao seu primeiro artigo, visto que já nos
>

occupamos do segundo , em que vem envolto o Sr. arce


bispo , temos pouco que dizer. Louvamos o seu ardi
mento , tomando a si a causa da religião , que mais que
nunca precisa hoje de defensores habeis e valentes ; em
cujo caso ninguem mais habilitado ; e tanto que se não
intimida de tomar -se corpo a corpo ( são suas proprias
palavras ) com os erros do protestantismo, visto que a
simples leitura da Cartilha habilita a pulverisal-os.
Depois deste preambulo galeato, justifica a sua re
solução com um artigo, que transcreve de um jornal pro
41

testante publicado no Rio de Janeiro , e em seguida diz


que assentou mostrar que as Biblias, que por ahi se
vendem estão eivadas de enormes falsificações ; portanto
convinha não facilitar a sua leitura a uma população ca
tholica para não perverte- la ; ainda quando lhe não fosse
vedado pelo poder competente o ler, ainda mesmo a Bi
blia verdadeira desacompanhada de glosas e commenta
rios . Depois seguem -se algumas prelecções contra o
protestantismo , fazendo a comparação entre a doutrina
de Luthero e a da Igreja ; e acaba por mostrar -nos a
amisade intima, que tinha Luthero com o diabo, tanto
que já tinham comido juntos á mesa mais de meio al
queire de sal ; até que afinal casou - se Luthero com a
freira Catharina !!
Pois bem, de tudo isto deduzimos nós, que o protes
tantismo é uma peste, e Luthero um padre devasso !
De accordo , Reverendissimo Sr. Conego, estamos de per
feito accordo.
Nada temos que dizer sobre as suas prelecções con
tra o protestantismo, porque não somos protestantes , e
por consequencia não nos cabe a defesa de seus dogmas
ou principios. Aceitamos a Reforma como um facto
providencial, como um facto consumado , e nada mais ;
e a Luthero como o instrumento de que se servio a
Providencia Divina para realisar este seu alto designio .
A providencia Divina nunca erra : escreve sempre certo,
ainda que seja por linhas tortas - escolheu para caudilho
de uma das maiores revoluções do mundo moderno o
homem , que mais convinha - eis ahi Luthero !
Vamos pois as condições , que requeria semelhante
empreza : instrucção acima da vulgar, ambição illimitada,
audacia desenfreada, vontade de ferro , despudor para
affrontar a moralidade da sua época , inconsistencia de
principios, advogando o pró e o contra conforme lhe
convinha ; lisongeando o povo contra os grandes, e os
grandes contra o povo ; approvando e desapprovando as
revoluções ; promovendo a liberdade de consciencia, e
pensando com os Frades da sua Ordem , que era mister
queimar os dissidentes a fogo lento ; emfim , sustentando
hoje o que condemnava amanhã, com a mesma petulan
cia , com a mesma audacia- eis ahi Luthero ! Quereis
alguns exemplos ? 6
42

Atacava - se a reforma, porque se dizia que conspi


rava contra o poder dos principes -- convinha pois des
mentir esta asserção, e Luthero tomou por isso mesmo
a defeza de Christiano, Rei da Dinamarca , contra o seu
povo .
a Mudar e melhorar os governos , disse elle , são
duas cousas tão distinctas, como é o ceo da terra . E'
facil mudar, difficil porém e perigoso melhorar - e por
que ? é porque isto não é a nossa missão, mas está re
servado a Deos unicamente . O povo em seus excessos ,
incapaz de saber o que será melhor, limita-se a querer
outra cousa, salvo a mudar ainda , se vai de mal a peior.
Quando as rãas da fabula não quizeram mais a travesi
nha , tiveram então a Cegonha que as devorou . Uma
populaça desenfreiada é uma raça tão má , que só um
tyranno a póde governar . O tyranno é o açamo, que
se põe ao animal indomavel ; se fosse possivel sujeitar
um povo máo á uma ordem regular, Deos não teria ins
tituido o despotismo da espada . »
Bem se vê que esta defeza de Christiano importava
uma these politica contra a emancipação dos povos ;
entretanto que o caracter da Reforma era não só no sentido
da liberdade de consciencia , como da liberdade civil e
politica , como se verificou pela revolução dos Paizes
Baixos, que ella gerou e produzio .
Fallava -se um dia diante de Luthero da grande per
seguição e matança dos Albigenses, no ataque e tomada
de Beziers por Simão de Monfort, em que foram passadas
a fio de espada secenta mil pessoas de ambos os sexos,
e de todas as idades ; referindo -se a resposta do Legado
do Papa Innocencio III , quando lhe perguntaram se
deviam matar indistinctamente sete mil pessoas, que se
haviam refugiado dentro de uma Igreja, visto que tambem
haviam Catholicos entre ellas - Matai-as ; respondeu
o Legado , porque depois Deos fará a escolha . Consul
tado Luthero sobre este facto horroroso , disse que em
igualdade de circumstancias faria outro tanto !!
Eis ahi qual foi o caracter de Luthero - qual era
-

porém o caracter da Reforma ? Dado o primeiro passo,


Luthero não foi mais senhor da reforma ; ella trasbordou
como o poço artheziano depois de aberto . A reforma
43

foi sem duvida uma grande revolução , e um facto provi


dencial ; revolução que trouxe encubada mais quatro
grandes revoluções, além de outras mais pequenas, que
se prendiam entre si como élos da mesma cadeia .
A primeira das quatro grandes revoluções, que a
reforma produzio, foi a dos Paizes Baixos ; durou perto
de 70 annos, e acabou com o tratado de Westphalia ,
depois da guerra dos 30 annos ; tratado que estabeleceu
os primeiros rudimentos do direito publico europeo , dan
do um pouco de segurança e de garantia para os principes,
e um pouco de liberdade para os povos . (1 )
A segunda grande revolução, que trouxe a reforma,
depois da dos Paizes Baixos, foi a da Inglaterra em tem
po de Carlos I , que foi decapitado . Esta revolução du
rou até 1688, em que Guilherme de Orange , chamado
a reinar na inglaterra, estabeleceu pela sua consumada
prudencia e sabedoria o consorcio da realeza com a li
berdade . Guilherme III foi um rei philosopho, como
exigia Platão .
A terceira revolução , fruto da reforma, e corolario
das duas precedentes , foi a dos Estados Unidos em 1776
e que apenas durou sete annos, pois que a paz se cele
brou em 1783, e a Republica se constituio em 1787 .
O resultado dessa terceira revolução foi a realidade do
governo do povo pelo proprio povo , ou o sclf-govern
ment como chamarão os Americanos do Norte .
A quarta foi a chamada revolução franceza, com
todos os seus horrores, posto que não maiores que os
que praticarão os Hespanhoes'nos Paizes Baixos. O pri
meiro documento desta revolução foi o Decreto de 4 de
Agosto de 1789 abolindo o feudalismo em França , e a
declaração dos direitos do homem , que os Estados Uni
dos já haviam firmado .
Vêde, Sr. Conego , as vicissitudes das cousas huma
nas, e a mão de Deos escrevendo certo por linhas tortas ;
tortas para nós, que pela nossa ignorancia vemos tudo
com olhos vesgos ; mas linhas muito direitas para aquel
0 principio da emancipação dos povos, porque latou o
povo des Paizes Baixos , trouxe tambem a revolução de Partugal
contra Felippe IV, e a elevação da casa de Bragança ao throno
>
portuguez .
44

les a quem Deos concedeu um pouco de intelligencia , e


de bom senso .
Pois bem , a Republica , o Imperio e a Restauração
trouxerão para a França o governo representativo, pro
vando que eraplanta , que podia tambem medrar no Con
tinente . Depois seguirão -se diversas outras revoluções
mais pequenas , corolarios das quatro iniciaes, e que
tão sasonados fructos produzirão. -Essas revoluções
de segunda ordem tiverão lugar em 1820, 1830 e 1831
e em 1848 , posto que os seus resultados só fossem sen
siveis alguns annos depois, como na Hespanha, em Por
tugal , na Allemanha , e ultimamente na Italia .
Eis ahi as grandes revoluções , que a reforma re
ligiosa trouxe em seu seio ao nasser -ella creou o es
pirito de liberdade, e atirou no meio da Europa o prin
cipio da emancipação dos povos. Vede pois, Sr. Cone
go, o que foi a reforma, e o que ella produzio. A re
forma portanto foi o primeiro passo para a civilisação
moderna ; assim como a era da idade moderna prepa
rou a reforma , e a apresentou em campo.
Talvez queiraes saber (perdão, Sr. Conego, se of
fendemos a vossa subida illustração) qual é a éra da
idade moderna . Vamos dizel - o , ainda que com um pou
co de acanhamento . A éra da idade moderna ſunda- se
nos seguintes quatro factos providenciaes, e data do
meiado do seculo XV -a saber :
1.º A invenção da imprensa (1440 a 1444) ; 2.0 A
tomada de Constantinopla pelos Turcos ( 1453), e a im
>

mediata emigração dos Gregos para a Italia ; 3.° O des


cobrimento da America por Christovão Colombo (1492 );
4.º A passagem do Cabo da Boa Esperança por Vasco
da Gama (1498 ). Todos estes grandes factos, que são
outras tantas grandes revoluções, tiverão lugar na se
gunda metade do seculo XV .
Destes grandiosos e immensos factos ou revoluções
providenciaes, porque só o dedo de Deos poderia reali
zal- os, parte a éra moderna ; e com ella surgio a civi
>

lisação actual, a mais moral, a mais illustrada, a mais


importante e a mais vasta de todas quantas civilisações
nos precederão.
Onde está pois Luthero ? Nos labios e na penna
45

dos padres, que se chamão catholicos ; fóra delles não


haverá um homem honesto e illustrado , que cite Luthe
ro para nada , senão como o exemplo vivo do que pode
a ambição humana , ávida de gloria , de fama, embora
Erostrato pelo incendio , ou Henrique VIII pela torpeza
e sensualidade.

ARTIGO VIII

E porém , o que é , o que significa a civilisação mo


derna ? ainda pode perguntar o Sr. Conego, apezar da
sua illustração. Pois bem, vamos definil - a, copiando
um autor moderno , que elle conhece como as suas pro
prias mãos .
« A civilisação moderna é como o ar, penetra o mun
do por todos os seus poros ; marcha as vezes serena
como a aura matutina, as vezes terrivel e veloz , como o
furacão . Com sua audacia domou o raio , quebrou -lhe
todas as forças , e sujeitou - o ao poder do homem . Não
satisfeita com as creações da natureza, creou o cavallo
dynamico, gigante de força assombrosa , bridou-o de
parçaria em numero prodigioso, e com esse esquadrão ,
mais fogoso que o cavallo biblico , percorre os continen
>

tes e os mares . Com um anel de ferro cingio o globo,


aperton - o , encurtando-lhe as distancias , Mais veloz do
que a aguia , percorre espaços infinitos como o pen
samento . Eis ahi o que é, o que pode a civilisação
moderna . )
Em um artigo da revista dos dous mundos , sobre a
telegraphia submarina, prova -se a possibilidade de atra
vessar todos os mares , de unir todos os continentes e
todas as ilhas por meio de fios electricos, pondo assim
o mundo em relação immediata entre todas as suas
partes . O que seria neste caso a grandeza do nosso
globo comparada com a pequenez do homem ? Taes
são, Sr. Conego, os prodigios da intelligencia , domi
nando todas as extenções desde o cimo do Hymalaya
até o abysmo dos mares .
Quem faria parar a civilisação moderna ? só Deos !
mas ella é sua obra ; tem o prodigio da sua força, tem
a celeridade dos astros , tem a impetuosidade dos ventos ;
46

para ella não ha obstaculo ; passa , e hade passar em sua


revolução diurna , quer por cima do grande S. Bernardo,
quer por baixo do monte Cenis . Em tempo de Luiz XIV,
depois do pacto chamado de familia , se disse : não ha
mais Pirinéos ! mentira . E' agora que se realisou esse
prodigio - não ha mais Pirineos, não ha mais Alpes
a Europa é um só Steppe ( 1 ).
Dariamos aqui por finda a uossa resposta, se o Sr.
Conego Campos não tivesse avancado, em um terceiro
artigo algumas proposições dignas de seria reflexão.
Aquelle que disse, que entre Catholicos e Protes
tantes só havia uma differença ou desconformidade (ne
gar ou affirmar que existe na terra uma autoridade dou
trinal) foi Monsenhor Dupanloup, Bispo de Orleans, no .
seu famoso discurso de recepção na Academia france
za em 1855. O que quer dizer, que os catholicos ad
mittião, entre a palavra de Deos e a razão humana , uma
autoridade doutrinal , e os protestantes não admittem in
termediario entre as duas entidades , porque ambas são
dadivas do mesmo Deos .
Ora temos muita confiança no saber profundo do
Sr. Conego Campos ; pensamos até que elle tenhamui
to mais erudicção que Monsenhor Dupanloup ; mas
permitta ou consinta, que tenhamos mais fé na autori
dade do Bispo de Orleans. cuja palavra sagrada tem
a unção de suas lettras e das suas virtudes .
Conhecido o principio dos protestantes, está claro
que elles não admittem cousa alguma , que possa partir
dessa autoridade doutrinal, cuja sanção não achareis nas
Escripturas, por mais voltas que derdes aos miolos . Sr.
Conego, não queremos entrar comvosco nessa discussão ,
porque perderiamos o nosso tempo sem proveito para
ninguem ; porém ficai certo que não ha homem honesto,
que se não compunja, que não ha verdadeiro christão,
que não lastime o estado a que tem chegado o nosso
culto externo !
O que porém espanta é essa reacção, que apparece
sem motivo , querendo levar até o povo esse espirito de
revolta contra as leis do paiz ; essa intolerancia estupi
( 1 ) Planura --palavra csclavonica admittida nas linguas da
Europa .
47

da e grosseira , tão opposta á indole dos Brasileiros co


mo a lettra e espirito da nossa Constituição. Pois bem ,
sabeis o resultado ? Teremos outra vez a lei do censo,
porque essas doutrinas acabaráõ por barbarisar o povo,
e leval-o a excessos ! pois ainda o quereis mais barbaro ?
Temos para nós que o christianismo é a lei natural
aperfeiçoada ; nem era preciso que grandes homens o
houvessem dito antes de nós . Fazei o que quizerdes ,
o Evangelho sobrenadará . Se banís o Evangelho do po
vo, o que lhe ficará ? Porque esse odio , essa aversão ao
Evangelho ? Se o Sr. Conego quizer que lhe digamos
a razão, nós lh'a diremos singelamente, com quanto se
possa magoar um pouco .
0 Sr. Conego podia ter um pouco mais de humilda
de christã -ella lhe assentaria melhor do que essas bra
valas de espadachim , que aliás não intimidam a ninguem .
Perdoe -nos mil vezes a nossa audacia , mas pelo amor de
Deos, não nos supponha tão estupidos como os porcari
ços e os bufarinheiros .
Quando em todo o sul se fazem esforços para atra
hir a emigração americana, em Pernambuco trata-se de
a repellir ! Porque nos havemos de sentir, quando nos
tratem como selvagens ? Tratam -nos como merecemos ,
graças aos agentes dos Jesuitas no Brasil. – E serão na
realidade agentes dos Jesuitas ? qual ! agentes de si mes
mos, de seus interesses ; especulam com a religião como
se especula com a politica , com a alta e baixa do cam
bio, etc. ; não são procuradores de outrem , procuram
para si , que não é tão pouco .
E' um gosto ver como em S. Paulo, o que ha de
mais rico e intelligente faz os ultimos esforços para cha
mar a si de preferencia a emigração americana. No Rio
de Janeiro, no proprio Paraná, no Rio Grande de S.
Pedro, em Santa Catharina, emfim por todo o Sulse en
>

toam hymnos de gloria aos mensageiros do trabalho , da


industria e da civilisação -nós porém repellimos tudo ,
e á testa desta cruzada apparece ... quem ?... Se vingas
se em Pernambuco semelhante doutrina , seriamos a
porção mais estupida e ignobil do Brasil.
Paremos aqui , porque não convem , nem queremos
por ora ir mais longe. Ainda poderiamos dizer muita
43

cousa , que reservamos para nma replica se houver quem


nos conteste, bem entendido em termos habeis. Muito
de proposito deixamos sem resposta algumas proposi
ções mal soantes para não dal -a como o caso merecia .
Entretanto diremos ainda algumas palavras para cou
cluirmos.
Os logicos modernos foram tirar dos inquisidores
de Hespanha e de Portugal duas palavras —sujectiva e
objectiva -- para empregal - as em seus argumentos. Os
Inquisidores chamavam objectivas as accusações ou cen
suras feitas a uma obra ; isto é , as proposições e pen
samentos , ou doutrina que ella continha ; e sujectivas
as censuras feitas ao autor , ou que recahiam sobre a
sua pessoa .
Pois bem , declaramos, uma e mil vezes , que as
nossas censuras são tão somente objectivas; isto é, que
recahem todas sobre as proposições e argumentos, e
nunca sobre as pessoas do venerando Sr. Arcebispo,
nem do Sr. Conego Pinto de Campos , pessoas a quem
aliás acatamos, e contra as quaes nada teriamos que
dizer .

Um christão velho .

Fim da primcira resposta ,


AS BIBLIAS FALSIFICADAS

SEGUNDA RESPOSTA
PREAMBULO

Ha dias de provações --estes dias começão para nós .


De sorte que poderiamos dizer com S. Paulo - « Permit
tio Deos que eu sentisse um estimulo , que he o anjo de
>

Satanaz !
Poderiamos ir além com o nosso preambulo , como
foi o Sr. padre Campos ; mas para o que temos de dizer,
he mister que sejamos parcos desde principio , reservan
do a sua Introducção para o remate da nossa obra .
Então, como elle hoje, havemos de rir - nos du vai
dade que acompanha o erro, e d'aquellas almas privile
gialas , que nunca faltão no mundo para o livrar das
grandes catastrophes sociaes .
Não diremos, como Tertuliano , ao Sr. padre Cam
pos, que prove a sua missão apostolica : que diga se Je
sus Christo desceo segunda vez , se segunda vez ensinou
verdades novas , se segunda vez foi crucificado, se se
gunda vez foimorto , se segunda vez resuscitou ! Não , não
queremos por ora assustar o nosso antagonista com
perguntas, a que dificilmente responderia, apezar da sua
solidariedade com a doutrina de Jesus Christo .
O Sr. padre Campos , apanhado em flagrante falta
de verdade ácerca das falsificações das Biblias de Lon
dres, e querendo simular uma especie de resposta, co
meçou por uma solemne descompostura contra os here
ges , que vicião as biblias -d'ahi as gentilezas do seo
estilo , as filagranas da sua linguagem . A heresia , diz
elle , sempre que emenda os Evangelhos, os vicia
quando não usa da espada de Marcião, trava do buril de
Valentino ! Sublime rasgo de eloquencia titanica !
Ora, ninguem tratou de corrigir os Evangelhos, nem
de vicial-os ; se houve quem os quizesse corrigir ou vi
ciar forão aquelles que tacharão de falsus as biblias ver
7
50

dadeiras ; e não nos, que apenas sustentamos a existen


cia de um facto incontroverso .
O Sr. padre Campos disse , que as biblias de Lon
dres estavão cheias de enormes falsidades, e continhão
os mesmos erros que a do padre Almeida , segundo os
apontamentos feitos pelo Sr. Arcebispo da Bahia ; nòs
sustentamos que não , e o provamos de uma maneira in
contestavel . Qual era a unica resposta, que deveria dar
.

o Sr. Campos ? provar com as proprias biblias de Lon


dres , que elle tinha dito a verdade -- fel- o ? eis ahi a
questão.
O Sr. padre Campos he de uma erudição espantosa —
elle cita Marcião e Valentino , os Arianos e os Sabelianos,
o monstro de Horacio e Novaciano , Homero e Virgilio,
Luthero e Calvino, Tertuliano e Torquemada , Arthemão
e Euzebio , os Manicheos e os Luciferanos, Wicklife e
Innocencio III , o Papa Zeferino e os Donatistas, Berru
yer e Harduino , etc. etc. etc. ; tudo isto em um só ar .
tigo , e para dar começo a questão ( D. de Pern . 12 de
Junho de 1966. ) Bofé ! he sciencia de mais .
O que na realidade nos espantou foi que toda essa
erudição fosse em pura perda da questão primordial .
Com effeito , a que vinhão os falsos Evangelhos , repu
diados desde os seculos apostolicos ; o proto Evangelho,
o Evangelho da santa infancia, e da natividade da Vir
gem , e os dos 12 apostolos ? a que vinha toda essa mis
cellania para a questão das biblias falsificadas ?
O Sr. padre não nos respondeo , dissertou — fez
mais, inverteo até as nossas proprias palavras, com a
desgraça, porém, de que nem assim mesmo poude con
fundil -as tão evidente e claro era o que dissemos, que
calou no animo de todos . Neste caso para que voltar as
biblias falsificadas ? Para que lansar nos outra luva com
a sua rapsodia do purgatorio , da inquisição , da invoca
ção dos Santos, e outras baforadas de sciencia infusa,
atravez da espessa nuvem de orgulho, como o de Luthe
ro --Notus sum in coelo , in terra el inferno ?
Entramos por tanto nessa luta com summo desgos
to e repugnancia ; não pelo que fica dito, mas porque
o nosso antagonista tratou -nos com tal desamor, com
tal desabrimento, que receiamos imital- o ( do que Deus
51

nos preserve) . Todavia , apezar do tedio , que semelhan


te procedimento nos causou, vamos por amor a verdade,
e pela ultima vez , dar uma resposta , que satisfaça ao Sr.
padre Campos ; sem com tudo estarmos possuidos da
vaidade que acompanha o erro, como elle disse no seo
primeiro artigo. Essa vaidade deixamol- a intacta como
seu patrimonio .
Entremos pois na questão primordial,

A BIBLIA DO PADRE ALMEIDA

Tinha dito o Sr. Campos em Dezembro de 1865 ,


que ajudado por um amigo fizera umas notas relativas
as falsificações das biblias impressas em Londres, quan
do deparou com a pastoral do Sr. Arcebispo da Bahia,
onde encontrou a resenha das mesmas falsificações quasi,
conforme com a que elle tinha feito ; e porém , acatan
do o trabalho do metropolita, deo - lhe preferencia .
Ora , a biblia que se vendia ou espalhava na Bahia,
diz o mesmo Sr. Arcebispo , era a do padre João Ferrei
ra de Almeida , ministro e pregador do Santo Evangelho
em Batavia , terra de protestantes ; e diz mais, que essa
biblia estava com o Velho Testamento truncado, faltan
do - lhe os livros de Tobias, Judith , Ecclesiastico , os 2
dos Macabeos , o da Sabedoria , alguns capitulos de Es
ther , a prophecia de Baruch , dous capitulos e alguns
1

versos de Daniel : mas que o Canon do Novo Testamento


estava completo na dita biblia do padre Almeida .
E porém , diz o mesmo Sr. Arcebispo, que, apezar
de inteiro o Canon do Novo Testamento, estavão seus li
vros viciados ; e de tal sorte que os erros pullulão por
toda a parte . Então, querendo aquelle Prelado provar os
erros ou vicios da biblia do padre Almeida , diz que es
tão viciados o cap . 1 do Evangelho de S. Lucas , v. 28
o cap . 6 dos Actos apostolicos -cap . 9. v . 27 da Epis
tola aos Corinthios aos Ephesios, cap . 5 v . 32 - 1.0
52

Epistola de S. João , cap . 5, versos 6, 10 , 13, 15 , 17, 18,


19 e 20 .
Eis ahi os erros ou vicios, que achou o Sr. Arce
bispo na biblia do padre Almeida ; e tudo se teria pas
sado em plena paz, se o Sr. padre Campos não tivesse
então acrescentado o seguinte :
« E por ventura será só a biblia traduzida pelo pa
( dre Almeida que se acha falsificada, truncada e vicia
« da ? Não, a do padre Pereira , impressa em Londres,
« contém as mesmas falsificações, como live occasião de
a verificar . O certo he que tenho em meo poder 14
« biblias traduzidas pelo padre Almeida , e 11 do padre
« Antonio Pereira , contendo as mesmissimas falsifi
2 ?
a cações . »
Não nos importaria, que o Sr. Campos tivesse as
severado uma cousa contraria a verdade, se não pesas
>

se na nossa consciencia , e sobre tudo na nossa honra ,


desmentil o ; por quanto haviamos feito presente de al
guns exemplares do Novo Testamento impressos em Lon
dres ; visto que nunca nos atreviriamos a pôr nas mãos
de uma Senhora ou de uma menina o Velho Testamento,
salvo os Psalmos .
Para confiarmos, porém, o Salterio a essas intelli
gencias infantis, prefeririamos antes a traducção em ver
so do padre Antonio Pereira de Souza Caldas , ou as pa
raphrases do padre Francisco Barreto ; cuja metrifica
cáo he de uma harmonia e doçura incomparaveis : e va
lendo por isso muito mais que a prosa do padre Anto
nio Pereira de Figueredo , tão distante da poesia dos Psal
mos . Alem de que he sabido que o verso, pelo seo rhy
thmo, he muito mais facil de decorar que a prosa.
Entretanto nem uma nem outra existe : a traducção
do padre Caldas, o primeiro poeta sacro do Brasil, só
teve uma edição que logo se esgotou -e as paraphrases
do padre Barretto andão por ahi dispersas em pequenos
folhetos, ou ineditas . Impossibilitados , pois, de offere
cer os Psalmos, contentavamo-nos com brindar somente o
Novo Testamento, de que tinhamos cabal conhecimento ,
tanto do impresso em Londres, como de uma nova edi
ção de Lisboa, e varias de Nova Yorck, todas perfeitissi
mas . Calcule - se o nosso embaraço à vista da solemne
declaração do Sr. padre Campos.
Segundo o seu dizer, haviamos feito um presente
fementido ; haviamos introduzido biblias falsificadas no
seio das familias ; haviamos propinado o veneno do erro
a pessoas innocentes, que não podião distinguir uma bi
blia falsa de outra verdadeira ; e ultimamente haviamos
abusado da boa fé dessas familias, introduzindo a cor
rupção entre ellas ! o que cumpria que fizessemos ?
Demos portanto um formal desmentido ao Sr. padre
Campos . Aceitamos a biblia errada , ou falsificada (co
mo quizerem) do padre Almeida , que nunca tinhamos
visto, pois que confiavamos na palavra sagrada do Sr. Ar
cebispo ; mas quanto ao Novo Testamento das Biblias de
Londres, tão exacto , e ainda mais perfeito , que a gran
de biblia do padre Antonio Pereira, sustentamos e pro
vamos a sua veracidade e exactidão . Appresentamos en -

tão diversas edições , provocamos uma seria confronta


ção com a biblia correcta do padre Antonio Pereira , e
pedimos encarecidamente ao Sr. padre Campos , que ap
presentasse uma só das suas 11 biblias de Londres fal
sificada. Como respondeo elle ? Calou - se !!
Pois bem , surge agora , passados cinco mezes e
para que ? Para provar as falsidades do Novo Testamen
to das biblias de Londres ? não ; disto não he elle ca
paz, nem elle nem ninguem -mas para provar as falsi-
dades da biblia do padre Almeida com uma biblia de
Londres !! He isto possivel ? sim , ahi estão muitas pes
>

soas, que forão examinar as biblias depositadas pelo Sr.


padre Campos na typographia do Sr. Figueirôa -todas
sahirão rindo -se da pia fraude do Sr. Campos.
Pia fraude ? Sim. O Sr. padre Campos sabe per
feitamente o que he uma fraude pia : he a estatua da
Magdalena de Milão que chorava ; he o quadro ou reta
bulo da Virgem do Loreto, que virava os olhos ; he o san
gue de S. Januario, que se liquifica todos os annos em
Napoles ( 1); he uma cousa como as falsidades das bi
( 1 ) A 12 deMaio de 1866 sahio do Arcebispado de Napoles a
Imagem de S. Januario em procissão , acompauhada de outros
Santos, afim de visitar, segundo o costume, o templo de Santa
Clara, edificado por Carlos d'Anjou. Por esta occasião repete -se
54

blias de Londres provadas com a biblia de padre Almei


da ! Seja o que for, uma fraude, por pia que seja, he
sempre indigna de uma discussão litteraria. Metta o Sr.
Campos a mão em sua consiencia , e veja se o seu pro
cedimento he o de um homem de lettras !

II

A fraude do Sr. padre Campos não se deo sò aqui ;


repetio-se tambem no Rio de Janeiro , segundo se colli
ge do seguinte artigo do Jornal do Commercio de 22 de
Julho de 1866 .
« No Apostolo (papel) n . 28 de 15 do corrente (Ju
lho) le -se o aviso dos Reverendissimos rabiscadores da
dita folha, de que, com toda a satisfação principiavão
naquelle dia a publicação do importante trabalho do Ex .
Monsenhor Pinto de Campos sobre as biblias falsificadas.
O terceiro periodo deste aviso está composto das seguin
tes palavras.
« Os exemplares das biblias falsificadas, citadas pe
lo Ex. Monsenhor Pinto de Campos , achão -se expostas
em nossa livraria, para serem vistos e conferidos por
quem quizer com as indicadus falsificações ) .
« Ninguem dirá que semelhante convite deixe de
in teressar a um catholico ; por consequencia dirigimo
nos , eu e um amigo , á livraria dos Reverendissimos (no
Seminario de S. José) afim de verificarmos as falsifica
ções annunciadas ; levando para confrontação dous exem
plares das biblias impressas em Londres e em Lisboa,
traducção do padre Antonio Pereira de Figueiredo . )
« Depois de muito esperarmos pela appresentação
das famigeradas falsificações, e de soffrermos reluctan
cias , que longe irião , se as exposessemos aqui, tivemos
o milagre da liguificação do sangue do martyr . Constou porém
ao Prefeito ( o Marquez Gualterio ) que se tratava de evitar o mi
lagre ; e que alguns frades estavão peitados para promoverem um
escandalo . Gualterio tomou as suas medidas, e tudo correo ma
ravilhosamente. A chusma, que se aglomerou á porta do templo,
presenciou o milagre da liquificação ; e não houve novidade
falhou portanto o golpe con.o no tempo do General Championel
em 1798. Aquelle S. Januario he pois um Santo muito prudente
(J. do R. de 26 de Julho de 1866 ).
55

o dissabor de não nos serem patenteadas ; fosse porque


Suas Reverendissimas quizessem gracejar com o publi
co , ou imitar o seo campeão Pinto de Campos ; o certo
he que retiramo -nos sem as provas das verdades dos
infaliveis da épocha .)
« Vendo-nos assim burlados por homens , que jactão
se constantemente de prototypos de santidade, julgamos
de nosso dever prevenir o publico desta occurrencia pa
ra que não seja augmentado o numero dos burlados - .

como fomos “ ,
Muitos outros artigos apparecerão neste sentido ,
por que muita gente foi a livraria do Apostolo ver as bi
blias falsificadas do Sr. padre Campos ; até que os re
dactores do Apostolo , corridos de vergonha, tiverão de
declarar, que aquelle aviso não se entendia com elles ,
mas com a livraria do Sr. Figueiroa em Pernambuco .
De sorte que o Sr. Campos não fora mais bem succe
dido no Rio de Janeiro , do que nesta Cidade , com a sua
pia fraude, ou com as suas biblias falsificadas .
Finalmente emprazamos o Sr. padre Campos para
que responda sem subterfugio : se as biblias de Londres
tem o Novo Testamento com os mesmos erros ou vicios
apontados pelo Sr. Arcebispo na do padre Almeida , co
mo asseverou o mesmo Sr. Campos. Sim ou não . Es
ta he a questão , Sr. padre , e fora deste terreno não ad
mittimos outra --responda, se he capaz.
Poderiamos, a respeito de fraude pia , citar um fac
to muito celebre , que conta Apuleio na sua metamor
phose -o asno de ouro- de uma dama romana , tão vir
tuosa como bella , chamada Paulina , mulher de Satur
nino ; a qual era muito fanatica pelo culto da Deosa
Isis — mas deixamos de o fazer para não cortar o fio desta
discussão .
O Sr. dadre Campos continúa a esquadrinhar nas
biblias do padre Almeida o que elle chama horriveis fal
sificações ; até que por fim deparou com um enorme sa
crilegio , com a mais estupenda heresia , que jamais virão
os tempos antigos , nem verão os tempos modernos. No
cap. 3 v . 15 do Genesis elle achou prova bastante para
o seu espanto e para a sua estupefacção ! Horresco re
56

ferens ! exclama elle ! anathema seja o padre Almeida !


Vamos por partes !
He tal o respeito , que nos merece o Sr Arcebispo
da Bahia, pelas suas virtudes e grande modestia , que
aceitamos pura e simplesmente o que elle disse acerca
da biblia do padre Almeida; mas a insistencia do Sr.
padre Campos obrigou - nos a comparar as notas do Sr.
Arcebispo com o texto original grego , e outras traduc
ções em diversas linguas ; e depois de um exame acu
rado nos convencemos, de que a traducção do padre
Almeida , se não tem a primazia, he com tudo uma das
mais exactas , e que mais se aproxima do texto
Em alguns lugares haveriamos vertido exactamente
como o padre Almeida; em outros porem teriamos dado
á nossa frase outra intlexão , outro estilo, isto he , outro
modo de diser, sem alterar o sentido ; como por ex . no
v. 15 do Cap . 3 do Genesis, que causou tanto horror ao
Sr. Padre Campos .
Entretanto podemos asseverar, que não ha o mini
mo erro, muito menos falsificação do texto original; e
que diser o contrario he faltar a verdade , ou provar ig
norancia crassa dessas cousas . Estamos promptos a
exibir as provas do que disemos, comparando verso por
verso o texto original com a traducção .
O que ha pois na biblia do padre Almeida não passa
de simples variantes na phrase theologica; e o Sr. Campos
não pode provar o contrario – ficando certo de que nun
ca avançamos uma proposição, que não possamos provar.
Ditto isto, vamos demonstrar agora , que a traducção do
padre Almeida he muito mais exacta que a do Padre An
tonio Pereira no lugar citado ; e se aproxima muito mais
ao texto dos Setenta .
III

Com effeito , diz o Padre Antonio Pereira ( Gen. Cap .


3 v . 15 ) « Eu porei inimisades entre ti e a mulher ...
Esta te pisará a cabeça , e tu armarás traição ao seu cal
canhar . » Em primeiro lugar o verbo latino conterere
não significa simplesmente pisar, mas esmagar , moer ,
redusir a pó-alem de que na lingoa portuguesa ninguem
57

diria - armar traições ao calcanhar-porque , alem de não


exprimir um sentido completo , fica muito a quem do texto
original, como diz o Abbade Jager em uma nota á biblia
de Sacy:
o Padre Almeida no lugar citado , diz— « Eu porei
inimisades entre tie a mulher ... Esta te ferirá a cabe
ça , e tu lhe ferirás os calcanhares ) Não diremos que
esta traducção he perfeita ; mas exprime melhor o texto ,
que nós tradusiriamos da seguinte maneira. « Ella te
esmagará a cabeça , e tu lhe atirarás boles ao calcanhar
para mordel-o, ou para feri-lo. »
Vamos agora citar varios exemplos , não só para pro
var a exactidão da nossa versão como tambem , que a
do padre Antonio Pereira he ainda mais inexacta que a
do jiadre Almeida ; e que esta não contem a menor fal
sificação, erro nem vicio , salvo uma variante, que nada
augmenta nem diminue , apesar do longo commentario do
Sr. padre Campos a esse respeito.
Muito de proposito dámos os seguintes textos nas
respectivas lingoas para que o Sr. padre Campos os tra
dusa como lhe aprouver .
1 .'- Começaremos pela Biblia de Sacy , revista e cor
recta pelo abbade Jager, professor na Sorbona e conego
de Paris e Nancy. Para não fasermos muito diffusas
estas citações , copiaremos apenas o segundo periodo do
v . 15, c . 3 do Genesis-- « Elle te briserá la téte, et tu
lui lendras des pieges pour la blesser au talon . »
Vê- se pois pelo que diz Sacy , que a versão do pa
dre Antonio Pereira , se não he inais, he tão imperfeita
como a do padre Almeida. E porem ninguem dirá por
isto que Pereira cometteo um erro , ou falsificou o texto ,
ou viciou a escriptura - he uma variante e nada mais .
Ora o texto grego dos Setenta diz - tu observarás
o seu calcanhar - o que quer dizer, segundo o abbade
Jager em uma nota - a tu a seguirás, tu expreitarás o
momento de a morder no calcanhar. »
2.0-A biblia de Martini, ( a melhor da Italia ) apro
vada pela Santa Sé , diz o seguinte- « Ella schiaccera
( machucar ) la tua testa, e tu tenderai insidie al calcagno
di lei . » Esta traducção corrige ambas, tanto a do pa
dre Antonio Pereira, como a do padre Almeida.
8
58

3.0 --- A biblia do padre Felippe Scio ( hespanhol )


tambem aprovada— « Ella quebrantara tu cabeza, y tu
pondras asechanzas a su calcañar . Esta versão favorece
um e outro
4.0 Outra biblia em hespanhol - edição estereoty
pica- « Ella quebrantará tu cabeza , y tu le herirás el
calcañar. » Aqui aproxima-se mais do padre Almeida .
5.0 -- Outra biblia em francez - 6.a edição-Edição
Perrodil , autor do Diccionario das heresias, e tambem or
thodoxa-- « Elle te briserá la téte, el tu la blesseràs au
talon » Tambem se aproxima mais do padre Almeida .
6.0 - A biblia ingleza completa - It shall bruise ( con
tundir ) thy head, and thou shalt bruise his heel » tam
bem se aproxima mais do padre Almeida .
7. - A biblia do padre Antonio Pereira , Edição de
Londres em 1821 , que o Sr. padre Campos confessa,
que está completa, diz tambem « Ella te pisará a cabeça ,
e tu procurarás mordel-aa no calcanhar » Está pois no
meio termo entre o padre Almeida e o padre l'ereira - he
-

uma correcção pelo texto grego dos Setenta .


8 .'-A biblia , ou antes a paraphrase da biblia pelo
padre Sarmento ( crêmos que o Sr. padre Campos sabe
que he orthodoxa ) diz assim- « Ella te quebrará a
cabeça ... e tu em vão procurarás armar -lhe ciladas para
a faser cair , tambem he outra correcção para ambos .
9.0 Finalmente --Commentario litteral do novo e ve
Tho testamento pelo padre Agostinho Calmet - diz este
grande interprete e expositor da Vulgata, que alguns
escriptores vertem a conteret - e insidiaberis » pela mes
ma significação ( como fez o padre Almeida ; ) mas que
os Setenta e outros interpretes derão diversas significa
ções , como por exemplo : conteret entende- se - serpen
tis caput pede conteri posset- Insidiaberis - sibilabit
auguis ac tentabit admordere calcaneum ejus. »
Se não fosse o horror, que o Sr. padre Campos
tem a Luthero , sem embargo de o citar muitas vezes , of
fereceriamos a traducção da vulgata feita por esse famoso
heresiarcha ; traducção completa com todos os livros
deutero - canonicos de um e outro testamento, e que
passa hoje na Europa pela mais perfeita e exacta que
existe , não só em toda aa Alemanha, como fora d'ella .
59

Pois bem , apesar da vossa repugnancia sempre vos


diremos, que Luthero traduzio o v. 15 do c . 3 do Ge
nesis da seguinte maneira- « Ella te esmagará a cabeça
com os pés , e tù lhe cravarás os dentes no calcanhar »
Que vos parece, Sr. padre , esta traducção ? comparai-a
com a do padre Pereira , e vede de que lado fica a van
tagem .
Bastão pois os dez exemplos , que ahi ficão regis
trados, para provar ao Sr. padre Campos, que tào mal
andou o padre Pereira como o padre Almeida ; que am
bos tradusirão mal o citado versiculo - mas nenhum del
les viciou ou falsificou o texto .; portanto, dizendo o Sr.
padre Campos, que o padre Almeida viciou o texto de
proposito, dá prova de que não entendeo o que leo, ou
fallou de outiva , sem criterio nem convicção.
Já que fallamos na traducção da biblia por Luthe
ro , permita - se -nos uma digressão , que nos pode ser util
para adiante .
Com effeito , a versão de Luthero, feita com toda a
consciencia da sua importancia na cpoca da reforma,
foi obra prima do engenho e da arte, um livro essen
cialmente popular. Foi o novo testamento o seu pri
meiro trabalho, impresso e publicado no anno de 1522 .
No anno seguinte appareceo o Pentateuco, e linalmente
o resto do velho testamento , com todos os livros deutero
canonicos , sahio a luz no anno de 1534 .
Publicada a biblia completa , circulou na Alemanha
>

com a velocidade do raio- já em 1558 se havião feito


38 edições de toda a biblia , sem contar 72 edições do
>

novo lestamento separado. Embora o clero catholico ful


minava a versão de Luthero como falsificada, estes ata
ques , contra a evidencia dos factos, não fasião senão aug
mentar o successo do livro .
Ve -se pois que Luthero não regeitou na sua versão
nenhum dos livros do Canon dos Setenta --que a sua
traducção he inteiramente estreme do espirito de seita
que cingio -se ao texto grego ou hebraico com uma fide
lidade que admira. E a rasão por que Luthero tradusio
todos os livros da segunda ordem , ao passo que os não
admitia como canonicos ? Vamos dizel- a .
Os livros do velho testamento , que os protestantes
60

não admitlem como inspirados, constituem indubitavel


mente a expressão historica de uma epoca de transição
do antigo para o novo testamento ; e não resta a menor
duvida de que seria bem difficil construir a historia
desses dous ou tres seculos sem o socorro desses livros .
Se elles não tem igual authoridade na religião , como li
vros que não forão inspirados, devem te - la no seculo
como livros historicos . " Eis ahi a rasão por que Lu
thero os tradusio, e os encorporou na sua biblia. Rea
temos agora o fio da nossa discussão.
IV

O Sr. padre Campos embirrou com a biblia do padre


Almeida ; e não achando nada mais que dizer, volta a
carga sobre o v . 28 do Cap . 1.° de S. Lucas, primeiro
reparo do Sr. arcebispo da Bahia . Então por defferen
cia a este prelado , admitimos a sua censura sobre este
ponto, e sem mais exame demos como pessima a tra
ducção do padre Almeida .
A questão porem não he esta , por que sobre os vi
>

cios ou erros da biblia do padre Almeida já tinha dito


o Sr. arcebispo tudo quanto havia que dizer. O que
cumpria ao Sr. padre Campos era provar o que elle as
severara em seu proprio nome ; isto he, as falsificações
do novo testamento das biblias de Londres . Esta he a
questão, que elle trata de illudir, reproduzindo o que
disse o Sr. arcebispo acerca da biblia de Nova - Yorck.
Pois bem, rémora do Sr. Campos , acompanhal -o -hemos
até a sepultura .
A insistencia do nosso antagonista, acerca do v .
38 do Cap . 1 de S. Lucas, obrigou -nos a estudar a ma
teria ; e a vista do texto original e de muitas traducções,
que omittimos por enfadonho, devemos confessar,
que de todas a mais perfeita, a mais completa, a que
está mais em harmonia com a saudação do Anjo á Maria,
a que mais exalta o texto , a que mais exprime o pen
samento do Anjo Gabriel, he justamente a do padre
Almeida .
Com effeito, em lugar de cheia de graça, como diz
o padre Pereira, o padre Almeida traduzio em graçu acei
61

lu , -alguns traduziram-favorecida , outros favorecida em


-

graça, outros em graça recebida ( Je te salue , ô toi qui es


reçue en grace ) ; outros em graça concebida , e outros
como o padre Antonio Pereira simplesmente cheia de
graça . ( 1 )
E porem em graça aceita tem muito mais força, e
exprime muito melhor o pensamento do Anjo saudando
a Maria ; e até mais conforme com o texto original ; por
que aquella que he aceita por Deos em sua graça deve
ser perfeitissima.
Ora , cheia de graça refere - se a Maria , mas em graça
aceita refere - se a Deos ; e como tudo quanto se refere a
Deos he immenso , infinito, plenissimo e perfeitissimo ;
para que uma creatura seja aceita em graça por Deos ,
he mister que ella tenha a plenitude da graça . Cheia
de graça , a graça não passa d'ella - aceita em graça,
abraça • a , circumda - a a graça de Deos . Dentro d'ella ,
cheia de graça , tudo he finito e limitado ; föra d'ella ,
aceita em graça, tudo he immenso como a graça de
Deos .
Eis ahi pois como a traducção do padre Almeida,
longe de estar errada ou viciada, he muito mais correc
ta , e muito mais expressiva que a traducção do padre
Antonio Pereira . Se fossemos traductor, procurariamos
antes cingir -nos ao texto original ; e traduziriamos assim
o citado v . 28 do Cap . 1. de S. Lucas : - « Deos te sal
ve, favorecida em graça » . - apesar de que ( justo he
confessar ) fuvorecidlu exprime muito menos do que acei
ta em graça .
Agora pediremos perdão aos leitores por havermos
caido no mesmo deffeito do Sr. Campos ; isto he, de ha
vermos censorado sem reflexão , nem estudo previo , esta
5

parte da traducção do padre Almeida ; de cuja leviandade


nos arrependemos hoje ; mas juramos que nos servirá
de correcção para o futuro. Tadavia não seremos indig
nos de desculpa quando se saiba , que a nossa falta pro
( 1 ) 0 Sr. padre Campos fez aqui duas descobertas importantes
em paleograpbia : isto lie, achou que S. Lucas escrevera o sco
Evangellio em latim - Ave gratia plena. Outra, que Origenes
estudava o grego com muito esmero - naturalmente por que fal
lava turco.
62

cedeo do profundo respeito, que nos merece a palavra


autorisada do Sr. arcebispo ; tanto que, senão fosse a
insistencia ( a birra ) do Sr. padre Campos, a quem nada
queremos conceder, ainda hoje estariamos no mesmo
erro .
Com estes dous pontos ( Gen. c . 3 v . 15. e S. Lucas ,
6. 1 v. 28 ) e com os exemplos citados, fica perfeita
mente demonstrado , que a traducção do padre Almeida
he tão ou mais exacta que a do padre Antonio Pereira ;
ou que ambas peccão pelas mesmas faltas; isto he, por
que não exprimem o verdadeiro sentido do texto ori
ginal. E assim como não se pode taxar o padre Anto
nio Pereira de falso ou de erroneo por isto ; por que
acusariamos o padre Almeida , que he ainda menos cul
pado ?
Mas vós , Sr. padre, não vos importaes com essas
bagatellas - não consultastes os textos originaes , por que
os não entendeis, nem os expositores, nem sequer as
diversas traducções, ao menos nas linguas neo-latinas
nada disto fisestes; ao passo que de vossa autoridade
declaraes reo de enormes fulsidades o pobre padre Al
meida, só por que não quisestes estudar a materia.
Paciencia nos de Deos , que o saber pouco nos vale, di
zem os Hespanhoes.
Emfim paremos aqui, por que o Sr. Campos dei
xou tambem o padre Almeida ---mas se insistir de novo ,
temos trabalho prompto sobre todasas notas ou correcções
feitas pelo Sr. arcebispo na biblia de Nova -Yorck ; e
então provaremos ao nosso adversario, que sobre seme
lhante materia não se pode escrever nem fallar de ou
tiva . Por ora he quanto basta para convencer o Sr.
Campos da sua injustiça para com o padre Almcida .
AS BIBLIAS DE LONDRES
I

Volta o Sr. Campos as biblias de Londres, dizendo


que não são tão exactas como apregoa o Christão velho ;
e que o vai provar n’um abrir e feichar de olhos ! ( 1 )
( 1 ) Audaces forluna juvat, limidos quc...
63

A vista d’esta solemne promessa acreditamos , que tinha


achado materia sufficiente para provar as enormes falsi
dades , de que estavão recheadas as mesmas biblias , se
gundo elle proprio havia verificado. Mas não houve no
vidade , foi apenas um rebate falso - as biblias de Lon
dres tem o novo testamento ( que he a nossa questão )
tão perfeito e exacto como o da versão do padre Antonio
Pereira .
O grande erro, pois , que descobrio o Sr. Campos nas
biblias de Londres, foi no Salmo 57 v . 12. Ora , não é
no Salmo 57 , como elle diz , mas no Salmo 67 , onde se dá
>

a variante ; mas com tanta infelicidade se houve elle ,


que não só errou a citação, como nem ao menos lêo a
nota do padre Pereira , onde veria que a emenda ou cor
7

recção da biblia de Londres foi feita segundo as proprias


palavras do mesmo padre Pereira.
Com effeito diz o v . 12 do Salmo 67 ( traducção
Pereira ) o seguinte : « O Senhor dará palavra aos que
com grande virtude dão boas novas » Na nota diz o padre
Pereira - isto é , aos pregoeiros da sua gloria - O que fez
porém o editor da biblia de 1821 ? Completou o verso
com as proprias palavras da nota do padre Pereira pela
seguinte maneira : -0 Senhor dará palavra aos pregoei
ros da sua gloria , para que elles a annunciem com gran
de virtude . »
Onde está pois o erro , onde está a falsidade? O que
ha porém de mais engraçado nesta acusação do Sr. Cam
pos, é que nas biblias de Londres , que actualmente se
vendem aqui, e em varias edições que temos cotejado,
vem o v . 12 do Salmo 67 tal qual o traduzio o padre An
tonio Pereira, e não como se acha na edição de 1821, que
o Sr. Campos diz ser a mais perfeita . Este Sr. padre
Campos é sempre infeliz nas suas descobertas.
Com a referida nota do padre Antonio Pereira estão
de accordo Calmet e Houbigant ; e por consequencia o
v . 12 do Salmo 67 é perfeito na biblia de 1821 ; muito
mais quando o citado verso da Volgata está viciado, como
estão em outros muitos lugares da mesma Vulgata . Eis ahi
o v . 12 do Salmo 67 na Vulgata --a Dominus dabit ver
bum evangelisantibus, virtute multa » ao passo que a
64

traducção de S. Jeronymo é como segue ) -Dominus


dabit sermonem anunciatricibus fortitudinis plurimæ . »
Quem viciou pois a Vulgata ? foi a vossa igreja, uni
ca que tem autoridade para fazel o ; ou por outra, uni
ca que pode abusar dessa autoridade : e tanto que de
1542 a 1592 (no espaço de meio seculo ), se fizeram va
rias edições da Vulgata, desde a de Izidoro Claro, que foi
bispo de Fulgino , até a de Clemente 8. ° em 1592 ; e em
todas ellas se fizeram para mais de oitenta mil emendas ,
como denunciou Francisco Lucas ao cardeal Bellarmino ,
em 1602 , em um livro, onde estavam compiladas todas
essas alterações .
Diz o Sr. padre Campos, que são os protestantes os
que tem viciado a biblia ! Cremos que o não diz de boa fé ,
ou então ignora inteiramente a historia dos livros sagra
dos . Todas as alterações da biblia foram sempre feitas
por catholicos, desde os primeiros tempos da igreja .
Os protestantes excluem de suas biblias os livros deutero
canonicos do Velho Testamento como apocriphos ; mas
não corrigem nem emendam , nem alteram , nem viciam
o texto das escripturas, como acabamos de provar nas ci
tadas falsidades de que o Sr. Campos accusou o padre
Almeida - falsidades que não existem senão na mente da
quelle senhor.
O mesmo Sr. Campos tambem diz, que os hereges
sempre que emendam os Evangelhos os viciam - e cita
para isto Marcião e Valentino --vamos por partes .
Depois da traduccão , chamada dos Selenla, foi o ca
non hebreo do Velho Testamento traduzido em grego , 1.0
por Symaco , de Samaria, herege ebionita , e apezar das
Sextinas (Hexaples) de Origines, existem apenas alguns
fragmentos desta traducção. 2.° por Theodocião, tambem
ebionita como Symaco ; e a não ser a referencia de S.
Jeronymo na sua traduccão dos dous ultimos capitulos de
Daniel, ninguem mais fallaria de Theodocião. 3.º por
Marcião, outro ebionita do 2.0 seculo - mas este fez -se
padre ; e como fosse lançado fora da igreja pela sua de
vassidão, começou a dogmatisar, e a ensinar doutrina
erronea, pelo que se fez chefe de seita . Dos tres foi o
unico, que mutilou e viciou varias passagens do Velho
Testamento .
65

E , porém, onde existe a traducção de Marcião ? On


de os Marcionistas ? Quem se occupa de semelhante no
me senão como uma tradição historica ? Eis as tres tra
ducções do Velho Testamento em grego, depois da dos
Setenta , unica que existe completa , e de que os modernos
se servem , ou se tem servido para as suas traducções
nas linguas vivas, além do texto hebreo dos livros proto
canonicos .
Entretanto o Sr. padre Campos traz a conta dos pro
testantes Marcião, de quem elles nunca fallaram , nem
citaram para nada . Mas como o nome de Marcião vem
no diccionario das heresias, o Sr. Campos quiz provar a
sua vasla erudição archeologica fallando da espada do
ebionita Marcião, e do buril do gnostico Valentino, que
tanto teve de buril como Marcião de espada .
I

O que ha porém de mais engraçado é a esparrela,


em que um protestante fez cahir o Sr. padre Campos ,
aconselhando - lhe um máo expediente para provar a ca
nonicidade dos livros deutero-canonicos. Os protestan
tes costumam citar o v . 18 do cap . 22 do Apocalipse
contra aquelles, que reunem ao canon hebreo os livros,
que elles chamam apocriphos. O tal protestante acon
selhou ao Sr. padre Campos, que citasse o v . 19 do mes
mo cap . contra aquelles, que subtrahem esses mesmos
livros !
E o Sr. Campos fel - o com a simplicidade de uma
creança ; de sorte que , quando S. João diz-se alguem
tirar qualquer cousa das palavras do livro desta profe
cia , isto é , do Apocalipse, - entende o Sr. Campos, que o
apostolo falla dos Macabeos ou de Tobias ou de Judith , etc.
Tanta singeleza não corresponde a tanta fumaça. Toda
via , ainda mais subio de ponto a nossa admiração , quando
lemos mais abaixo que o Apocalipse não tem maismere
cimento nem valia que os livros deutero -canonicos do
Velho Testamento ; aqui paramos e nos benzemos !!!
Deos nos livre de arguir o Sr. padre Campos de
falta de lição dos livros sagrados ; nem tão pouco incre
pal-o por haver dito uma blasfemia contra as Escripturas
9
66

mas, ignora acaso o Sr. Campos aquella bella allegoria de


S. Paulo (Gal . c . 4 v . 22) onde osjudeos eram represen
tados como filhos de Agar, mulher escrava ; que figura
va o Velho Testamento ; e os christãos representavam os
filhos de Sara, mulher livre , que figurava o Novo Testa
mento ? Quereis uma distincção mais clara entre o Novo
e o Velho Testamento do que aa que faz J. Christo ( S. João ,
c . 15, v . 15) entre o escravo que não sabe o que faz seu
senhor, e o livre a quem tudo se lhe communica, e nada
se lhe reserva ?
Bem vedes , Sr. padre , que a citação do Apocalipse
foi uma cilada armada á vossa boa fé ; porque não só foi
a repetição de um sophisma , de que mal e indevidamen
>

te se servem os protestantes, para excluirem os livros


chamados apocriphos, como nem aomenos achareis no li
vro do Apocalipse citado nem referido nem alludido se
quer um dos livros deutero - canonicos do Velho Testa
mento .
E para que vos desenganeis do que acabamos de di
zer-vos, recorrei todas as notas marginaes do Apoca
lipse na Vulgata ou na versão Pereira, e vede se nel
las se encontram os Macabeos, ou Tobias, ou Judith , ou
algum outro dos livros da 2.a ordem ou apocriphos.
Chamamol-os livros apocriphos, porque é este o nome
que lhes dá S. Jeronymo no seu prologo galeato ; onde
depois de ennumerar os 24 livros do canon hebreo pelos
seus nomes, diz o seguinte : « Quidquid extra hos est,
inter apocripha esse ponendum . )
E para mais convencer -vos de que fostes victima
de uma armadilha heretica, citaremos a opinião de Pri
masio, bispo de Adrumelo no seculo 6.º , no seu commen
>

tario sobre o mesmo Apocalipse , cap . 4 , dizendo que


pelos 24 anciões , e pelas 24 azas (Apoc. cap .4, v . 4.0
8) referia - se S. João aos livros do Velho Testamento , que
neste numero (24) recebemos por autoridade canonica.
Para mais claresa diremos, que muitos padres con
tão no Canon hebreo 24 livros em lugar de 22, porque
separão Ruth dos Juizes , e as Lamentações da prophe
cia de Jeremias ; fazendo de Ruth e das Lamentações dous
livros a parte .
Como pretendeis , Sr. padre , colocar o Apocalipse
67

em contradicção comsigo mesmo ? S. João que vol- o


agradeça . O bispo Primazio tambem se servio da opinião
de S. Jeronymo, consignada no seu prologo galeato, que
vem na Vulgata Xistina-Clementina ; e talvez d'ali a tira
ra elle para provar que o Apocalipse só se refere ao Ca
non hebreo, e nada mais. Cono, pois, Sr. padre, ci
taes o Apocalipse em favor dos livros apocriphos, que
elle regeita ?
o Sr. Campos fallou de tanta cousa , ou englobou
tanta materia em um só artigo, que nos obriga a cortar
uma questão séria para intercalar um entre- aclo ; (per
mita- se -nos a expressão) ; de maneira que nos vimos
obrigados a saltar por cima de um grande assumpto para
receber de frente uma chufa do nosso antagonista .
No nosso pseudonymo , isto he, no titulo de christão
velho, que adoptamos, achou o Sr. Campos grande pe
cha : - todos os christãos velhos são hereges, disse elle,
como Berruyer e Harduino , que tambem se intitulavão
christãos velhos! Sentimos porem dizer -lhe, que á nos
-

>

so respeito se engana completamente. -Não foi em vão


que tomamos o titulo de christão velho –para nós ti
nha esse titulo uma vasta comprehensão.
Somos christão velho , porque na realidade somos
christão de boa lei , e da tempera antiga --- somos chris
lão velho, porque somos fiel sectario do Novo Testamen
10, sem a mescla impura das vossas tradições - porque
o Evangelho é para nós a lei suprema , o verbo divino
na bocca dos apostolos e evangelistas ; e porque final
mente somos filhos de Sara livre, e não de Agar escra
va , na bella allegoria de S. Paulo - não somos Agarenos
nem Ismaelitas . Tendes vós os mesmos titulos ?
Pelo contrario, inimigo como sois dos santos Evan
gelhos , desejarieis uma fogueira em cada canto para quei
mal-os ; como já fizestes por vossas proprias mãos a 25
biblias ( 14 do padre Almeida, e 11 do padre Pereira ,)
segundo dissestes nos vossos artigos de Dezembro de
1865. (1 ) Naturalmente nesse auto de fé não tivestes pre
( 1 ) Sabemos que alguns vigarios do matto tem queimado bi
blias, é um até o0 disse officialmente com uma especie de vangloria
pelo auto de fé que celebrara . A esses padres diremos com o Sr.
Alexandre Herculino -- « Esses Torquemadas lilliputianos, que por
68

sente a historia do padre Malagrida, jesuita instruido, c


que muitos serviços prestara ao Brazil, principalmente
na Bahia ,
Pois bem, o padre Malagrida era um pouco traves-
so , como um bom jesuita , e tambem amigo de queimar
livros, até que elle mesmo foi por sua vez queimado em
um auto de fé celebrado em Lisboa no anno de 1761. Es .
tupida barbaridade, semelhante a do touro de Perillo
o homem era apenas um visionario ! Todavia a sorte
do padre Malagrida é um bom exemplo -não é bom fazer
autos de fé, nem crear instrumentos de martirio . Em
lugar de queimar os livros dos outros , foram os delle
(a vida de Sant'Anna, e a do Anti-Christo) queimados
junto com sua pessoa .
Deixemos esses incidentes , e vamos ao que é mais
serio .
III

Insistindo o Sr. padre Campos sobre as falsificações


das biblias de Londres, repete o que já disse o Sr. ar
cebispo ; isto é, que nellas faltavam os seguintes livros
do Velho Testamento : -Tobias, Judith, Sabedoria, Eccle
siastico, Baruch , e os dous livros dos Macabeos. O Sr.
Campos acrescenta, com uma minuciosidade espantosa ,
os capitulos e versos, que faltam no livro de Esther ; as
sim como os dous capitulos e versos , que faltam igual
mente no livro de Daniel, segundo a Vulgata Xistina-Cle
mentina - elle faz essa resenha possuido de uma justa in
dignação ! --Santo homem !!
Como pode o Sr. Campos , ou o padre Antonio Pe
reira provar, que as palavras do Concilio « livros inteiros
com todas as suas partes » querem dizer .: Daniel com
taes e taes capitulos e versos ; Esther com outros capitu
los e outros versos , etc. ?
Pois bem , Xisto de Sena , na Bibliotheca Santa ( Liv .
1 secç . 3 ), que vem citado nos Prolegomenos da Escrip
tura Sagrada, que precedem a Vulgata Xistina-Clemen
a ahi apparecem , causam na verdade indignação ; mas ainda
« causam mais lastima . Uns são a vergonha do sacerdocio , outros
< são a deshonra intelectual do paiz » ( Est . sobre o Cas. civil, 1
serie , p . 48 in fine.)
>
69

tina, p . 12 , depois de classificar como da 1.a ordem os


>

livros proto-canonicos , e da 2.a os deutero -canonicos, re


geita como apocriphos os 7 ultimos capitulos do livro de
Esther ; porque , diz elle , o Concilio se devia entender fal
lando só das partes genuinas e legitimas ; isto é , das que
se achavam no canon lui brco , e não das espurius e suppo
siticias, como todas as que faltam no hebreo, e só se
acham no grego .
O mesmo pode dizer -se a respeito dos capitulos 13
e 14 de Daniel.' Luiz Dupin , doutor da Sorbona, nos
seus Prolegomenos biblicos, tambem se declarou pela opi
nião de Xisto de Sena. Ricardo Simão, na historia cri
tica do texto do Novo Testamento, cap . 18 , rejeita (ape
zar de tudo quanto diz o padre Antonio Pereira) como
supposto e intromettido o celebre v . 7 do cap . 5 da 1.a
epistola de S. João ; fundando -se em que nenhum dos
padres do 4.° e 5. ° seculo citaram tal verso , escreven
do contra os Arianos ; nem elle o achou nos melhores
manuscriptos gregos e latinos.
Eo que disse o padre Antonio Pereira para refutar
esses tres autores graves e de incontestavel sciencia ? que
quando o Concilio de Trento manilou , sob pena de excom
munhão, que se recebam por sagradas e canonicas todas
as partes dos livros do seu catalogo, se deve entender
tudo quanto de falso lembrou aos compiladores da Vul
gata acumular aquellas partes , que toda a igreja catholi.
ca havia respeitado por espaço de 16 seculos Quem
argumenta assim não merece outra resposta senão-Deos
se compadeca do seu juiso !
O Sr. padre Campos para apoiar a opinião do padre
Antonio Pereira sobre os livros deutero -canonicos, invoca
-

o cap . 22 v . 18 e 19 do Apocalipse - Já mostramos a


boa peça , que lhe pregou o protestante, que tal lhe acon
selhou . Finalmente o Sr. Campos conclue com a seguin
te pergunta : Pode algum catholico excluir do catalogo
do Concilio de Trento, depois da sua promulgação, al
guns livros, que elle declarou canonicos, sem incorrer na
nota de heresia ?
Por nossa parte tambem formularemos outras ques
tões para responder a essa do Sr. padre Campos. Por
quc excluem os protestantes esses livros das biblias , ul
70

timamente sahidas dos prelos da sociedade biblica ? Por


que os incluio Luthero na sua traducção da biblia ? Diz
o Sr. Campos , que os protestantes excluiram os Maca
beos, porque estes livros consagravam a doutrina do
Purgatorio, o que é inteiramente falso) que aquelles re
pelliam . E porque excluiram Judith , Tobias , Sabedoria,
Baruch e o Ecclesiastico ? Seria tambem por causa do
Purgatorio ?
Ha pois rasões de peso para que os protestantes
excluão de suas biblias os livros deutero -canonicos ; e
a principal he por que nos primeiros seculos da igreja
taes livros forão sempre considerados como não inspi
rados ; e quando muito como livros historicos, que os
fieis podião ler ; mas não como fundamentaes da fé. Eis
ali por que os Judeos sempre os excluirão do seo Canon ;
e por isto nunca admitirão a versão dos Setenta .
Se semelhantes livros erão inspirados , e apesar disto
os Judeos os regeitavão por ignorancia ou por erro, ainda
na epoca da missão de Jesus Christo, he de evidencia
manifesta, que o mesmo Christo os teria advertido do seo
erro, e que fallasse expressamente de taes livros : mas,
não só nunca advertio os Judeos da sua ignorancia, como
nunca mencionou um só dos livros apocriphos ; nem
delles fez a menor alusão ; ao passo que , quando fallava
de doutrina ee de preceito, sempre se referia ao Canon he
breo ; isto he, a Escriptura, que elle classificava da se
guinte maneira : a lei , os Salmos e os prophetas .
Que Jesus Christo só admitia os livros inspirados
provão -no as duas passagens de S. Matheos ( C. 15 v.9 )
e S. Marcos ( cap . 7 v . 13 ); elle não admittia doutrinas
que viessem dos homens, senão a Escriptura que vem do
Espirito Santo . Ora são justamente esses livros, que S.
Jeronymo chamou apocriphos, os que sempre forão ex
cluidos pelos judeos do seo canon .
Se taes livros não erão inspirados em tempo de Je
sus Christo , não podião sel- o 16 seculos depois na epo
ca do Concilio de Trento - e se não erão inspirados , o
Concilio não os podia igualar aquelles outros livros, ti
dos desde Moyses até hoje como verdadeiramente inspi
rados. Que a igreja primitiva, não só dos seculos apos
tolicos, como ainda muito depois , nunca contemplou em
71

seos catalogos os livros deutero - canonicos, he isto de


evidencia historica , como passamos a provar .

IV

Com effeito , a prova mais valiosa , em materia das Es


>

cripturas , he a que se tira das mesmas Escripturas, por que


nellas está a fonte da verdade, e o testemunho vivo da pro
pria igreja. Eis ahi pois a respeito dos livros proto -canoni
cos o que se acha nos Prolegomenos da Escriptura sagrada ,
que vem na Vulgata Xistina-Clementina-- De canonicis
prioris generis nulla ſuit unquam dubilatio, sed statim ab
initio nascentis eclesice recepti sunt d .
A respeito porem dos livros deutero -canonicos, diz
no mesmo lugar a Vulgata— « Posterioris ordinis canonici
ita vocitantur, quod posterioris sint cognitione et tempore.
Neque enim Apostolorum temporibus ubique habiti sunt
canonici, sed postea ad notitiam totius ecclesiæ venerunt,
ut libri Tobiæ, Judith , Machabeorum etc. )
He portanto evidente , que nos tempos dos Apostolos
não forão conhecidos ou admittidos como divinos os li
vros da segunda ordem ou deutero - canonicos : que a dis
tincção da propria Vulgata em livros da primeira e da
segunda ordem , distincção feita depois do Concilio de
Trento, he prova robusta de que o mesmo Concilio não
03 igualou ; e por consequencia os Papas Xisto 5.0 e
Clemente 8. ° não os tiverão por iguaes .
He igualmente certo , que durante os 4 primeiros
seculos da igreja, nenhum padre ou doutor os admittio
em seos catalogos ; e que o unico Synodo ou Concilio que
fez um catalogo ( o de Laodicea em 364 ) excluio delle
os mencionados livros ; seguindo-se dahi que até os sup
postos catalogos dos concilios d'Africa, nenhuma tradi
ção existia na igreja latina acerca da canonicidade de
semelhantes livros .
Se não são sufficientes 4 seculos de nåo interrom
pida tradição historica para mostrar a incongruencia dos
livros apocriphos , bastaria o testemunho de tantos padres
e doutores da primitiva igreja para nol - o provar .
Emquanto não appareceoo canon do novo testamento,
que só veio a formar-se no fim do 2. ° seculo , cra o ve
72

Tho testamento o unico de que até então se fasia uso na


Igreja , ou que lião os fieis. Ora , a proporção que o Chris
tianismo se foi espalhando, e creando - se novas igrejas,
os Apostolos tinhão o cuidado de provel - as de boas é
fieis copias da Escriptura ; e não consta, nem existe a
inenor prova de que essa Escriptura fosse outra senão o
- Canon hebreo .
Ahi tendes , por tanto, o testemunho dos proprios
Apostolos e de seos discipulos e successores para vos
provar, que somente como divinos ou inspirados forão
recebidos na primitiva igreja os livros proto - canonicos.
E senão vejamos :
O Sr. padre Campos serve -sé do prefacio do padre
Antonio Pereira para justificar o Concilio de Trento acerca
dos livros deutero -canonicos, que este canonisou. Por
nossa vez combateremos e esmagaremos o nosso antago
nista com o proprio Antonio Pereira , que acumulou pro
vas sobre provas para regeitar os mesmos livros, senão
como inteiramente falsos, ao menos como não ins
pirados .
Com effeito, diz o padre Antonio Pereira - São
muitos os catalogos , que se achão escriptos pelos anti
gos Santos Padres : uns que só apontão os livros do
testamento velho ; outros que apontão os livros do velho
e do novo ; uns mais cheios e completos, outros mais
diminutos no numero dos livros, conforme era mais ou
menos clara e explicita a tradição , que delles havia nes
tas ou naquellas igrejas particulares . »
« Entre os que somente apontão os livros do velho
testamento são celebres o catalogo de Melitão, bispo de
Sardes , que floresceo no fim do segundo seculo , refe
rido por Euzebio no Liv . 4 da historia ecclessiastica,
cap . 16. O de Santo Ililario no seo Prologo aos Salmos .
O de Santo Epifanio no seo Livro dos pezos e medidas .
O de S. Jeronymo no Prologo galeato, que costuma an
dar no principio das nossas biblias. »
« De um e outro testamento temos o catalogo , que
no meio do terceiro seculo deixou Origenes, descripto
tambem por Euzebio no Liv . 6 da mesma historia, cap .
25. O de S. Cyrillo de Jerusalem na cataquese 4.2 0 do
a

Concilio Laudiceno da Frigia no Canon X. O de S. Filas


trio de Brescia na lleresia 88. O de Santo Athanasio na
sua Epistola festal. O de S. Gregorio Nazianzeno no Poe
ma 33. O de Santo Anfiloquio na sua Epistola jambica a
Seleuco . O de Rufino de Aquilea na exposição do Sym
bolo . O de S. Jeronymo na Epistola a Paulino, que tam
bem costuma andar nas nossas biblias depois do Prologo
galeato . O de S. João Damasceno no Liv. 4. ° da Fé or
thodoxa, cap 17. »
« Em todos estes catalogos omittiram seos autores
no testamento velho os livros de Tobias e de Judith , OS
da Sapiencia , Ecclesiastico e os dous dos Macabeos. Do
novo , assim Origenes como Santo Anfiloquio etc. ( omit
timos o que se diz acerca do testamento novo , por que
à nossa questão versa tão somente sobre os livros do ve
lho testamento, que faltão nas biblias de Londres ; e são
justamente esses que ahi ficão mencionados . )
Continua o padre Pereira- « seguem - se os catalo
gos de outros Santos Padres do 5.º e do 7.º seculo , onde
se contão e se reconhecem por canonicos todos os li
vros , assim do velho como do novo testamento , que tan
tos seculos depois forão declarados taes pelos sagrados
Concilios Florentino e Tridentino . »
« He o 1.º o do papa S. Innocencio I , na sua Epis
tola a Exuperio de Tolosa, datada no anno 405. He o
2.º o que a Igreja africana inserio no codigo de seos ca
nones feito no Carthaginense 6. °, a que assistirão 217
>

bispos no anno de 419. He o 3.0 o que nos deixou S.


Agostinho no Liv . 2. da Doutrina Christă, cap . 8. He o
4.0 o do concilio romano de 70 bispos , a que presidio o
Papa S. Gelasio 1.º no anno de 494. He o 5.º )o que
nos deixou o nosso Santo Izidoro de Sevilha no Liv . 6 .
das Origens , cap . 1 , e que elle repettio no Liv . dos
Proemios. »
( A diversidade, porem , e discrepancia que se ob
serva entre os primeiros e segundos catalogos, sobre o
numero dos livros sagrados, deo occasião aos theologos
escripturarios para dividirem os mesmos livros em duas
classes : uma de prolo -canonicos, que quer dizer cano
micos da primeira ordem ; outra de deutero -canonicos,
que tambem quer dizer canonicos da segunda ordem . »
« Chamarão e chamão proto -canonicos aquelles que
10
74

sempre em todas as igrejas forão tidos por divinos ,


quaes erão no testamento velho todos os que se achavão
no canon , ou como se explica Tertuliano, no armario dos
Judeos ; que erão por todos 22, correspondentes a ou
tras tantas lettras do alphabeto hebreo. Chamavão e
chamão deutero - canonicos aquelles do testamento velho,
de cuja divina autoridade duvidarão por muitos seculos
algumas igrejas, por causa de se não acharem no canon
judaico, a saber : os livros de Tobias e Judith , a Sapi
encia, o Ecclesiastico, e os 2 dos Macabeos. »
« Se me perguntarem agora , continua o padre Pe
reira, donde procedeo duvidar -se por tanlos seculos en
tre os mesmos catholicos da divina autoridade de cer
tos livros sagrados : respondo, que isto foi porqne, até
os tempos do Concilio Florentino, não tinha a igreja uni
versal publicado algum Decreto, que decidisse a final
essa maleria , e obrigasse os fieis a convirem todos no
mesmo . D
« O que he facil de mostrar, discorrendo por todos
os Concilios ecumenicos e geraes , que por todo o decurso
de tantos seculos se celebrarão no Oriente e no Occidente ;
entre os quaes, até o Florentino , se não achará nenhum ,
que definisse terem os livros deutero -canonicos a mesma
e igual autoridade, que os prolo.canonicos ! » ( Remessa
para o Sr. padre Campos . )
V

Do que fica trancripto da Prefação do padre Anto


nio Pereira se deduz ; 1.0 que tivemos até o Concilio de
Florença 14 catalogos de Santos padres e Doutores da
Igreja, que regeitão os livros deutero -canonicos, por 5
"catalogos que os aceitão ; temos portanto dous terços de
maioria a nosso favor : 2.º que se se pode citar algum
concilio, que mereca fé, acerca da autoridade divina dos
livros deutero canonicos, he o de Laodicea , cujos cano
nes forão aprovados pelo concilio ecumenico de Calce
donia , e incorporados por isto mesmo ao direito canonico
da Igreja ; em quanto que nem o concilio de Florença
nem o de Trento se achão entre os canones da mesma
Igreja : 3. °, que quando todas as igrejas do Oriente e do
75

Occidente admittirão e igualarão os livros deutero - cano


nicos do novo testamento, sendo o Apocalipse o ultimo
no seculo 7.0 ; continuarão as mesmas igrejas a repellir
es livros deutero- canonicos do velho testamento : 4. que
os Santos padres e Doutores dos 4 primeiros seculos
da igreja tinhão a seo favor a experiencia e a sabedoria
dos seculos apostolicos, cuja tradição passando dos apos
tolos para seos discipulos, que viverão até quazi o fim do
2.° seculo, devia ser muito mais segura que a que pre
valeceo do seculo 5.º por diante ; ainda quando fossem
verdadeiros os catalogos de Innocencio e de Gelasio, de
Agostinho e de Isidoro de Sevilha, que o não são, como
logo provaremos.
E se não vejamos. Só no fim do 2. ° seculo ou prin
cipio do 3.º se achou codificado o Canon do novo tes
tamento com exclusão da Carta de S. Paulo aos hebreos ,
da 2.a de S. Pedro , da de S. Thiago , e da 2.a e 3.a de
S. João , e do Apocalipse-Até esse tempo os unicos li
vros que se lião erão os do velho testamento , segundo
o canon hebreo, isto he, com os seos 22 livros ; sem que
haja a menor tradição , a menor noticia do contrario até
principio do seculo 5. ', em que aparece o catalogo de
Innocencio 1.º na sua carta a Exuperio de Tolosa : cata
logo evidentemente falso, pois ainda muitos seculos de
pois, até o seculo 15. ', como diz o mesmo padre Antonio
Pereira , a não tinha a igreja universal publicado algum
decreto , que decidisse afinal esta materia , e obrigasse os
fieis a convirem todos no mesmo . )
Emfim para maior claresa copiaremos aqui os fun
damentos, em que se estriba o padre Antonio Pereira
para justificar o Concilio de Trento por haver admittido
no seo catalogo os livros deutero - canonicos do velho
testamento, regeitados até alli pelas igrejas grega e
latina
1. Fundamento- A tradição não interrupta na
0

igreja romana, desde os primeiros seculos , prova só


por si , que todos os livros proto e deutero -canonicos erão
os mesmos que os Apostolos Pedro e Paulo havião de
clarado canonicos aos primeiros Papas , e estes a seos
successores .
76

2.- ne esta tradição viva na igreja romana no prin


cipio do seculo 5.9, como era constante pela carta de
Innocencio 1.", que consultado por Exuperio bispo de
Tolosa , no anno de 405 , sobre os livros que a igreja
romana tinha por canonicos , respondeo que erão taes e
taes ; isto he, os mesmos que o Concilio de Trento in
serio no seo catalogo.
30 - Que de Santo Innocencio passou a seos suc
cessores a mesma crença, como era constante pelas
actas do concilio romano de 494, presidido pelo Papa S.
Gelasio, ou segundo outros pelo Papa Hormisdas .
4.0-- Que desde Gelasio continuou na igreja esta
crença ate o seculo 15. ' , como era constante pelo de
creto Pro Jacobinis, passado no concilio de Florença no
anno de 1441 ; o qual reunio no seo catalogo os mesmos
livros que o de Trento recebeo como canonicos.
5.°-Que alem da tradição da igreja latina, sabião
os padresde Trento , que ainda antes da carta de Inno
cencio a Exuperio, tinhão dous concilios d’Africa, o 3. °
concilio nacional de Hyponia em 393 , e o 3.º provin
cial de Carthago, celebrado no anno de 397 , admittido
como canonicos os mesmos livros , que Innocencio men
cionou a Exuperio ; sendo que dos catalogos desses
dous concilios faz menção Santo Agostinho na sua carta
a Quinciano .
6. - Que o 6.º concilio de Carthago, celebrado no
anno de 419 , no canon 24 reunio o 38 do concilio de Hypo
nia e o 47 do 3.º concilio de Carthago, que continhão
ambos o mesmo catalogo , abrangendo os livros protoc
deutero-canonicos, com a seguinte clausula-- Para con
firmação deste canon faça - se saber ao nosso irmão e
consacerdote Bonifacio , e aos outros bispos daquellas
partes, que estes são os livros , que recebemos dos nossos
padres para serem lidos na igreja. )
7.° Que constava tambem aos padres do Concilio
de Trento, que a Santa Sé confirmara o catalogo dos li
vros, que o 6.º Concilio de Carthago mandara para a sua
approvação .
8.0 --Finalmente , que os padres de Trento sabião,
que Santo Agostinho , no livro 11 da Doctrina christă ,
cap . 3, dera por fixo e absoluto o catalogo das Escrip
77

turas, que os Concilios d'Africa havião determinado e fi


xado ,
Eis ahi, pois, os fundamentos, com que o padre An
tonio Pereira prettendeo justificar o procedimento do
Concilio de Trento , que alias não foi outro senão porque
os protestantes regeitavão como apocriphos semelhantes
livros, ou os que a Igreja nunca admittira como de igual
autoridade com os proto -canonicos.
Esses fundamentos, uns peccão por absurdos, ou
tros por oppostos ao que estabeleceo antes o mesmo An
tonio Pereira ; outros por contrarios a verdade historica ;
e outros finalmente, porque a tradição, em que mais se
elle funda, lhe he inteiramente contraria, e depõe cla
ramente contra o que elle pretende provar .
Não he, pois, ao Sr. Campos que vamos responder,
he o padre Antonio Pereira, a quem vamos refutar. Para
isto he mister que se saiba a difficuldade, em que elle se
achava relativamente a approvação , que solicitava de Ro
ma, para não perder todo o fructo do trabalho de mais
de 40 annos . Elle tinha grandes culpas na Curia roma
na, que não podia perdoar -lhe a Tentativa theologica, e
muito menos o seo famoso Appendice, que tanto depri
mia a Santa Sé .
Era-lhe entretanto necessario fazer uma segunda
edição da sua traducção da Vulgata, que havia apareci
do pela primeira vez em 1765. A Tentativa theologica
tinha sido ameaçada de uma condemnação, que podia
alcançar todas as suas obras ; tanto que em uns Indi
ces expurgatorios, que havião apparecido em Portugal,
introduzidos clandestinamente pelos Jesuitas , vinhão já
condemnadas todas as obras do padre Antonio Pereira ;
e assim o disse o famoso theologo hespanhol o padre
Galindo em uma carta , refutando a Tentativa. Esses In
dices forão mandados aprehender como ob e subrepti
cios pelo Alv , de 2 de Abril de 1768 .
VI

Sem embargo de toda a protecção do governo por


tuguez o padre Antonio Pereira tremia de susto ; e não
houve sofisma de que não lançasse mão para salvar a
78

sua obra do anathema da Igreja ; nem esforço que não


fizesse para mostrar-se nesta 2.a edição (Lisboa 1794)
mais ultra do que a Curia, a ponto de chegar até o ab
surdo. Não he por isso que o criminamos. Com ef
feito, não se perde de bom grado, e por uma pennada ,
o trabalho de mais de 40 annos , e o fructo de uma vi
da de labores litterarios.
O que acabamos de dizer só serve para provar,
que um homem tão illustrado, como o padre Antonio
Pereira ; que um theologo da sua força e mestria não
cahe nas contradições . em que cahio , nem acumula as
falsidades e contrasensos, que reunio em um só feixe
por ignorante ou por sandeu não de certo ; pelo con
trario , nesse mesmo esforço provou elle a immensa ri
queza de seos recursos intellectuaes . Vamos pois á re
futação, artigo por artigo , fundamento por fundamento .
1.0 - A tradição não interrupta na igreja romana,
diz o padre Antonio Pereira , desde os primeiros seculos,
prova só por si que os livros , tanto da 1.a como da 2 a
ordem , erão os mesmos que os Apostolos Pedro e Paulo
havião declarado canonicos aos primeiros Papas, e estes
a seos successores !
Ora a tradição he a memoria de um facto, que se
transmitte pela palavra dita ou escripta : logo, não pode
haver tradição sem o facto a que se refira . E porem ,
se o facto incontestavel he que nem Jesus Christo, nem
os Apostolos, nem os Santos padres e Doutores, nem os
Concilios, durante os 4 primeiros seculos da igreja , tive
rão como inspirados os livros deutero - canonicos, segue
se que a unica tradição, que existia , era a não canonici
dade de taes livros ; por que era este o unico facto co
nhecido.
Pois não bastão para proval- o os vinte catalogos de
que fizemos menção , e que especificadamente mencio
nou o mesmo Antonio Pereira na sua Prefação geral;
nem o canon do concilio de Laodicea, aprovado depois
pelo canon 1.º do Concilio ecumenico de Calcedonia , e
ultimamente unido ao corpo do Direito canonico , que
rege a igreja universal ?
Não valerá tambem a opinião de Sanio Athanasio
( synop . sac . script. Paris 1627 ) , que depois de enume
79

rar os livros proto-canonicos , diz— « Alem destes ha tam


bem outros livros do velho testamento , que não são ca
nonicos - a Sabedoria de Salomão , a Sabedoria de Syrach,
Esther, Judith, Tobias-estes nào são canonicos. )
E poderia haver opinião , que exceda a de S. Jerony
mo, ou testemunho que o supplante ? O homem , que
estudou a Escriptura sobre o terreno, em que se pas
sarão as scenas do novo e do velho testamento ; que
percorreo a Palestina, a Calilea, emfim todos os paizes,
onde ainda se conservavão intactas as primeiras tradi
ções do Christianismo ?
Pois bem , S. Jeronymo no seo Prologo galeato de
clara fora do canon os livros deutero -canonicos ; ainda
mais, declara-os apocriphos- inter apocrypha esse ponen
dum - Onde existe pois a tradição nunca interrompida,
onde começou ella, quem a fundou , quem a propalou até
o catalogo de Innocencio 1.0 ?
Donde consta que S. Pedro e S. Paulo transmitis
sem uma opinião que nunca tiverão ? Onde, citai um só
texto de S. Paulo ou de S. Pedro , de que possa dedu
sir-se a canonicidade dos livros apocryphos ? Onde exis
tião os primeiros papas em tempo de S. Pedro, se elle
foi o primeiro, ( se o foi) e o segundo só depois da sua
morte? Se S. Paulo tambem morreo no mesmo anno
( 66 ) , e tambem no mesmo dia ?
Entrelanto o padre Antonio Pereira não recua di
ante dessas falsidades, e de contradição em contradição
chega até o absurdo. De um facto , que nunca existio,
elle faz uma tradição nunca interrompida -- levanta um
falso testemunho a S. Pedro e a S. Paulo, e cria uma
porção de papas em tempo de S. Pedro, como se os
papas fossem frades de um convento ! e podessem exis .
tir todos ao mesmo tempo !
Parece incrivel, que um homem , como o padre An
tonio Pereira , cahisse em semelhantes desconchavos ;
mas a Tentativa theologica era um escolho, de que só se
salvaria, indo de encontro ao seuso commum - fel-o por
amor da sua obra ! Qualquer lhe perdoara essa fraqueza,
e não seremos nós que o condemnaremos por isso .
2.0-0 2. ° fundamento he ainda mais falso e absurdo
que o primeiro . Começa por dizer, que a tradição viva
>
80

na igreja romana , no principio do século 5. ' , sobre os


livros que a mesma igreja tinha por canonicos, era a
mesma que consagrara o concilio de Trento , declarando
canonicos os livros apocriphos do velho testamento !
Com effeito ! a tradição viva , quando ella nun
ca existira , quando o facto tinha lugar pela primeira
vez no catalogo de Innocencio , ainda quando semelhante
catalogo não fosse supposto ! Antes de Innocencio , onde
achou o padre Pereira igualados os livros proto e deu
tero - canonicos ? elle que citou vinte catalogos differen
tes , que remecheu , que esquadrinhou , não só o arma
rio dos Judeos na phrase de Tertuliano , como todos os
armarios dos Santos Padres e Doutores , nos 4 primei
ros seculos da igreja ? Como se cahe em semelhante
contradicção comsigo mesmo ?
Poderiamos já mostrar a improcedencia , não da
carta de Innocencio a Exuperio , mas do catalogo que a
acompanhou ; assim como que , ainda quando tal cata
logo fosse veridico, seria elle consequencia do 3. con
cilio de Carthago, (no anno de 397) onde se faz menção
de um catalogo semelhante, e não de uma tradição que
nunca existio na igreja romana , nem na grega , nem mes
mo na igreja d'Africa, como logo provaremos .
VII

3.º Fundamento . - Que de Innocencio 1.º (405) pas


sou a seus successores a mesma crença , como era cons
tante pelas Actas do concilio romano de 494, presidido
pelo papa S. Gelasio , ou segundo outros pelo papa Hor
misdas. (1 )
Ora , de Innocencio (405) a Gelasio (494) houve um
espaço de 90 annos , isto é , se o concilio romano foi pre
sidido pelo papa Gelasio ; porque se o foi pelo papa Hor
misdas devemos dar-lhe mais 20 annos ; o que quer dizer
que a interrupção da tradição passou de um seculo, tem >

po sufficiente para nullificar a memoria de um facto, prin >

cipalmente quando ainda não havia imprensa .


( 1 ) Se o concilio tem a data de 494, o papa que o presidio não
podia ser outro senão S. Gelasjo ; porque Hormisdas só foi papa
em 514, isto é, 20 annos depois. Que de contradições e de mi
>
serias !
81

Todavia vejamos o que é, o que significa esse con


cilio romano, presidido pelo papa Gelasio, ou pelo papa
Hormisdas segundo outros. Aceitamos o papa Gelasio sem
a menor difficuldade. Acreditaria o padre A. Pereira
na existencia real desse concilio romano de 70 bispos ?
Onde existia elle até o seculo 9.º , em que collecção ?
Pois bem , esse intitulado concilio teve a honra de ver
pela primeira vez a luz nas falsas Decretaes de Isidoro
Mercator: ; nesse compendio da mais refinada impostura ;
e que a propria igreja romana não ousaria hoje citar .
Nem mesmo comprehendemos como o padre A. Pe
reira ousou citar Gelasio, como autoridade na igreja uni
versal , quando esse papa não admittia na Eucharistia a
presença real de J. Christo , senão uma mera representa
ção ; servindo-se os protestantes dessa doctrina em apoio
da que seguem a este respeito .
Já que fallamos em Isidoro Mercator, vamos dar uma
breve noticia desse impostor e da sua obra , que tantos
males causou a igreja .
No fim do seculo 8.9 , ou principio do 9.º, appare
ceu em um convento de Moguncia, reinando Carlos Mag
no, uma collecção de Canones e de Decretos , que se di
zia escripta por um tal Isidoro Mercator ; em cuja collec
ção haviam muitos Decretos e Cartas forjadas , e attri
buidas aos primeiros bispos de Roma, desde S. Clemen
te até Agapito ou Silverio.
O impostor a compoz com pedaços de escriptos
alheios, e outros proprios seus , sobre quasi todos os pon
>

tos de disciplina conhecidos até o seculo 8.°; mas fel- o


com tanto desaso, que separando-se da disciplina e da
simplicidade antiga, imitou a autoridade soberana, que já
usavam os papas em tempo de Carlos Magno .
Sem embargo,a impostura só foi conhecida e eviden
te depois do seculo 15.º ou da invenção da imprensa,
em que se multiplicaram os exemplares da biblia, das
actas dos concilios, e das obras dos Santos padres e dou
tores da igreja.
Então foi facil comparar as doutrinas de uns e de
outros e as mesmas datas ; e por esta comparação foi
reconhecida a impostura ; assim como que o objecto on
fim daquella ficção era proporcionar aos futuros papas
11 .
82

documentos , em que se estribassem para provar, que


todo o poder ecclesiastico, de que começaram a usar
desde as liberalidades de Pepino e de Carlos Magno, já
tinha sido exercido , e reconhecido como legitimo e ca
nonico , desde os apostolos .
Correspondeu o effeito aos desejos, e foi motivo para
que os papas d'ahi em diante, não contentes com o que
já possuiam , aspirassem a muito mais ; tanto que Grego
rio 7.º, em fins do seculo 11 , aspirou a theocracia univer
sal, decretando 27 maximas , tão oppostas ao Evangelho
e a simplicidade da disciplina antiga, que deu lugar á uma
guerra, que durou por mais de dous seculos .
Descoberta a impostura de Isidoro , e por consequen
cia a falsidade das suas Decretaes , cahia o poder dos pa
pas na simplicidade da primitiva igreja, e voltava ao que
tinha sido nos tempos verdadeiramente apostolicos - mas
isto não convinha i'uma epoca , em que ainda se julgavam
os papas com direito de desthronar os reis, absolvendo
os subditos do juramento de fidelidade, como aconteceu ,
ainda em tempo de S. Pio 5 , com a rainha Isabel de lo
glaterra pela Bulla-- Regnans in excelsis.
E porém os tempos já eram outros ; Isabel, edu
cada catholica por sua irmã Maria , fez - se então protes
tante-os papistas foram enforcados, e Roma perdeu a
Inglaterra para sempre ; como Leão 10.º perdeu a maior
parte da Allemanha, e como Alexandre 8.º teria perdido
a França, se não tivesse morrido a tempo de evitar se
melhante catastrophe . Clemente 7.', que havia dado
causa ao scisma da Inglaterra , excommungando Henri
que 8. °, teria perdido irremissivelmente a Hespanha, se
Carlos 5. ° não tivesse o poder de suffocar a Santa Liga,
fazendo o papa prisioneiro, e dispondo assim da Italia ,
como até mesmo da França .
As falsificações, a que recorreu a igreja de Roma
para supprir as Decretaes de Isidoro , deram em resul
tado esse cáhos das Escripturas, dos concilios, das obras
dos Santos Padres , pondo em contradicção umas com
outras , e até comsigo mesmo ; de maneira que basta
confrontar entre si dous expositores, ou recorrer aos co
dices anteriores ao seculo 15.º para se conhecer logo a
falsificação dos textos . Vēde, pois Sr. padre Campos,
83

se com taes elementos podeis sustentar uma doutrina


tão opposta a que professou a igreja desde Jesus Christo
até o seculo 9.0 - e ainda dahi em diante até o seculo 16.",
apesar das falsas Decretaes de Isidoro .
E não vos admireis , Sr. padre Campos , dessas fre
quentes falsificações dos livros sagrados pela igreja de
Roma ; os proprios papas assim 0o faziam em seu provei
to , sempre que queriam justificar um poder que nunca
tiveram , ou que lhes escapava das mãos. E senão vede ,
Sr. padre .
Leão 10.º querendo firmar, como ponto de fé catho
lica , a autoridade dos papas, tratou em uma bulla - Pas
tor lernus - de estabelecer uma definição dogmatica para
provar, que o supremo poder do vigario de Jesus Christo
estava fundado na velha disciplina judaica ; e para isto
truncou e viciou um texto , que elle citou como do livro
dos Reis, e que entretanto só se acha no Deuteronomio,
cap. 17 v . 12.
A mesma fraude praticou Innocencio 3.0 (quando
ainda prevaleciam as falsas Decretaes de Isidoro) no cap .
- Per venerabilem , 13 - citando o mesmo texto trunca
-

do e viciado . Alem de que , como advertio o veneravel


Pedro da Marca, da policia da synagoga não se tirava bom
>

argumento para a policia da igreja Antonio Pereira , Tent.


theol. pp . 180 a 182.)
O mesmo padre Antonio Pereira prova concluden
temente a falsidade de todos os documentos da tradição
apontados por Leão 10.º ; de sorte que ficaram em pé os
Decretos de Constança . Nessa mesma occasião cita Perei
ra uma porção de theologos de todas as nações, que não
só sustentão a doutrina dos citados decretos , como que
se não deve receber como definição dogmatica a citada
bulla de Leão 10.º, porque nada prova acerca do pretenso
poder dos papas (A. Pereira Terit. pp. 82 a 84. )
VIII

Voltemos ainda ao 3.º fundamento , e vejamos o que


ha acerca do catalogo, que se diz conter a carta de Inno
cio 1.º a Exuperio. Convenhamos na existencia da carta ,
mas ella nunca conteve em si o catalogo , que se lhe at
84

tribue ; apenas vem appenso á ella . Fora dessa carta


não existe algum outro testemunho do catalogo, de que
falla o padre Antonio Pereira ; pelo contrario ha muitas
provas em seu detrimento .
O mesmo se pode dizer do catalogo do concilio ro
mano presidido por Gelasio ; concilio falso como as De
cretaes de Isidoro, em cujo ventre se gerou. Porém o
que ha de sorprehendente, é que muitos escriptores che
gam a duvidar que fosse Isidoro o que accrescentasse ao
seu concilio romano um catalogo das Escripturas, con
tendo uma lista dos livros canonicos, como a do Concilio
de Trento ; porque uma das mais antigas copias, que exis
>

te do tal concilio romano , extrahida das falsas Decretaes


(a da propria bibliotheca dos papas), não tem a lista dos
livros da Escriptura, como se pode ver nos- Canones
.
Gratiani-(vol. 2p 316 )—é que a falsificação fez -se mui
to depois, talvez no seculo 16.º.
Vamos ainda a outras provas. Cassiodoro , no seculo
6.° , fallando das Escripturas, nenhuma allusão nem men
ção faz dos catalogos de Innocencio e de Gelasio . Cres
conio, no seculo 7.9, falla da carta de Innocencio, mas
não do catalogo . - Este catalogo , portanto, attribuido a
Innocencio é obra tambem do impostor Isidoro ; tanto
que a primeira menção, que de semelhante catalogo se
fez, foi pelo papa Nicoláo no seculo 9.º n'uma carta, em
>

que procurava mostrar a authenticidade das falsas Decre


taes de Isidoro ; e como prova cita a carta e o catalogo
attribuidos a Innocencio . Ainda ha outras provas sobre a
falsidade deste catalogo , que referiremos mais adiante .
4. ° Fundamento-Que desde Gelasio continuou esta
crença na igreja até o seculo 15.º ; como é constante pelo
Decreto - Pro Jacobinis - passado no concilio de Floren
ça no anno de 1441 ; o qual reunio no seu catalogo os
mesmos livros que os de Trento comocanonicos.
Entre 494 e 1441, isto é , desde Gelasio até o conci
lio de Florença vão perto de mil annos ; c nesse longo es
paço, não só se não conservou, como não podia conservar
se uma crença , que nunca existira ; pelo contrario prova
remos que a tradição historica, durante esses dez séculos ,
fôra sempre contra os livros deutero -canonicos ; pois
que ainda quando admittidos no canon de algumas igre
85

jas, não o eram como livros ou regra para firmar as cou


sas , que são de fé ; mas tão somente como livros para a
edificação dos fieis na phrase de S. Jeronymo.
Entretanto, para não invertermos a cada passo a or
dem chronologica, que temos estabelecido , vamos en
globar os quatro ultimos fundamentos, em que se apoiou
o Concilio de Trento para declarar canonicos todos os
livros do Velho Testamento , quer da 1.a quer da 2.a or
dem . Esses ultimos fundamentos são os seguintes :
.

0 3.º concilio nacional de Hipponia - 03.00 0 6.° de


Carthago, que trazem todos elles o mesmo catalogo como
o de Innocencio - A carta de Santo Agostinho a Quincia
no - 0 canon do 6.º concilio de Carthago approvado pela
Santa Sé-0 Decreto -Pro Jacobinis-de Eugenio 4.0pas.
sado no concilio de Florença em 1441 - Santo Agostinho
dá por fixo o catalogo das Escripturas, que os concilios
d'Africa haviam determinado e fixado .
Eis ahi os pontos cardeaes , em que se funda o pa
dre Antonio Pereira para justificar o procedimento do
Concilio de Trento quando chamou para o canon dos livros
divinos os deutero-canonicos-Não será preciso grande
esforço para provarmos, que todos esses pontos são falsos,
e que até o Concilio de Trento nenhum Synodo ou Decreto
pontificio havia igualado os livros da 1.a com os da 2.a
ordem ; e o que mais graça tem, é que assim o diz o pro
prio Antonio l'ereira , a quem refutamos. Vamos as provas.
Quanto ao concilio de Hypponia (em 393) apenas en :
contramos em Dupin alguns escriptores, que o mencionam
na ordem dos que contém um catalogo dos livros cano
nicos, sem declarar quaes são-e nada mais a este res
peito ; o que induz a crer, que esse catalogo , se existe ,
é tão falso como o dos 2 .concilios de Carthago , que se
lhe seguiram .
O terceiro, concilio provincial de Carthago (em 397)
traz um catalogo , igual ao do Concilio de Trento , abran
gendo todos os livros do Velho Testamento , quer da
1.a quer da 2.a ordem ; mas depois do canon, que
traz o citado catalogo , vem a seguinte clausula : « Para
confirmação deste canon faça -se saber ao nosso irmão
e consacerdote Bonifacio, e aos outros bispos daquellas
86

partes, que estes são os livros, que recebemos dos nossos


padres para serem lidos na igreja. »
Ora , este concilio foi celebrado no anno de 397 , se
gundo Dupin e a collecção de Labbe e Cossart, e Bonifa
cio só foi papa no anno de 418, no que ha uma differen
ça de 21 annos ; erro que não podia cometter o proprio
concilio. Logo esse catalogo e essa clausula foram ali
collocados, muito tempo depois, por mão estranha as dos
padres do dito concilio ; e por pessoa , que ignorava in
teiramente a chronologia dos papas .
.

Desorientada a igreja romana com semelhante ana


chronismo, imaginou ou passou o mesmo catalogo e
clausula para o 6.º concilio de Carthago, celebrado no
anno de 419 , um anno depois da eleição de Bonifacio .
Tudo assim estaria remediado ; mas he bem difficil re
mediar uma falsidade com outra falsidade . Na collecção
citada de Labbe e Cossart. ( vol . 2. p . 1589 ), onde vem o
6.° concilio de Carthago, não se encontra o catalogo nem
a clausula .
Assim he que o 3.º concilio de carthago pecca por
anachronico ; o 6.º por que não existem nelle o cata
logo nem a clausula citados ; e como estes não he menos
falso o que se diz do concilio de Hyponia. Vamos pois
a outras provas para reduzir o nosso antagonista a ul
tima extremidade.
Citão -se nada menos de tres concilios d'Africa, no
fim do 4.° e principio do 5. ° seculo , para provar a exis
tencia de um catalogo dos livros canonicos como o de
Trento ; o que seria mais que sufficiente para firmar a
opinião a este respeito na igreja africana . E porem , o
que acontece ?
Junilio bispo africano, fallando dos livros de To
bias, Judith e Maccabeos, faz uma pergunta , a que elle
mesmo responde nos seguintes termos - Por que tam
bem não correm estes livros entre as Escripturas cano
nicas ? Porque tambem não corrião entre os Hebreus ,
como testificão Jeronymo e outros mais -
) - ( Junil . Afric .
de part. div. legis. Liv. 1 cap . 3 )
Primasio, bispo de Adrumeto, tambem africano, no
seu commentario sobre o Apocalipse , cap. 4. ', diz que
pelas 24 azas, e 24 anciões faz referencia S. João aos li
87

vros do velho testamento , que « naquelle mesmo numero


recebemos por autoridade canonica . »
Estes dous bispos d’Africa florescerão no seculo 6.0
-poderião elles ignorar as disposições canonicas dos tres
concilios ( de Ilyponia , 3.° e 6º de Carthago ) a este
respeito ? Poderião elles ignorar, alem disto, a opinião
de Santo Agostinho igualmente bispo d'Africa ?
E quando se assevera, que Bonifacio aprovara o ca
talogo dos livros canonicos enviado pelo 6.0 concilio de
Carthago para suaconfirmação, poderião aquelles bispos
ignorar semelhante approvação ? Se o não ignoravão ,
como fallão de maneira a fazer acreditar, que semelhantes
disposições ou canones nunca existirão ?
IX

Suppunhamos verdadeiro o catalogo de Innocencio


em 405, e que esse catalogo fosse em tudo semelhante
ao do 3.º concilio de carthago ; a consequencia he que
a igreja d'Africa não podia ignorar, e muito menos es
quecer um facto passado no curto espaço de 14 annos .
que tanto dista da carta e catalogo de Innocencio ao do
6.0 concilio de carthago
Logo, para que remeter ao papa Bonifacio , e para
sua confirmação, o mesmo catalogo que Innocencio 1.º
havia reconhecido e admittido como doutrina corrente
na igreja latina ? Se todas essas contradições não fossem
sufficientes para demonstrar a falsidade de todos esses
catalogos, bastaria o seguinte .
Havendo o papa S. Gregorio Magno, no fim do se
culo 6.0 , de citar um texto dos Macabeus, preveniu aos
leitores, que l'ho não extranhassem , disendo no Liv . 19
dos Moraos, N. 34- « De qua re non inordinate agimus ,
si ex libris licet non canonicis, sed tamen ad ædificatio
nem Ecclesiæ editis testimonium proferamus » ( Pref. ger.
do padre Antonio Pereira . )
Para provar- vos ainda mais a falsidade dos catalo
gos de Innocencio e de Gelasio diremos , que ambos esses
catalogos trazião como canonico o livro do Apocalipse,
entretanto o 4. ° concilio de Toledo, celebrado em 633 ,
não quiz admitir o mesmo livro do Apocalipse no seu
88

canon 17, por que não o tinha como canonico ; e acres


senta o mesmissimo Antonio Pereira— « logo nenhum
decreto da igreja universal. tinha atelli ( meiado do se
culo 7.° )fixado por escripto o numero dos livros cano
nicos . »
Sr. padres Campos , havemos de emparedar-vos
não vos hade ficar sahida alguma, nem para vós nem
para os vossos asseclas . Ainda mais provas.
Diz Dupin , na obra citada, que fora o conci
lio de Laodicea o primeiro que fizera um catalogo dos
livros de ambos os testamentos, no anno . 364 da era
christâ ; e que nelle não incluira os livros deutero-cano
nicos do velho testamento Tom . 1. p . 614 ).
Ora , os canones desse Synodo forão admitidos no
corpo do direito canonico , que obriga a igreja univer
sal . Nesse corpo do direito canonico, o canon 163 he
exactamente o canon 60 de Laodicea, que contemo
canon hebreu , como traz S. Jeronymo no seu Prologo
galeato .
Quereis mais provas ? Pois bem , ainda achamos
no mesmo Dupin ( T. 1. p . 677 ) que os canones de
Laodicea forão aprovados pelo canon 1.º do concilio ge
ral de Calcedonia ( 451 ) ( 1 ). De sorte que a meiados do
seculo 5.º foi aprovado por um concilio geral o de Lao
dicea , contendo unicamente o canon hebreu ! Onde ficão
pois os vossos concilios d’Africa, e mesmo onde fica o
catalogo de Innocencio diante de um concilio ecumenico,
e do corpo inteiro do direito canonico, que rege a igreja
universal ?
E o que se segue de todas essas contradições ? He
que nunca existirão semelhantes catalogos de Africa, nem
de Innocencio nem de Gelasio , e que prevalece o tes
temunho de S. Jeronymo , de S. João Chrisostomo e de
S. Gregorio Magno - o 1.º mereceu o titulo de Doutor
Maximo da igreja, por que nenhum maior que elle-o
2. ° he o grande luminar da igreja grega—0 3.0 0 Principe
dos theologos, e o primeiro dos Gregorios, a quem a
igreja romana deve o que foi, desde o seculo 7.º até
0 18.0
( 1 ) He o 4.º Concilio geral do Oriente , e o primeiro que se
chamou ecumenico .
89

Eis ahi por terra , Sr. padre Campos, todo o vosso


artefacto , ou a igrejinha do padre Antonio Pereira ; fi
cando tão somente a gloria de nos haverdes dado um tra
balho insano para cousa nenhuma . O que significa tudo
isto , que copiastes servilmente , ou mesmo a minha
resposta ? Inania verba et præterea nihil-- Pois bem , já
que nos condemnastes ao martirio , iremos com a cruz
ao Calvario .
Vamos tratar agora de Santo Agostinho , cujo cata
logo servio , na opinião do padre Antonio Pereira , de 8.0
fundamento aos padres de Trento para decretarem o ca
non da Escriptura, conforme se vê na sessão 4.a do mes
mo concilio .
O padre Pereira cita na verdade Santo Agostinho,
como tendo incluido no catalogo dos livros do velho tes.
tamento os deutero - canonicos - mas, como o fez elle ?
( se he que o fez ). Acaso deu - lhes igual autoridade ?
Não, apenas os incluio como livros ecclesiasticos ; isto be ,
como livros que a igreja lê, e admitte na sua regra , mas
que os não tem como fundamentaes das cousas, que são
da fé . E senão , veja - se o que diz o mesmo S. Agostinho
( Liv . 2. Cont. Gaud. cap. 23 ) « Este livro , que se chama
Nacabeos, não o estimão os Judeos, como a lei, os pro
phetas e os Psalmos ; os quaes o Senhor diz, que darão
delle testemunho ( Lucas , 24-44 ) .
S. Agostinho não confundio os livros proto com os
de utero- canonicos ; antes fez preceder o seu catalogo
de varias considerações, para mostrar a differença entre
o canon blivirlo e o canon ecclesiastico . a 0 methodo ,
diz elle , que se deve observar ácerca das Escripturas
canonicas, he o seguinte : devem ser preferidos aquelles
livros, que são recebidos por todas as igrejas ; depois os
que são recebidos pelo maior numero , ou pelas igrejas
mais importantes . »D ( De doctr. christ . L. 2. C. 8. ) .
Isto mesmo escreviam S. Jerónymo , no prefacio dos
livros de Salomão, e Rufino na exposição do symbolo ,
afirmando que os ditos livros ( deutero -canonicos ) sim
os lia a igreja aos ficis como pios e edificativos , mas não
como livros donde ella tirasse os seus dogmas . De sorte
que Santo Agostinho, longe de destruir a opinião de S.
Jeronymo, de Rufino ou a de qualquer outro padre até
12
90

o seculo 5.º , cujos catalogos excluiram os livros da 2.a


ordem, como não divinos, veio ratifical - os com a sua
doutrina .
X

Em outro lugar diz o mesmo S. Agostinho- « Posto


que no livro dos Macabeos hajam algumas cousas convé
nientes para esta classe da escriptos, todavia não nos
occuparemos dellas, porque somente prelendemos tratar
de uma breve exposição dos milagres no canon divino >>
( Aug. de Mir. Sac. Script. L. 2. C. 34 ) . Em outra obra
é ainda mais expressivo e mais claro- « Esta computa
ção não se encontra nas Santas Escripturas, que se cha
mam canonicus ; mas em outras, entre as quaes estão os
Macabeos. ( De Civit. Dei . L. 18, C. 36 ) .
Nenhum pois dos fundamentos do padre A. Pereira
existe em pé até fim do seculo 5.º, ou até depois do cata
logo de Gelasio ou do Concilio romano presidido por elle .
Resta fallar de S. Isidoro, que foi bispo de Sevilha no
principio do seculo 7.0 ( 601 ) ; mas nada achamos em
Dupin , senão a relação das suas obras ; isto he, 20.li
vros das Origens ou ethimologias, Commentario sobre o
velho testamento,, um tratado dos escriptores ecclesias
ticos, e uma chronica desde Adão até o anno de 626 do
mundo .
Seja qualfôr a opinião de Isidoro, não pode ella ser
diversa da de S. Agostinho, nem opposta a unanime cren
ça da Igreja a respeito da distincção entre livros proto e
deutero - canonicos. Crença ou tradição conservada em
todos os séculos , desde o 1.º até o 16.", em que se cele
brou o Concilio de Trento .
E ainda quando a opinião do bispo de Sevilha fosse
contraria á essa crença ou tradição unanime , ella ficaria.
aniquilada pelas opiniões de outros muitos padres, ainda
mais celebres que elle , e que viveram no mesmo Século
ou em seculos posteriores , como S. Gregorio Magno no 1

mesmo seculo 7.0 ;; no 8. S. João Damasceno (Liv ,4 da fé


ortodox. C. 17 ) ; no 9.º Nicephoro, patriarcha de Cons
tantinopla ; e assim successivamenteaté os cardeaes Caye
tano e Ximenes no seculo 16.0
Pela ordem chronologica só nos falta tratar do Con
91

cilio de Florença , que he o cavallo de batalha dos de


fensores dos livros apocrifos. Para melhor dedusirmos
as nossas provas, começaremos por copiar exactamente
o que disse a esse respeito o mesmo A. Pereira .
a Corria já muito adiantado o seculo 15.', quando
no anno de 1441 passou o papa Eugenio 4.0 no Concilio
Florentino o Decreto Pro Jacobinis, que começa - Cantate
Domino -e o passou com a clausula Sacro approbante
deccumenico Concilio Florentino - Neste decreto vem in
serta a profissão de fé, que o dito Papa mandou que fises
sem os Jacobinos ou Jacobitas, e que elles com effeito
fiseram . )
« Nesta profissão, juntamente com os outros artigos
de fé catholica, se contem um catalogo dos livros, que
devem ter por canonicos, o qual em tudo e por tudo he
o mesmissimo, que o que acima mencionamos ; isto he,
de Innocencio 1. , de Gelasio , e da igreja africana. Neste
>

catalogo pois vem nomeados como canonicos, e de igual


autoridade que os outros do testamento velho , os livros
de Judith , de Tobias, Sapiencia, Ecclesiastico e Ma
cabeos . D.
Para o que temos de diser cumpre faser antes al
gumas advertencias extrahidas do mesmo padre A. Pe
reira , acerca do Concilio de Florença .
1.a O Concilio, composto de padres das igrejas
latina e grega, fez passar no mez de Julho de 1439 o De
creto chamado da União , que começa-Lætentur Cæli
depois do qual brevemente se despediram os Gregos de
Florença, e se foram para suas terras . Este Decreto foi
assignado pelo Papa, pelos Cardeaes, e pelos prelados de
ambas as igrejas latina e grega, que se acharam pre
sentes .
2.a o Decreto porem Pro Jacobinis, que contem o
catalogo dos livros canonicos, foi passado no méz de Fe
vereiro de 1441 ; e nelle só estão assignados o Papa e
alguns Cardeaes, sem um só prelado de nenhuma das
igrejas. O mesmo succedeu com o Decreto - Pro Ar
menis - passado em Novembro do mesmo anno .
3.a Concluido ou encerrado o Concilio , foram leva
das as suas actas para o tombo do Castello de Santo An
gelo , especie de inferno pagão , donde não se sahe sem
92

licença do Cerbero que o guarda. Era provavel que


com essas actas fossem tambem os citados Decretos
-Pro Jacobinisme Pro Armenis no seu original; ( 1 )
mas não aconteceu assim .
a
4. a Entretanto com geral pasmo e admiração , mais
de cem annos depois, já em tempo do Concilio de Tren
to , appareceo na Cidade de Fiesoli, mui visinha de Flo
rença , e no convento dos padres Franciscanos, o decreto
original Pro Jacobinis, acompanhado do mencionado ca
talogo dos livros do velho testamento, como fôra decre
tado pelo Concilio de Trento .
5.a Que ao mesmo tempo apparecerão em Roma va
rias copias , além da que devia existir no Castello de S.
Angelo ; como certificão os documentos, que das actas
dos Concilios de Florença e de Trento reproduzio Labbe ,
na sua collecção dos Concilios da edicção de Veneza
Col. 1219 e 1220- ( 1671 ) .
Eis ahi pois, Sr. padre Campos, material para serias
reflexões. Como foi parar ao convento dos Franciscanos
em Fiesoli o decreto original Pro Jacobinis, com o ca
talogo dos livros canonicos ? Quem o subtrahio , dei
xando aliás uma copia , que foi naturalmente appensa ás
actas do Concilio para o Castello de S. Angelo ? Quem
tinha interesse nessa subtração ? Como se conservou tan
to em segredo, que de tal decreto não teve a menor no
ticia Santo Antonino , contemporaneo do mesmo Concilio ,
e depois arcebispo da mesma cidade de Florença ?
XI

O que julgaes de todas essas contradicções, de to


dos esses enigmas ou contrasensos, de todas essas ano
( 1 ) Praticou - se o mesmo com o Concilio de Trento . Uma
vez aferrolhadas as actas no Castello de S. Angelo , só ao Jesuita
Pallavicino foi permittido examinal-as ; porque lle fora incum
bida a tarefa de escrever, não a historia veridica das sessões,
mas uma resposta a Sarpi, negando tudo quanto este afirmara .
Até 1671 , em que apareceram as actas de úni e outro concilio na
>

collecção de Labbe, ninguem as tinha visto antes. Quem pode


asseverar se ellas disiam exactamente o que se havia passado nos
dous concilios ; ou o que mais conviesse á Curia romana ? Os
anjos que respondam .
93

malias ? Pois bem , Sr. padre Campos, quereis saber a


consequencia de tudo isto ? he que tanto o decreto , como o
catalogo anexo , são falsos e forjados já em tempo do Con
cilio de Trento, como fundamento para uma medida, que
hia desmentir a tradição constante na igreja , desde Je
sus Christo até aquella epoca. He o proprio Antonio
Pereira quem se encarrega de provar a falsidade do ci
tado dec. Pro Jacobinis , e do seu catalogo pela maneira
seguinte .
Com effeito , Santo Antonino , arcebispo de Floren
ça , que sobreviveu ao Concilio Florentino ; e como at
testa o escriptor coevo da sua vida, revio e corrigio an
tes de morrer a sua obra intitulada Summa theolo
gica, quando na 3.a parte , tit 18 cap . 6 , § 2 , trata dos
livros canonicos, diz primeiramente que os livros de Ju
dith , Tobias , Sapiencia , Ecclesiastico e Macabeos, na
opinião de S. Jeronymo não erão de tanta autoridade
como os outros da Sagrada Escriptura .
Nesta passagem allude manifestamente Santo Anto
nino ( continua o padre Antonio Pereira) ao juizo, que
daquelles livros mostrava fazer S. Jeronymo no lugar que
atraz apontamos da sua Prefação dos livros de Salomão.
Depois prosegue Santo Antonino immediatamente assim :
co mesmo diz tambem S. Thomaz na segunda da segun
da , e Nicolao de Lyra sobre Tobias : e vem a ser, que
estes livros não são de tanta autoridade , que se possa
delles argumentar eficazmente nas cousas que são da fé,
como os outros livros da Sagrada Escriptura . Portanto
estes livros tem talvez uma autoridade tal qual tem os
ditos dos Santos Doutores approvados pela igreja . ) D

Até aqui Santo Antonino (continua Pereira ), que fal


lesceo no anno de. 1459 , de cujas palavras se colhem
tres cousas dignissimas de toda a ponderação : 1.a que
movidos da opinião, em que nos fins do seculo IV ou
principio do V mostrara estar S. Jeronymo ; e ainda no
seculo XIIl parecia a S. Thomaz , e no seculo XIV a Ni
colao de Lyra, que os livros de Judith, Tobias, Sapien
cia , Ecclesiastico e Macabeos não tinham tanta autorida
de para delles se provarem os dogmas da fé, como a ti
nham os outros livros do testamento velho : o que he
um evidente signal que aquelles dous grandes Doctores
94

não conheciam definição algumu da igreja universal em


contrario.
2.2 - Que movido da opinião de S. Thomaz (ainda
Pereira) e de Nicolao de Lyra , se inclinou Santo Anto
nino a crer que a autoridade dos ditos livros não passa
va da que tem as obras dos Santos Padres aprovadas
pela igreja.
3.a -Finalmente que Santo Antonino não teve noti
cia do Decreto Pro Jacobinis do Concilio Florentino ; ou
não obstante a clausula -sacro approbante æcumenico
C

Concilio – não reconheceu por ecumenico o Concilio Flo


rentino, ao tempo em que nelle passou Eugenio IV o re
ferido Decreto , que foi a 4 de Fevereiro de 1441 .
Ora , será crivel que Santo Antonino, natural de Flo
rença, coevo da reunião do Concilio , arcebispo da mes
ma Cidade em 1446 , isto he, cinco annos depois de pas
sado o Decreto Pro Jacobinis ; será crivel, exclama o
padre Pereira , que o Santo arcebispo ignorasse a exis
tencia de um tal Decreto, principalmente se reflectirmos
que até o tempo do Concilio de Trento, posterior ao Flo
rentino mais de cem annos , se conservava na Cidade de
Fiesoli , não só suffraganea mas mui visinha de Florença ,
o mesmo Decreto original ?
Porque se conservou em segredo semelhante docu
mento durante um seculo ?. A razão he muito clara :
he porque não existira antes , porque não era obra do
Concilio, e por isso não foi assignado por um só dos pre
lados que o compuseram .
E porque apareceu em tempo do Concilio de Tren
to ? porque só então fóra forjado para servir de funda
mento ao decreto que igualou todos os livros (proto e
deutero -canonicos) do velho testamento , contra a cren
ça universal de toda a christandade , que até então não
havia admittido igual autoridade entre os livros da 1.a
e os da 2.a ordem .
Pois bem , ainda mais outra autoridade para corro .
borar a do Santo arcebispo de Florença , e he a do gran
de theologo , como o denomina o padre Antonio Pereira,
Affonso Tostado bispo de Avila , contemporaneo de San
to Antonino e do Concilio de Florença, que na preſa
ção ao Evangelho de S. Matheus, escripta alguns annos
95

depois de 1441, em que foi publicado o decreto Pro Ja


cobinis, mostrou estar nos mesmos sentimentos que S.
Antonino sobre os livros de Judith , Tobias, Sapiencia ,
Ecclesiastico , e os 2 dos Macabeos : ensinando na ques
tão 2.a , que ainda que a Igreja os permitte ler aos fieis,
e ella mesma os lê nos seus officios, nem por isso com
tudo os têm a igreja por canonicos, nem obriga os fieis
a recebel-os, nem tem por desobedientes e rebeldes aos
que os não recebem (Pref. geral, p. X.)
Dizei-nos agora ,Sr. padre Campos : seria possivel
que o douto bispo de Avila, grande theologo hespanhol,
ignorasse a existencia do decreto Pro Jacobinis ; ou que
.

fosse de encontro a decisão de um Concilio ecumenico ,


presidido por um Papa como Eugenio IV ?
Se isto não é possivel, nem acreditavel , o que se
segue d'ahi? é que semelhante Decreto não existio nem
passou no Concilio de Florença ; nem delle teve conheci
mento a igreja catholica , até o tempo do Concilio de
-

Trento , em que surgio de um convento de frades fran -

ciscanos , como de outro convento de Moguncia surgi


ramas falsas Decretaes de. Isidoro Mercator, no fim
do seculo 8. ° ou principio do 9.0— Mais uma fraude pia ,
Sr. padre, ou por outra, mais um escandalo para a
igreja de Deos.
XII

Ainda não param aqui as provas da falsidade do De


creto Pro -Jacobinis ; ainda é o proprio A. Pereira quem
fornece titulos para semelhante crença , ou para tirar toda
a duvida a esse respeito , dizendo na sua prefacção geral,
que o cardeal Caetano, que floresceu e escreveu noventa
annos depois , no fim dos seus Commentarios sobre os li
vros historicos ; do Velho Testamento, impressos em Ro
ma no anno de 1533, excluio da classe dos divinos todos
os seis livros ; isto é, Judith , Tobias, Sapiencia, Eccle
siastico , e os 2 dos Macabeos.
Ainda passou a mais o cardeal Caetano . Tendo o
mesmo Concilio Florentino contado entre os livros cano
nicos do Novo Testamento a epistola de S. Paulo aos He
breos, o dito Caetano, no prologo dos seus Commenta
rios á mesma epistola ; nenhum escrupulo faz de negar que
96

ella fosse de S. Paulo , ou que fosse canonica , propondo


em prova de uma e outra cousa varios argumentos, que
ali se podem ver .
Continua o padre Pereira « Segundo o exactissimo
Echard na bibliotheca da Ordem dos Pregadores, foram
>

estes Commentarios acabados de compor em Caeta a 16


de Agosto de 1529 ; e tendo sido revistos por João Da
niel Penitenciario do Papa, e familiar do mesmo Caeta
no , sahiram impressos á primeira vez em Paris, na offi
cina de Ascencio no anno de 1532 , com uma dedicatoria ao
Imperador Carlos 5.0.. Eu os tenho diante dos olhos de
uma edição posterior, tambem de Paris, que é a de João
Pequeno de 1540. >
« Como a ninguem pode vir á cabeça , que um ho
mem como o cardeal Caetano, ou os revedores romanos e
parisienses da sua obra , ignorassem o que tão de fresco
se tinha passado no Concilio de Florença com os Ja
cobinos , sobre que livros se deviam ter por canonicos ;
fica daqui claro e manifesto, que nem uns nem outros
tinham o Decreto Pro -Jacobinis por Decreto dogmatico
da igreja universal; porque a terem-no por tal, nem
Caetano se attreveria a negar a canonicidade da epistola
aos Hebreos, nem os revedores da obra de Caetano dei
xariam passar como indifferente a sua opinião . )
Perdoe-nos a memoria do padre Antonio Pereira .
Não era essa a conclusão contida nos seus principios .
Se na realidade existia o Decreto Pro - Jacobinis, com a
clausula-sacro aprobante oecumenico Concilio - um Car
deal da Santa Igreja não podia ter o mesmo Decreto como
não dogmatico , nem duvidar da ecumenicidade do Conci
lio , uma vez approvado por Eugenio 4. ' , como fora o de
Trento por Pio 4.º , que o tornou ecumenico em todas as
suas partes, como diz o proprio Antonio Pereira . Qual é
pois a unica conclusão a tirar de tudo isso ?
E' que semelhante Decreto nunca passou no Conci
lio de Florença , nem existio até que fora forjado, talvez
muito depois da 4.a sessão do Concilio de Trento , cele
brada em Abril de 1546 - foi mais um documento para
apoiar a decisão deste Concilio , ou para diminuir a im
pressão, que devia causar na igreja uma inovação tão
contraria a crença , nunca até então interrompida, de 16
97

seculos acerca dos livros deutero- canonicos . Donde é


forçoso deduzir, que o Concilio de Trento foi o primeiro,
que decretou a canonicidade dos livros historicos ou da
segunda ordem ; sem comtudo attrever-se a igualal-os
em autoridade com os proto -canonicos, como logo pro
varemos .
Entretanto o Sr. padre Campos passou uma solem
ne descompostura ao cardeal Caetano de conta de Ambro
sio Catharino, Melchior Cano, Affonso de Castro e ou
tros , sem se lembrar que Caetano havia dito o mesmo
que Santo Antonino ! Mas , o Sr. Campos tem medo dos
Santos ; e o que fez ? engolio Santo Antonino e.... O car
deal Caetano ! que lhe faça muito bom proveito.
O certo é que Santo Antonino, Tostado e Caetano
não tiveram resposta satisfactoria ; que as obras de Cae
tano correram livremente em Roma sem a minima re
flexão da sagrada congregação do Index-o que não acon
teceria, se a sua opiniãofosse de encontro a um decreto
dogmatico, ou a uma definição pontificia como o Decre
to Pro -Jacobinis .
Sr. padre ! affastai um pouco o espirito de vossa
classe ou o espirito de seita , e dizei em vossa conscien
cia : se é possivel acreditar , tendo um pouco de senso
commum, ou pelo menos de boa fé, que Santo Antonino
e Tostado, contemporaneos do Concilio de Florença , e
ambos bispos da igreja, ignorassem a existencia do De
creto Pro Jacobinis, passado com a retumbante clausula
2

-sacro approbante ecumenico Concilio Florentino--se


semelhante Decreto existisse na realidade ?
Ainda mais , se é possivel acreditar, dada a existen
cia do Decreto , que declarava pela primeira vez , duran
te 15 seculos , canonicos os livros , que a igreja nunca ti
vera por taes ; digo, se é possivel crer um só instante
que um tal Decreto não fosse logo communicado a todas
as igrejas catholicas, principalmente da Italia e da Hes
panha, em immediatas relações naquella epocha ?
Se é possivel , que por mais de um seculo fosse
ignorado um Decreto, que fazia completa alteração no
dogma e na disciplina - digo no dogma, porque declara
dos os deutero -canonicos de igual autoridade com os
proto canonicos, era o mesmo que declarar aquelles ins
13
98

pirados pelo Espirito Santo ; e por consequencia dignos


de fé, como os que servem para provar a verdade da re
velação- digo na disciplina ; porque aquelles livros, que
só serviam para os costumes, serviriam tambem para a
doutrina, como diz Cassiodoro (Inst. Div . Lit. C. 6.)
O que resta , pois, Sr. padre , do Concilio de Floren
ça , ou do Decreto Pro Jacobinis ? O proprio padre An
tonio Pereira estava tão persuadido da falsidade do tal
Decreto, que para não confessal-o, preferio antes dizer,
que o Concilio não era ecumenico, na occasião de passar
o citado Decreto ; e por consequencia , que este não era
um Decreto dogmatico da igreja universal. Se assim era,
como pode o mesmo padre Pereira sustentar a ecumeni
cidade das 4 primeiras sessões do Concilio de Trento,
a que somente concorreram 5 cardeaes e 48 bispos de
toda a christandade ?
Sabeis agora o que fica restando de todas as provas
do padre Pereira sobre a canonicidade dos livros deutero
canonicos do Velho Testamento ? E' tào somente a 4.2
sessão do Concilio de Trento e nada mais . Podia fazel- o
o Concilio ? não, mas fel- o . E com que autoridade ? Se
os livros deutero-canonicos foram inspirados na sua ori
gem , como permittio o Espirito Santo , que a sua obra
fosse ignorada pela igreja durante 16 seculos ? Se não
foram inspirados, como os igualou o Concilio de Trento
aquelles outros livros, de que a igreja (desde Jesus Chris
to e os Apostolos) nunca duvidou ? Donde veio tanta au
toridade ao Concilio de Trento sobre 20 Concilios ecu
menicos, que o precederam, desde Nicéa até Florença ?
XIII

Diz o cardeal Bellarmino (De verb . Dei . L. 1, Cap.


11,) que a igreja não pode de maneira alguma fazer ca
nonico um livro, que o não é ; mas somente declarar quaes
são os canonicos; isto não a seu arbitrio, mas segundo
antigos testemunhos , como a semelhança dos estilos nos
livros não controvertidos ; e o sentido e a apreciação dos
christãos.
Seguio acaso o Concilio de Trento essa norma de
conducta na apreciação dos livros deutero - canonicos ?
99

Não , de certo, porque todos esses testemunhos lhes erão


contrarios . Durante 16 seculos não ha um só testemu
nho, que não deponha contra elles ; nenhum a favor da
sua autoridade divina ; nenhum que tenha o cunho da
verdade . Pelo contrario toda a historia traçada por Pe
reira , desde Innocencio até o Florentino , he um montão
de falsidades, que por si mesmas se destroem .
Sem embargo , o padre Antonio Pereira não parou
nas suas exagerações para justificar o Concilio de Trento
--esgotou todos os seus recursos intelectuaes, a ponto
de tornar-se ridiculo algumas vezes, outras contradic
torio, e outras inexacto . Como por exemplo : citando
muitos -Santos Padres e Doctores da Igreja, que omit
tirão em seus catalogos os livros deutero - canonicos, diz
que o fizerão, não por propria opinião, mas pela de
outros, e principalmente dos Judeus ! Isto he tão pueril,
que não necessita resposta.. Esses Santos Padres erão
tão estupidos que o fazião por usança e imitação , e não
pela propria convicção !!
Ainda diz mais : que esses mesmos Padres, quando
omitião ou regeitavào os livros deutero- canonicos , cita
vão em outras partes de suas obras os mesmos livros
como divinos. A falsidade dessa asserção salta aos olhos
mais myopes, logo que se considera na contradição ridi
cula , em que cahirião todos esses luminares da igreja
comsigo mesmos , citando como divinos os mesmos livros
que expellião de seus catalogos como apocriphos. Felis
mente o padre Antonio Pereira não aponta um só exem
plo, nem he capaz de citar outro senão o de S. Jerony
mo, quando commentando Jeremias, logo no principio
citou o livro da Sapiencia, como um livro prophetico .
Pois bem, Sr. padre Campos , se tal citação exis
tisse, ainda assim não provaria que S. Jeronymo tivesse
por canonico um livro, que elle declara muito positiva
mente no seu Prologo galeato , que não está no cancii.
• Igitur Sapientia quæ vulgo Salomonis inscribitur, et
Jesu filií Sirach liber, et Judith , et Tobias , et Pastor,
non sunt in canone » Quanto a dizer que S. Jeronymo,
comentando a Isaias , citara o primeiro livro dos Maca
beus debaixo do nome de Escriptura, he ainda mais
pueril senão nimiamente ridiculo.
100

A palavra Escriptura he complexa , e abrange todos


os livros do novo e do velho testamento ; mas na bocca
de S. Jeronymo a palavra Escriptura só comprehende os
livros proto -canonicos, por que ellé exclue do canon di
vino ( † ) os deutero canonicos, como acima dissemos .
Ora, como o livro dos Macabeus he um dos que não estavão
no canon ; seria tão absurdo dizer que S. Jeronymo
abrangia na palavra Escriptura um livro que nella não es
tava contemplado, como foi dizer o Sr. padre Campos , que
as palavras do Apocalipse ( c . 22 v . 19 ) se estendião
tambem aos Macabeus, livro de que nunca cogitou S. João,
nem delle podia fallar.
Para desenganar de uma vez ao Sr. padre Campos,
e provar -lhe a inexactidão do padre Antonio Pereira ,
copiaremos as seguintes palavras do mesmo S. Jerony
mo , na Prefação dos livros de Salomão- « Sicut ergo
« Judith, et Tobias, et Macabeorum libros legit quidem
a Ecclesia, sed eos inter Scripturas canonicus non re
« cipit » Logo he inteiramente gratuito o dizer, que S.
Jeronymo citara como canonico um livro, que o não era
na sua opinião nem na da igreja.
E porem a maioria dos theologos modernos, já que
não pode destruir as doutrinas da igreja primitiva, trans
mittida pelos Santos Padres e Doctores mais afamados,
trata ao menos de pol- os em contradicção comsigo mes
mos ; e com um descaramento, que não tem exem
plo, começa por calumniar aquelles Santos Padres , ee
por fingir em seus escriptos os maiores disparates do
mundo. Estes mesmos theologos modernos citão de falso
decisões conciliares ou pontificias, que nunca existirão,
assim como mutilão os textos sagrados, e as obras dos
mesmos Santos Padres .
Ora, a respeito das Escripturas nenhum padre he
mais notavel, nem tanto do que 8. Jeronymo - logo he
( 1 ) Alguns theologos escripturarios destinguem canon divino
de canon ecclessiastico. Chamão canon divino o que contem os
livros proto -canonicos, donde tiramos as verdades que são de
fé ; e canon ecclessiastico aquelle qae abrange os livros deu
tero-canonicos ; ou que a igreja lê e permitte ler aos fieis, so
mente para sua edificação, mas não para confirmar a autoridade
dos dogmas . ( Non ad autoritatem dogmatum confirmandam ) .
101

contra o Dr. Maximo que se levanta a chusma dos Tor


quemadas liliputianos, na phrase do Sr. Alexandre
Herculano Sem embargo , S. Jeronymo vae seu caminho, e
nós com elle, apezar do padre Antonio Pereira , e até
mesmo do sapientissimo Sr. padre Campos .

ECUMENICIDADE DO CONCILIO DE TRENTO

Vamos tratar agora da ecumenicidade do Concilio


de Trento ( principalmente da 4.a Sessão ) , que o padre
Antonio Pereira, em contradicção comsigo mesmo, sus
tenta pela mesma maneira e razão, porque declara não
ecumenico o Concilio de Florença , depois da retirada dos
Gregos, ficando entretanto reunida toda a igreja latina.
Se a retirada dos padres gregos, ficando os latinos ,
foi causa para que perdesse o Florentino a sua autori
dade de Concilio ecumenico, o de Trento, que não tinha
gregos entre si , mas só latinos , na proporção da 5.a
parte da igreja catholica, não podia ser considerado ecu
menico , principalmente nas primeiras 4 sessões, a que
sò concorrerào 5 cardeaes e 48 bispos .
Esta duvida occorreu a muitos padres do mesmo
Concilio , e elles a propuserão, como diz Pallavicino ;
mas o Concilio não se atreveu a resolver semelhante du
vida ; por que , continua oo mesmo Pallavicino , para anul
lar a 4.a sessão, seria mister anullar desde a primeira ,
visto que para todas ellas tinha concorrido igual numero
de padres.
Deixemos Paulo Sarpi na sua historia do mesmo
Concilio, a Hody na sua obra dos Textos originaes das
biblias, e a outros desta mesma opinião, que para nós
pouco importa ; por que, ecumenico ou não , o Concilio
>

de Trento não obriga as igrejas particulares, que o não


receberão, ou que tendo sido recebido nellas a principio,
föra depois cassado como em França , ou anullado como
em Portugal.
Que o Concilio de Trento não he de lei no Brasil ,
nem em Portugal, excepto o cap . 1 da sessão 24 ( de re
102

format. matrimonii ) ( 1 ) provamol-o de sobejo o anno


proximo passado em um artigo especial , inserto no
Jornal do Recife de 27 de Agosto, sob o titulo- 0 bispo
de Pernambuco e a sua ausencia-onde o Sr. padre Cam
pos o pode ler, se he que o não leu na sua publicação .
Excusamos pois reproduzir um trabalho, que não teve
resposta, nem refutação plausivel.
Em conclusão diremos , que não obriga mesmo a
ig reja universal, por que nunca fora incluido no corpo
do direito canonico da mesma igreja ; e bastaria esta
exclusão para provar, que o Tridentino não era reputado
ecumenico ; ou que pelo menos tal era o motivo da sua
exclusão ; assim como se allega para o de Florença, de
Piza , de Constança e de Basilea . -
O que diz a este respeito o padre Antonio Pereira ,
e copiou o Sr. padre Campos, não prova na minima cou
sa a ecumenicidade do Concilio Trento . O Concilio de
Trento , diz o padre Pereira, he ecumenico : 1.° -por
que os padres, que assistiram a 4.a sessão , sabiam o que
faziam (podera não ! ) : 2.° -que era ecumenico pela
convocação !! 3.° -que o era porque havia prelados de
-

todas as ordens e nações : 4.0 —que havia bispos, que


-

governavam muitas igrejas cathedraes : 5.0 -que para


ser ecumenico um Concilio basta que os bispos tenham
sido convocados pelo Papa ! De sorte que o 1 de Ni
cea convocado por Constantino, e os de Constantinopla
convocados pelos Imperadores, os de Epheso, 2.° de Ni
cea e de Calcedovia , que não foram convocados pelo
Papa, não são concilios ecumenicos !!!
O certo he que semelhantes argumentos podem ser
vir para uma sabbatina de Exegese, mas não para um es
cripto desta ordem, em materia tão grave como a de que
se trata. O que porem he sò do Sr. padre Campos he
o seguinte periodo, com que conclue um dos argumen
tos do padre Pereira – Logo
a he signal certo e eviden
( 1 ) No Brazil pela lei de 3 de Novembro de 1827 ; e em Por
tugal pela de 13 de Novembro de 1651 -
Fóra dessa sessão e capitulo, o Concilio de Trento não he de
lei entre nós, por que elle não obriga senão aquelles lugares, em
que foi promulgado e recebido, como declarou o Papa Benedicto
14 na sua Bulla de 17 de Setembro de 1746 .
103

tissimo de sua ecumenicidade ; e resistir a voz deste so


berano congresso da igreja universal , he disparar em
fuga do aprisco de Jesus Christo. )
Veja agora o Sr. padre Campos todo o alcance da
sua frase campanuda. Prescindamos do seu —disparar
em fuga “ (valha -nos Deos com o Sr. padre Campos !
parece-lhe que ainda está em Pageú) . Cremos que quiz
dizer fugir ou separar -se do rebanho de Jesus Christo ;
isto he, queaquelles que não receberam ou não aceita
ram o Concilio de Trento, estão fóra do Christianismo .
Sabe o Sr. padre Campos até onde vai a sua proposição ?
ouça :
Publicado o Concilio de Trento em França , foi cas
sado por todos os Parlamentos do reino. Nunca foi pu
blicado nem aceito em Hespanha , nem na Flandres , nem
em Napoles nem em Venesa. Publicado em Portugal , foi
logo repelido pelo mesmo rei D. Sebastião depois da sua
maioridade. Não foi aceito em toda a Alemanha , que
para elle não concorreu, nem pela Inglaterra, cuja se
paração já estava consumada ; nem pelos Escandinavos ,
que ocupavam o norte da Europa.
I

O que fica pois para o vosso Concilio entre o Catho


licismo ? Desta arte toda a Europa e a America estariam
fóra do gremio do Christianismo ! Quem vos autorisou
Sr. padre, a excluir nações inteiras, e povos eminente
mente christãos, do seio do catholicismo ? onde a vossa
autoridade, onde a de alguem sobre a terra ? Se pen
sasseis um momento nos desgostos que vos trazem essas
frases campanudas, perderieis o mảo habilo de seme
Thante modo de escrever -mas parece que sois incor
rigivel - Deos vol-o perdoe.
Até aqui temos provado , que o Sr. padre Campos
não provou nem podia provar ;
1.° As enormes falsidades do novo testamento das
biblias de Londres, iguaes as que o Sr. arcebispo da Ba
hia notara na biblia do padre Almeida -falsidades que
elle (padre Campos) teve ocasião de verificar por si
mesmo á vista de 11 biblias do padre Antonio Pereira
impressas em Londres , que tinha em seu poder (D. de
104

Pern . 6 de Desembro de 1865) . ( Sr. padre Campos,


asseverando uma cousa que não existe, faltou a verdade .
2. ° —Que o Sr. padre Campos não provou nem po
dia provar, que os livros deutero - canonicos do velho
testamento estivessem incluidos no Canon dos livros ins
pirados ; pois que discorrendo por todos os Concilios
ecumenicos e geraes, como diz o padre Antonio Pereira,
que por todo o decurso de tantos seculos se celebraram
no Oriente e no Occidente , em nenhum se achará , até
o de Trento, declaração dogmatica , que definisse terem
os livros deutero canonicos a mesma ou igual autorida
de, que a dos proto -canonicos,
3.° --Que não provou a ecumenicidade do Concilio
-

de Tr to, nem a podia provar, por falta de represen


tação da igreja universal, e sobre tudo porque , não ten
do sido os seus Canones admittidos no corpo do Direito
canonico, como não foram os dos Concilios de Florença ,
de Piza, de Constança e de Basilea, he consequencia ne
cessaria , que não fosse julgado ecumenico como estes
ultimos ; visto que não ha outra rasão para essa exclu
são , senão que a ecumenicidade de todos elles era du
vidosa .
4.° – Finalmente que tambem não provou nem po
dia provar, que o Concilio de Trento fosse tido como
lei em todas as suas partes , tanto em Portugal como no
Brasil , apesar do Decreto de D. Sebastião (1569), logo
derogado depois da sua maioridade pela Resol, de 1573,
como dizem Mello Freire, Borges Carneiro, e o Desem
bargador Jose de Seabra.
Era esta pois a questão ; se he que o Sr. padre
Campos queria contestar- nos - mas se o não podia fazer
.

convenientemente, para que provocar-nos ? para que


fallar de biblias falsificadas ? para que reproduzir o
mesmo que já tinha sido respondido , refutado e pul
verisado ? Se prettendia fazer um livro , como mera es:
peculação de lucro, podia começar pela sua cathologia ,
copiando d'aqui e d'ali , e depois ir direito ao Purgalo
rio, e até ao Inferno, se isto lhe conviesse ; e ainda de
pois a sua Inquisição ; emfim a tudo que para tudo ha
via lugar -mas, a que vieram novamente as biblias fal
sificadas ?
105

Sem as taes biblias falsificadas, poderia ter fallado


no Ceo e na terra, no Purgatorio e no Inferno , no Lim
bo e no Valle de Josaphat ; e lhe damos palavra de hon
ra, que o deixariamos tranquillo , e o não iriamos en
commodar na sua bemaventurança -mas repisar as ca
lumnias e falsidades contra o novo testamento , que te
mos offerecido como um penhor de moralidade e de re
ligião a muitas pessoas qualificadas ; isso não, Sr. pa
dre, vade retro ! Foi imprudencia sua de que se ha de
arrepender .
Agora tenha santa paciencia, que o não deixare
mos sem resposta desde o seu Purgatorio até a sua su
cralissima Inquisição.
A CATALOGIA DO SR . PADRE CAMPOS.

Depois de um estenso catalogo dos livros proto e


deutero-canonicos de um e outro testamento, com suas
definições e explicações , o Sr. padre Campos condoido
dos erros proferidos pelos incredulos e racionalistas
allemães, protestantes, e por desgraça nossa , alguns ca
tholicos mal preparados neste genero de estudos, con
tra a canonicidade dos livros Santos, propõe -se a com
batel - os , examinando successivamente o Canon dos Ju
deos e dos Christãos, e fazendo antes algumas impor
tantes considerações.
Deixemos de parte as importantes considerações do
Sr. padre Campos, e tão importantes, que não vem nada
ao caso ; como por exemplo : provar a autoridade do
Canon hebreu , de que ainda ninguem duvidou até hoje,
nem da sua authenticidade. A não ser para encher papel ,
a que vem repettir até a saciedade , que o Canon hebreu
he legitimo, de fonte pura , e não inventado por Esdras ;
principalmente o l'entateuco conservado pelos Samarita
nos, e perfeitamente de acordo com o Pentateuco conser
vado pelos Judeus ?
E porem o mais engraçado he que, para provar a
verdade historica dos mesmos livros, o Sr. padre Cam -
pos cita Lamennais, a quem chama profunilo, sem se
14
106

lembrar do que disse o padre Ventura, na sua philoso


phia christãa, slo profundissimo Lamennais ou da sua phi
losophia social, chamada tambem do senso commum .
Ora, o Sr. padre Campos deve conhecer muito de
perto as obras do padre Ventura, de uma das quaes fez
aquellas celebres paraphrases , que tanto deram no goto
ao Agrippa. Conhecemos as vezes a imperiosa necessi
dade de uma citação, mas Lamennais a par de Bossuet !
São gostos .
Ha outra citação do Sr. padre Campos, que não me
rece desculpa , e he a que faz do Talmud, e dos. Talmu
distas , como prova da inspiração divina dos livros deutero
canonicos . Quer um quer outro Talmud , estão ambos
condemnados pela igreja catholica, como livros cheios de
fabulas, de astucias e de falsidades, que conspurcam in
teiramente as fontes puras do christianismo.
Tanto assim he, Sr. padre, que o papa João 22
mandou queimar em 1316 ambos os Talmuds como livros
condemnados . Entre os proprios Judeus começa a de
clinar o credito de semelhantes livros - ultimamente na
Inglaterra e na Alemanha existe uma seita de Judeus,
que cresce todos os dias, chamados reformistas, que re
geita inteiramente os 2 Talmuds , tanto o de Jerusalem ,
concluido no fim do 2.° seculo, como o de Babilonia ,
concluido no fim do 5. ', ou principio do 6.° seculo.
Estes Judeus reformistas só admittem a lettra da biblia .
regeitando toda a especie de commentario .
Sem embargo , tudo soffreriamos do Sr. Campos, por
que ainda o julgamos de boa fé ; mas - citar Camillo Cas
tello Branco como theologo profundo em materia de Escrip
tura Sagrada , isso não porque he zombar dos seus leito
res ; he ainda mais , he ridiculisar um objecto tào serio ,
he escarnecer de nós , he mostrar o pouco caso que faz
da materia de que se trata , e do escriptor a quem res
ponde .
Quereis saber, profanos, quem he o profundo theo
logo Camillo Castello Branco , o thaumaturgo improvisado
pelo Sr. padre Campos ? he o romancista erotico do Por
io , o Novelleiro de fazer rir , cuja graça e invenção tem
um merito especial , principalmente nos seus romances
de costumes .
107

Pois bem , dizem que esse homem tem accessos de hy


pocondria, e que nesses ataques dá -lhe para o beaterio, que
alias , quando está em seu juiso, elle fulmina muitas ve
zes nos seus escriptos . Em um desses momentos aziagos
lembrou-se de improvisar um enigma em algaravia de
Mouro, que intitulou - Divindarle de Jesus Christo - de
cuja mania cremos , que está tão arrependido quantos
foram os remoques, que soffreu da imprensa portugueza
por esta causa ; e dos desgostos porque o fizeram passar
os seus proprios amigos e apaixonados.
O que ha porem de verdadeiramente risivel , he que
depois de transcrever um trecho da citada obra -- Divin
dade de J. Christo-solemne balburdia de palavras, sem
o menor sentido nem unção religiosa, exclama o Sr. pa
dre Campos — Isto tem resposta seria ? E que resposta :
seria quer'o Sr. Campos , que se dê a um montão de dis .

parates, que não tem senso commum ?


Depois passa o Sr. Campos a entender com um tal
Sr. padre Ricardo, a quem elle chama protestante ! Não
sabemos quem seja o Sr padre Ricardo , nem nos impor
tariamos com tal cousa , se o Sr. Campos, muito de pro
posito, nos não tivesse associado ao mesmo Sr. Ricardo,
chamando -nos a terreiro sem motivo nem rasão plausivel ;
a não ser a que elle dá no seguinte periodo :
« Não admira, porem , ( diz o Sr. Campos no D. de
Pern . de 21 de Junho de 1866 ) que houvesse um prot
testante, que na Bahia escrevesse e imprimisse, e expu
zesse á venda por toda a parte , dous opusculos contami
nados de erros, falsidades, e heresias, que alias denotam
mais ignorancia que má fé. O que excede toda a expec
tação, e confrange a alma a todos os homens que presam
a firmeza e a coherencia na doutrina, como primeiro in
dicio da predestinação ! ( 0 Sr. padre Campos se diz elle
mesmo predestinado !) he que apparece um catholico ....
e não só partilhasse esses erros e lieresias, como que sob
o titulo de Christão velho, dellas se constituisse araulo ,
fautor e propagador nas paginas do Jornal do Recife
( não só por crassa ignorancia, como por má fé ), reve
lando por mais de uma vez desmesurada ambição ( de
que ? ), & »
Bem vê o Sr. padre Campos , que temos de defen
108

der-nos , não só da grande ignorancia , que attribuio ao pa


dre Ricardo, a quem nos assimillou ; senão tambem da
mi fé, com que sendo catholicos nos tornamos arauto ,
fuulor e propagador de erros, falsidades e heresias ! E
se nós dissessemos por nossa vez , que o Sr. padre Cam
pos não sabe o que diz, ou que não estava em seu juiso
quando o disse ; ou quenão he só a lepra da ignorancia
e da filaucia que o corróe, mas tambem a mania de pas
sar por theologo, e homem entendido nessas materias ;
teria elle rasão de queixa , poderia dizer -se offendido ?
Pois bem, não queremos retribuir por ora as delica
dezas do Sr. padre Campos, e declaramos que não temos
por bem averbal-o de ignorante nem de má fé - mas di
remos que he de uma ingenuidade infantil ! Quanto a
sua birra de tornar-nos solidario com os protestantes , só
lhe diremos uma cousa , e he que pergunte a toda esta
cidade qual de nós ambos he mais christão ou mais reli
gioso ; è desde já prottestamos conformar-nos como
aresto deste povo catholico e orthodoxo .
II

Vamos pois ao que importa . O Sr. Campos oppõe


ao padre Ricardo outro Ricardo chamado tambem Simão ;
e faz delle algumas citações tão cerebrinas como as de
Camillo Castello Branco ou a do abbade Lamennais . Uma
dessas citações he neste bom gosto : « A Igreja de Roma ,
que he uma das mais antigas do mundo, não recebeu em
seu começo outra Escriptura, senão a biblia dos Judeus
1

hellenistas; e ignorava então essa estulta distincção en


tre livros canonicos e livros apocriphos . »
Esta passagem he um acervo de falsidades, e de
crassa ignorancia da historia sagrada. Em primeiro lu
gar he falso, inteiramente falso, que a igreja de Roma
fosse uma das mais antigas do mundo ; porque antes
della floresceram a de Jerusalem ( a primitiva ), a de
Antiochia, de que foi bispo o proprio S. Pedro muitos
annos, antes de selo de Roma ( se he que o foi ) ; as 7
igrejas da Asia , as quaes exhortava S. João no Apocalipse
( G. 1 v . 11 ) para que permanecessem na fé e eram as
de Epleso, Smyrna, Pergamo, Thyatira, Sardes , Phila
delphia e Laodicea .
109

Alem de todas essas , que ahi ficam referidas, ainda


contam os Actos apostolicos outras muitas igrejas creadas
por S. Paulo e S. Barnabé, nas quaes ordenaram seus
presbiteros ( Act. C. 14 v . 22 ), e outras de que fallam
as Cartas de S. Paulo , e eram tantas , que os mesmos
Paulo e Barnabé as andavam confirmando, ordenando
lhes que guardassem os Canones dos Apostolos e dos
Presbiteros ( Act. C. 15 v. 41 ) .
Dizei -nos agora, Sr. padre, onde estava a igreja de
Roma entre todas essas igrejas, que ahi ficam menciona
das ; em que lugar dos actos apostolicos aparece figu
rando a igreja de Roma? Na propria Carta de S. Paulo
aos Romanos , diz o apostolo que deseja ir a Roma para
communicar aos queridos de Deus alguma graça espiri
tual, com que sejam confirmados ; prova de que não ha
via igreja, nem bispo nem presbiteros.
Citae um só apostolo ou evangelista , que fallasse da
igreja de Roma. O ultimo capitulo dos actos apostolicos
refere a chegada de S. Paulo pela primeira vez a Roma ,
onde se demorara preso dous annos, evangelisando e pre
gando sem que se falle de uma igreja de Roma; nem della
houve nunca a menor menção até meiado do 2. ° seculo ,
em que S. Ireneu , discipulo de S. João, ( um seculo de
pois da morte de S. Pedro ) faz menção, não de uma
igreja, mas de S. Pedro em Roma.
Diz S. Ireneu, que na segundaperseguição de Nero,
resolveu S. Pedro fugir de Roma ; mas que ao sahir por
uma das portas encontrara J. Christo ; e que então sor
prehendido por essà apparição , lhe dissera S. Pedro
a Vós por aqui, Senhor, o que vindes fazer ? » ao que
respondera J. Christo - a veni iterum crucifigi. » S. Pe
dro , corrido de vergonha por esta amarga ironia de seu
mestre, voltara para a cidade, onde föra preso, condem
nado e crucificado no anno de 66 da éra christàa .
Eis ahi o primeiro documento, que falla de S. Pe
dro em Roma , antes das Cartas de S. Clemente ou dos 12
primeiros papas forjadas pelo impostor Isidoro Mercator
no fim do 8.0 ou principio do seculo 9.º Assim he, Sr.
padre que vos desafiamos a que aponteis um só documen
to , alem de S. Ireneu no 2.° seculo , que fallasse, quer
da igreja de Roma, ou de S. Pedro como bispo da mesma
110

igreja. Parece pois que pregaes aos pexinhos ; tanto he


a vossa boa fé no primeiro charlatão , que se offerece á
vossa vista , ou vos impingem como autoridade !
Diz ainda o tal Sr. Ricardo, com um desplante igual
ao do Sr. padre Campos, que o copiou , que a igreja de
Roma , em seu começo, não recebeu outra Escriptura se
não aa biblia dos Judeus hellenistas ; isto he , a biblia con
tendo os livros apocriphos como canonicos,
Semelhante asserção he inteiramente falsa ; o que se
prova com o proprio Sr. padre Campos ; porque em todos
os catalogos que citou , nenhum , durante 4 seculos se
guidos desde Jesus Christo, continha os livros deutero
canonicos , até o catalogo de Innocencio no principio do
seculo 5.° ( 405 ) , o primeiro que apparece neste genero ;
e ninguem dirá que o 5. seculo he o começo da igreja de
Roma, quando o tal Sr. Ricardo afirma pelo contrario,
que he uma das mais antigas .
Qual o documento, em que o tal Sr. Ricardo podesse
>

fundar uma opinião certa, para dizer, que desde o começo


>

da igreja de Roma eram os livros, chamados apocriphos


por S. Jeronymo , admittidos como canonicos entre os
christãos ? E se só foram admittidos no principio do se
culo 5.' , como poderia haver antes distincção entre os
livros canonicos e outros que o não eram ?
Ora, essa distincção só poderia apparecer desde que
alguns theologos ou padres começaram por admittir no
Canon da igreja os livros chamados apocriphos ; não como
fundamentaes da nossa fé, mas para edificação do povo .
A verdade he uma só, Sr. padre, e ficai certo que
até o Concilio de Trento nunca houve outro Concilio , ou
Synodo, ou Santo padre da igreja, que os igualasse. Isto
ja ficou provado de maneira que he impossivel recalcitrar ,
a menos que não sejaes mais teimoso que um Paraguayo .
Diz ainda o tal Sr. Ricardo , que a igreja d'Africa,
>

devedora da sua crença á igreja de Roma, recebera desta


a mesma Escriptura ; isto é, o cathalogo como aprovou o
>

Concilio de Trento. Ora, o primeiro cathalogo que appa


rece na igreja italica he o de Innocencio em 405 ; ao passo
que esse mesmo catalogo figura no 3.º Concilio de Car
thago em 397 - logo não foi a igreja africana, que rece
beu a Escriptura , contendo os livros deutero -canonicos,
>
111

da igreja de Roma, mas esta daquella ; salvo se o Sr. pa


dre Campos entende que o anno de 405 he anterior ao
de 397 .
He mister, Sr. padre , que tenhaes mais um pouco de
memoria, para não esquecer datas , que muitas vezes es
crevestes e citastes. Estas contradições palmares não
sorprehendem ao Sr. padre Campos, que insensivelmente
se deixa levar por um raciocinio como por um absurdo .
O que ha porem de mais notavel he a singuralidade das
citações do Sr. padre Campos -- em casos apurados tudo
lhe serve , menos a Escriptura , a que elle tem uma aver
são mortal .
Vamos a ver agora quem era o Sr. Ricardo Simão ,
que no pensar do mesmo Sr. Campos deveria ser um
furioso herege , porque, apesar do Decreto do Concilio
de Trento , o tal Ricardo regeita in limine, como falso
e supositicio o v . 7 do Cap. 5 da primeira Epistola de S.
João, que começa - Tres sunt qui testimonium &- (verso
-

que vem exactamente nas biblias de Londres, que o Sr.


Campos chama falsificadas ) porque , diz o citado Ricar
do , ( Hist. Crit. do texto do novo testamento , C. 18 )
nenhum dos padres do 4. ° e 5 °0 seculo o citou contra os
Arianos ; nem elle se acha nos melhores manuscriptos
gregos e latinos , que hoje existem .
Ora , regeitar o v . 7 do Cap. 5.º da 1.a Epistola de
S. João , equivale a regeitar tambem o dogma, que elle
.

contem ; isto é , o mysterio da Santissima Trin iade !


Então Sr. padre Campos, que tal o maganão do vosso
Ricardo Simão ! Eis ahi o que he e o que vale a ortho
doxia do Sr. padre Campos !
IN
Continua o Sr. padre Campos com as suas citações.
Agora he Bertholdt chamado para provar que, se he fora
de duvida , que os Judeus do Egypto não inseriram no
canon do antigo testamento os livros deutero - canonicos,
he igualmente certo que antes de Jesus Christo os haviam
encorporado, como appendice , na versão de Alexandria ;
>

e que se os não tinham na mesma classe que os proto


canonicos , não deixavam por isso de acata- los como livros
preciosos, nem de lel- os no remanso das familias.
112

Que os Judeus hellenistas não traduziram senão o


canon hebreu em tempo de Ptolomeo Philadelpho, e por
sua ordem , he isto de evidencia manifesta, 690 annos
antes de Jesus Christo ; nem era possivel que o tisessem
de outra maneira naquella época, em que o canon apro
vado pela sinagoga era o que ainda hoje he, e a que os
theologos escripturarios chamarão depois livros proto
canonicos.
Prescindamos da historia de Aristeo a este respeito ,
e mesmo de Philon e de Josepho , e vejamos se era pos
sivel que a traducção dos Setenta contivesse outros livros
senào os do Canon hebraico - Se o Sanhedrim ( Synedrio)
de Alexandria podia conhecer outro canon ; e se no tempo
de Eleazar, summo Sacerdote de Jerusalem , erão já co
nhecidos ou admittidos os livros chamados depois deu
tero - canonicos para instrução das familias .
lloje sabe-se (e ha muitos seculos ), que os traduc
dores do canon hebreu de Alexandria não vierão de Je
rusalem , mandados por Eleazara Ptolomeo com este fim ;
pelo contrario, erão Judeus, que formavão o conselho
chamado Synedrion, ou uma especie de Senado, com
posto dos principaes da sua nação residentes no Egypto.
Estes Judeus devião conservar comsigo os livros sagra
dos ; e estes livros não erão , nem podião ser outros se
não o canon hebreu. E se não, vejamos.
Não he possivel fazer uma dissertação a este res.
peito , nem alongar muito esta resposta, que já tarda ;
portanto nos reportaremos a alguns dos livros mais nota
veis dos sete deutero -canonicos.
Os Macabeus, por exemplo , não podião ser escrip
tos senão seculo e meio antes de Jesus Christo, por que
se referem a factos dessa data ; portanto não podião ser
conhecidos pelos 70 traductores do canon hebreu, cuja
versão teve lugar quasi tres seculos antes de Jesus
Christo :
A historia de Judith foi escripta depois do cativeiro
de Babilonia ; por que o foi em chaldeu, donde a tra
duziu S. Jeronymo. Quando foi escripta , e por quem ?
ninguem o sabe ; mas he certo que não existia no canon
dos 70 até as novas traduccões de Symaco, de Marcião
e de Theodocião no segundo seculo da nossa era .
113

Ora , dessas traducções, a unica que Origenes traz


completa he a de Theodocião ; e foi della, e não da dos
70, que S. Jeronymo traduzio os capitulos de Esther e de
Daniel, que faltam no hebreu .
Entretanto diz o padre Antonio Pereira , que S. Jero
nymo traduzira Judith , sem embargo de ter este livro
como apocripho , porque o primeiro Concilio de Nicea o
contara entre os livros sagrados. Já dissemos, que esta
asserção , posta na bocca ou na penna de S. Jeronymo,
he inteiramente falsa e suppositicia, porque nas actas do
Concilio niceno ( Collecção Labbe & Cossart já citada )
não se acha uma só vez a palavra Judith .
0 Ecclesiastico ( outro livro deutero- canonico ) de
Jesus filho de Syrach, foi escripto no Egipto no reinado
>

de Ptolomeo 7.0, entre 160 e 170 annos antes de Christo ;


por consequencia muito mais de um seculo depois da
versão dos 70 .
O mesmo se pode dizer do livro da Sabedoria, que
alguns acreditam ser de Salomão ; mas afinal reconhecido
como de autor incerto, e de data muito mais moderna ;
isto he, depois da traducção dos 70. Alguns o attribuem
a um tal Filo hebreu do tempo dos Apostolos , prova de
que semelhante livro não fora conhecido antes.
Bem vê, Sr. padre Campos, que Bertholdt se enga
nou quando disse , que os Judeus do Egipto haviam inse
rido no canon do antigo testamento os livros deutero
canonicos . O canon dos 70 não podia conter taes livros,
muito posteriores a existencia daquelle canon ; nem essas
traducções podiam ser feitas senão no fim do segundo
seculo, ou principio doterceiro, que foi quando as reco
lheu , ou confeccionou Origenes nas suas Sixtinas ( He
xaples ). E eram tão imperfeitas que S. Jeronymo pre
ferio antes a traducção de Theodocião, a que vinha como
appendice ao canon dos 70, de origem incerta e sem
nome de autor .
Os livros pois deutero- canonicos , que ficam men
cionados, não podiam fazer parte do canon dos 70 ; e
apenas constituem um enxerto ; e tanto que ainda hoje,
quando algum theologo quer fazer uma traduccão do
velho testamento, recorre ao texto hebreu ; e só ao texto
dos 70 como expositor ou interprete. Tanto assim he,
15
114

que o padre A. Pereira, na sua traducção dos livros pro


to -canonicos, sempre se refere ao texto hebreu .
A citada traducção dos 70 tem muitos erros e vicios,
quer dos interpretes quer dos copistas antes da impren
sa, como affirmaram Isidoro Claro, bispo de Fulgino, no
Proemio da sua biblia ; o papa Xisto 5.º no Prefacio da
biblia de 1590, e Clemente 8.° nos Prolegomenos da
Sagrada Escriptura da biblia de 1592 ; e o proprio S.
Jeronymo no Prefacio dos livros de Salomão .
A TRADIÇÃO CATHOLICA .
Antes de passarmos adiante diremos alguma cousa
sobre o que o Sr. padre Campos chama tradição catho
lica . E porem , o que quer dizer tradição catholica ?
hé a opinião da chamada igreja, firmada na sua propria
autoridade, embora seja contra a lettra expressa das
Escripturas , não só em materia de facto como de dou
trina .
Assim he que antepondes vossa chamada tradição á
palavra escripta ! e de tal sorte que , quando o Evangelho
diz tal cousa, dizeis vós : não he isto, porque a tradição
diz o contrario ! O que he pois a tradição, onde está a
tradição ? he para vós uma palavra sem sentido , ou uma
espada de dous gumes, de que vos servís sempre em
detrimento da palavra escripta.
Ora, a tradição he oral ou escripta - se he oral, de
pende da memoria , e perde - se pelo tempo , ou se adul
>

tera pela instabilidade das cousas humanas. A tradição


pois só poderia existir em materia de facto ou de dou
trina antes da escriptura -mas , desde que houve escrip
tura , a tradição não he outra cousa senão a historia .
A tradição pois, quando ha a palavra escripta , só
serve para viciar o texto, ou para illudil-o ; ou he antes
um circulo vicioso , em que se emaranha a vossa igreja
para burlar as Escripturas ; como por exemplo : « Não
se pode, dizeis vós, entender a palavra escripta senão
pela autoridade da igreja » . Entretanto que para provar
a chamada autoridade da igreja, recorre ella mesma á
palavra escripta ! Quem vos não conhecer que vos
compre !
115

A pretenção he tão revoltante que seriamos réos


de lesa -rasão se insistissemos em provar o absurdo da
igreja. Admittimos a tradição em materia de facto , mas
nunca de doutrina, quando ha a palavra escripta .
Mas , e o que faz a igreja catholica senão o que
fiserão os Judeus ? elles viciarão as escripturas por meio
das suas tradições, o que deu causa a que Jesus Christo
lhes dissesse muitas vezes indignado :
« E dizia -lhes : vós bem fazeis por invalidar oman
a damento de Deus, para guardardes a vossa tradição .
« ( S. Marcos, Cap. 7 v . 9. ) E mais adiante acrescenta
« Jesus Christo : vindo assim a rescindir a palavra de
« Deus por uma tradição, de que vós mesmos fostes os
« autores. E fazeis ainda muitas mais cousas, que se pa
« recem com esta » ( S. Marc . C. 7 v . 13 ).
Ainda em S. Matheus refere Jesus Christo as mes
mas exprobações aos Judeus— « Por que transgredis os
a mandamentos de Deus pela vossu tradição ? » Emfim ,
longo seria apontar os lugares do novo testamento, em
que he condemnada a doutrina da tradição contra a pa
lavra escripta .
Parece que Jesus Christo previa que a tal igreja ca
hiria nos mesmos vicios e erros que elle exprobava aos
Judeus , e que combateu até a sua morte . Parece que
o Judaismo revive na seita catholica com o mesmo furor
dos Fariseus . Se o Sr. padre Campos não he judeu, tem
pelo menos todas as manhas dos Judeus .
E a prova está , em que a Igreja he quem fabrica
as suas tradições conforme lhe convem - ella rescinde a
palavra de Deus por uma tradição de que ella mesma he
a autora ( S. Marcos, C. 7 v . 13 ) De sorte que a tradi
ção catholica não tem base, nem origem certa, fluctua
entre as doutrinas contradictorias da mesma igreja. E
senão respondei -nos .
Qual a tradição, que mais vos agrada : a da igreja
primitiva alé a conversão de Constantino, com toda a
simplicidade do christianismo; ou a da igreja dahi em
diante com a mescla impura do paganismo? Qual dessas
duas tradições vos agrada, pois que são diversas e dis
tinctas, não só no dogma como na disciplina ?
Ainda mais : quereis o papado como fôra até meiado
116

do seculo 8.0 ; isto he, sem o poder temporal; ou como


começou a ser dahi por diante , depois que um rei da
terra lhe dera tal poder ?
Sabeis ao que chamamos a simplicidade do chris
tianismo ? he ao Evangelho , como o pregarão os Apos
tolos e seus discipulos immediatos até o seculo 2.0 ;
isto he, sem o aparato do culto das imagens, sem sinos
nem foguetes, nem canonisação dos Santos ; sem celi
bato clerical, sem a Santa Inquisição, sem a confissão
auricular ; sem dispensas, nem purgatorio , nem indul
gencias .
.
E não vos admireis de tudo isto, por que já no fim
do 4.° seculo chorava Santo Agostinho pela disciplina dos
tempos apostolicos, e bradava contra as alterações, que
se havião introduzido na igreja com mingoa da santi
dade do culto .
Do mesmo modo bradavão os Santos Padres Am
brosio, Jeronymo, Basilio , Chrisostomo, Gregorio Nan
zianzeno, e outros atė fins do 4.° seculo, e principios
do 5.º. S. Bernardo pedia com toda a unção de um ver
dadeiro Apostolo a restauração da disciplina primitiva no
seculo 12.º ; e os padres dos Concilios de Constança e
de Basilea mostrarão os mesmos desejos no seculo 15.º
Ahi tendes portanto um milheiro de tradições da
Igreja, algumas bem absurdas, e outras condemnadas por
Padres, Doctorese Concilios-quaes dellas vos agradão ?
A vossa tradição pois não he regra de logica nem
de hermeneutica-he apenas um acervo de lugares comº
muns, de que se serve a vossa igreja para sair de apu
ros- quando se vê apertada pela lettra das Escripturas ,
apella para a tradição.
Eis ahi, Sr. padre, o que he a vossa tradição - he a
tradição judaica, que Jesus Christo condemnou ; a tradi
ção de que vós mesmos sois autores- he a mais com
pleta burla das Escripturas, he o escandalo do christia
nismo .
OS LIVROS APOCRIPHOS NÃO ESTÃO
CITADOS NO NOVO TESTAMENTO
1

o Sr. padre Campos , depois de passar uma descom


117

postura de regateira no tal Sr. padre Ricardo, a quem


chamou protestante por escarneo, pergunta com a sua
costumada arrogancia— « Os livros deutero -canonicos fo
rão despresados por Jesus Christo e seus Apostolos, será
verdade? Pois bem , tomem o peso os nossos leitores a
esse enorme absurdo pelo que vamos dizer. »
Então começa o Sr. Campos a comparar alguns lu
gares dos livros apocriphos com outros do novo testa
mento ; com tal infelicidade porém, que tudo quanto ci
tou he contra producente. E senão vejamos.
Diz o Sr. Campos, que o Apostolo S. Thiago (Cap, 1
v. 10) citou o Cap. 14 v . 18 do Ecclesiastico , o que é in
teiramente falso . A quem se referio o Apostolo nesse lu
gar foi ao Cap . 40 v . 6 e 7 de Isaias , como passamos
a mostrar .
S. Thiago (cap. 1 , vv 10 e 11 ) a Pelo contrario o
que he rico, na sua baixesa , por que elle passará como
a flor da herva- Por que bem como ao sair com ardor o
sol , a herva logo se secca , e a flor cabe e perde a gala da
sua bellesa ; assim tambem se murchará o rico nos seus
caminhos . »
Ecclesiastico (C. 14 v . 18) ( Toda a carne enve
lhecerá como o feno, e como a folha que fructifica na
verde arvore . »
Véde agora Isaias (C. 40, vv . 6 e 7) « Toda a
carne he feno, e toda a sua gloria he como a tlor do
campo. Seccou -se o feno, e cahio a flor, por que o ha
lito do senhor assoprou nelle.»
A quem pois se referia S. Thiago, Sr. padre, ao Ec
clesiastico ou a Isaias ? Pois bem , não só a Isaias, como
a Job C. 14 v . 2- Psalmos 36 v . 2-89 v . 6-91 v . 8:
S. Pedro - Epistola 1.a C. 1 v. 24—Ainda hemais
frisante a citação de Isaias e de Job acima referida, e
não do Ecclesiastico ; salvo, se o Sr. padre Campos en
tende , que a concordancia das Escripturas está nas pala
vras e não nos pensamentos,
Outra citação falsa - S . Lucas--C. 12 vv . 19 e
20 - E direi a minha alma : alma minha, tu tens mui
tos bens em deposito para largos annos ; descança ,come ,
bebe e regala-te. Mas Deus disse a este homem : Nescio,
118

esta noite te virão demandar a tua alma ; e as cousas,


que tu ajuntastes, para quem serão ? »
Agora o Ecclesiastico .: C. 11 v . 19- Eu achei meio
de me pôr em descanço, e agora comerei só dos meus
bens . )
Vede pois, Sr. padre Campos, se ha a menor con
cordancia entre S. Lucas e o Ecclesiastico -pelo contra
rio achareis as verdadeiras referencias de S. Lucas no
Ecclesiastes , C. 11.v. 9 -em Job, C. 20 v . 22-e muitas
mais se tivessemos tempo para tanto .
S. Paulo - 2.a aos Corinthios, C. 6 v . 19 - o mesmo
-

capitulo , v . 24 - Aqui ha engano ou erro do Sr. padre


Campos, por que o Cap . 6 da 2.a carta de S. Paulo aos
Corinthios só tem 18 versos em todas as minhas biblias
- naturalmente he por que devem estar falsificadas .
0 Sr. padre Campos tinha pressa de acabar, ou co
piou mal os apontamentos, por que continua dizendo : 0
capitulo 15 do Ecclesiastico, sem dizer o verso , he ci
tado pelo Apostolo S. João, C. 4 v . 10, sem dizer se he
das cartas, do Evangelho ou do Apocalipse: esta citação
he portanto supositicia .
Finalmente o Cap . 14 (sem dizer o verso) do Eccle
siastico he citado por S. Lucas, Cap . 16 v.9 - Este verso
he como segue- Tambem eu vos digo, que grangeeis
amigos com as riquezas da iniquidade , para que quando
vos vierdes a faltar, vos recebão elles nos tabernaculos
eternos . :)
Cremos que a citação do Sr. padre Campos só se
pode referir ao verso. 4 do Cap . 14 do Ecclesiastico , que
he tambem como seguem o que amontoa riquesas
defraudando - se do necessario á propria vida com injus
lica , ajunta- as para outros, e outrem se regalará com os
seus bens » Desejaramos saber qual a analogia ou a con
cordancia de pensamentos, que existe nestas duas cita
ções ; apenas vemos algumas palavras identicas, e nada
mais. O Sr. padre Campos diverte -se com os seus lei
tores !
Continua o Sr. Campos, disendo que Tobias , C. 4
vv . 16 e 17 , fora citado por S. Lucas, C. 6 v . 31 , e C.
.

19 v . 13. Para mostrarmos o engano do Sr. Campos


bastará copiar o que disse Tobias no lugar marcado.
119

Verso 16- Acautela- le : não faças nunca a outro o que


tu levarias a mal , que outro te fizesse >» Verso 17- « Come
o teu pão com os pobres, e com os que tem fome, e
veste dos teus vestidos os que estão nus . »
Agora S. Lucas, C. 6 v . 31- « E o que quereis
que vos fação a vós os homens, isso mesmo fasei vos a
elles > Jd. C. 19 v. 13 - a È chamando dez servos
seus , deu - lhes dez marcos de prata, e disse-lhes : ne
gociae até eu vir » Que analogia tem este verso com o
que disse Tobias ? onde está a referencia nem mesmo
de palavras ?
Tobias no cap . 4 v . 16 dá um concelho - Acautel
la-te - Jesus Christo em S. Lucas , cap. 6 v . 31 , falla
de preceito ; e para provar -vos, que não ha a menor
referencia a Tobias, basta o cap . 7 v . 12 de S. Matheus,
que diz o seguinte - E assim tudo o que vós quizeres
que vos façam os homens , fazei - o tambem vòs a elles ;
porque esta he a lei e os prophetas .)
Quando Jesus Christo fallou de preceito em S. Lu
cas e S. Matheus não podia referir -se a Tobias , mas ao
Levitico, cap . 19 v. 18. Por que admiraes que apareça
uma ou outra idéa, um ou outro pensamento analogo em
escriptores imbuidos das mesmas idéas e pensamentos ?
E se ainda duvidaes de que a concordancia das Es
cripturas não consiste nas palavras , mas nos pensamen
tos, vede S. Paulo , carta aos Romanos, cap. 13 v . v . 8,
9 e 10 —aos Galatas , cap . 5 , v . v . 14 e 15 — 1 a Ti
-

motheo, cap. 1 v . 5 .
Outra referencia de Tobias, que faz o Sr. padre Cam
pos, he do mesmo cap. 4 v . 23, e diz que fora citado
por S. Paulo, cap . 8 v. 17. -Ora , S. Paulo tem 14 car
tas , e com quanto poucas tenham 8 capitulos, as per
corremos todas ; e tal referencia só podia dar- se na car
ta aos Romanos, cujo cap . 8 v . 17 diz o seguinte
se somos filhos e tambem herdeiros, herdeiros verda
deiramente de Deus, e coherdeiros de Jesus Christo ;
se he que todavianós padecemos com elle , para que se
jamos com elle glorificados. »
Agora vejamos a coherencia da citação do Sr. pa
dre Campos - Tobias cap . 4 v . 23 — Não temas meu
-

filho : em verdade nós vivemos pobres, mas nós tere


120

mos muitos bens, se temermos a Deus , e nos desviar


mos de todo o pecado , e obrarmos bem . )
Desafiamos ao theologo mais sagaz a que nos mos
tre a menor analogia ou concordancia entre esses dous
textos, que ahi foram copiados ; e a não ser que o Sr.
padre Campos se quizesse divertir à custa dos seus lei
tores, fazendo os perder o seu precioso tempo , não lhe
vemos outro fim com semelhantes citações.
II

Diz ainda o Sr. padre Campos, que Judith , cap. 8,


v. 25, fôra citado por S. Paulo , 1 Corinthios, v . 9 , sem
.

dizer o capitulo ; mas recorrendo toda a Carta , cremos


qne he o cap . 10, o qual diz assim - Nem tentemos a
Christo , como alguns delles o tentaram , e pereceram pe
las mordeduras das serpentes. ) Agora Judith no lugar
citado - « Foram exterminados pelo exterminador, e pe
>

receram pelas serpentes. Apesar da palavra --serpen


tes- em ambos os periodos citados, onde está a con
cordancia on analogia do pensamento ?
Quereis agora saber as verdadeiras referencias des
ta passagem de S. Paulo (Corinth . cap . 10 v . 9) ? Con
sultae Numeros, cap . 21, v.v. 5 e 6 —Exodo , cap . 17
v . v . 2 e 7 - Deuteronomio , cap . 6, v . 16 , e muitas ou
tras passagens, queseria superfluo repettir.
Notae porem , Sr. padre Campos , que os v . v . 25,
26 e 27 do cap . 8 de Judith, que vem na Vulgata Xisti
na - Clementina, não se acham no grego dos 70 -he mais
uma fraude pia dos intitulados catholicos ; ou mais uma
falsificação das sagradas Escripturas, se he que nellas
contaes o livro de Judith como canonicos .
O cap . 5 do 1.º livro dos Macabeus , v . 59 , diz o
Sr. padre Campos que he citado pelo Apostolo S. João
«
cap . 10 v . 22. Esta passagem he como segue - Ora , >

em Jerusalem celebrava se a festa da Dedicação, e cra


inverno . » A referencia dos Macabeus he a seguinte -
« E sahio Gorgias da cidade , e os seus soldados, a encon
trar-se com elles, appresentando - lhes batalha. ) le pois
esta citação outra tremenda embaçadella , com que nos
quiz glorificar o Sr. padre Campos !
121

Diz igualmente que S. Paulo (Heb. cap . 11 v.v . 35


e 36) cita o cap . 2 v . 39 do 1.' , e os capitulos 5, 6 e 7
do 2.º dos Macabeus . O Apostolo falla das mulheres,
que recobraram seus filhos por meio da resurreição , e
que
de outros que soffreram ludibrios e açoutes , alem de
cadeias e prisões . Pois bem, a passagem citada do 1.0
livro dos Macabeus he a seguinte - « E souberam-no
Mathathias, e os seus amigos, e tomaram por elles um
apertado nojo . ) Onde está a analogia , a referencia ou
a menor concordancia ?
O mesmissimo se dá com os capitulos 5, 6 e 7 do
2. ° livro dos Macabeus, onde não ha a menor referencia
nem concordancia com os versos 35 e 36 do cap . 11
da Carta aos Hebreus, nem ao menos cousa que se pa
reça —he outra embaçadella e nada mais .
Entretanto aconselhamos ao Sr. padre Campos , que
se quizer achar referencias para os citados versos e Ca
pitulo da carta aos Hebreus , consulte antes a 3 Reis,
Cap . 17 v . 23—4 Reis, Cap . 4 v . 35-e muitos outros
lugares dos livros proto -canonicos do velho testamento .
Vamos agora ao livro da Sabedoria , que he o mais
referido, segundo diz o Sr. padre Campos , entre todos
os deutero -canonicos, no novo testamento .
Diz o Sr. Campos que S. Paulo ( Rom . Cap. I v . 18)
refere-se ao v . 7 do Cap . 13 do livro da Sabedoria, e tam
bem ao v. 13 do Cap. 11 do mesmo livro. Eis ahi o
que diz S Paulo no lugar citado — « Porque a ira de
Deus se manifesta do Ceo contra toda impiedade e in
justiça daquelles homens , que retem na injustiça a ver
dade de Deus . »
Agora o verso 7 do Cap . 13 do livro da Sabedoria -

« Porquanto elles o buscam, vivendo no meio das suas


obras : e se capacitam de que são boas as cousas, que
se vem . » Sr. padre Campos, onde está a referencia,
onde a concordancia ? Deus nos dé paciencia para atu
rar a ignorancia de quem lhe deu esses apontamentos,
e a protervia com que os fez imprimir em seu nome.
Ainda he mais ridicula (para não dizer outra cousa)
a citação do Cap . 11 , v . 13 do livro da Sabedoria com
referencia ao lugar citado na Carta de S. Paulo aos Ro
manos , Eis ahi o que diz o verso 13 do Cap . 11 da Sa
16
122

bedoria - « Por quanto se havia delles apoderado uma


dobrada magoa , e desfeito pranto com a memoria das
cousas passadas » --O que tem de ver isto com o que
diz S. Paulo no lugar acima citado ? Onde ha a menor
analogia , a menor referencia ?
Diz igualmente o Sr. padre Campos, que S. Paulo
na mencionada carta aos Romanos , refere - se tão bem ao
Cap . 16 , v . 7 do livro da Sabedoria -- Eis ahi pois o que
diz este verso- Porque aquelle que se voltava para o
referido sinal , não era curado porque o via ; mas sim
por ti que hes o Salvador de todos os homens . » Ilave
ria alguem , que tivesse tanta impudencia, que sustentasse
haver a menor semelhança ou analogia entre esta passa
gem do livro da Sabedoria. e a que fica acima transcripta
da carta de S. Paulo aos Romanos ? O proprio Sr. padre
Campos não se atreveria a fazel -o , se tivesse examinado
os apontamentos , que lhe deram .
Mais uma citação de S. Paulo ( Gal. Cap. 2, v . 6
Ephes. Cap. 6 v.9 - Colos. Cap. 3, v . 25 ) , e outra de S.
João ( Cap. 6 , v . 31 ) Diz o Sr. padre Campos , que se re
ferem ao v. 20 do Čap . 16 da Sabedoria. Para acabar
de confundir e desenganar ao Sr. padre Campos , copia
remos por extenso todas essas passagens de S. Paulo e
de S. João .
Com effeito, eis ahi o que diz o verso 6 do Cap . 2
da carta aos Gatalas— « Mas quanto aquelles que pare
ciam ser mais consideraveis (quaes tinham sido n'outro
tempo , nada me toca . Deusnão aceita a apparencia do
homem ) a mim certamente , os que pareciam ser alguma
cousa , nada me communicaram . »
Ephes. Cap. 6 , v . 9— « E vós outros os Senhores
fazei isso mesmo com elles, deixando as ameaças : sa
bendo que o Senhor, tanto delles como vosso, está nos
Ceos ; e que não ha accepção ( excepção ?) de pessoas
para elle . » Colos. ( Cap . 3 v. 25 ) - a Pois o que faz
injustiças, receberá o pago do que fez injustamente, por
que não ha accepção de pessoas em Deus . »
Eis ahi as tres passagens, citadas pelo Sr. padre
Campos, em referencia ao Cap . 16, v . 20 da Sabedoria ,
cujo theor he como segue- (. Em contraposição de tudo
isto , alimentaste o teu povo com o mantimento dos Anjos,
123

e lhe deste pão vindo do Ceo, preparado sem trabalho ,


que tinha em si toda a delicia , e à suavidade de todo o
sabor. » Perguntaremos a quem quer que seja, qual a
referencia, qual a analogia deste verso da Sabedoria com
os trez de S. Paulo, que reproduzimos acima ?
E porem ainda resta S. João ( Cap. 6 v. 31 ) , que o
Sr. Campos tambem citou em referencia ao Cap . 16 v.
20 do livro da Sabedoria - « Nossos paes comeram o
Mana no Deserto , segundo o que está escripto : Elle
lhes deu ů comer o pão do Ceo. » Nesta passagem ha
pelo menos um pouco de analogia, mesmo de concor
dancia , e parece que na verdade ha alguma referencia
entre o Cap. 6 v . 31 de S. João , e o Cap. 16 v 20 da
Sabedoria ; entretanto enganou - se completamente o Sr.
padre Campos .
Não foi, nem podia ser ao livro da Sabedoria , que
se referio S. João na citada passagem , mas ao Psalmo
77 v. 24, que he como segue- « E lhes choveu o Maná
para comer , e lhes deu pão do Ceo Aqui tendes, Sr.
padre , completo o pensamento de S. João ; e se ainda
quizerdes mais referencias, ahi tendes o Exodo , Cap . 16
v. 15 -Numeros , cap . 1 :1 v . 7 a 9.
-

III

Trataremos agora da citação de S. Matheus ( cap . 4


v . 4 ) , cujo theor he o seguinte Jesus respondendo
lhe, disse : Escripto está-não só de pão vive o homem ,
mas de toda a palavra, que sahe da bocca de Deos . »
O Sr. padre Gampos diz , que neste verso Jesus Chris
to se referio ao verso 26 do Cap. 16 do livro da Sabedo
ria, que he como segue-« Para que soubessem os teus
filhos, a quem amaste, Senhor, que não são os fructos,
que a terra produz , os que sustentam aos homens': mas
que a tua palavra he a que conserva aquelles que em ti
crerem . »
Será esta a citação, que teve em lembrança Jesus
Christo, quando disse o que se lê no mencionado Cap . 4
v . 4 de S. Matheus ? Tendes, Sr. padre Campos , cons
ciencia disso ? Vede pois como vos enganastes : a refe .
rencia de Jesus Christo foi ao v . 3 do Cap. 8.º do Deute
.
124

ronomio, que he como segue-- « Affligio - te com a fome,


e deu-te por sustento o Maná, que tu desconhecias e teus
paes : para te mostrar que o homem não vive só do pão,
mas de toda a palavra, quesuhe da bocca de Deos. »
Vède aqui a perfeita concordancia entre S. Matheus
e o Deuteronomio-vede o mesmo pensamento, as mes
mas palavras, a mesma dicção- e dizei agora em vossa
consciencia : a quem se referia Jesus Christo -- ao livro
da Sabedoria, ou ao Deuteronomio ?
Por ultimo diz o Sr. padre Campos, que S. Matheus
( cap . 6 v . 13 ) citou o mesmo livro daSabedoria ( cap .
8 v . 11 )-o que he inteiramente falso . Eis ahi o que
diz S. Matheus no lugar apontado- a E não nos deixeis
cahir em tentação . Mas livrai-nos do mal . Amen . »
Agora diz o livro da Sabedoria no citado v . 11 do Cap .
8.0 « E serei achado agudo no juizo, e admiravel na
presença dos poderosos; e os semblantes dos Principes
me admiraram . >>
Onde está pois a analogia , onde a referencia, onde
a concordancia ou a menor apparencia se quer de pala
vras ou de pensamento ? Sò fóra do seu juizo poderia
um homem affrontar a opinião dos seus leitores com se
melhantes disparates . O Sr. padre Campos não exami
nou os apontamentos que lhe deram, e carregou com a
ignorancia ou com a má fé do Sacristão, que os colleccio
nou - com su pan se lo coma !
Depois de todas essas falsidades ou solemnes dispa
rates, que ahi ficam demonstrados, conclue o Sr. Campos
muito ufano : « Eis ahi os livros que diz o padre Ricardo
foram dispresados por Jesus Christo e seus Apostolos. »
Despresados não, que he frase banal e mesquinha, mas
que não eram tidos como divinos .
A verdade he que Jesus Christo e os Apostolos só
citaram o canon admittido pela Synagoga , comoEscriptura
inspirada , e só destes e não dos livros apocriphos ( alguns
dos quaes não eram naquella epoca ainda conhecidos )
fallou Jesus Christo, ou fallaram os Apostolos e Evange
listas .
Finalmente diz o Sr. padre Campos ( citando Glai
re, p . 101 e seg . ) , que os judeus da Palestina attribuiam
grandissima autoridade aos deutero - canonicos, segundo
125

attestavam S. Jeronymo, Origenes, e Junilio africano.


Os proprios Rabinos ( continua ) rendem profundas ho
menagens a estes livros ! Podemos asseverar que se
melhantes asserções são inteiramente falsas, como logo
provaremos . Onde attestaram S. Jeronymo, Origenes , e
Junilio taes despropositos— como provaes as profundas
homenagens dos Rabinos aos livros apocriphos , se dizem
inteiramente o contrario ?
Para confundir o Sr. padre Campos basta o seguinte
artigo extrahido do Jornal do Commercio do Rio de Ja
neiro de 13 de setembro de 1866 , que tambem lhe per
tence , porque he uma resposta cabal a sua afirmativa so
bre as homenagens dos Rabinos.
Alem de outras cousas diz o citado artigo.
« O Sr. conego, baseando-se em outrem disse : Os
proprios Rabinos rendem profundas homenagens a estes
livros (deutero -canonicos).-Querem ver algumas amos
tras ? Rabbin Azarias diz : Elles (os deutero -canonicos)
são recebidos pelos Nazarenos, não por nós outros . )
Rabbi Gedaliah, depois de tratar dos livros do Ve
lho Testamento e dos seus autores , diz : « E' bom sa
beres que as nações do mundo escreveram no seu sys
tema de livros sagrados muitos outros que não estão nas
nossas mãos . » Accrescentando depois : « Dizem ser
alguns achados no chaldaico, alguns no arabe , outros no
grego . »
Rabbi David Gantz diz de Tobias : « Sabei que o
livro de Tobias é um daquelles que os christãos accres
centam á haggiographia. »
« Rabbi Azarias diz de Baruch : « Está recebido pe
los Nazarenos, mas não por nós outros. ) ( 1 )
« Diz o Sr. conego que os Talmudos os citam como
divinos .
« De Wette ( Einleit pags . 470 e 471 ) mostra que
os Talmudos citam algumas vezes : « Os proverbios do
filho de Sirá , o que parece um pouco com Sirach, mas
algumas das citações respondem com os Proverbios de
Salomão, e outros nem em um nem em outro livro se en
contram ; e o Talmud expressamente diz ( cod . Sanhed c.
( 1 ) Thesaprus philologicus, ps. 521 < 528, et Tiguri 1649
citado em Horne.
126

11 , in Gernara ) : « E' prohibido lêr no livro do Filho


de Sirach » ; cujas palavras são citadas com approvação
pelos rabbis Gantz e Azarias . ( 1 )
Pode ser que o Sr. conego tenha melhores informa
ções. Jornal do Commercio do Rio de 13 de selembro
de 1866 .

OS LIVROS PROTO-CANONICOS ESTÃO TODOS


CITADOS NO NOVO TESTAMENTO,

Continua o Sr. padre Campos dizendo que, se a cir


cumstancia de não serem citados os livros deutero - cano .
nicos por Jesus Christo e pelos Apostolos e Evangelistas ,
fosse argumento contra a sua canonicidade, tambem apo
criphos seriam alguns livros proto-canonicos,que aquel
les não citaram, como Juizes, Ruth , 1 Reis, 2 Paralipo .
menos, Ecclesiastes, Cantico dos Canticos , Esdras e Ne
hemias, Abdias, Sofonias e Esther.
Já temos protestado algumas vezes contra a fraca
memoria do Sr. padre Campos- elle não se lembra qua
-

si sempre do que escreveu ; e para provar - lhe a sua


pouca reminiscencia , faremos, segundo elle mesmo, a
classificação dos livros , que formam o canon hebreu.
Em primeiro lugar disse Jesus Christo em S. Lucas
( Cap 24 v. 44 ) - « Que era necessario , que se cum
prisse tudo o que de mim estava escripto na lei de Moy
sés,e nos Prophetas e nos Salmos. « S. Matheus ( Cap . 7
>

v . 12 ) - « Porque esta he a lei e os Prophetas. » Ora , o


que quer dizer aa lei e os Prophetus ? Eis ahi o que o Sr.
padre Campos definio ou explicou perfeitamente no Dia
rio de Pernambuco de 19 de Junho de 1866 , pela seguinte
maneira :
( Em trez classes dividem os Judeus os 24 livros,
que compõem o seu canon : a 1.a contem os 5 livros de
Moyses, e se chama tora , palavra que se interpreta a
lei, & : 2.a que encerra Josué, e os livros que se seguem
até Malachias inclusive , chama-se nebiim , isto he, Pro
( 1 ) Thesaurus philologicus, ps . 521 c 528 , ct Tiguri (619
citado em Horne.
127

phetas : a 3.a que contem os outros livros , he designada


sob o nome de Kthoubim , ou escriptos por excellencia ;
idéa que corresponde perfeitamente ao termo consagra
do : agiographos ou hagiographos . »
« Attesta -nos S. Jeronymo, que esta distribuição
era a observada entre os Israelitas do seu tempo . »
O Sr. padre Campos engana-se completamente a
respeito da classificação de S. Jeronymo . Eis ahi a clas ·
sificação feita por este Santo Padre dos 22 livros do ca
non hebreu , no seu Prologo Galeato , que vem na biblia
Xistina -Clementina : 5 livros de Moyses, chamados (pro
prie) Thora ; isto he, a lei -a saber : 1 Genesis, 2 Èxo
do, 3 Levitico , 4 Numeros , 5 Deuteronomio .
2.a Classe ou 2.a Ordem, chamada dos Prophetas,
consta de 8 livros-a saber : 1 Josué, 2 Juizes, em que
>

se comprehende Ruth ; 3 Samuel ( 1.0 e 2.° dos Reis ) ;


4 Reis ( 3.° e 4.° ) 5 Isaias , 6 Jeremias com as Lamen
tações ; 7 Ezequiel,8 os 12 Prophetas menores .
3.a Classe ou Ordem , chamada dos Agiographos,
consta de 9 livros-a saber : 1 Job , 2 Psalmos, 3 Pro
verbios, 4 Ecclesiastes , 5 Cantico dos Canticos, 6 Daniel,
7 Paralipomenos, 8 Esdras , 9 Esther.
Ahi tem por tanto o Sr. padre Campos a classifica
ção de S. Jeronymo ; isto he - 5 livros chamados da lei ;
8 dos Prophetas , e 9 Agiographos ; perfazendo 22 livros
do antigo canon hebreu. Mas nós aceitamos a classifi
cação adoptada pelo Sr. padre Campos ; isto he, 5 livros
da lei, 13 dos Prophetas, e 4 Agiographos; para evitar
trabalho .
O Sr. padre Campos falla -nos no Talmud , em José
e em Philon , e diz que, segundo o testemunho de José,
5 dos 22 livros sagrados dos Judeus, foram compostos
por Moysés, treze pelos Prophetas . no periodo de Moyses
até Artaxerxes ; e ha outros quatro, que contem os hym
nos em louvor de Deos , e os preceitos moraes para os
homens . Estes livros, que constituem a 3.a Classe ou
Ordem , são os Psalmos, os Proverbios, o Ecclesiastes e o
Cantico dos Canticos.
Ora , Jesus Christo cita em S. Lucas- a lei , os Pro
phetas e os Psalmos ; e em S. Matheus, a lei e os Pro
phetas, assim como em outros muitos lugares dos Evan
128

gelhos - logo o proprio Jesus Christo citou 19 dos 22


livros do canon hebreu ; isto he, 5 da lei , 13 dos Pro
phetas e os Psalmos, que perfazem 19 .
Como pois vos atreveis a dizer ( Diario de Pernam
buco 22 de Junho de 1866 ) que no novo testamento não
estão citados os livros dos Juizes , de Ruth , 1 Reis , 1 e
2 Paralipomenos, Esdras e Nehemias, Abdias , Sofonias e
Esther , quando todos esses livros estão incluidos na
classe dos Prophetas ? He que tendes a memoria mais
fraca do mundo .
E porem o que espanta he a soberana boa fé do Sr.
padre Campos nos seus apontamentos —elle diz com uma
confiança de metter medo : « Provem os Protestantes
(aqui nos engloba elle pela sua alta generosidade ) que os
Apostolos e Evangelistas citassem nunca os livros cano
nicos dos Juizes , de Ruth , do 1.º dos Reis , dos 2 dos
Paralipomenos , de Esdras ee de Nehemias , de Abdias e de
Sofonias , do Ecclesiastes , e a parte proto-canonica de
Esther .
Outro homem , menos respeitador do que nós, das
altas e profundas qualidades do Sr. padre Campos diria ,
que não houve so ignorancia completa das Escripturas
nesse enunciado, como tambem muita imbecilidade - mas
nós só diremos, que houve da sua parte demasiada boa .
fé, e nada mais . E senão vejamos .
IL

He com a propria Vulgata, cujas notas marginaes


copiou o padre Antonio Pereira com rigorosa fidelidade,
que responderemos ao nosso antagonista - alli achará
por tanto o Sr. padre Campos as seguintes citações :
1 Reis - Math . Cap. 1 vv . 5 e 6 - Cap. 12 v . 3 e
7- Marc. cap. 2 v . 25 — Luc. cap . 1 v . 53 --cap . 2 v . 4
cap . 6 v . 4-Acl . cap , 7 v . 46 -- cap. 13 vv . 21 e 22-
Apoc . cap . 2 v . 23 .
Juizes — Luc. cap . 1 v . 31 .
Ruth— Math , cap. 1 v . 3 e 5 .
-

Ecclesiastes -- 1 Timoth . cap . 6 v . 7-1 S. João


cap . 1 v.8 .
Esdras e Nehemias - Math . cap 23 v . 2 .
129

1 Paralipomenos -- Math . cap. 1 v . 3 e 4 - Luc.


cap. 11 v . 31 - Actos - cap. 7 v . 48.
-

2 Paralipomenos- Math . cap . 1 v . 9, 10 e 11 .


cap. 12 v . 42- cap . 27 v . 51 - Roman . cap . 2 v . 11
Ephesios cap . 6 v . 9 — Hebreos, cap 5 v..4-1 S. João,
>

cap . 1 v . 8 .
Se Abdias e Sofonias não estivessem citados tantas
vezes por Jesus Christo entre os Prophetas , quão grande
admiração seria que Abdias com 21 versos , e Sofonias
com 33, não fossem expressamente referidos como os ou
tros livros do canon hebreo ? Entretanto he facto in
controverso , que sempre foram aceitos por toda aa chris
tandade, como fazendo parte de um livro canonico .
Que paridade pois pode haver com os livros deutero
canonicos, de que toda a Christandade duvidou até o se
culo 16, e d'ahi por diante ainda duvidaram muitos theo
logos, e todas as seitas dissidentes em muito maior nume
ro do que aquella que os recebe ?
Eis ahi por terra a igrejinha do Sr. padre Campos
ahi estão citados todos os livros, que com singular ar
dimento asseverou que nunca foram citados - 0 Sr. pa
dre Campos nunca compulsou ao menos a traducção da
Vulgata pelo padre Antonio Pereira - se o tivesse feito ,
não cahiria na risivel provocação, que dirige aos Protes
tantes para provarem o que não necessita da menor pro
va ! nem ao menosas notas marginaes da Vulgata ? é deci
dia de mais .
O que é certo ee evidente é que não ha um só livro
proto -canonico do Velho Testamento, que não tenha mui
tas referencias entre os livros do Novo Testamento ;
como fica demonstrado verso por verso , capitulo por ca
pitulo ; e se fôr preciso copiaremos os referentes e refe
ridos para que se veja a identidade de uns com outros.
Entretanto , o que fará agora o Sr. padre Campos de
todos esses apontamentos que lhe deram ? Tome um con
selho :-devolva -os á pessoa que lh'os deu, e diga-lhe
que burel não dá sciencia, porque se desse, toda a gente
andaria vestida de burel .
Do que temos dito até agora resulta : - 1.º que ne
nhum dos livros deutero -canonicos foi citado por Jesus
Christo nem pelos Apostolos : -2.º que todos os livros
17
130

prolo- canonicos foram citados por Jesus Christo, pelos


Apostolos e Evangelistas, não só englobadamente, como
em S. Lucas e S. Matheus, mas especialmente em todos
os 4 Evangelhos, Actos apostolicos, nas 7 Cartas catholi
cas , em S. Paulo e no Apocalipse . O que fica pois de
todo o castello do Sr. padre Campos ? Inania verba, et
proeterea nihil.
Continua o nosso adversario- Que os deutero -ca
nonicos foram sempre collocados no numero dos livros
divinamente inspirados pelos padres e autores ecclesias
ticos dos primeiros seculos da igreja, cousa é que se acha
evidentemente averiguada (onde ?), como vamos ver já .
Attendam os nossos leitores ; e provocamus a todos os
christãos velhos e novos que nos desmintam . »
Tornamos a protestar contra a fraca memoria do
Sr. padre campos ; oqual poucas linhasabaixo do pe
riodo antecedente, diz o seguinte :-- Estamos porém
longe de desconhecer, que antes do 5.° seculo , em que
as cousas da igreja não se achavam uniformemente or
ganisadas, pelas perseguições, de que sahira, hovesse al
gumas igrejas particulares , que duvidassem , mais ou me
nos, da canonicidade, ora de uns , ora de outros livros. »
No primeiro periodo os deutero-canonicos foram
sempre collocados no numero dos divinamente inspira
dos; no 2.0 porém , está longe de reconhecer, que antes
do 5.º seculo algumas igrejas duvidaram da sua canoni
cidade . No 1.º periodo os autores ecclesiasticos e pa
dres dos primeiros scculos reconheceram como canoni
cos taes livros ; no 2.º duvidaram da sua canonicidade
0
até o 5.° seculo algumas igrejas, senão todas sem excep
ção de uma só .
O Sr. padre Campos provoca a todos os Christãos
velhos e novos para que o desmintam ! E' mais uma
baforada de orgulho , mas de um ridiculo nauseabundo ;
porque o Sr. padre Campos não tem, nem pode ter
consciencia do que escreveu. Onde leu elle , onde consul
tou se quer todos esses padres, quemenciona englobada
mente em uma lista de nomes ; onde existem essas obras
em Pernambuco ? Tem-nos dado agua pela barba achar
algumas (além das que possuiamos ) batendo aqui e ali , e
131

até a porta ..... de um convento , onde fomos grosseira


mente tratados !
Para obtermos algumas obras foi necessario pedil -as
a um amigo no Rio de Janeiro , que as agenciou , e nol-as
mandou em numero de 54 volumes, dos quaes já de
volvemos grande parte. Aqui mesmo encontramos em
poder de varios amigos , e no Gabinete Portuguez de
Leitura, obras que não suppunhamos encontrar ; e as
sim mesmo não teriamos a audacia de apresentar aquella
lista de nomes com a emphasis, com que o fez o Sr. padre
>

Campos ! -audaces fortuna....


III

O Sr. padre Campos pede que o desmintamos ! Pois


bem, temol- o desmentldo tantas vezes, que mais uma não
The faria mossa . E como ousa affrontar o criterio de seus
leitores, citando de falso em tudo quanto diz a este res
peito ? Pois o Sr. padre Campos acredita , que o deixaria
mos apregoar impunemente que nos havia pulverisado ,
e que não eramos capazes de responder -lhe ? Agora verá
que se metteu em camisa de onze varas . Sem embargo,
renunciamos toda e qualquer gloria , que d'ahi nos possa
resultar, porque a luta é tão desigual ....
O Sr. padre Campos vai já provar que os deutero
canonicos foram sempre collocados no numero dos livros
divinamente inspirados ; e começa por uma lista de pa
dres, sem indicar o titulo da obra , nem o lugar, nemo
que cada um disse a este respeito - copiou uma porção
de nomes , sem consciencia do que fazia ; e pensou que
o acreditariam debaixo de sua palavra sagradamenga
nou-se !
Para mostrarmos que o Sr. Campos citou de falso, di
remos que citou S. Jeronymo para provar a canonicidade
de Judith . Que o Sr. Campos nunca leu S. Jeronymo,
acreditamos nós, mas que não consultasse sequer o Pro
logo galeato desse Santo Padre , que vem a frente da Vul
gata Xistina-Clementina ; que não lesse a primeira parte
da Prefação geral do padre Antonio Pereira, em que S.
Jeronymo é citado contra a canonicidade de Judith , é
cousa que não tem desculpa .
132

Com effeito, S. Jeronymo, no seu Prologo galeato,


depois de fazer a ennumeração (pelos seus nomes) dos
22 livros do canon hebreo , conclue : Quidquid extra
hos est, inter apocripha esse ponendum . Igitur Sapientia ,
que vulgo Salomonis inscribetur, et Jesu filii Syrach libri ,
et Judith , et Tobias , et Pastor non sunt in canone. »
Quel-o mais claro ?
Ainda mais, o mesmo S. Jeronymo, na Prefação dos
livros de Salomão, diz o seguinte : - Sicut ergo Judith
et Tobic et Maccabeorum libros legit quidem Ecclesia, sed
eos inter scripturas canonicas non recipit. » .Dizei agora ,
Sr. padre, como vos atrevestes a citar S. Jeronymopara
provar, que o livro de Judith fôrà sempre collocado no
numero daquelles divinamente inspirados , desde os pri
meiros seculos da igreja ? Audaces fortuna ....
Todavia, é forçoso confessar, que nos inspira um
certo aborrecimento essa especie de pouco caso, com que
o Sr. padre Campos tratou dessas materias, como se tra
tasse de um artigo de gazeta sobre eleições . Elle cita
por exemplo S. Jeronymo, Origenes , S. Cyrillo de Jeru
salem , Euzebio de Cesarea , Santo Athanasio, Santo Hilla
>

rio, e S. Gregorio Nanzianzeno , como padres que des


de os primeiros seculos da igreja collocaram os livros de
Tobias, Judith , Baruch, Sabedoria , Ecclesiastico e os 2
Macabeos entre os divinamente inspirados !
Entretanto nos catalogos de todos esses padres , cujos
nomes e obras o padre Antonio Pereira cita (1.a P. Pref.
geral) não se encontram os livros deutero - canonicos aci
ma mencionados. Se isto não é citar de falso , é ainda
peior, é..... Nós teriamos pejo, mas o Sr. padre Campos
pode a seu salvo emprehender a campanha do Paraguay !
Estamos decididamente anojados - custa -nos escre
ver de nossa propria lavra , e por isso suspendemos as
nossas observações para inserir alguns artigos que, em
resposta ao mesmo Sr. padre Campos, foram publicados
no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro em Setem
bro do anno proximo passado. Os leitores apreciem o
que ahi se diz , e vejam se é mister de grande esforço para
tachar de falsas todas as citações do nosso antagonista ; e
se o Christão velho pode ou não desmentil -o, correspon
dendo a sua provocação .
133

Quanto a tudo mais que se refere ao padre Ricardo ,


este lhe responderá se quizer, pois nada temos que ver
com as prelecções protestantes do Sr. padre Campos, nem
com a doutrina do Sr. padre Ricardo - elles são brancos
-

e lá se entendam .
IV

O Rum . Sr. conego Pinto de Campos perante a historia


1
O Sr. conego , escrevendo acerca dos livros apocry
phos, citou uma longa lista de nomes, que elle dá por
padrinhos de um ou outro dos livros discutidos.
E' axioma que de ninguem se espera que prove uma
negativa,—é sempre quemaffirma que deve justificar as
suas affirmações ; mas o Sr. conego, lançando sobre a
arena uma formidavel phalange de nomes com a ufania
de quem se sente seguro de que o seu estratagema não
pode falhar, introduz a sua lista desta forma : « Provo
• camos a todos os christãos velhos e novos que nos des
mintam ; e então fecha dizendo :
« Ha um só meio peremptorio de dirimir a questão
-é convencerem-nos de falsario os nossos antagonistas,
e provarem á luz da historia que citamos de falso ! )
Nem uma só palavra cita ,nem um só indicio offerece
o Sr. conego dos lugares nas obras dos referidos autores,
onde se deve procurar e apreciar o que disseram a res
peito ! Nada ! uma lista de nomes e mais nada !! A ta
refa herculea de examinar todas as obras daquelles pa
dres , sem saber mesmo o que se procura, é a que o Sr.
conego modestamente propõe aos seus antagonistas, e
com que espera desanimal-os, e ter a gloria de sahir de
bandeira alçada !
Enganou -se.
Felizmente para a causa da verdade temos á mão o
meio com que patentear a verdadeira opinião de uma
grande parte dos padres antigos cujos nomes alistou .
A nossa tarefa pouco exigirá da nossa parte ; não
somos nós, mas os proprios padres invocados pelo Sr.
conego que vão offerecer -lhe a satisfação que pedio .
Por exemplo . O Sr. conego citou S. Gregorio Nan
134

ziazeno em abono dos Macabeos. Gregorio deixou uma


lista em verso grego, « dos genuinos livros das escriptu
ras inspiradas em uma carta metrica dirigida a Seleuco ,
que diz :
( Todos os livros historicos são doze de mui antiga
sabedoria hebraica. Primeiro Genesis, então Exodo , Le
vitico , Numeros,, Deuteronomio . Então Josué e Juizes ;
Ruth faz o oitavo ; o nono e decimo são os actos dos
Reis ; então as chronicas (Paralip .) o ultimo é Esdras,
Hasinco metricos, Job ee David (Psalmos) ; tres são de Sa
lomão : Ecclesiastes, Cantico e Proverbios. Da mesma sor
te ha cinco de espirito prophetico, n'um destes acham-se
comprehendidos doze, a saber : Hosea, Amos, Habacuc,
Joel, Jonas, Abdias, Nahum, Micheas, Sofonias, Aggeo, Za
charias e Malaquias ; estes fazem um só . O segundo é
Isaias, então Jeremias, chamado desde o ventre, Esequiel
e a graça de Daniel. Tenho alistado 22 livros de accordo
com as 22 letras hebraicas ; e então, depois de alistar
os do Novo Testamento , elle fecha tudo dizendo ; « Se
ha quaesquer além destes, não são dos genuinos. »
Os livros dos Maccabeus são livros historicos, e não
estão no numero dos doze acima mencionados, assim, se
gundo Gregorio, não são dos inspirados, mas dosque não
são genuinos. ( 1) - (Jornal do Commercio de 19 de Se
tembro de 1866.)
2
O Sr. conego, citando uma longa lista de nomes em
abono dos livros apocriphos, diz :
a Provocamos a todos os christãos velhos e novos que
nos desmintam .
Em resposta , vamos citar obras que não estão ao
alcance de todos nem talvez dos proprios sacerdotes se
quer. Pode haver desconfiança. Pois bem, ha uma obra
que cremos ser mais accessivel, a qual pelo menos jul
gamos estar da posse do Sr. conego Campos, visto que
já citou -a com approvação .
E' a Historia dos Escriptores Ecclesiasticos do Dr ,
Luiz Dupin, outr'ora professor de theologia na Universida
(1 ) Greg. Naz. in ed . Graec. Lat. I. 2. num . 33 ant. p. 194 1. 2,
ed . Pariz 1630. - Dupin 1 , 1 pp. 258.
135

de de Paris , cuja obra está abonada pela faculdade


theologica da mesma Universidade.
As mais importantes das citações que teremos occa
sião de fazer se acham abonadas , quanto á sua impor
tancia, com mais ou menos clareza , por este autor. As
palavras elle não cita, mas refere -se ao facto que os re
feridos autores se expressam de tal forma.
Daremos as referencias aos respectivos lugares , se
gundo a edição Dublinense de 1723, em tres volumes em
folio.. Os que se servirem de outras edições não terão
grande dificuldade em verificar as referencias n'uma
obra organisada como a de Dupin .
A evidencia historica contra os debatidos livros é um
diluvio que, principiando com a epoca apostolica conti
núa a correr até o mesmo concilio de Trento, e contra
o qual naha ha que oppor-se , senão : 1.', quatro ou cin
co documentos , dos quaes nem um sequer está livre de
suspeila ; 2.º , o facto que alguns padres citaram os livros,
como igualmente e da mesma forma faziam com outros
livros , e 3.º , o miseravel subterfugio que os padres não
puzeram aquelles livros nas suas listas porque espera
vam um decreto infallivel para lhes dizer quelivroseram
inspirados !
O Sr. conego não citou Amphilochio, mas elle deixou
uma lista dos mesmos livros e quasi nas mesmas pala
vras com a de Gregorio Nanziazeno, citada hontem a qual
elle fecha com estas palavras : « Seja este o canon das
Escripturas inspiraulas » Amphil. Ep. ad . Seleuc,, in op.
C

Greg . Nanz . t . 2, p . 134 Paris 1630. - Dupin , t. 1 pag . 17.


O Sr. conego não citou Militão de Sardes, mas elle,
no seculo II ‫و‬, fez lista dos livros da biblia, da qual excluio
os livros apocryphos .
Euseb. L.4 c . 26. - Dupin . t. 1, ps . 17 e 68.
O Sr. conego não citou Junilio Africano , mas elle
9

tratou Suzana como uma fabula .-- Dupin t. 1, p . 99.( 1)


- ( Jornal do Commercio de 20 de Setembro de 1866.)
( 1 ) Junilio, bispo d'Africa, que floresceu no seculo VI ; por
consequencia inuito posterior aos Concilios 3 e 6 de Carthago, a
Innocencio I, e ao Concilio romano presidido por Gelasio ; depois
de fallar dos livros deutero-canonicos, pergunta-Quare hi libri
inter canonicas Scripturas non currunt ?--Responde-Quoniam
136

3
() Sr. conego, citando uma longa historia de nomes
em abono dos livros apocryphos, diz :
a Provocamos a todos os christãos velhos e novos
que nos desmintão . )
0 Sr. conego citou o nome de S. Athanasio como
abonando o livro de Baruch .
O mesmo Athanasio que lhe responda :
« Todas as Escripturas de nos outros christãos são
inspiradas e não innumeraveis, mas antes os livros são
definidos e alistados : e são do Velho Testamento estes » :
( citando os 22 livros sem menção de Baruch ) .
Q Além destes ( cklos ) ha outros livros do V. Testa
mento não canonicos ... Sabedoria de Salomão, etc. Estes
não são canonicos » ; e em outro lugar diz elle : Q Além
destes, porém , ha outros do mesmo velho testamento ,
que não são canonicos , que somente se lé aos cathecume
nos , Sabedoria, etc. >>
Athanas. in Synopsis, et in Lit. Festiv . - Dupin, t.
.

1.° pag. 180.- ( Jurnal do Commercio de 21 de Setem.


bro ) .
4
O Sr. conego citou S Hilario em abono dos li
vros de Judith e Sabedoria .
Hilario que lhe responda :
« Em vinte e dous livros está julgada a Lei do Ve
lho Testamento , para que corresponda com o numero
das letras .... confesso que alguns querem accrescentar
Tobias e Judith .... o outro parecer está mais de accor
do com a antiga tradição . D
Hilario in Prolog . Psal . explanat. Veronæ 1730.
Citado tambem por Bellarmino de Verb . Dei . L. 2. c . 1
§ 15 pag . 38, t. 1. ° Prag . 1721. -Dupin , t. 1.º, pag. 199 .
5
0 Sr. conego citou S. Epiphanio em abono dos livros
o
da Sabedoria e Ecclesiastic .
Epiphanio que lhe responda :
apud Hebreos quaque super hac differentia recipiebantur sicut
Hieron. cæterique testantur. ( Part. divinæ legis . lib . 1 c. 3, tom .
6. Bibl Pat
. col
. P. 2 . 1618 .
O christão velho .
137

Depois de alistar os 22 livros diz elle : a Ha tam


bem além destes mais dous livros duvidosos, a Sabedo
ria de Salomão e Ecclesiastico p ; e em outro lugar :
a Estes são uteis e proveitosos , mas não estão admitti- ,
dos no numero dos acceitos . »
Epiphan. adv . Haeres . pags. 18, 19. Colon. 1682 ,
et Epiph. in Logo ankuroto, de poud et meus . -Dupin t.
1.' , pag. 296 .
Parece ser já sufficiente o que temos evidenciado
para provar que as citações dos antigos escriptores, fei
tas pelo conego Pinto de Campos, nas quaes se estribou,
e das quaes tanto se gloriou , são inteiramente immere
cedoras da confiança do leitor .
Quem recorre a inexactidões em apoio da sua the
se por ventura não está ja convencido de que ella não é
de autoridade divina ? Ou imagina que Deos carece de
fraudes e enganos em abono de sua verdade ? Eis mais
algumas amostras da fidelidade ( ! ) com que o conego
Pinto de Campos cita os padres da igreja .-- ( Jornal do
Commercio de 22 de Setembro de 1866. )
6
0 Sr. conego deCampos, citando umalonga lista
de omes em abono dos livros apocryphos, diz :
« Provocamos a todos os christãos velhos e novos
que nos desmintào . »
.

0 Sri conego citou o nome de Rufino de Aquileia


como abonando a historia de Susana . Sobre este pon
to nada temos alcançado , mas quanto aos outros livros
Rufino lhe responderá . Depois de alistar os livros legi
timos segundo o canon hebraico elle diz :
« Estes são que os padres incluirão dentro do ca
non , pelos quaes querião que as affirmações da nossa fé
fossem firmadas; comludu convem saber que ha outros
livros que não são canonices, mas chamados, por nossos
>

maiores, ecclesiasticos como a Sabedoria de Salomão e


outra Sabedoria que se diz do filho de Syrach ; da mes
ma ordem é o livro de Tobias e Judith e os Machabeos,
que querião deveras que fossem lidos na igreja, mas
não tidos como autoridade por onde firmar cousas đa
fé. »
Rufino, sive Cyp. in Explic. Symboli. citado por
18
140

6.2-que esta disciplina vinha do costume da antiga


Synagoga dos Judeos ! ( aqui está o enigma ! a pratica
judaica e nada mais. )
Para começar a refutação de todas essas blasfemias,
lembraremos aos leitores o art. V da nossa 1.a resposta ,
de pag . 30 a 35-alli está bem definido o espirito das
Escripturas a este respeito . Agora trataremos das ra
zões, em que se fundou o Sr. padre Campos para prohi
bir a leitura da biblia em vulgar sem licença da Inqui
sição !
A desculpa de que ha perigo na leitura da Escrip
tura sagrada por pessoas indoutas , he tão pueril
como contraria ao Evangelho . Com effeito, diz S. Ma
-

theus ( cap 11 v. 25 ) - Naquelle tempo, respondendo


Jesus, disse : Graças te dou a ti , Pae , Senhor do Ceo e
da terra, porque escondeste estas cousas aos sabios e en
tendidos, e as revelaste aos pequeninos D ... O mesmo repete
S. Lucas ( cap . 10 v. 21. ) Vêde pois como a vossa 1.a
desculpa, alem de frivola, he contraria aos Evangelhos .
A 2.a desculpa consiste em que S. Pedro dissera
que ha lugares difficeis de entender las cartas de S.
Paulo, que os ignorantes adulteram . Ora , justamente
para os ignorantes he que são as Escripturas-os que as
sabem tem-nas na memoria . A palavra de Deos não foi
revelada aos sabios ; foi, sim, ao povo humilde e ignaro
da Palestina - dizer o contrario he mentir contra a his
toria sagrada .
Alem de que poderiamos provar-vos, que entre os
dous Apostolos, Pedro e Paulo, havia uma especie de
ciume, que se revella a cada passo nas cartas de um e de
outro . S. Pedro tacha de obscuras algumas passagens
nas Epistolas de S. Paulo ; este disse de S. Pedro o se.
guinte- , Ora, tendo vindo Cefas a Antiochia, eu lhe
resisti na cara , porque era reprehensivcl « ( Gal. c. 2 v .
11 e seguintes ) . Ha outras muitas passagens em S.
Paulo não menos edificantes para o Principe dos Aposto
los-mas não he disto , que nos occupamos .
A 3.a desculpa não augmenta cousa alguma ao que
disse S. Pedro sobre a obscuridade das cartas de S.
Paulo. Ainda quando o Sr. padre Campos citasse as
palavras e os lugares , donde as extrahira, nenhum desses
141

padres seria autoridade contra o Evangelho , -e ficae


sabendo, Sr. padre , uma vez por todas , que as melhores
disposições para entender as Escripturas são a humil
dade e a simplicidadede coração ; porque Jesus Christo
era humilde de coração ( Math . c. 11 v . 29 ) .
A 4.a desculpa de que a Igreja condemnara a pro
posição de um Jansenista, que dizia ser licita a leitura da
biblia por todos , só prova uma cousa , e he que entre
todas as barbarias dos seculos passados , não he menos
curial esta condemnação que a de Galileo por haver dito
a verdade mais palmar do mundo ; isto he, que a terra
girava ao redor do sol. Se a vossa igreja mentio então,
porque não mentiria agora , ou não mentirá sempre ?
A 5.a desculpa , de que a igreja prevenio que os
leigos não lessem a biblia em vulgar, sem licença do
bispo ou do inquisitor, implica a 2.a e a 3.a desculpa ,
que já desfizemos. Todavia , ao que chama leigo o Sr.
padre Campos ? Naturalmente a todo aquelle que não
traja uma batina, ou um habito , ou não usa de tonsura
no alto da cabeça , embora seja homem muito instruido
nas cousas humanas e divinas ; e tenha passado longos
annos a estudar as Escripturas , a examinar os interpre
tes, e a comparar os textos nos codices mais antigos e
acreditados .
E ao que chamaes professo ? a outro muito ignoran
te , que nem a sua propria lingoa sabe , e muito menos a
latina, e que em nome da intitulada igreja tem licença
de ser tolo e até estupido ! Deos me não perdoe, se
essas não são as vossas definições . Ila no nosso clero
homens respeitaveis, e até muito instruidos ; mas esses
não vem a imprensa sustentar paradoxos, nem vomitar
calumnias, nem a fazer torpes allusões, como a do Dia
>

rio de Pernambuco de 3 de Julho de 1866 ! Tudo isto,


bem entendido, não se refere ao Sr. padre Campos .
Porque não quereis que se leia a biblia em vulgar ?
mas ella está traduzida , e como tal permittida pela pro
pria Igreja, com todas as licenças necessarias; nem
consta que taes traducções sejam prohibidas. E se
existe a biblia em vulgar he para que a leiam os que não
sabem o latim ou o grego ; isto he, para que a leia o
povo , porque nem todos podem ter uma educação litte
142

raria. A proposito da licença do bispo devo dizer-vos o


que disse o padre Antonio Pereira , na sua Tentativa theo
logica , acerca dos bispos de Portugal ; isto he , que eram
tão ignorantes, que pediam licença ao Papa para ler li
vros prohibidos.
Vós mesmo confessaes, que não existe lei alguma ,
quer divina quer ecclesiastica, que prohiba a leitura da
Santa Escriptura a todos os christãos indistinctamente .
E como vos atreveis a fazel - o por vossa propria conta
ou de vossa autoridade ? E porque esse horror ao Evan
gelho ? He porque isso, a que chamaes igreja, será tudo
quanto quizerdes- Feitiço , Paganismo . Judaismo , Bu
dhismo , menos Christianismo -isso não , Sr. padre .
Não quereis que se leia a biblia em vulgar sem ano
tações ! Temos duas com anotações ; a do padre Anto
nio Pereira, e a da edição Garnier --esta custa 30/000
reis, e aquella 40/000 , e a edição esgotada. Ora pou
cas pessoas estão habilitadas para compral-as por tão
alto preço ; logo semelhante proposito equivale á uma
prohibição. E as notas ? Lêde as que vem no Cantico
dos Canticos, no Levitico , no Deuteronomio , em Eze
>

quiel, e em outros livros do velho testamento , e dizei se


he possivel ler a sangue frio o que dizem semelhantes
notas em relação ao texto !
Sr. padre, ficae sabendo que nenhum dos Evange
listas poz notas ao Evangelho, que escreveu ; e fóra delles
todos quantos lhe poseram as mãos são sacrilegos e abo
minaveis ; e que se a palavra de Deos necessita de ex
plicações para ser entendida, o que seria da palavra dos
homens ? E como a este respeito dissemos tanto na
nossa primeira resposta ao Sr. padre Campos ( artigo V )
parece excusado augmentar mais nada .
Emfim , o Sr. Campos repete os mesmos argumentos ,
que o padre Antonio Pereira refuta -he um circulo vi
cioso, que já desfisemos na nossa mencionada resposta
sobre tudo recomendamos a nota , que vem á pag . 30.
E se tudo isto não for sufficiente, leia S. Lucas ( Cap . 16
v . 29 ), Actos apostolicos C. 17 v . 11 ) - 2 Epist . Thi
motheo ( C. 3, v. 15. ).
143

11

Resta a 6.a e ultima desculpa, isto he, que esta dis


ciplina vinha da antiga Synagoga ! Quando Jesus Christo
protesta contra os abusos, contra a corrupção do Sacer
docio judaico, contra as praticas abominaveis de um cul
to, que tinha trocado a sua simplicidade divina pelas
maximas da idolatria ; he justamente nesse momento que
a igreja christãa vae beber aquella fonte envenenada as
noções impuras de uma seita , que a tal igreja detesta e
l'epelle, a ponto de condemnar os seus sectarios como
reprobos, a quem não pode chegar a misericordia divina !
Ultimamente, seria de admirar que o Sr. padre
Campos não chamasse em seu apoio os Protestantes. le
singular, mas he verdade , que a maior parte da erudição
do Sr. padre Campos nesta materia elle a tem bebido em
livros protestantes, de que se mostra muito entendedor.
Para elle os Judeus e os Protestantes são os dous arse
naes donde tira as suas melhores armas. Agora mesmo
citou a Synagoga e dous Protestantes — que lhe faça bom
proveito.
O Sr. padre Campos para provar a necessidade das
anotações ao Evangelho, diz que S. Lucas lhe proporcio
nara dous exemplos: 0 1 ° o que se lè no Cap. 24 w .
44 e 45 ; e o segundo nos Actos apostolicus , Cap . 8. Ora
Jesus Christo disse em sua vida a seus discipulos, que as
Escripturas dariam testemunho delle - era um pensa
mento occulto . Resuscitando disse, que se havia cum
prido o que elle dissera ; isto he, o que a seu respeito
>

estava escripto na lei, nos Salmos e nos Prophetas. En


tão, diz S. Lucas , os discipulos alcansaram o sentido das
Escripturas .
Muito bem , e o que foi que explicou Jesus Christo
nesta passagem ? Disse elle , de mim fallam as Escrip
turas, mas não explicou em que sentido - era um vatici
nio , que só podia revelar -se depois da sua morte . Res
suscitando disse : verificou-se o vaticinio -morri e res
suscitei . Onde está o inextricavelda Escriptura ? Jesus
Christo , verificado o vaticinio , disse : eis ahi o sentido ,
em que faltaram de mim a lei , os Prophetas e os Salmos ;
explicou portanto uma passagem, que só elle podia ex
144

plicar : porque esta era a sua missão ; mas só delle, Sr.


padre, e de ninguem mais .
Mas, e o que tem de ver a explicação das Escrip
turas por Jesus Christo com as vossas notas ? A sua
missão foi ensinar a lei e fazel-a cumprir , para isto não
era mister fazer anotações . Quereis agora saber quaes
são as melliores notas ao velho testamento ? são os Evan
gelhos, nada mais ee nada menos . Só Jesus Christo po
dia interpretar as Escripturas ou explical-as ; fóra delle
tudo he sacrilego, tudo he profano, quer parta da vossa
igreja, quer das outras seitas, em que se devide a chris
tandade.
O que passou com o Eunuco da rainha Candace
ainda menos podeservir deargumento . A morte e pai
xão de Jesus Christo, seus milagres espalhados pelo povo ;
a historia da sua missão divina, suas virtudes, tudo isto
poderia produzir uma impressão de maravilhoso , e até
de sobrenatural. E como Jesus Christo fundara a sua
missão nesse codigo chamado depois o velho testamento,
a curiosidade podia excitar o desejo de achar alli a his
toria maravilhosa dessa vida de sacrificios e de abnega
ção. E porem , o que sabia o Ethiope da historia he
braica , de uma religião estranha, de um culto inteira
mente novo para elle ( 1 ) ? . A explicação de Felippe he
pois a cousa mais natural do mundo sem necessidade de
uma só nota ,
Quereis saber agora uma cousa ? he que os prophe
tas hebreos não se parecem com os prophetas de outras
religiões, salvo do Mahometismo fundado tambem sobre
o velho testamento . E como quereis que o Eunuco en
tendesse a prophecia de Isaias, quando os proprios dis
cipulos de Jesus Christo só a comprehenderam depois
da ressurreição de seu mestre ? Dizei - nos , e que notas
quereis agora que se ponham nesses lugares tão debati

( 1 ) He muito engraçado o que diz o Sr. padre Campos acer


ca do Eunuco da rainwa Candace. O Sr. Campos descobrio ( elle
mesmo não sabe onde ) que o tal Eunuco era um homem emi
nente , affeito decifrar inscripções e enrgmas ( talvez Hierogly
phos ) do Egypto ! Se não fosse a vastă erudição historica do
Sr. padre Campos, ignorariamos gus tivesse havido um Cbam
pollion na Ethiopia. Quem sabe, sabe, e o mais he historia .
>
145

dos e sabidos por quem tem a menor noção das Escrip


turas ?
O que he certo he que a vossa Igreja não quer que
se leia a Escriptura Sagrada , onde não se acha uma só
dessas praticas pagāas, de que abunda o vosso culto su
persticioso e anti-christão ! Mas esse culto he a vossa
enchada , o vosso arado, a vossa mina , a vossa prebenda !
>

eliminar essas praticas seria aniquilar a colheita da seara,


que a vossa igreja semeou á seculos ; por tanto tornou
se o verdadeiro Christianismo para vós uma ameaça per
manente ; e para conjural- a , declaraste guerra ao novo
testamento . Felizmente a tal igrejinha está desabando ;
e ainda temos esperança de ver a verdadeira religião
christãa plantada no nosso paiz .
O Sr. padre Campos queixa- se de que os Protestan
tes espalhem biblias em todas as lingoas, como se fossem
elles os inventores de semelhante pratica! Entretanto
que S. João Chrisostomo, na sua primeira Homelia sobre
o Evangelho de S. João, e Theodoreto seu discipulo, no
seu 5.0 livro, já diziam que a terra estava cheia das dou
trinas dos Prophetas e dos Apostolos ; já existiam versões
da biblia em diversas lingoas, como dos Koptos, Indios,
Ethiopes, Syrios, Sarmatas, Armenios, Arabes e Persas,
cujos antigos codices ainda hoje existem, impressos ou
manuscriptos .
E para que se fizeram todas essas versões, para que
se fizeram as primeiras versões latinas ? a rasão he clara ,
he porque esta era a lingoa do Occidente ; era a lingoa
geral do antigo imperio romano .. Condemnar a versão
vulgar he ir de encontro ao costume primitivo da Igreja
catholica apostolica para substituir-lhe a velha disciplina
judaica .
Dizei o que quizerdes, invectivae , calumniae as Es
cripturas, dizei que são inteligiveis, obscuras, e até con
tradictorias sem as vossas tradições ! que importa todo
esse vendaval de loucuras e disparates ? Pois bem, Sr.
padre, ahi estão S. Paulo, na sua carta a Timolheo, S.
João Chrisostomo nas suas Homelias, S. Jeronymo nas
suas Cartas a Leta e a Gaudencio, S. João Evangelista na
sua 2.a Epistola a Senhora Electa , e muitos padres e
Apostolos para vos desmentirem.
19
146

Vindes tambem com as vossas anotações ! do que


servem ellas senão para viciar ou illudir o texto ? Para
que anotações dos homens, quando temos a palavra de
Deos ? Para vos confundir basta o que diz o mesmo S.
João Chrisostomo na sua 9.a Homelia-- Não esperes
« outro Doutor ou outro mestre ! Tens as palavras de
« Deos ; ninguem te ensina como ellas ! » Então aconse
lha que se leiam os Evangelhos, os Actos apostolicos
a que são os mestres a toda hora . D
Que tendes vós para oppôr á essa torrente de Santos
padres e Doutores da Igreja,todos concordes em acon
selbar a leitura da Sagrada Escriptura ? Guardae pois
o vosso Lamenais, e os dous Protestantes que brigaram
>

com a Sociedade biblica de Londres , porque nella não


lhes coube bom quinhão.
Finalmente , Sr. padre, o mundo marcha em uma
progressão ascendente , firmado nas verdades da reve
lação. Deos he o conductor desta caravana, que ha de
chegar ao seu destino, porque não ha obstaculos para
Deos. O que são os homens senão vermes, que se es
pojam sobre a terra ? Impidirão elles a marcha do mun
do ? Irão de encontro a locomotiva, que arrastra esse
longo trem atravez dos Andes e do Hymalaia, atravez do
Atlantico e do Pacifico ? Loucura , Sr. padre.
Os excessos das Seitas tem-nas desacreditado ; e a
peior de todas he a vossa. A Encyclica de 8 de Dezem
bro foi para esta seita a punhalada de Bruto no coração
de Cesar - resae - lhe pela alma. Mais cedo ou mais
tarde o Evangelho triumfará, e o Genero humano será
uma só familia. Que caso fará o Evangelho dos vossos
odios ou dos vossos rancores ? São couces contra o fer
rão, ou na frase de Iriarte-a serpente mordendo aa lima .
O Evangelho será a lei universal, sem as vossas tradi
ções, sem as vossas anotações .
DA INTERPRETAÇÃO DOS LIVROS
SAGRADOS .

0 Sr. padre Campos, depois de divagar sobre a lei


tura da biblia, começa umas preleções de hermeneutica
biblica , a que chama interpretação catholica ; em que
147

elle não admitte outra regra de interpretação alem do


que ensina a igreja catholica.
Ora, catholica na bocca do Sr. padre Campos não
quer dizer universal, mas tão somente romana . Por
>

consequencia para o Sr. Campos a luz da razão, o auxilio


especial do Espirito Santo , e a propria revelação de nada
valem , se tudo isto contraria em uma virgula o que en
sina ou aprova a Curia romana .
Do que fica dito , e está consignado no Diario de
Pernambuco de 25 de Junho de 1866 , vê-se a serie de
absurdos e de disparates, que por ahi vae, até chegar
aos differentes sentidos, em que devem ser tomadas as
Escripturas, sendo o acomodalicio aquelle que mais con
vem a curia romana e de que , por isso mesmo, mais se
>

occupa o Sr. padre Campos .


Entra depois na grande questão da autoridade do
ensino, provada pela falsidade do sistema dos Protestan
tes . Já se sabemo Sr. padre Campos não admitte, que
a Escriptura sagrada seja a unica regra das nossas cren
ças . Não-sobre as Escripturas está a tradição, e sobre
a tradição está a autoridade da igreja. Ora, a autori
dade da igreja he elastica, e tão elastica, que o Sr. Pa
dre Campos tambem faz autoridade por sua propria
conta . E senão, veja -se.
A tradição, diz elle, he um dogma , que se basea
na Escriptura, no testemunho dos padres e doutores,
e na confissão unanime entre os autores mais graves dos
Protestantes ! Ora , a tradição he uma disciplina judaica,
e todo o esforço dos Apostolos e Evangelistas foi arre
dar da nova religião toda a pratica da religião judaica.
S. Paulo, reprehendendo a S. Pedro, lhe diz-- Porque
obrigas tu os Gentios a judaisar ? » (Gal. Cap . 2 v. 14 ) .
He falso por tanto que a tradição se basée na Es
criptura , e muito menos no testemunho dos padres e
doutores, como já provamos exhuberantemente ( pags . 114
a 1:16) ; e ainda muito menos na confissão dos Protestantes,
que nunca admittiram , nem admittem tradição em materia
de doutrina ; nem vós, Sr. padre , sereis capaz de provar o
contrario ; porque a regra, que seguem os Protestantes
a este respeito , isto he, sobre a tradição , he a que se
acha no Deuteronomio ( Cap. 4 v . 2 ) .- « Não tirareis
148

nem ajuntareis nada ás palavras , que eu vos digo . » A


este respeito são os Protestantes inexhoraveis.
Segue-se depois uma lista de nomes para apoiar a
tradição, como aquella para provar a canonicidade dos
Apocriphos .. o Sr. padre Campos quer ser crido sob
sua palavra-e que remedio ? tem carradas de rasão. O
facto grave he a autoridade da igreja! Pobre humani
dade sem ella ! O que será do mundo no dia em que
Roma for secularisada ? Vôa pelos ares como uma
bomba. Nesse dia funesto despe o Sr. Campos os seus
habitos prelaticios, e cobre-se de cilicios !! Veremos.
O mais engraçado he que o Sr. Campos se queixa
da intolerancia dos Protestantes para com os catholicos !
Com effeito , he por demais ridiculo, que diga isto um
energumeno , que se tornou furioso, quando dissemos em
um dos artigos da nossa primeira resposta , que um
Protestante era tão bom christão como qualquer de
nós ! Então pouco faltou que nos não queimasse em
vida (se pudesse ) ; não houve estupida calumnia que não
assoalhasse, até que estavamos vendido ao ouro dos
Protestantes !
Daqui por diante, até o Diario de Pernambuco de
3 de Julho, o Sr. padre Campos só se occupa dos pro
testantes e com os protestantes. Já o dissemos : isto he
materia, que nos não diz respeito-em geral detestamos
o espirito de seita, qualquer que seja a sua denomina
ção ; mas respeitamos a todos os sectarios. Emfim qual
quer homem , que crea na divindade de Nosso Senhor
Jesus Christo, e nos Santos Evangelhos, he nosso irmão
em Jesus Christo - seja bem vindo ao nosso banquete
mas detestamos de todo o nosso coração o hypocrita, o
devasso, o velhaco, e o tratante, qualquer que seja a
capa em que se embuce .
FURIOSA BEMESSA CONTRA O EPHRAIM.
Ephraim he um pseudonimo, com que um moço
muito honesto , e muito bem conceituado desta provin
cia , fez publicar no Rio de Janeiro um folheto, conten
do algumas proposições, afim de provar que a tolerancia
religiosa era de preceito divino.
149

Trouxerão-nos um exemplar, e sobre elle fisemos


algumas notas, que depois de lidas e copiadas pelo au
tor do folheto , offereceu -nos elle mesmo um exemplar,
em testemunho de muita consideração--- prova que acei
tara as nossas observações , que não erão contra a ma
teria , mas tão somente contra a forma.
Toda a base das proposições he fundada na biblia ;
e todas ellas estão provadas, mais ou menos bem, mais
ou menos concludentemente , com textos da Escriptu
ra . E se a linguagem não he muito castiça, se o pen
samento não he sempre claro, o que fôr isento desses
deffeitos que atire a primeira pedra .
Entretanto uma furiosa tempestade desabou sobre
o pobre Ephraim ! Pensará alguem que não ficou pedra
sobré pedra ? Não ha tal, apenas levantou a poeira do
telhado : o edificio ficou inteiro e perfeito -- Ephraim re
sistio a tempestade.
E todavia foi uma chuva de pedras. Vamos pois
avaliar algumas dessas pedras pelo seu pezo-« Ephraim
he um monumental aborto de metaphisicas abstrusas, on
de forão reprodusidos erros e heresias. »
Em outro lugar - -

Ephraim he um trapeiro litte


rario , que anda à revolver o pó dos seculos. » Tendo
Ephraim citado uma passagem de S. Paulo, reprehen
dendo a S. Pedro , contestão -no por este bom gosto- « A
esse safado argumento responderemos com Tertuliano. »
Ainda em outro lugar- « Hipothese absurda e insub
sistente, que só podia fervilhar na mente de Ephraim. »
Finalmente conclue disendo- « Poderiamos acompanhar
Ephraim em outras muilas aberrações do seu espirito.
Em quem reconhecemos maior esforço em cultivar o
talenio da obscuridade e da confusão, do que o desejo de
liberado de atacar a crença de seus paes . »
Estes doestos, estes sarcasmos ferinos , forão dirigi
dos a um moço honesto , como dissemos , que possue
um titulo scientifico, e que em probidade, decencia e
maneiras polidas he não só conhecido como distincto.
Quanto a sua moralidade he geralmente tido como pae
de familia exemplar, filho respeituoso, e cidadão amigo
do seu paiz .
Se esse homem he herege, se he um aborto de me
150

taphisicas abstrusas ; se he hum trapeiro litterario ; se o


absurdo lhe fervilha na cabeça , se só tem o talento da obs
curidade e da confusão ; em fim se padece de aberra
ções lamentaveis do seu espirito, que o diga o Sr. Padre
Joaquim Pinto de Campos .
Crêmos que Ephraim responderá convenientemente,
pois que nos dous artigos do seu pseudo aristarco ha pano
para mangas . Poderiamos, tambem, responder ; mas
não gostamos de metter a mão na seara alheia. E so
bre tudo temos confiança, em que Ephraim esmagará
com o calcanhar a cabeça da serpente, que o procurou
morder.
O PURGATORIO .

O Sr. Padre Campos, deixando as aberrações men


taes de Ephraim, deu um salto mortal, e foi cahir no
Purgatorio ; isto he, na doutrina á cerca do Purgatorio,
esquecido talvez do que tanto recomenda o Concilio de
Trento nas seguintes palavras do Decreto do Purgato
rio ( Sessão 25 ) :
Nas praticas publicas (e por consequencia
na imprensa ) sejão excluidas questões dificeis e subtis,
que não causão edificação.... e quanto aquellas cousas,
que parecem curiosidade ou superstição, é sabem a lucro
torpe, as probibão como escandalos e tropeços aos fieis »
Bergier ainda he mais claro, referindo -se á citada
sessão 25 do mesmo Concilio . « O Concilio , diz elle ,
ordena aos Doutores e Pregadores, que não ensinem so
bre o Purgatorio senão a doutrina dos Padres e Concilios ;
e que evitem todas as questões de pura curiosidade ; e
sobre tudo o que pareça incerlo ou fabuloso, capaz de
nutrir a superstição, e de favorecer um ganho sordido. )
A vista pois do que disem o Concilio e o proprio
Bergier, toda a inconveniencia desta discussão deve re
cabir sobre o Sr. Padre Campos, que a provocou incon
sideradamente . Vamos pois a materia .
Os chamados catholicos só provão a existencia do
Purgatorio por inducção -Diz -se em um dos livros dos
Macabeos ( que o Sr , Padre Campos não se dignou di
151

zer qual era ) -- a sancta et salubris est cogitatio pro de


functis exorare » logo existe Purgatorio ! Lê-se no Ec
clesiastico- « Não priveis os mortos dos vossos favores
logo existe Purgatorio ! S. Paulo, na sua 1.a Epistola
aos Corinthios , diz- C Sic tamen quasi per ignem >
Logo existe Purgatorio ; porque , onde pode haver fogo
senão no Purgatorio ? E senão veja -se S. Ambrosio, que
diz- a será salvo, mas soffrendo a pena de fogo. »
Ora, tudo isto prova tanto, que existe Purgatorio,
como que Adamastor tinha a bocca negra e os dentes
amarellos . Muito mais facil seria ao Sr. padre Campos
provar , que desde o peccado original o Genero humano
se purifica pelas provações dolorosas ; para o que acha
ria milhares de textos no velho como no novo testa
mento .
O que significa a oração pelos mortos ? Nem ao
menos tendes fé no misterio da ressurreição e do Juizo
final ? He para o julgamento, Sr. padre , que se reser
vão os suffragios dos vivos pelos mortos na gradação
dos tempos - para então seremos todos julgados, se he que
acreditaes no symbolo de Nicea . Os suffragios servem
neste caso como de intercessão para atenuar a nossa
culpabilidade diante da misericordia divina, ou como do
cumentos para a nossa defeza em ultima instancia .
Que o chamado Purgatorio he uma instituição, ou
uma alegoria puramente pagâa , provou-o de sobejo o
proprio Sr. padre Campos, citando em seu abono Platão
e Virgilio, anteriores a Jesus Christo , e por consequen
cia á creação da igreja christāa. Cremos que o Sr. pa
dre Campos não tem o grande philosopho grego, nem
o poeta latino, que nasceram o 1.º 430 annos, e o 2.º
70 antes de Chisto, como dous padres da Igreja ; e
muito menos, que uma mera alegoria pagāa fosse con
siderada pelo Sr. padre Campos como de instituição di
vina-não lhe fariamos de certo tão grave injustiça .
Bergier, e o Sr. padre Campos com elle, cita um
trecho de Gorgias ( Dialogo sobre a Rethorica ) para pro
var a necessidade de uma expiação na outra vida pelos
soffrimentos. Bergier teria andado mais acertado, se
tivesse citado aquella bella allegoria do mesmo Platão ,
no seu dialogo sobre a Justiça , das almas que no seu
152

impotente voo para alcançar o Ceo, cahiam depois em


corpos corruptiveis. Essa bella allegoria , que não tenho
tempo para descrever, e que já o fiz em outro escripto
anterior, foi a que servio a Virgilio, tão versado na lit
>

teratura grega , para o seu famoso Episodio, tambem


citado pelo Sr. Campos.
Eis ahi portanto a origem da instituição do Purgato
rio, transplantada por Gregorio 1.º para a igreja catho
lica . Chamo -lhe instituição e não dogma , como quer o
Sr. Campos ; porque , alem de não ser uma verdade re
conhecida, nem fundada nas Escripturas, trouxe com
sigo uma serie de ceremonias , com que foi alterada a
antiga disciplina da Igreja : como por exemplo :-mis
sas, orações, indulgencias, esmolas aos Santos ( que del
las não necessitam ) em vez de dal-as aos pobres, que he
a caridade que Jesus Christo recommenda
Em Platão ( Phedon , ou d'alma ) , Aristoteles. (Trat.
d'alma e da moral ), em fim Xenocrates, Isocrates, e
muitos outros philosophos gregos ; assim como em Ci
cero e Seneca latinos, e atémesmo em Plutarco, acharia
o Sr. padre Campos materia vasta para o seu projecto.
Com effeito, o que he a transmigração das almas senão
uma especie de espiação durante algum tempo, até que
seja satisfeita a justiça divina ?
Eis ahi o Purgartorio philosophico transformado em
Purgatorio catholico, mas tendo nessa troca perdido toda
a poesia da allegoria pagāa . Dahi todas essas fabulas
ridiculas, com que o Clero nutre a idéa material do que
elle chama o Purgatorio ; daqui cada alma sahindo por
sua vez á custa de tantas missas , de tantos suffragios, de
tantas esmolas, e de tantas indulgencias compradas a peso
de ouro .
Diz Bergier que essas fabulas não pertencem á crença
sobre o Purgatorio-que he somente mister acreditar o
C

que diz o Concilio de Trento a este respeito , e não tudo


quanto espiritos credulos e pouco instruidos tem imagi
nado ou sonhado .
Permitta a memoria de Bergier que respondamos,
perguntando -lhe : quem materialisou a alma humana
para colocal- a entre labaredas de fogo ? quem prega ,
não o soffrimento moral ou espiritual , mas o soffrimento
153

physico como a queimadura pelo fogo ? quem incutio ,


e ainda incute no animo do povo ignaro à idéa de um
tormento physico por meio da maceração da carne ?
Bergier também diz que Daillé foi o primeiro que
asseverou, que Gregorio 1.º fôra no seculo 6.º o autor
do dogma do Purgatorio. Perdoe-nos a memoria de
Bergier : Daillé na sua obra - Apologie des Eglises refor
mées , 1633 - prova o seu dito , referindo-se aos Dialogos
de S. Gregorio Magno , que foi o primeiro que fallou em
>

fogo purificante.
Já antes de Daillé , outros autores , que elle cita , o
haviam dito com referencia aos mesmos Dialogos ; e o
proprio Bergier cita Beausobre, que tambem provou ser
S. Gregorio Magno o primeiro, que definio o Purgatorio.
Pois bem , Sr. padre, ahi tendes esses Dialogos nas obras
de S. Gregor. Mag . 4 Vol. infol. Edic . de 1705, Paris.
Se esta não he a pura verdade, provocamos o Sr.
padre Campos a que nos mostre, antes do 6.º seculo
( 590 ), algum Concilio ou padre, que fallasse de Pur
gatorio , ou de fogo purificünle . Ainda mais, nem mes
mo depois houve quem dissesse, que o Purgatorio era
um lugar de fogo ; nem o proprio Concilio de Trento
definio o que fosse Purgatorio ; e apenas se contentou
de dizer, que havia Purgatorio , e que as almas alli deti
das eram ajudadas com ossuffragios dos fieis, e princi
palmente com o gratissimo sacrificio do altar !!
Reduz-se portanto a doutrina do Purgatorio pelo
Concilio de Trento ao seguinte : « Cuidem pois os bis
epos ( Caveant Consules ! ) que os suffragios dos fieis
« vivos, a saber : missas, orações, esmolas, e outras obras
a de piedade, que uns fieis tem costume de fazer por
a outros fleis defuntos, se façam pia e devotamente , se
« gundo as regras da igreja. »
( Sessão 25, Dec. do Purg. ) Tudo se reduz por
tanto á uma mera exploração do fanatismo religioso !
II

A questão não he pois de forma, nem de palavra ,


nem de ideia ,nem de pensamento, he apenas de substun
2

cia ! E se não veja- se o que diz Bergier, dirigindo -se


20
154

aos Protestantes- « Se addmittis as preces pelos mortos,


« isto he, os suffragios, como manda o Concilio de Tren
>

« to, lollitur quæstio ! A palavra Purgatorio neste caso


« he tão inutil, que os catholicos a renunciariam de bom
a grado ! Admittam pois os Protestantes o fundo do
« dogma ( já se sabe missas , orações , esmolas, indul
« gencias , & ) e permittir -se-lhes-ha que usem de outro
a termo para'exprimir o que os catholicos chamam Pur
« gatorio. o Cremos que isto não necessita de com
mento .
Diz o Sr. padre Campos, que no Concilio de Flo
rença a igreja grega estava de perfeito accordo com a
latina acerca do dogma do Purgatorio ! 0 Sr. padre
Campos nunca leu de certo as actas desse Concilio ; do
contrario não se exprimiria tão categoricamente a este
respeito . Agora veja o que houve na realidade. Foi no
mez de Julho de 1439 que passou o Decreto chamado
da União ; depois do qual se despediram os Gregos de
Florença . O Concilio continuou só com os padres lati
nos ; e tanto que foi no anno de 1441, que passaram os
dous Decretos - Pro Jacobinis e Pro Armenis.
Nunca se decidio que a igreja grega estivesse de
perfeito accordo com a latina no Concilio de Florença
acerca do dogma do Purgatorio-apenas os Gregos disse
ram , que essa doutrina, nem mesmo o Filioque aug
mentado ao Credo de Nicea , difficultaria a união das
duas igrejas outras eram as difficuldades, e a principal
consistia no temor ou receio da igreja grega de perder a
sua autonomia , ou de ser absorvida pela centralisação,
ou unidade da igreja de Roma . ( 1 )
Diz o Sr. padre Campos, que os Gregos são ainda
mais explicitos que os latinos acerca do dogma do Pur
gatorio, a que chamam purgativo, expiatorio. Valha
nos Deos com a theologia do Sr. Campos ! Já dissemos
o que havia sobre a allegoria pagāa da transmigração das
almas, e da doutrina dos Phylosophos gregos e latinos ,
( 1 ) Eis ahi algumas das condições das igrejas chamadas
uniatas - consentiam na união, se a Santa Sé as autorisasse a
conservar seus ritos, sua disciplina , o uso da lingoa nacional na
lithurgia , a comunhão debaixo das duas especies, e em alguns
casos o casamento dos padres . ( Alv. d’And . - Guer, do Oriente. )
155

que creram na imortalidade d'alma, e em uma vida fu


tura ; mas no Purgatorio não , isso nunca, Sr. padre
nem os philosophos moralistas se espressaram nunca se
não por meio de engenhosas allegorias, ou de verda
deiras fabulas como a de Dante , Div. Com. ) sobre o
Inferno, chamado Tartaro, lugar de expiação . Foi nessas
allegorias , mais ou menos engenhosas, que os chatholi
cos foram beber a doutrina do seu Purgatorio actual.
Os Gregos christãos tiveram porem o bom senso de
repudiar todas essas fabulas dos seus antepassados pa
gãos ; mas acreditando na imortalidade d'alma e n'uma
vida futura, a igreja grega admitte um estado transitorio,
que as almas dos bons , como as dos máos, atravessam
necessariamente na espectativa do Juizo final ! Vede
bem , Sr. padre , sempre o Juizo final,
A igreja grega tambem crê ( e nós com ella ) na
condição especial daquelles que morrem na fé, sem uma
expiação sufficiente das faltas comettidas nesta vida ; e
por isso crê igualmente, que as preces dos vivos lhes po
dem ser de um grande auxilio . Para que porem são essas
preces ? respondem os Gregos-para obter uma ressurrei
ção bemuventurada em favor dos mortos. (Nicole, Traité
del'Unité del’Eglise-Alv . d'And. Guer. do Oriente, Pariz
1854. )
Acreditamos que foi este o pensamento de Gregorio
1.º ao introduzir na igreja latina a allegoria dos Gregos
pagãos , debaixo do nome de Purgatorio , quando as pre
ces eram graluilas ! Desse estado transitorio fez - se de
pois um lugar de expiação ; ou antes de penas e de sof
frimentos phisicos. O Clero materialisou a alma, e a
poz em contacto com o fogo . Hoje, Sr. padre , com a
doutrina romana do vosso Purgatorio e do vosso Inferno ,
que figura faz a alma humana , esse sopro de Deos sobre
a face de Adào ?
Para provar a existencia do Purgatorio cita Bergier
( ou o Sr. padre Campos que o copiou ) os Macabeos .
Vamos por partes . Diz o verso 43 do Cap. 12 do 2. °
livro dos Macabeos, que Judas Macabeo, depois de der
rotar a Gorgias, mandara para Jerusalem 12 mil drach
mas de prata para serem offerecidas em sacrificio pelos
peccados dos mortos, meditando na ressurreição (de res
156

surrectione cogitans ) ; porque, se elle não esperasse


( Id. Id . v . 44) « que os que tinham sido mortos, ha
viam um dia de ressuscitar, teria por cousa superflua e
văa orar pelos mortos. »
Logo, Sr. padre Campos , não he do Purgatorio , que
fallou Judas Macabeo , mas da ressurreição ; não he das
penas do Purgatorio, mas do Juizo final ; para o qual
todos devem estar preparados ; e só com este fim se
fazem as offertas em sacrificio pelos peccados dos mor
tos. A vossa citação ou de Bergier ,foi pelo contrario
toda contraproducente, sendo certo que nem os Maca
beos, e muito menos o Ecclesiastico, cogitaram nunca
de semelhante Purgatorio .
Citaes tambem S. Paulo ( 1 Corinth Cap, 3 v . 15 ) .
Eis ahi como os antigos padres da Igreja explicavam esta
passagem ; isto he o -- sic tamen quasi per ignem .-- Jul
gavam que as almas dos justos não iam immediatamente
para a Demaventurança depois da morte ; mas que eram
retidas em um lugar chamadoParaizo ou Seio de Abrahão
até o Julgamento final ! O desejo ardente dessas almas,
de se verem quanto antes em presença de Deos, he o
-

que S. Paulo exprime pelas palavras - quasi per ignem


ardente, abrasador como o fogo.
Eis ahi portanto explicado não só o pensamento do
Apostolo, como tambem o fim das preces pelos mortos,
isto he, pedir a Deos que accelere o momento de cha
mar essas almas á sua divina presença . Tal era, acres
centa o mesmo Bergier, a opinião dos antigos padres.
Bem vê o Sr. padre Campos, que em tudo isto não ha a
menor idéa do chamado Purgatorio
Assevera Bergier que os Protestantes objectaram
aos catholicos, dizendo que os Concilios, que condemna
ram os Pelagianos, declararam não haver lugar nem es
tado medio entre o Ceo e o Inferno ; mas que os Con
cilios , que isto disseram, só se referiam a doutrina de
Pelagio sobre os meninos mortos sem baptismo , que,
com quanto excluidos do reino do Ceo , gosavam não
obstante da vida eterna - accrescentando o mesmo Ber
gier-que os Concilios fallaram dessa vida eterna , e não
do Purgatorio, quando declararam , que não existia meio
algum entre o Ceo e o Inferno !
157

Vamos pois responder a Bergier, que o Sr. padre


Campos copiou ( como sempre ) sem cital-o. Tres fo
ram os Concilios , que condemnaram as doutrinas de Pe
lagio ; a saber : 0 de Carthago ( 416 e 417 ) , o de An
tiochia ( 424 ), e o ecumenico de Epheso ( 431 ) . Pois
bem , todos esses concilios vem na collecção Labbe e
Cossart ; e são unanimes em declarar, que nenhum meio
de expiação, ou de beatitude , existe entre o Ceo e o In
ferno ; porque depois da morte não havia merito nem
penitencia ! ( Vide Hist. do Pelagianismo por Patouillet
—1767 . )
INI

Agora vos perguntaremos, Sr. Campos - seriam tão


estupidos os padres, que formaram os tres citados Con
cilios, que para matar a idéa da vida eterna dos meninos
mortos sem baptismo, matassem tambem a do Purgato
rio , negando que pudesse existir lugar ou meio algum
entre o Ceo e o Inferno ? Se a idéa do Purgatorio exis
tisse então , não a teriam esses padres salvado por meio
de uma exepção ?
E o que se pode concluir dahi ? he que no seculo
5.º não existia ainda a menor idéa de transplantar para
a igreja latina a poetica allegoria pagāa da transmigra
ção das almas , coino expiação das faltas comettidas nesta
vida . Todos esses Concilios admittiam porem as preces
como meio de conseguir uma ressurreição bemaventu
rada, e nada mais .
Bergier, ou o Sr. padre Campos, cita uma passagem
de S. Cypriano, dizendo pouco mais ou menos, que
aquelle que espera o perdão, fica posto em prisão, e só
della sahe depois de ter pago até o ultimo obolo - donde
deduz o mesmo Bergier, que S. Cypriano fallava do Pur
gatorio ; sem se lembrar que o mesmo Cypriano conclue
essa passagem pelas seguintes palavras- « uma cousa
he esperar a Sentença do Senhor no dia de Juizo, e outra
receber logo a corôa . Pois ainda duvidaes , Sr. pa
dre, que S. Cypriano em toda essa passagem só quiz fal
lar da ressurreição e do Juizo final? O que quer dizer
a sentença do Senhor no dia de Juizo ? Se não he pertinacia
vossa , he cegueira de mais .
158

Todavia, concedamos por um momento que, com


effeito, S. Cypriano fallou de um lugar de expiação,
donde não se sahe sem pagar o ultimo obolo das nossas
culpas. O que se pode concluir dahi ? he que o vosso
Purgatorio he a prisão por dividas do inferno ; he o
Clichy ou a Santa Pelagia da outra vida ! Pois não sentis
toda a inconveniencia dessa fabula expiatoria, dessa fic
ção absurda , dessa farça tão ridicula ?
Diz o Sr. padre Campos- a Todas as liturgias, tanto
do Oriente, como do Occidente , trasem orações pelos
mortos. Ora que aproveitaria rogar por elles se estão
no inferno ou na gloria, donde jumais sahirão ? Por
quem nos padres, por quem devemos orar ? Pelos
Santos que estão no Ceo, ou pelos condemnados que
gemem no inferno ? A oração não pode aproveitar nem
à uns nem a outros ; ora , se ella he inutil , para quc
empregal-a ? he porque os padres admittiamo Purgato
rio ! » Deixemos a apreciação da logica do Sr. padre
Campos, que he sempre um engrimanco, e vamos a
materia .
Dizeis que os que vão para o Ceo ou para o infer
no, de lá não sahem mais ! Não ha tal , Sr. padre, hão
de sahir infallivelmente para o Juizo final ; hão de res
suscitar em carne , hão de passar por um novo julga
mento , hão de hir ao Valle de Josaphat ; e alli Deos fará
>

a escolha para sempre; ao menos que não acrediteis (como


suponho que não acreditaes ) no dogma da ressurreição .
He sob o influxo desta crença, que as preces a favor dos
mortos podem aproveitar ; do contrario seria absurdo,
como disse Judas Macabeo .
Se as Orações não podem aproveitar aos que vão
para o Ceo , nem aos que vão para o inferno; para que
oraes por todos ? Como podeis discriminar entre os
mortos a qual das almas aproveitariam os suffragios ?
Como sabeis vós qual a que vae para o Ceo , qual a que
vae para o inferno, ou a que fica no Purgatorio ? En
tretanto, Sr. padre, oraes por todas porque vos pagão ,
quer a oração aproveite quer não ! Direis - e que re
medio, se isto he o meu pão de cada dia , se he a minha
enxada ? Pois bem , confessae- o francamente - he isto
pelo menos mais honesto.
159

Quereis saber uma verdade ? he que ninguem se


occuparia de defender ou de fallar do purgatorio ou da
sua doutrina , se as preces e outros suffragios pelos mortos
fossem gratuitos, como até o seculo 5.0 ou 6. Hoje
somente o artigo Missas he a California mais rendosa
deste mundo , sem contar com as esmolas , e com as in
dulgencias . De tudo pois quanto fica dito vê-se clara
mente , que as orações pelos defuntos nada tem que ver
com o tal Purgatorio , e que os soffragios em geral são
um meio de obter uma ressurreição gloriosa.
As preces pelos mortos sempre foram admittidas
entre os povos , que acreditavam na imortalidade d'alma .
Qualquer que seja o seu destino entregue a Deos, a
prece he um lenitivo para os vivos , que crêem na mise
ricordia divina. Assim he que os Judeos tem preces,
que os protestantes tem preces ; que os proprios Mus
sulmanos crêem na eficacia das preces e na intercessão
dos justos. Dahi o profundo respeito aos mortos ( que
os catholicos não tem ) que tinham os Pagãos, os idola
tras de todos os cultos , entre os quaes sempre se dis
tinguiram os Koptos, os Arabes, e os proprios Ethiopes.
Diz o Sr. padre Campos , que he inutil investigar,
em que lugar se acha o Purgatorio, e que especie de
pena la se soffre ; entretanto que no artigo anterior
disse : que a tradicão he quasi unanime em admittir que
o fogo he o instrumento du expiação na outra vida. Não
sabemos, se o Sr. padre Campos disse isto seriamente,
porque costuma escarnecer dos seus leitores algumas
vezes . Seja o que fôr, que idéa tem o Sr. Campos da
espiritualidade d'alma ?
Se a alma he espiritual, qual o contacto que possa
ter com a materia ? Se o fogo, como dizeis, he o ins
trumento da expiação na outra vida , então força he con
fessar, que a alma he tão material como o fogo. Eis
>

ahi, Sr. padre, a consequencia da vossa doutrina - ma


terialisaes a alma , com tanto que haja fogo no Purgato
rio-e porque ? isso pertence à vossa consciencia .
Para vós e a vossa igreja somente o fogo ! não ha
outro meio de expiação ! e os remorsos , e o arrependi
mento, e a contrição ? Entretanto confessaes que esse
fogo não he de fé, que a Escriptura nada diz a esse res
160

peito, e que os Concilios nada tem definido sobre este


ponto ! Assim he que desde a primeira palavra até a
ultima, desde o fogo até o lugar da expiação, desde S.
Gregorio Magno até o Concilio de Trento, ha uma serie
de contradições, de inverossimilhanças , que todas vem
a dar no mais repugnante absurdo .
E dahi o que se deve concluir ? he que , admittindo
as preces a favor dos mortos , estas só tem por fim pre
parar-lhes uma ressurreição bem aventuradame então
poderemos asseverar , com os Concilios de Cathargo , de
Antiochia e de Epheso , que entre o Ceo e o Inferno não
existe lugar medio , nem estado algum , em que as almas
soffram penas materiaes como a do fogo , ou cousa
semelhante .
Por fim conclue o Sr. Campos dizendo : que pode
mos alliviar as almas do Purgatorio pelas nossas orações ,
pelos santos sacrificios (missas, já se sabe ! ), pelas esmo
las (para os Santos e para as almas) , indulgencias, e
quaesquer outras boas obras, que façamos com essa in-
tenção. Tambem diz que os Santos nos podem ser uteis
na obra da nossa salvação ! Eis o que he certo no dog
ma do Purgatorio , diz o Sr. padre Campos !!
Pois bem , o que he certo, e muito mais certo do que
o que acabaes de dizer, he que nos escriptos dos primei
ros cinco seculos da igreja não existe uma só vez a pa
lavra Purgatorio, nem as de fogo purificante . Vós mes
mo, Sr. padre, confessaes, e o confessa Bergier, que a
igreja nunca definio o que seja Purgatorio , emuito me
nos a naturesa do fogo , de que elle se compõe .
Entretanto, qual he a linguagem da vossa igreja ?
Aceitem , diz ella , a idea ou a doutrina, e dem -lhe o no
me que quizerem , com tanto que exprima uma expiação
dos mortos pelas boas obras dos vivos. He esta justa
mente a doutrina ou a linguagem do Clero em geral ;
isto he, deixem -lhe o miolo , e deitem fóra as cascas !!
IV
Temos portanto provado : que o Christianismo vi
veo e prosperou durante seis seculos sem necessidade do
vosso Purgatorio ; isto he, durante o periodo mais bri
Thante da igreja catholica .
101

Que nesse tempo as preces pelos mortos não tinham


outro fim senão preparar-lhes uma ressurreição gloriosa.
Que até o Concilio de Trento nenhum outro Concilio ,
nem Santo Padre, havia definido o que fosse o Purgato
rio , nem o lugar da sua medonha existencia ; e muito
menos a naturesa do fogo que dizeis lá existe .
Que a idea material de fogo nunca passou pela ima
ginação daquelles que acreditavam na immortalidade d'al
ma ; e por consequencia na sua espiritualidude, porque
só o espirito he immortal .
Que finalmente o vosso Purgatorio não passa de
uma especulação, em que, a par da mais edionda supers
tição , se revella o lucro torpe, que tanto procurou evitar
o proprio Concilio de Trento. (1)
Tal tem sido a astucia do Clero na exploração des
sa mina, que se Gregorio I ressuscitasse, arrepender -se
hia da sua obra ; e o que mais devia afligil-o, he o reta
lhamento que o tal Purgatorio causou no seio do Chris
tianismo .
Com effeito, os Gregos tinham tido muitos motivos
de divergencias com os Latinos, desde a questão dos Ico
noclastas no seculo V até a do culto das imagens no VIII ;
desde a introducção do Filioque no symbolo de Nicea
até a invenção do Purgatorio ; sendo esta ultima a que
mais concorreu para essa indisposição, que rompeu com
o scisma de Phocio , e acabou pela rotura completa no
tempo do Patriarcha Miguel Cerulario (1053) entre Gre
gos e Latinos. Vede , pois a primeira fatal consequen
cia do vosso Purgatorio para a unidade do Catholicismo
-perdeu logo metade por metade .
Ora, o tal Purgatorio trouxeno ventre a doutrina
das indulgencias, que no seculo XVI custou ainda á igre
ja para mais de 30 milhões de catholicos -hoje talvez
mais de 80 milhões . Se S. Pedro viesse ao mundo, po
deria perguntar a todos os Papas, desde o seculo VIII
por diante , o que tinham feito do rebanho de Jesus Chris
to , que elle deixara a seus successores , e que estes ha
viam augmentado até o seculo VIII !
Assim he, Sr. padre, que a vossa igreja estragou com
(1 ) Filip. C. 3, v. ! 9 - Cujo fim he a perdição, cujo Deos he o
ventre .
21
162

pletamente a obra de muitos seculos de martyrios ; vi


ciou a mais sublime e a mais perfeita doutrina moral ,
que jamais viram as gerações , que precederam a Jesus
Christo ; finalmente abastardou um culto , cuja mages
tade consistia na mais pura , rigorosa e edificante sim
plicidade. ( Eug . Haag. - Hist.dos Dogm . christ. 1862. )
.

Os vossos suffragios ! Sim, quereis saber o que


são os vossos suffragios ? Pois bem, apenas alguns fa
ctos bastarão para provar até onde chega essa supersti
ção incitada e aliciada pelo Clero, ouvi :
Um advogado deste foro, como testamenteiro dativo ,
teve que mandar dizer 200 missas a dez tustões cada uma
-procurou em primeiro lugar alguns padres velhos ,
respeitaveis pela sua moralidade (C. H.C., J. F. dos S. ,
e outros) ; mas nenhum delles quiz aceitar as missas,
nem mesmo parte dellas, dizendo que as não podiam
receber , porque tinham já muitas lenções ! e foi preci
so distribuil-as pelos Conventos ; e isto fez o testamen
teiro aconselhado pelo Promotor de Capellas.
Em 1847, tendo falescido o Vigario de Bom Jardim,
homem de mais de 70 annos, achou -se nos seus aponta
mentos, que devia cinco mil e tantás missas, cujas es
molas havia recebido. O vigario tinha um irmão, tam
bem padre, um pouco mais moço do que elle, e havia
deixado uma casa de sobrado na povoação -então ap
presentou-se o tal irmão do vigario, e disse que se lhe
dessem a casa de sobrado, elle se obrigava a dizer as
missas (para o que seria mister o espaço de 20 annos).
O juiz , porem , a que elle recorreu , não aceitou o lan
ce do padre ! Que santo homem !
Pessoa qualificada teve tambem de mandar dizer
cem missas a 2/000 reis, que por verba testamentaria de
viam ser ditas pelos padres Capuchinhoş. O testamen
teiro foi ter com o Prefeito da Penha para encarregal-o
das missas , levando os 2007000 reis da esmola ; o Pre
feito porem disse-lhe. que as não podia aceitar, porque
os padres tinham sempre muitas missas, e por maior es
mola . O testamenteiro teve então de requerer ao Juiz
de Capellas , allegando a recusa dos Capuchinhos ; em
cujo caso o Juiz autorisou o testamenteiro a distribuir
as citadas missas por outros padres.
163

Ha tanta afluencia de missas, que não ha muito


tempo , e não sabemos se ainda hoje, se mandavam di
zer a Portugal, quando no testamento não se marcava pre
ço um pouco subido, porque a esmola em Portugal era
mais barata !! Ainda ha pouco tempo nos contou um
sujeito (o Dr. C.....) que o pae costumava mandar di
zer missas por sua alma, ainda em vida, e tinha um padre
que as dizia a mil reis cada uma -um dia porem de
volveu lhe a esporlula , dizendo que d'ahi em diante não
dizia mais missa por menos de dous mil reis. Não sa
bemos se o sujeito mudou de padre, ou dobrou a parada .
Hoje encontra-se dificuldade para mandar dizer mis
sas, a não ser por um preço fabuloso ; e dizem que
só nos Conventos se podem distribuir quando são muitas.
A respeito de esmolas para as almas e para os Santos,
sabe-se que muita gente vive dellas . Sem as almas do
Purgatorio não haveria mais esse modo de vida-que
muito he que o Purgatorio tenha tantos apologistas ! ( 1 )
( 1 ) Entretanto tudo istn deve serhoje em pura perda, como
se verá da seguinte Estatistica :
Não ha mais Purgatorio.
« Um amador de estatistica calculou que o purgatorio deve
estar desoccupado ha mais de um seculo . Eis aqui como elle
procede no seu calculo :
« O mundo encerra, em conta redonda, 150 milhões de ca
tholicos, dos quaes morrem ,segundo a estatistica , 10,125 indivi
duos por dia .
« Destes 10,125, mais de tres quartas partes vão parar ao
inferno, porque são muitos os chamados e poucos os eleitos.
Mas, afim de evitarmos a discussão neste ponto, façamos de
conta, provisoriamente, que todos caliem nas chammas do pur
gatorio.
Se hoje um milheiro de catholicos vivos ganha uma indul
gencia plenaria em cadă dia , os 150 milhões salvam todos os
dias 150 mil almas ; e ainda quando houvesse somente uma in
dulgencia plenaria para dez mil catholicos , salvar - se -hiam dia
riamente 15,000 almas, isto é, quasi um terço mais do que de
almas recebe o purgatorio .
« Porém os algarismos que precedem não dão idéa alguma
da quantidade fabulosa de almas, que cada dia seriam tiradas do
purgatorio, se porventura alli jazessem . O seguinte exemplo
vai demonstra - lo .
« Em 16 de abril de 1856 , pio IX concedeu todas as indul
gencias da terra santa, das sete basilicas de Roma, da Porciun
cula e de S. Thiago de Compostella, a todo o fiel catholico por
tador de um certo escapulario azul, todas as vezes que rezasse
164

Sabe-se que he luxo mandar dizer muitas missas, e


fazer exequias sumptuosas-assim como levar muitos
carros em um enterro, e muitos convidados ; como se
fosse mister tão grande companhia para cahir dentro de
uma fogueira !
E o que he tudo isto senão a superstição e o lucro
lorpe de que falla o Concilio de Trento ? 0 Purgatorio
pois dos catholicos he um lugar de fogo ; e como as
mulheres são as mais impressionaveis pela fabula sagra
da , encontrareis ahi por esse mato ( e mesmo nesta ci
dade ) uma caixa de esmolas para as almas com um pai
nel, em que se acham pintadas seis ou oito moças bran
cas, nuas alé « cintura, com os cabellos soltos, e cer
cadas de grandes labaredas ! A isto he que se chamao
Purgatorio !
He porem de notar, que em um paiz de gente de
côr, só as mulheres brancas tenham alma ! Ainda não
vimos pintada uma pretinha, ou mulatinha, ou cabocla,
nem ao menos uma velha ! e muito menos um homem,
que por esse theor tambem não deve ter alma, porque
não entra no quadro . - São sempre moçus, com um seio
bem desenvolvido , naturalmente para fazer furor ao dia .
bo ! Sr. padre Campos, isto não he só superstição
he tão immoral, que não sabemos como haja bispo, que
em tal consinta .
Dir -nos-hão que isto he manha velha, e vem muito de
detraz . São vicios e defeitos que herdamos dos Portu
seis Padrenossos, seis Ave Marias e seis Glorias, ficando dispen
sado da confissão e da communhão. Ora, as indulgencias de que
se trata são prodigiosas ; São Liguori , na sua obra intitulada La
Gloria di Maria, tomo II, diz que as indulgencias plenarias se
elevam ao algarismo de 533, e que as parciaes são innumeras.
Dest'arte , dez bons fervorosos catholicos, repetindo o mencio
nado exercicio dez vezes por dia , salvam 53,300 almas no espaço
de 24 horas, isto é, 43,175 mais do que catholicos morrem .
« Este calculo deve ser exacto. ( Diario de Pernambuco de 14
de Dezembro de 1866. )
O Sr. padre Campos, quando cita algum Protestante , costuma
dizer que não he suspeito para nós ; o mesmo diremos agora ,
isto he, que esic artigo, extrahido do Diario de Pernambuco, não
pode ser suspeito para o Sr. padre Campos.
165

griezes . llouve tempo em que não existia propriedade


immovel em Portugal, que não estivesse gravada com
tantos encargos pios, que estavam a perder -se e arrui
nar-se , porque não havia o menor interesse em cuidar
dellas, ou concerta- las. Era ruina para os herdeiros e
para o fisco ; era a morte da propriedade e da lavoura ;
era o escandalo dos vivos e dos mortos - estupida, ali
cantina com que o Clero sustentava a doutrina dos suf
fragios, alimentando a superstição entre o povo .
Convinha pôr cobro a semelhante estado de cousas,
e a Rainha de Portugal D. Maria 1.a fel- o pelo seu Al
vará com força de lei datado aos 20 de Maio de 1796.
Eis ahi pois alguns dos considerandos, que deram mar
gem a este Alvará, e por elles ver -se -ha até onde pode
chegar o fanatismo insuflado por um clero habil, que
nunca deixa de sel-o em seu proveito.
( Ao mesmo tempo foi na minha real presença pon
derado, que as propriedades de casas, os fundos de ter
ras, e as fazendas, que forem creadas para a subsisten
cia dos vivos, de nenhuma sorte podem pertencer aos
defuntos. )
« Que nem ha rasão alguma . para que qualquer
homem , depois de morto , haja de conservar, até o dia
de Juizo, o dominio dos bens e fazendas que tinha quan
do vivo. »
Que menos a pode haver para que o sobredito ho
mem pretenda tirar proveito do perpetuo encomodo de
todos os seus successores até o fim do mundo,
« Que se isto assim se admittisse , não haveria hoje
em toda a christandade um só palmo de terra , que pu
desse pertencer a gente viva ( 1 ) , a qual da mesma terra
se deve alimentar por direito divino, estabelecido desde
a creação do mundo . »
« Que a tudo referido accresce fazerem os sobre
ditos encargos com que as casase fazendas das sobre
ditas capellas se achem na maior parte já perdidas, de
turpando as povoações do reino com montes de ruinas,
e privando a agricultura dos seus fructos com prejuizo
publico. »
( 1 ) Salvo, bem entendido, a Igreja, isto he, padres, frades ,
Irmandades, Confrarias , & .
166 1

« E attendendo a estas justas causas : Estabeleço


por uma parte, que todas as disposições e convenções
causa niortis, ou inter vivos, em que fór instituida a alma
por herdeira, sejam nullas e de nenhum efeito. >>
« Estabeleço pela outra parte , que os bens de todas
as capellas ou Anniversarios, cujos rendimentos, depois
de deduzidos os encargos, não importarem ...... sejam
reputados e julgados por bens livres e desembaraçados ;
não obstante as vocações ou clausulas das instituições ;
pelas quaes os referidos bens se acham, e acharem vin
culados, e assim abusivamente tirados do commercio 長

humano contra a utilidade publica . »


«Pelo que Manda á Mesa do Dezembarge do Paço , & . » 1

E sem embargo ainda temos bens de mão morta ,


ainda temos no Brazil encargos pios até 0o fim do mundo
em fim ainda temos a alma herdeira ; o que não temos
he a verdadeira caridade , unica virtude evangelica , de
que não curam os padres ! E para que ? Bastam as
missas, orações, exequias sumptuosas, indulgencias, es
molas para as almas e para os santos : eis ahi ao que
chama o Sr. padre Campos boas obras ( para elle, bem
entendido ! ) ( 1 )
Em fim , para que cansar-nos ? O que he a religião
entre nós ? Responda o Oriente, Jornal religioso , que
se publica nesta cidade (( 2 ); artigo que tem por titulo
0 Catholicismo no Brasil . -
< Mas a poder de tudo, e auxiliado apenas pelo influ
xo divino, o catholicismo subsiste no Brazil, embora com
( 1 ) Eis a caridade como a pregou Jesus Christo- « Que
riâ Christo ensinar ao mundo , que a caridade que elle troucera
á terra , he como a escada misteriosa de Jacob, que conduz ao Ceo.
Queria que aprendessem os homens, que não fazia distincção
o Ceo entre ricos e pobres - que o homem he irmão do homem ,
porque he Deos o pae de todos.
Queria que a bolsa do rico se abrisse para socorrer o po
bre - que se estendesse diligente e compassiva a mão para er
guer o infeliz atirado pelo infortunio a beira da estrada .
Esta doutrina sublime e consoladôra ensinava ello em para
bolas adıniraveis as turbas, que ávidas e sorprehendidas, lhe
apanhavam as vozes desprendidas dos labios . ( Diario de Per
nambuco de 13 de Dezembro de 1866. ) Tambem não he sus
peito ao Sr. Campos.
( 2 ) O Oriente, N. 12 de 2 de Dezembro de 1866 ,
167

um Episcopado desprestigiado, com um Clero geralmente


deploravel, com um culto abastardailo de praticas pa
gāas, com crenças , ora funaticas, ora scepticas ; em fim
como asphixiado no meio da atonia de uma esmagadora
indifferença . »
« O culto he o que todos diariamente estão vendo .
A gravidade , a magestade , a severidade do culto catho
lico , está entre nós reduzido á praticas, não só idolatras
e pagāas, mas até de um feiticismo absurdo. » ( 1 ).
Ultimamente veja o Sr. padre Campos o que diz o
articulista dos nossos templos , das nossas festas, damu
sica de um estilo lascivo ou de harmonias horripilantes;
do pulpito assaltado por mediocridades empavesadas e
palavrosas ; e outras verdades duras de tragar, mas que
são verdades inconcussas . O certo he que o Oriente
não vos deve ser suspeito-he catholico até os ossos .
Dessas superstições e praticas pagāas já se queixa
vam , ha muito, alguns padres da igreja desdeo seculo
8.° por diante, em que se deixou de honrar a Deos para
se honrar aos Santos, como se vê de um elogio que fez o
Marquez de Caraccioli ao Papa Benedicto 14, onde vem
a seguinte passagem extrahida de uma pastoral do arce
bispo de Viena ; na qual este prelado se queixava amar
gamente de que se esquecessem os fieis da meditação em
Jesus Christo , para não se occuparem senão em devoções
de Santos, em romarias e em confrarias.
Em uma carta de Fenelon Luiz 14, que vem no
periodico 25 de Março de 13 de Dezembro de 1866 , que
se publica em Pernambuco, o arcebispo de Cambray diz
ao Rei o seguinte- « Vós não amaes a Deos ; não o
temeis senão com o temor de escravo ; ao Inferno e não
a Deos he que temeis . Em superstições e pequenas pra
ticas supersticiosas cifra -se toda a vossa religião ( como
em todo o Brasil ) . Sois como os Judeos , de quem disse
.

Deos : ao passo que me honram com os labios mui longe


de mim está o seu coração . » Cremos que o Sr. padre
Campos não recusará a autoridade do 25 de Março !
Para concluirmos com a questão do Purgatorio di
remos , que não ao Sr. padre Campos, mas a Bergier tão
( 1) Feitico , em francez Fetiche - idolo dos negros da Costa
d’Africa - amulctos, encantos .
168

somente temos respondido, visto que elle o copiou ser


vilmente ; por tanto nada tem que agradecer-nos a este
respeito. Mais adiante lhe faremos as honras, que merece .
A INQUISIÇÃO RELIGIOSA .
I

Confrange -se -nos o coração ao considerarmos, que


no terceiro quartel do seculo 19 houvesse um brasileiro,
que se lembrasse de fazer a apologia da Inquisição re
ligiosa ; e que esse brasileiro fosse de mais a mais um
pernambucano ; posto que nascido nos invios sertões
desta provincia, onde nunca penetrou a luz do Evangelho .
Nesse panegirico, he verdade , pouco ha de lavra
propria ; mas de proposito não se poderiam accumular
tantos erros de historia , tantas falsidades, tantos embus
tes, tantos disparates, que bastaria copial- os, para sua
completa refutação. O autor do panegirico não seria
responsavel por tudo isso, se não desse ao seu estilo
uma forma dydactica ; isto he, se não quizesse fallar ex
cathedra , tomando sobre si os erros e disparates alheios.
O Sr. padre Campos , que he o autor do referido
panegirico, quer que a Inquisição existisse desde o tem
po dos Apostolos ; neste caso andaria mais acertado se
levasse a sua origem atéMoysés; todavia elle não o affir
mou como materia de fé, e por fim se contentou com
que os Imperadores , depois da sua conversão , tomassem
a seu cargo proteger os interesses temporaes da Chris
tandade ; e por isso comprehenderam a necessidade de
colocar a Santa doutrina ao abrigo das invasões e golpes
da heresia .
Então recorda os Edictos de Constantino ( 316 ) con
tra os Donatistas, e depois do Concilio de Nicea outros
contra os Arianos. Tambem recorda uma constituição
de Theodosio contra os Manicheos e os -Donatistas ; aos
quaes condemna á morte ; mas esquece o final da tal
constituição , porque todo aquelle queviola a religião ,
pecca contra a ordem publica . »
Constantino , depois da derrota do seu competidor
Maxencio , não ficou ipso facto senhor de todo o imperio ;
169

a luta prolongou -se pelo Oriente , pela Asia e pela Africa,


até que ficou só em campo , vencidos os seus competi
dores . A sua conversão foi motivo para chamar a si os
Christãos até alli espesinhados e perseguidos ; mas os
Christãos, posto que em grande número, não formavam
a maioria do imperio. Os dissidentes levantaram nova
bandeira , e as heresias começaram a tomar a forma de
opposição. Desde então a politica tornou -se religiosa,
e a guerra civil assumio o caracter das seitas, em que
se subdividia o imperio .
Para que pois citaes esses Edictos como questão pu
ramente religiosa ? Onde tem elles esse caracter exclu
sivo ? Agora mesmo neste seculo das luzes, ultra -ca
tholico em França quer dizer legitimista - papista na
Italia quer dizer o antigo regimen. Actualmente na
Hespanha a politica interna tem somente o caracter reli
gioso . - Uma freira ( soror Patrocinio ) decide dos des
.

tinos da Ilespanha - enforca -se por politica em nome da


religião-na Italia o poder temporal do Papa he um meio
de oposição como qualquer outro .
Assim foi em todos os tempos , em que a politica
estava subordinada a religião . Justiniano fez em 541
dos canones dos 4 primeiros concilios eccumenicos do
Oriente ( 1 ) Outras tantas leis do Estado , e decretou penas
graves contra os transgressores dessas leis . E sem em
bargo , em todas essas disposições ha mais caracter po
litico do que religioso .
E assim o deveis confessar por honra vossa , porque
do contrario seria ainda mais odioso para a igreja, que
sendo perseguida até Constantino , passasse logo depois
da conversão deste Imperador a ser perseguidora . E
tanto isto he verdade que o proprio Constantino acabou ,
ora perseguindo, ora favorecendo alternativamente tanto
aos Arianos como aos Orthodoxos nas pessoas de seus
chefes Ario e Santo Athanasio ,
O Sr. padre Campos salta dessa epoca (do seculo 6.0
para o seculo 12 ) ; isto he, do Decreto de Justiniano
>

( 1 ) Esses 4 Concilios foram - 1.º de Nicea ( 325 ) -1.0 de


Constantinopla (380 )-0 de Epheso (431 ) o de Calcedonia
( 451 ).
22
170

( 541 ) para o 3.º Concilio de Latrão (1179), que renovou


contra os Albigenses as mais tremendas disposições do
antigo direito romano. 0 4.º Concilio de Latrão (1215)
ratificou a doutrina penal do seu antecessor, e decretou
que os hereges, depois de condemnados, fossem entre
gues ao braço secular para serem executados. Aqui co
meça verdadeiramente a Inquisição religiosa , e não an
tes, como a tivemos durante seis seculos, ou até o prin
cipio do seculo corrente .
Fixemos pois uma epoca para a creação desse tre
mendo tribunal. Propagava- se a heresia dos Albigenses,
protegida pelos Condes de Tolosa , de Foyx, e de Com
minge --pregava Fr. Domingos de Gusmão sem fructo
-suspeitou que o queriam matar, e por essa simples
suspeita dirigio a Roma uma queixa em devida forma.
0 papa , que era então Innocencio III , mandou um
legado por nome Pedro Castel-novo aos Condes acima
referidos, e como estes não o quizessem ouvir, elle ex
commungou o Conde de Tolosa , e retirou -se para Roma.
0 Conde porem fel-o seguir e assassinar em caminho .
Innocencio III , depois deste lastimoso successo, pre
gou uma crusada contra os Albigenses ( 1208); mandou
um legado ao rei de França , e escreveu a todos os prin
cipes Christãos para que acudissein ao castigo dos re
beldes, como se fosse para a conquista da terra santa .
Foi , diz Fr. Luiz de Souza , grande o poder da gente,
que começou a correr para a empreza. Entretanto Fr.
Domingos de Gusmão não cessava de pregar, e de ani
mar esta Crusada ; em que, depois da derrota dos re
beldes , elle fez o principal papel .
Era o começo do anno de 1209 , e os Crusados
marchavam de toda a parte . O rei de França nomeara
General desse exercito a Simão Conde de Monforte, a
quem muito recomendara se entendesse com Fr. Do
mingos de Gusmão —esta mesma recomendação teve
tambem o Conde de Monforte por lettras do Papa .
Foi o primeiro acometimento contra a cidade de Be
ziers , que depois de uma resistencia tenaz e heroica ,
sucumbiu , sendo passadas a fio de espada perto de se
centa mil pessoas . Somente em uma igreja. onde se
171

haviam refugiado sette mil pessoas de todos os sexos e


idades, foram todas mortas sem excepção . (1 )
II
Depois de Beziers seguio-se a tomada de Carcasso
na , que se rendeu . Acompanhava a Crusada Fr. Do
mingos de Gusmão, ou o Santo pregador, como o cha
ma Fr. Luiz de Souza (Liv . 1 da Hist . de S. Domingos),
na primeira fileira do esquadrão, feito alferes de um
devoto Crucifixo , que levava arvorado em uma aste ; mas
ia mettido n'um mar de cuidados. Parecia- lhe que se
perdia o tempo na guerra e nos remedios violentos, se
ao mesmo tempo não ficasse a terra limpa de contagio ;
e sem medo de tornar a brotar a perversa zizania, ou
por occulta ou por mal mondadu .
Voltemos agora ao Sr. padre Campos, que preten
de provar que a inquisição religiosa, como a criou a
igreja, föra umprogresso para o espirito humano ; fóra
a verdadeira liberdade de consciencia ; e sobre tudo que
nunca fizera derramar uma só gota de sangue !! Para
isto o Sr. padre Campos copiou quasi uma memoria do
frade Lacordaire sobre a inquisição, em que se notam
muitas falsidades, erros de historia, contracensos de to
do o lote, a ponto de tornar-se uma verdadeira fabula ,
sem o menor vislumbre de verdade.
Começa pois Lacordaire dizendo : « Acusam S. Do
mingos de haver sido o inventor da Inquisição : accusam
os Dominicanos de terem sido os promotores , e princi
paes instrumentos de tão formidavel instituição ! Ora,
he preciso que se saiba , que S. Domingos não foi inven
tor da Inquisição, nem tão pouco praticou jamais acto
algum de Inquisidur ! Que igualmente os Dominicanos
nunca foram instrumentos de semelhante instituição. )
( 1 ) No meio da matança sette mil pessoas de ambos os se
xos e de todas as idades se haviam refugiado dentro de uma igre
ja -o general duvidava atacar esse refugio, e foi consultar o le
gado do Papa, iim tal Arnaldo Amalarico, dizendo - lhe que den
tro da igreja haviam tarnbem muitos catholicos, que elle nem a
tropa poderiam discriminar no furor do combate ; entretanto
que não mereciam a morte como os hereges ; ao que respondeu
o legado : Podeis matar a todos ; Deus depois distinguirá os in
nocentes ! (Bredow , hist . univ. Mendes Leal, Man . Mag. )
172

Lacordaire cita tambem um parecer de commissão


das Côrtes hespanholas de 1812, em que se diz - « Os
primeiros Inquisidores, e com especialidade S. Domingos,
não opposeram nunca outras armas á heresia , que as da
supplica, da paciencia e da instrucção, como asseguram
os Bollandistas, etc. ) E mais adiante - Fehppe II,
o mais absurdo dos principes, foi o verdadeiro fundador
da Inquisição, que a elevou a altura a que attingio. »
Aqui pois, appresenta Lacordaire o contraste entre
S. Domingos, que não tinha outras armas senão as da
supplica, da paciencia e da instrucção, e Felippe II, que
convertera a Inquisição n'um tribunal terrivel; S. Do.
mingos no principio do seculo 13 , e Felippe II no fim
do seculo 16 -quasi 4 seculos de differença , em que se
>

cometteram as maiores atrocidades em nome da religião,


e muito antes de que Felippe Il viesse ao mundo ! Va
mos ver agora como eram as supplicas do bom frade Do
mingos, em que consistia a sua Paciencia, e de que ma
neira elle instruia os hereges albigenses. (1)
Como já dissemos, ou diz Fr. Luiz de Souza , anda
va Domingos de Gusmão à frente do exercito da Crusa
da armado de um varapao , em que levava arvorado um
crucifixo ; e para mostrar o grande milagre de Deus,
apesar de ir sempre na frente, nem Domingos nem o
Crucifixo soffreram a menor lesão de setta ou de lansa,
ou de qualquer arma inimiga .
E porém Domingos ia ruminando na mente um meio
seguro de não perder o tempo na guerra, e de limpar a
terra do contagiu, sem temor de que brotasse nova zi

( 1 ) Para responder ao Sr. padre Campos , ee para pulveri


sar o frade dominico Lacordaire , nào citarei mais do que a his
toria da Origem da Inquisição em Portugal pelo Sr. Alexandre
Herculano ; e a vida de S Domingos de Gusmão por Fr. Luiz
de Souza , grande mestre danossa lingua, autor da vida do Santo
Arcebispo de Braga D. Bartholomeu dos Martires , e da chronica
de D. João IIJ : e igualmente Dominicano como Lacordaire. E
para náo multiplicar as citações, quando nos servirmos de al
gum trecho de Alexandre Herculano, poremos entre parenthescs
as duas iniciaes (A. H. ) ; e quando quizermos citar Fr. Luiz de
Souza (L. S.) . São ambos antores portuguezes de grande nota o
damaior excepção ; e por consequencia devem ser muito conhe
cidos do Sr. padre Campos.
173

zania (L. S.) , por haver ficado occulta ou mal mondada ,


(limpa da má herva ).
No meio dessas cogitações o bom frade Domingos
communicou ao Legado do Papa , que acompanhava o ex
ercito , as suas aprehenções ; e o Legado, que entendeu
prudente o conselho a mandou - lhe, como a outro José
do Egipto, que pois Deus lho communicara pensamentos
tão acertados, elle mesmo (Fr. Domingos) traçasse o re
medio e o executasse sem metter tempo em meio -que
entretanto avisaria ao Pontifice. » (L. S.)
D'aqui em diante copiaremos Fr. Luiz de Souza ipsis
verbis. ( llist. de S. Domingos, L. 1 cap . 3, pag. 13) .
« Deste ponto teve origem o veneravel tribunal do
Santo Officio, (1 ) contra a heretica pravidade , de que
tantos e tão grandes bens tem resultado á christandade !
Tomou logo a mão o Santo (que mais faria Satanaz I ) .em
inquirir nos de Carcassona quaes eram obstinados, quaes
pediam misericordia . E como era já seguido de alguns
virtuosos sujeitos, obrigados das maravilhas e grande
espirito , que nelle viam , fez tomar a rol e em livros no
mes, idades, estados , sexos e qualidades dos culpados ,
com todas as mais diligencias e circumstancias neces
sarias . »
« Assim foram os obstinados ao fogo (2) : foram
com misericordia recebidos os que de arrependimento
deram signaes . Mas admoestados que, sendo achados
segunda vez em culpa , seriam castigados com todo o ri
gor. Era grande a vigilancia e cuidado, com que o San
to procedia no novo officio ( 3), que como consistia em
inquirir e censurar vidas, fé e costumes, foi tomando no .
me dos effeitos, nome e o officio , nunca d'antes ouvido
nem usado na igreja (4) ►
a Não era menos o louvor, que tinha dos grandes
do exercito . e principalmente na bocca do Legado, á cu
( 1 ) Vede bem, Sr. padre Campos, que foi S. Domingos o uni
co inventor do Santo Oſcio !
(2) Ahi tendes que foi S. Domingos o inventor dos autos de
fé, e não Felippe Il quasi 4 seculos depois, como diz o mentiro
so Lacordaire .
(3) Prova de que não existia até então .
( 4) Prova de que o Officio começou daquclla epoca em diante .
174

ja autoridade referia tudo o que fazia, tomando para si


o trabalho, e dando a elle nome, como era razão ; pois
era alli ministro supremo da Sé apostolica, e immediato
ao Pontifice. Foi o campo conquistando todos os luga
res de forças, e o Santo Inquisidor (1 ) seguio com as
armas do seu officio (o fogo), e com zelo de bom pastor
(de lobo), separando o gado enfermo do são . »
« Em Gazeras relachou sessenta juntos, que foram
QUEIMADOS ! No castello de Minerva cento e quarenta ;
e em outro lugar QUATROCENTOS !! E por outras
partes cento e oitenta. Em Vauro, villa forte do bispa
do de Tolosa, foram queimados um grande numero ; e
a senhora do lugar, chamada Giralda , por pertinaz na
heresia foi empoçada (2) . Do resto do povo, uns eram
reconciliados , outros penitenciados com suas ceremonias
( 3 ), e sentenças para exemplo e castigo . »
a Soou em Roma o exercicio e fruto deste cargo ,
acreditado já com as Cartas do Legado, e sendo estima
do de toda a Corte, despachou o Santo Pontifice Inno
cencio III suas lettras de approvação delle, e a muita
honra e favor para o Santo. Nellas lhe mandou que o
exercitasse, e como Inquisidor apostolico procedesse con
tra os contumases . Assim o affirmam D. Luiz de Pa
ramo, Inquisidor da Sicilia ; Blondo , João Buccheto e
outros . D
III

Aqui temos pois provado, que S. Domingos foi não


só o inventor e creador da inquisição religiosa , e dos au
tos de fé, e das fogueiras, e do apparato diabolico, com
que revestia todas essas abominaveis ceremonias, inven
tadas por elle ; como que fora o primeiro Inquisidor ge
ral ; assim como que a paciencia, a supplica e a instruc
( 1 ) Prova de que S. Domingos foi o primeiro Inquisidor ,> e
não um frade de Cister como diz Lacordaire.
(2) Empoçada, isto he , affogada em um poço d'agua ou de
lama, parece inaudito! Entretanto diz a igreja, que esse mons
tro está no Ceo ! blasfemia !
(3) Até dessa nigromancia do Santo Officio foi o tal Domingos
de Gusmão o inventor ; e tambem do Sumbenito , palavra forma
da por corruptella das duas --Sacus benedictus- ou Sacco bento ,
cm que eram metlidos os condemnados ao fogo.
175

ção que o Santo empregava, consistia em queimar o


maior numero de hereges albigenses no menor espaço
de tempo possivel . Que todo esse diabolico invento foi
aprovado pelos Papas Innocencio III e Honorio III , não
sò honrando a S. Domingos com o titulo de Inquisidor
apostolico , como confirmando a Ordem, que elle havia
creado com o fim de destruir a heresia .
O que ha de mais galante he que Lacordaire diz ,
que são os protestantes e racionalistas os autores que
escreveram essas historias, em que não ha o menor lai
vo de verdade , porque nestes ultimos seculos a historia
tem sido uma montira ſlagrante e perpetuu . Ora, se ha
mentira na historia da inquisição , he Lacordaire o maior
mentiroso ; e o protestante que mentio he Limborch , (1)
calvinista , citado pelo proprio Lacordaire em seu apoio ;
pois que não ha um só catholico daquella epoca , que avan
casse as mentiras e falsidades, que o tal Lacordaire acu
mula no seu escripto.
O tal frade dominico nem ao menos tem o pudor da
mentira ; por que dizer que ainda hoje os magistrados
em França julgam os actos exteriores, que forem con
trarios á religião, como julgava a magistratura do Bai
xo-imperio na idade media , he mentir descaradamente ,
sem o menor recato -- basta só comparar o Codigo de
Justiniano com o Codigo francez actual para imprimir nas
faces do escriptor mal avisado o labéo de falsario.
Dizer igualmente que a França actual he ainda soli
daria como principio d'onde nasceu a Inquisição, he
não só mentir como ultrajar um dos povos mais civili
sados da terra, a França que nunca passou pelo ludibrio
das Inquisições da Hespanha e de Portugal , a França que
(1 ) Os Protestantes são a verdadeira peste do Levante, o ty
pho, ocholera morbus nabocca do Sr. padre Campos, e dos ca
iholicos modernos -são mentirosos, falsarios, relapsos e con
demnados em vida ! Mas, se um protestante diz algum dispara
te que lhes aproveite, gritam logo -ainda bem que não pode ser
suspeito ! Assim é, que com um descaro horripilante estão sem
pre a citar os Prottestantes; e o Sr. padre Campos faz delles o
seu principal estudo. Nós, pelo contrario, nunca citamos um
Prottestante, quando temos inlinitos catholicos para provar com
elles as nossas proposições --nem gostamos de mesclar com as
Escripturas o espirito de seita tão abominavel entre os reforma
dos, como entre os intitulados catholicos por excellencia .
176

por simesma repellio a Inquisição creada por Gre


gorio IX !
O padre Lacordaire diz , que em 1198 appareceram
os primeiros homens, a quem a historia dá o nome de
Commissarios Inquisidores. Eram dous monges da Or
dem de Cister, chamados Rainer e Guy. Foram elles
enviados ao Languedoc por Innocencio ill para conver
terem os hereges albigenses. Os tres Legados da Or O

dem de Cister, que S. Domingos e o bispo de Osma en


contraram em Montpellier, pelos fins do anno de 1205,
eram tembem Commissarios Inquisidores.
Assim pois, continua Lacordaire , quando S. Domin
gos appareceu em scena a primeira vez , já o concilio de
Verona havia estabelecido as bases da Inquisição, e a
Ordem de Cister exercia este novo emprego debaixo de
sua forma primitiva , e ainda inconsistente.
Nessa guerra dos Albigenses , diz ainda o mesmo
Lacordaire , são os padres de Cister, que tomam a ini
ciativa em tudo, quer presidindo as assembleas dos bis
pos e dos cavalleiros, quer desenvolvendo contra os he
reges todas as forças do seculo e da igreja. S. Domin
gos, ao contrario , não apparece nos conselhos, nem nos
combates - limita --se a jejuar , orar e pregar !!!
Já vimos antes como S. Domingos pregava e jejua .
va , isto he, assando e affogando hereges - já vimos como
nunca entrou em combales , indo na frente do primeiro
esquadrão com uma imagem de Christo enfiada n'um va
rapáo ! Vamos agora ver, como os padres de Cister to
mavam a iniciativa nesses combates, e foram os pri
meiros Inquisidores , honra que ninguem negou nunca a
S. Domingos de Gusmão até o padre Lacordaire , com
escandalo geral de toda a Christandade.
Com effeito, Fr. Luiz de Souza (Hist. de S. Domin
gos, L. 1. c . 3 p . 14) a este respeito diz o seguinte -
aNão me atrevo a passar adiante sem pedir com carida
de a dous religiosos Cistersenses, escriptores em lingua
Castelhana , que pelo que devem a si mesmos , e ao cre
dito, que desejam a seus livros , folguem de se retractar
(que os bons e sabios se retractam) de uma opinião em
que mostram paixão demasiada , e pouco conhecimento
das historias antigas e modernas, alfirmando que na sua
177

ordem (de Cister) e não na nossa (de S. Domingos) tevé


principio o Santo Officio da Inquisição.
Então lhes lembra Fr. Luiz de Souza , que escre
9

vendo elles em 1587 , quasi 4 seculos desde que S. Do


mingos começou a pregar em França, a nenhum escrip
tor da sua ordem , antes delles, passou nunca pela imagi
nação pôr em duvida semelhante cousa . E se grande
numero de escriptores da ordem de Cister , como bispos,
arcebispos e cardeaes, nunca o fizeram , é porque não
queriam para si , nem para a sua ordem senão o que di
reitamente lhes pertencia.
« E como pelos Cistersenses nãi) ha un só autor anti
go, e a favor dos dominicos ha toda a veneravel antigui
dade ; isto é , todos quantos escreveram em tempos visi
nhos áá guerra dos Albigenses, em que o santo tribunal teve
principio ; segue- se ser assumpto temerario quererem
dous ou tres , só na confiança do bom engenho, saber
mais que todos os seus ( cistersenses ), e contradizer todos
os nossos (dominicos) . »
« Bem me podem culpar os meus, continua Fr. Luiz
de Souza , de dar vida a taes razões ; mas faço - o por dous
motivos : o primeiro porque escreveram em vulgar que
todos léem, e era mister refutar o que disseram ; em se
gundo , porque pelo respeito mutuo, que se devem as or
dens religiosas, convinha corresponder a fraternidade,
mostrando que a ordem de Cister não tinha necessidade
do suor nem dos trabalhos alheios . ) E assim conclue
Fr. Luiz de Souza este capitulo , pag . 15 :
« E porque a verdade é que o nosso Padre S. Do
mingos foi o inventor do Santo Officio da Inquisição , como
atrás dissemos ; e o primeiro Inquisidor e Inquisidor ge
ral confirmado por dous papas, iremos apontando os au
tores que o escrevem . »
« Seja o primeiro Camillo Campegio Inquisidor ge
ral e bispo de Nepi na Toscana, que largamente o prova
nas suas Addições . O mesmo affirma Francisco Peguia
e Zanchino Ugolino de Hæreticis. E Pedro Mathæus
Doutor em ambos os direitos. Assim o dizem Fr. Lean
dro Alberto , Fr. Sebastião de Olmedo, Fr. Antonio de
Sena, Fr. João Maricta, Fr. Estevão de Senhalac, Fr. João
23
178

Sagastizaval, Aymerico Inquisidor geral do Aragão, e >

Bernardo Quijon Inquisidor de Tolosa . ”


« São de ver as palavras de Lucio Marineo Siculo na
sua historia de Hespanha. E são estes 14 autores ,
sem os tres que allegamos atraz, e sem outros sete , que
9

vão na margem ( isto he 24 autores que provão a these


de Fr. Luiz de Souza ). . Mas bem puderamos escusar
todos só com referir o testemunho do famoso Pontifice
Xisto 5.', cujas cousas ainda hoje estão respirando in •
teiresa e valor . D
O Sr. Padre Campos pode ver o Breve , que passou
no anno de 1586 sobre a festa de S. Domingos , na pag.
15 dos citados livro e capitulo da historia do mesmo San
to por Fr. Luiz de Souza . Essas lettras apostolicas ,
conclue o mesmo Fr. Luiz de Souza, irrefragavelmente
provam , que dous Santissimos Papas deram primeiro a
N. Padre o ofticio de Inquisidor que a toda outra pes
soa . Depois occupa- se Fr. Luiz de Souza em refutar
minuciosamente os dous monges de Cister, artigo por
artigo .
IV

O que importa pois toda essa disputa entre Domini


cos e Bernardos ? é que naquelle tempo todos queriam
ter a honra da invenção do Santo Officio da inquisição ;
isto é, do assassinato , do roubo e da espoliação estabe
lecidos como instituição religiosa .
Hoje , porém , que o mundo marcha ; que a civili
sação tem espancado as trevas do fanatismo ; que a mo
ral invade todas as classes, e repelle a hypocrisia religio
sa , ninguem mais quer ter a autoria de semelhante es
candalo . Hoje os frades dominicos não admittem sequer
que S. Domingos tivesse sido nuuca Inquisidor !! Tem
pora mutantur ....
Emfim , poderiamos citar immensas outras passagens
de Fr. Luiz de Souza para provarmos, que fóra Domingos
de Gusmão o inventor da Inquisição, e o primeiro Inqui
sidor ; assim como que na França e na Italia , na Hespa
panha e em Portugal foram os dominicos os principaes
agentes do Santo Officio, e os unicos conhecidos na his
toria sagrada e profana pela celebridade horrorosa das
179

lorluras, com queflagelavam o genero humano,em nome


de um Deos de bondade e de misericordia ! Maldição,
Sr. padre . sobre semelhantes monstros !!
Diz, porem , Lacordaire que nem S. Domingos fora
>

o inventor da inquisição , nem os Dominicos instrumen


tos de semelhante instituição . Já provamos com Fr. L.
de Sousa, não só que S. Domingos fora o inventor e pri
meiro inquisidor, como tambem o primeiro queimador
de hereges, fazendo queimar mais de mil em menos de
om anno ; isto he , foi muito mais cruel que o proprio
Torquemada, que apenas fez queimar 10,220 no espaço
de 16 annos , que durou a sua dictadura inquisitorial .
Agora veremos para o que servem esses bons fra
des dominicos, que nunca forão instrumento de seme
Ihante instituição ! Creada a ordem de S. Domingos em
1216 , os que nella primeiro entrarão tinhão sido os
fieis companheiros do Santo na primeira queima dos
Albigenses. Alem de outras provas, que acumularemos
para adiante, offerecemos por ora as seguintes :
Breve de Gregorio 9.0 em 1232, dirigido ao bispo
de Tarragona , recomendando-lhe para o lugar de Inqui
sidores os frades dominicos - prova de que já erão muito
acreditados no Officio , e isto 16 annos apenas da fun
dação da Ordem , e 12 depois da morte de S. Domingos.
No anno seguinte o mesmo Papa nomeou dous Do
minicanos para Inquisidores de Tolosa ( Chon . de Gui
Therme de Puy-Laurens ) .
Em 1238 ainda o mesmo . Papa confia o ministerio
da Inquisição na Navarra aos Dominicanos e Francisca
nos em commum.
Em 1254 Innocencio 4. devide a Italia em dous
districtos inquisitoriaes , confiando um aos Dominicanos
(sempre os Dominicanos) e o outro aos Franciscanos.
Alexandre 4.° tambem confia em commum aos Do
minicanos e Franciscanos a inquisição de França , á ins
tancias de S. Luiz . Em honra da verdade historica deve
mos acrescentar, que nunca semelhante instituição poude
aclimar-se em França, repelida pelo proprio clero e pela
magistratura .
Fr. L. de Souza (Hist. de S. Dom. L. 1. c. 19 p .
178) fallando do Breve de 1232, diz o seguinte : - « Estas
180

são as primeiras lettras apostolicas, queachamos derão


principio a se executar em Hespanha o Santo Officio da
inquisição ; e logo nomeia o Papa os frades pregadores
(Dominicanos) para elle, como a quem pertencia por di
reito e herança do inventor, e primeiro executor della ,
que foi o nosso glorioso Patriarcha S. Domingos » Quel.o
mais claro, Sr. padre Campos ?
Outra prova decisiva , se fosse mister de mais, he
que em 1215 um tal Pedro Cellani dòara a S. Domingos
uma caza em Tolosa , onde elle fundara a sua Ordem no
anno seguinte . Pois bem , he nessa mesma caza de S.
Domingos, em que se fundara a sua Ordem , que em 1233
foi creado o primeiro tribunal da inquisição regular
mente montado ! Outras muitas provas ficão para lugar
competente ; por ora bastão estas fornecidas pelo pro
prio Lacordaire .
Diz tambem Lacordaire, que a Ordem de S. Bernardo
föra a primeira que ocupou cargos na Inquisição . A esta
affirmativa opõe Fr. L. de Souza 24 autores de grande
nomeada ; provando todos elles que aos Dominicanos, e
não aos Cistersenses, pertencia a honra dos primeiros
cargos do Santo Officio.
Diz o mesmo Lacordaire, que forão os bispos no
Concilio de Tolosa em 1229, e ainda em outros Conci
lios , como de Narbona em 1235 , e de Beziers em 1246 ,
que fiserão os primeiros regulamentos da inquisição, de
accordo com os Legados da Santa Sé . Onde deixa porem
Lacordaire ó regulamento feito por S. Domingos, de
accordo com o Legado do Papa , em 1209 ; isto he, 20
annos antes do Concilio de Tolosa ? Este regulamento
The fôra comettido pelo proprio Legado , e S. Domingos
o desempenhou por tal maneira , que foi a sua lei dahi
em diante . (hist. de S. Dom . L. 1. c . 3. p . 13 ).
Notaremos ainda de passagem , diz Lacordaire, o
sobejo ardor dos Principes, e a tenaz repugnancia dos
Papas em se meterem no desenvolvimento, que a politica
forcejava por dar á Inquisição ! Quanto a teraz repug
nancia dos Papas reservaremos a resposta para quando
tratarmos da origem da inquisição em Portugal.
Lacordaire affronta a historia , e com um descaro
inaudito diz os maiores disparates do mundo. Depois
de dizer que os reis catholicos (Fernando e Isabel) , para
que nenhuma outra nação os excedesse em zelo contra
os adversarios da fé romana , introdusirão a inquisição
em seus reinos pela autoridade de Xisto 4.º, com a maior
pompa e apparato , e com o mais amplo poder - diz de
pois que Felippe 2. °, neto dos taes reis catholicos , fôra o
fundador da inquisição em Hespanha ! que de contra
dições e de miserias !
Ainda mais, diz o mesmo Lacordaire, que fòra Fe
lippe 2.° quem estabelecera ou creara os autos de fé ; e
que o primeiro tivera lugar em 1559. Pois bem, isto he
inteiramente falso, por que foi S. Domingos o primeiro
implacavel queimador de hereges ; e logo que houve
fogueira, houve auto de fé, por que os infelises erão
queimados nas praças publicas, para onde erão condu
sidos em procissão ; com todas as ceremonias, e até a
do sambenito (Sacus benedictus), como diz Fr. L. de Sou
>

za na historia citada .
E quando S. Domingos não houvesse celebrado os
mesmos aulos com a pompa com que se fizerão do se
culo 15 por diante , ahi estão os autos de Torquemada,
>

que nos 16 annos da sua dictadura inquisitorial fez quei


mar 10,220 pessoas em carne, e 6860 em effigie por
haverem morrido nos carceres ou nas torturas ; alem de
97,371 pessoas condemnadas á outras penas ; sem con
tar o confisco dos bens de todas ellas ; isto he, o roubo
e o assassinato juridico estabelecidos como instituição
religiosa !! Santo Deos ! (Llorente, hist. da Inq . de Hesp.
-E. S. Hilaire, hist des consp. et des exec . pol . Prescott,
Hist . de Fernando e Isabel) .

Portanto Felippe 2.º, que viveu perto de 4 seculos


depois de S. Domingos, e quasi um seculo depois de
Torquemada, nada innovou nem inventou nem creou a
este respeito. Fez , como todos os despotas e tiranos, da
inquisição religiosa também inquisição politica , princi
palmente depois das revoluções dos Paises baixos e da
Italia por motivos religiosos .
E porem , do que vos admiraes ? a inquisição pôz -sc
182

a mercê do braço secular, por que para firmar -se ne


cessitava em seu começo do apoio dos Principes ; estes
por sua vez invocavam o braço religioso , que nunca fal
tou ; até que o santo officio tomou pé , e foi o terror do
povo e dos magnatas ; e chegou a impôr aos proprios
reis , quando já não podião reagir contra elle . E senão,
vede os seguintes exemplos :
Aos horrores de Torquemada , diz o mesmo Lacor
daire , quiserão os Papas Conocencio 8. ° e Alexandre 6 .
pôr um paradeiro, e não puderão conseguil-o. A pro
pria rainha Izabel, que tanto se opusera ao estabeleci
mento do Santo Officio nos seus Estados, nada podia
obter desses carrascos coroados, chamados Inquisido
res , que as suas supplicas opunhão o serviço de Deos !
Infames sacrilegos !
O proprio Filippe 2.0 não poude salvar do poder do
Santo Officio um homem eminente, que lhe era muito de
dicado , senão por um meio indirecto . Esse homem era D.
Bartolhomeo Cazanza, arcebispo de Toledo . Preso por
ordem da Inquisição, de balde o reclamou o Papa Pio
4.0-nem o proprio Concilio de Trento conseguio avo
car a si a cauza de Cazanza , declarando orthodoxo o cathe
cismo, que servia de motivo para sua prisão. A inqui
sição foi inexhoravel ! Oito annos teve ella retido em
seus carceres o pobre arcebispo, com uma singularida
de , e he que elle era tambem Dominicano como os que o
perseguião - erão pois intrigas fradescas ee nada mais.
Já vimos que Pio 4.0 reclamara da Inquisição de
Hespanha o arcebispo de Toledo, como pessoa, que pe
la sua alta gerarchia estava fora da alçada daquelle tribu .
nal ; e como este recusara obedecer ao Papa e ao proprio
Concilio. Mas Felippe 2. ° desejava salvar o arcebispo,
e lembrou-se de uma appelação para o mesmo Papa ; e
por um Decreto seu mandou que o arcebispo fosse re
mettido para Roma afim de ser julgado pelo Chefe da
Igreja.
Pois bem , sabeis qual foi o resultado ? Chegando
o infeliz Cazanza a Roma , foi immediatamente recolhido
ao Castello de S. Angelo, em lugar de ser solto , ou ter
a Cidade por homenagem ; isto he, mudou apenas de
183

prisão, com a differença para peior, porque ficava agora


longe dos seus, e dos recursos de sua Casa .
Vamos a outro facto em tempo de Carlos 3. ° em
Hespanha. O Conde de .....(não nos lembramos ago
ra do nome ) filho 'do Perú, eminente Estadista , cuja
>

vida vem na Biographiu Universal; acabava de ser Mi


nistro d'Estado , quando foi preso pela Inquisição , em
cujos carceres morreo. Carlos 3.0 não lhe poude va
ler, nem subtrail-o de semelhante atrocidade ; o Mo
narcha , que arcou contra os Jesuitas, e os expulsou dos
seus Estados, não poude com a Inquisição , e teve de re
signar- se .
Ainda mais . As Cortes de 1812 acabarão com a
Inquisição de Hespanha ; mas voltando Fernando 7.0
do seu desterro em França no anno de 1814, restabe
ceo aquelle tremendo tribunal, por influxo do partido
Sanfedisla. Pois bem, uma das primeiras_victimas foi
>

o pintor Goya , intimo amigo do proprio Fernando, a


quem este não poude salvar senão concorrendo para
que fugisse dos Carceres da Inquisição para França ,
onde lhe mandava dar uma pensão do seu bolsinho em
quanto o pintor viveo .
João Huss e Jeronimo de Praga forão condemna
dos a pena de fogo, e queimados vivos por mandado do
Concilio de Constança , apesar dos salvo -conductos, que
aquelles infelizes trouxerão do Imperador d'Alemanha .
He que naquelles bons tempos tanto valia um salvo - con
ducto real ou imperial como uma pedra no pescoço.
Vamos a outras provas,que nos são mais conhecidas,
porque se derão com Brasileiros. Ile uma dellas o fac
to da perseguição do padre Bartholomeo de Gusmão, a
quem D. João 5. não poude salvar ; nem impedir que
se perdesse um dos mais bellos achados, que a sciencia
tem feito nos ultimos seculos. O padre Bartholomeo
morreo sobre a enxerga de um hospital em terra estra
nha , e a civilisação perdeo um dos meios mais podero
sos para o progresso humano.
O sentimento, que teve D. João 5. " , se revella pela
>

amizade, que elle votou dahi em diante a Alexandre de


Gusmão, irmão maismoço do padre Bartholomeo ; tan
to que depois de varias missões diplomaticas, fel- o seu
184

Secretario intimo até que morreo. Foi essa uma es


pecie de compensação pelos crimes do Santo Officio.
Entretanto o proprio rei não se atreveo a arcar contra a
Inquisição .
Muito mais recente foi o facto da prisão de Ilypo
lito José da Costa em 1802 pelo Santo Officio de Lisboa .
A familia de Hypolito era da colonia do Sacramento ; e
havia emigrado para o Rio Grande de S. Pedro , depois
da entrega definitiva daquella praça aos Hespanhoes.
Era formado em direito pela universidade de Coimbra,
e residia em Lisboa, onde era muito estimado pelo Prin
cipe Regente D. João, e entretinha com elle intimas re
lações . Nesse mesmo anno havia Hypolito mandado
buscar ao Brasil seo irmão José Saturnino da Costa Pe
reira para acabar sua educação em Portugal , quando
repentinamente foi sorprehendido e preso pelos familia
res do Santo Officio .
O moço José Saturnino teve a feliz lembrança de ir
immediatamente dar parte do acontecido ao Principe re
gente, e este recebeo a noticia fatal com grande magoa,
a ponto de acompanhal-o nas lagrimas que vertia pela
desgraça de seo irmão . Então lhe disse D. João, que
não se afligisse pela sua sorte , que elle , Principe, o to
maria sob sua protecção, e que desde logo lhe fasia uma
mesada de tres moedas do seo bolsinho ; o que nunca
falhou até que o Principe embarcou para o Brasil em
Novembro de 1807 - tempo em que José Saturnino já
estava formado em mathematicas pela universidade de
Coimbra .
Se o Principe Regente concorreo para a fuga do Hy.
polito dos Carceres da inquisição em 1804, não o sou
>

be nunca o proprio José Saturnino ; mas mandava -lhe


dar em Londres uma mesada, que continuou ainda de
pois da chegada do Principe ao Brasil e quando o mes
mo Hypolito foi encarregado da redacção do Correio
brasiliense em Londres, teve então , em lugar de mesada ,
uma pensão avultada pelo thesouro publico .
A primeira Carta que José Saturnino recebeo do
irmão, vinda de Londres, levou-a sem abrir ao Prin
cipe Regente ; o qual se pagou tanto desse acto de leal
dade e de boa fé, que lhe deo um brilhante, que o
185

mesmo José Saturnino vendeo por 400/000 rs . em Lis


boa para poder voltar para o Brasil em 1809. Todas
essas cousas nos referio por muitas vezes o proprio Jo
sé Saturnino, que depois foi lente da Academia Militar,
e Senador do imperio pela provincia de Mato-Grosso .
VI .

Agora desejariamos perguntar, queparte tiverão , ou


que interesse poderião ter Felippe 2.0 na persegui
ção do arcebispo de Toledo seu amigo_Fernando 7.0
na de Goya a quem era afeiçoado - D . João 5.º na do
padre Bartholomeo de Gusmão seu protegido - 0 Prin
cipe D. João na do Hypolito José da Costa de quem era
amigo intimo ?. Serião falsas todas essas provas de ami
zade que Fernando 7.º, D. João 5.º e o Principe D. João
derão ás victimas da inquisição , manifestando -as por ac
tos de expontanea generosidade ?
E por que todos estes Soberanos não usavão do seu po
der real para salvar seus amigos das garras do Santo Officio ?
he porque sobre o poder dos Principes estava o da supers
tição religiosa, apoiada pela ignorancia e fanatismo do
povo. Não foi só com os reis de Hespanha e de Portu
gal, que se derão esses e outros actos de deslealdade do
Santo Officio ou da Igreja ; mas com os proprios Impe
radores , como aconteceo com João Huss e Jeronimo de
Praga condemnados e queimados ( como já dissemos ) a
despeito dos Salvo- conductos, sob cuja garantia vierão
aquelles theologos pleitear , a sua causa perante o Con
cilio de Constança .
Quereis saber todo o poder do fanatismo religioso,
e ainda mais da superstição do povo hespanhole portu
guez ; e do quanto pesavam esta superstição e fanatismo
sobre o animo dos proprios reis ? Pois bem, julgae pe
los seguintes factos :
Felippe 3.° de Hespanha assistia com a sua Corte
á um aulo de fé, e vendo tanta gente, homens e mu
lheres , moços é decrepitos condemnados a perecerem
no meio das chamas, onde ainda assim eram invocados o
Santo nome de Deos, e a sua infinita misericordia, co
moveu-se por tal modo, que as lagrimas lhe brotarão dos
24
186

olhos, a ponto de retirar-se daquella scena feroz e hor


rivel muito comovido e sensibilisado .
Quereis saber o que succedeu ? Os inquisidores en
cherão aquella real cabeça, vasia de bom senso, de ideas
vãas e supersticiosas, fasendo acreditar que a magesta
de divina fora offendida por aquella demonstração de
piedade e de comiseração ; e portanto era mister uma ex
piação igual a culpa cometida
0 terror do fanatismo fez o seu effeito, e Felippe
sujeitou -se á pena que lhe impuserão os Inquisidores,
deixando-se sangrar, e que seu sangue fosse queimado
n'um fogareiro em presença de sua familia e de 4 fra
des dominicos, que o cercavão. Desse acto de barbara
superstição havia um quadro na Igreja de S. Domingos
em Sevilha, copia de outro que existia no Escurial.
Na historia da Inquisição de Hespanha vem uma
copia gravada, representando o rei com o braço esquer
do nú amarrado no sangradouro com um lenço branco,
cercado de 4 frades dominicos , e um delles em posição
de lansar no fogareiro aceso o sangue real contido em
uma taça .
Em Portugal deu -se um facto ainda peior com o cada
ver de D. João 4.º, tirado do regio ataude , e exorcismado
pelos frades dominicos, em presença da propria Rainha
viuva D. Luiza de Gusmão. Um dos frades em pé , do
lado dos pés do cadaver, toca com uma vara delgada e
comprida a testa do rei na occasião de recitar as pala
vras do ritual. Fez-se desse acto abominavel um quadro,
cuja copia anda na historia da Inquisição em Portugal.
Perguntaremos agora - foi Felippe 3.º que se fez
expontaneamente sangrar, e que mandou queimar o seu
proprio sangue ? Foi a rainha viuva D. Luiza que fisera
tirar do seu jazigo o regio cadaver de seu esposo para
ser profanado pelas mãos iniquas dos verdugos da in
quisição ? . Não por certo , wem nimguem o acreditaria
estando em seu juizó . O poder do fanatismo era incon
trastavel naquella epocha ; e tudo se curvava diante
da magestade do nome de Deos ! Era a palavra sagrada
dos Crusados - Deos assim o quer !
-

Bem vedes, Sr. Padre Campos, que não era o bra


ço secular, que movia a inquisição , mas a inquisição
>
187

que movia o braço secular ; que não erão os Principes


interessados na devastação dos seus subditos, mas a Igre
ja na sustentação do fanatismo donde tirava a sua for
ça ; e tanto que no momento em que o Santo Officio
poude crear força sua, isto he , os Familiares, o braço
>

secular tornou-se para elle inteiramente inutil . Nas


prisões clandestinas empregava elle sempre os seus pro
prios esbirros. ( 1)
Diz Lacordaire que Paulo 3.0 fundara em 1542 a
Congregação romana do Santo Officio - e que esta Con
gregação fôra tão moderaila, que não seria conhecida
.

se não fosse o facto de Galileo, querendo a todo transe


apoiar um sistema de astronomia nos Livros santos ; e
todavia foi elle ( Galileo ) tratado duas veses com a
mais distincta delicadesa ( saffa!!
Bergier , de quem Lacordaire copiou este trecho,
vae muito adiante, e diz que Galileo nunca fôra preso,
nem obrigado a retractar - se - que apenas se lhe expro
bara querer alliar as Escripturas com um sistema ' as
tronomico. Em fim Galileo nunca fòra perseguido por
causa do seu sistema, mas apenas reprehendido como máo
theologo ! ( vede Bergier, sciencias humanas ! )
Já se sabe que tudo isto quer dizer, que Galileo
não foi perseguido por haver dito que a terra se movia,
e o sol estava parado ; mas por haver querido conciliar
a biblia com o sistema de Kopernico. E porém o facto
de Galileo foi tão escandaloso, que ha mais de 60 au
tores, que o referem de uma maneira indubitavel.
Assim como os frades dominicos, que disputarão du
rante muitos seculos com os Bernardos e Franciscanos
( 1 ) O Abbade Bergier diz que na Italia os papas se ser
vião muitas vezes da inquisição contra os partidarios dos Impe
radores --Era, diz elle, uma consequencia do antigo abuso, e da
opinião , em que estavão, de que lhes era permittido empregar
as censuras ecclesiasticas para proteger direitos temporaes da
Santa Sė ; como ainda no seculo passado. se pode ver na bulla
chamada da Cêa do Senhor, condemnada em Portugal e em toda a
Europa O papa João 22 tambem procedeo contra Matheus Vis
conti , Senhor de Milão. por meio dos frades inquisidores . ()
crime de Visconti era a súa dedicação ao Imperador Luiz de Ba
viera . ( Dic. de Theol. ) O exemplo , pois, de empregar a in
quisição religiosa nas cousas temporaes, nasceu da vossa igreja,
e não dos Principes, como diz Lacordaire.
188

pela primasia na invenção do Santo Officio, hoje dão ao


diabo a cardada, e darião de bom grado ( como Lacor
daire ) a preferencia aos Bernardos ; assim o clero de
hoje tem vergonha de que se saiba , que a sua igreja in
falivel fez retractar-se um astronomo da verdade mais
vulgar e mais incontroversa que hoje existe.
E porém, até nisto se mostram os taes catholicos
absurdos e contradictorios. Não houve perseguição, di
zem elles, nem prisão nem retractação , apenas uma sim
ples advertencia para que não apoiasse um sistema as
tronomico nos livros Santos !
Entretanto são os proprios catholicos que confes
são, e provão com documentos, que Galileo foi chama
do a Roma e preso ; que passou por um processo, de
que fôra salvo pela protecção do Grão Duque da Tosca
na , muito poderoso naquella epoca . Os proprios padres
( como Bergier ) confessão igualmente, que a Congrega
çãodo Santo Officio, reunida para julgar o sistema de
Galileo, decidio que a oppinião do movimento da terra
não se casava com a biblia. (1 )
VII

Emfim , ainda mais confessão, que Galileo estivera pre


9

so em Roma , e que fôra solto depois de abjurar solemne


>

mente a sua doutrina ; e assim mesmo ainda não tivera


licença para voltar a Florença, passando dous annos em
(1 ) Eis ahi a conclusão do Decreto da Congregação do Santo
Officio de Roma no apno de 1633 sobre a doutrina de Koperni
co , sustentada por Galileo .
( Dizer que o sol está no centro, e sem movimento local , he
« uma proposição absurda e falsa na boa philosophia; e tam
« bem heretica , sendo expressamente contraria a Sagrada Es
criptura. »
« Dizer que a terra não está collocada no centro do mundo,
( nem he immovel, mas que se move com um movimento ainda
a diurno, tambem he proposição falsa e absurda , na boa philo
« sophia , e pelo menos erronea na fé. »
Dizem alguns autores, entre elles J. Bertrand, membro do
Instituto de França, na vida de Galileo, que esta decisão he de
Paulo 5.º em 1616, quando Galileo fòra chamado pela primeira
vez a Roma (Bredów . Hist. Univ.- E. M. S. Hilaire, His. des
Consp . - Bouillet, Dict. de Hist. ct de Geog. - Dict. de la Conv.
Biog . univ.-J. Bertrand, Les fondateurs del'astron . )
189

Sienne e depois em Arcetre, d'onde escreveo a sua ulti


ma carta ainda cheio de temor e de aprehensões.
E note-se que era a segunda vez , que fóra levado a
Roma pela mesma causa . Denunciado em 1616 , foi obri
gado a promeller, que não deffenderia mais o systema
de Kopernico - a segunda em 1633 quando tinha, se
gundo nos recordamos, 70 annos de idade. Da primei
ra vez sahio -se menos mal, apenas com uma reprimenda;
da segunda porem teve cinco meses de Santo Officio (1 )
fazendo retractação da doutrina de Kopernico ; isto he,
que a terra estava queda , e era o sol que se movia !
Entretanto o Grão Duque da Toscana instava com o
seo ministro junto a Santa Sé pela soltura de Galileo sem
retructação. Guicciardini , porem , que conhecia melhor
as cousas de Roma , tratava de moderar o ardor do Grão
Duque, dizendo -lhe em uma carta que « ( papa era no
a toriamente inimigo do pensamento como da sciencia ;
« que era mister, para agradar - lhe, mostrar -se a gente
ignorante ; e que aquelle momento era mal escolhido
« para proclamar uma ideia philosofica » – Concluia
portanto o Embaixador, dizendo que era inevitavel su
jeitar -se Galileo á uma retractação simples, e nada mais .
Bergier diz que Galileo nunca estivera preso, e ape
nas hospedado no Palacio da Trindade ! Isto he tão mi
seravel, que não mereceria a pena de desmentir, se Bergi
er não citasse uma carta do proprio Galileo ; pois bem , veja
o Sr. Padre Campos o que diz a mesma carta : « Quan
do eu cheguei ao Santo Officio ( he Galileo quem falla)
dous Jacobinos me convidarão muito honestamente a fa
zer a minha retractação. Então fui obrigado a retrac
tar-me como bom catholico. »
Ora , o palacio da Trindade era o da residencia do
Embaixador da Toscana, onde föra hospedar -se Galileo,
(1) A sentença foi de tres anpos de reclusão no Santo Officio ,
com injuncção de recitar todas as semanasosPsalmos penittencia
rios . Foi por influxo do Grão Duque da Toscana Fernando 2.',
que o Santo Officio relachou, com muita difficuldade, a prisão de
Galileo, depois de 5 meses em seus carceres, e o desterrou para Si
enne, não lhe permittindo ir a Florença . Esta condescendencia
do Santo Officio custou a Toscana o Ducado de Urbino, de que o
Papa se apoderou em tempo do mesmo Duque Fernando. (" Fer
ry — Dict. de la Cony. - Bredow , Hist . Universal)
190

quando chegou a Roma-mas no outro dia pela manhã,


forão buscal- o dous frades dominicos , e o levarão pa
ra o palacio da inquisição , onde ficou recluso até que
fez a sua solemne retractação .
Tanlo foi o sistema do movimento da terra , que deo
lugar á prisão e processo de Galileo, que a obra que
servio de motivo para a denuncia, he a que contem os 4
dialogos sobre os sistemas de Ptolomeo e de Koper
nico ; onde el ! e expõe , e prova toda a verdade do sistema
deste astronomo . Negar isto hoje he o mesmo que ne
gar a luz ao pino do meio dia.
Muitos autores , que conhecemos, e Bergier falla de
mais de 20, trazem não só os artigos formulados pela
Congregação do Santo Officio em Roma , declarando heri
tica a doutrina de ' Kopernico , sustentada por Galileo,
assim como a forma da retractação, que o mesmoGalileo
foi forçado a repettir de joelhos perante a dita Congre
gação . Mas era tão forte a convicção do sabio , que ao
levantar-se, disse - E pur si muove - e apezar de tudo a
terra se move ! (1)
Que a inquisição foi por muitos seculos aа remora da
civilisação, ninguem ha hoje que o negue de bôa fé ; que
foi a inimiga jurada das artes e sciencias, tambem não
ha hoje que duvidal-o ; que a perseguição sistematica
contra os sabios A suas obras : que a maldicta invenção
do Index e da censura era um obstaculo invencivel para
a propagação das ideias , e desenvolvimento da intelligen
cia humana, ninguem hoje se atreveria a contestal- o de
bòa fé, salvo , como Bergier ou Lacordaire, invertendo os
factos, mascarando a verdade com sofismas, ou deturpan
do a historia de um modo revoltante .
Citaremos poucos factos, porque seriamos obrigado
a um in folio , se quisessemos accumular provas sobre pro
vas dessas verdades. Alem de Galileo ahi está Descartes
perseguido como alheo , vendo - sena necessidade de refu
(1) Alguns autores disem que essas palavras não passão de uma
legenda ; que Galileo apenas soffreo torturas moraes ; mas se ti
vesse dito semelhante bravata diante dos inquisidores, no acto de
abjurar a sua doutrina , elle seria entào phisicamente torturado ;
porque o tribunal do Santo Officio não era para graças (L. Figui
er - Rev. Scient. - J. B. Biot - Averdade sobre o processo de Gas
lileo . Philarette Charles- Galileo Galilei-,
191

giar-se na Hollanda, apesar de haver publicado de uma


maneira explendida novas provas sobre a existencia de
Deos .
E porem um dos factos, que mais nos revolta, por- .
que nos toca por casa , foi a perseguição do sabio brazi
leiro o padre Bartholomeo de Gusmão, filho de Santos na
provincia de S. Paulo . O padre Bartholomeo era Licen
ciado em Canones pela Universidade de Coimbra ; a sua
vocação porem era para as sciencias phisico - mathema
ticas - era o maior, e talvez o unico Phisico do seo tem
po . Elle foi o inventor dasmachinas aerostaticas em 1709,
e não os irmãos Mongolfiers no fim do mesmo seculo,
como pretlendem os Franceses.
Com effeito o padre Bartholomeo de Gusmão fez em
1709 uma machina com a forma de um grande passaro,
a que o povo deu o nome de Passarola , e cuja estampa
vem no museo das familias de Portugal . Com essa ma
china o mesmo padre elevou-se , e voou um certo espaço
de um lugar para outro, em presença de El- Rei D. João
5. ° é da sua Côrte ; pelo que ficou o inventor conhecido
entre o povo pela alcunha do padre voador ; e depois toda
a familia Gusmão ficou sendo conhecida pela familia dos
voadores. ( 1)
VIN

El-Rei D. João 5.º concedeo-lhe um privilegio ex


clusivo por 25 annos para elle sú fabricar aquellas ma
chinas ; nomeou -o lente de mathematicas para a Univer
sidade de Coimbra , e deo-lhe uma pensão vitalicia de
6008000 annuaes. Nada dislo valeo ao padre Bartholo
meo ; denunciado ao Santo Officio, como tendo pacto
com o diabo, teve de fugir e deixar Portugal para sempre :
nem nunca mais se soube delle, até o principio deste
seculo , em que disse o padre José Agostinho de Macedo ,
que o padre Bartholomeo morrera miseravelmente em
um hospital de Sevilha .
Pois bem o motorempregado por esse sabio na sua
Passarola foi uma combinação da electricidade e do mag
(1 ) Da vida e feitos de Alexandre de Gusmão , e de Bartho
lomeo Lourenço de Gusmão---pelo Visconde de s. Leopoldo
Rio de Janeiro -1841– .
192

netismo, força latente da naturesa, e que desde então


procurão achal-a de novo, e desenvolvel-a todos os sabios
da Europa , e ainda a não poderão descobrir ha mais de
seculo e meio.. E todavia essa força existe , e foi applica
da com exito feliz - ella teria feito uma revolução muito
-

maior que o vapor, e muito mais cedo (um seculo antes) .


Entretanto a inquisição matou o sabio e a sciencia ao
mesmo tempo; e privou o genero humano de um dos mais
uteis achados, que se tenhão feito até hoje no seio da
natureza .
Sr. padre Campos, ahi tendes a vossa inquisição
sacratissima ; abi tendes a infamia, a torpesa , a ignoran
cia, o roubo e o morticinio, como instituições de um
Deos , que derramou o seu precioso sangue para salvar
9

nos de tudo isto. A vista de todos esses factos, cuja evi


dencia não podereis negar, anathema sobre os apologistas
da inquisição - infamia sobre a memoria de tão misera
vel e torpe instituição.
Se o Sr. Padre Campos tivesse tempo para ler, lhe
dariamos um conselho, e he que lesse a historia da in
quisição de Hespanha, escripta pelo Dr, Llorente, Secre
tario que foi por muitos annos do tribunal do Santo Officio
de Sevilha - elle nada diz que não prove com documen
-

tos. Se a lerdes, Sr. Padre, vos juramos que haveis de


arrepender -vos de ter sido, uma só vez sequer, o apolo
gista da inquisição religiosa .
Ainda mais um facto referido por Llorente , porque
o infeliz de que trata passou por suas mãos ; isto he, pela
inquisição de Sevilha de cujo tribunal era, como já disse
mos , Secretario .
Ignoramos, Sr. padre Campos, se sabeis que existe
no Pacifico uma corrente, que se destaca, em certa es
tação do anno, do golpho de Tehuantepeck para o Sul,
procurando o Cabo de Hornos junto a costa ; e que os
ventos quasi sempre reinão no sentido da mesma corren
te . Assim he que nessa estação ou monção vae-se de
Calháo a Valparaizo em 15 dias (ou ia-se naquelle tempo) ;
mas para voltar contra a monção, gastavão -se dous me
ses e mais de viagem .
O capitão de um navio hespanhol, sujeito muito en
tenuido na sua profissão , tendo de voltar de Valparaizo pa
193

ra Calhão contra monção, separou -se da costa, e ama


rou- se até encontrar os ventos geraes , que o trouxerão
ao porto do Calháo em 15 dias.
Logo que se divulgou a noticia de tão estranha novi .
dade, houve uma admiração geral entre aquelle bom povo
hespanhol . Com effeito, uma viagem em 15 dias , quando
ninguem à tinha feito até alli em menos de dous meses
contra a monção , não podia ser senão por obra do diabo,
ou feitiçaria , que he o mesmo . O resultado foi que o
pobre Capitão foi logo agarrado , e metido nos carceres
do Santo Officio , onde jaseo por muitos meses até que
conseguio, que o mandassem para a inquisição de Hes
panha.
Por felicidade foi parar ao Santo Officio de Sevilha ,>

onde o Dr. Llorente prestava aos infelises detentos o gran


de serviço dos seos conselbos , e da sua coadjuvação nos
trabalhos do tribunal. Afinal foi ouvida uma junta de
sabios maritimos , engenheiros , hydrographos, e astrono
mos, composta das primeiras capacidades nesse genero,
como D. Jorge João , Chorruca, Manzarredo, Lino de Cle
mente , e outros sabios damesmaforça e sciencia ; cuja jun
ta , á vista da derrota do Capitão, opinou que bem podia fa
ser-se a viagem em 15 dias sem ser milagre, nem diabrura
nem feitiçaria.
Ainda assim foi mister ouvir varias Juntas de theo
logos , que afinal concordarão com o parecer dos hydro
graphos e astronomos, e derão liberdade ao pobre ho
mem ; mas depois de dous annos ou mais de prisão, sua
saude estragada, sua fortuna delapidada . O que se seguio
dahi ? he que se sabia o caminho mais curto de Valpa
raizo a Calhão contra monção ; e porem em quanto durou
a prisão do primeiro que o explorou, ninguem se atreveo
a imital-o . Isto deu - se afim do século passado ; se fosse
no principio o homem teria sido queimado irremissi
velmente .
Outro facto não menog notavel : Washington Irving,
escriptor americano , fallando da navegação a vapor diz,
que em tempo de Carlos 5.0 um navio sem velas e sem
mastros , nem motor algum visivel, sahio, em presença
>

do Imperador e da Corte, de Barcelona para Mahon, e


dahi voltara para Barcelona com pasmo geral da mesma
25
194

Corle e do povo,que presenciara o facto. Esta simples


noticia achou elle em um manuscripto , depositado na
Biblioteca publica de Madrid .
O que foi feito do navio depois ? não se sabe nem
consta deste nem de outro manuscripto qualquer . Ona
vio desapareceo, e por mais que Irving consultasse os
archivos de Barcelona e de Madrid, nada mais achou a
esse respeito. Acressenta o mesmo Irving, que não pode
haver a menor duvida sobre o facto , nem sobre o motor
do navio , que era infallivelmente o vapor d'agoa a ferver .
Que tim levou o navio , e porque assim desapareceo ?
A rasão he bem simples: desapareceo como desfez -se a
Passarola do Padre Bartholomeo de Gusmão ; e o autor,
se não morreo em algum ergastulo , foi acabar n'algum
hospital em terra estranha, como o desastrado Padre Bar
tholomeo . E não he isto para admirar, por que ainda
em principio deste seculo a Academia Francesa, consul
tada por Napoleão á cerca do projecto de Fullon sobre
os barcos a vapor, respondeu que o tal projecto não passa
va de um erro grosseiro, de uma ideia louca, ou de um
absurdo, mas não disse que era heresia , nem mandou
prender a Fulton.
Esta gentilesa dos sabios francezes não salva o Cle
ro nem a inquisição. Quando o primeiro barco a vapor
appareceu, disse um pregador do alto da tribuna religio
sa - que aquelle navio era a imagem do Leviathan, e
que o homem não tinha o direito de faser trabalhar jun
tos o fogo e a agrla, elementos que Deos havia sepa
rado !
Não será isso, exclamava o Orador sagrado, refa
ser o homem a seu modo o cahos primitivo ? Esta excla
mação fez com que Victor Hugo dissesse : que não era
a primeira vez que acontecia qualificar a ascensão do
progresso de retrogradação ao cahos !
IX

Para contrastar as perseguições do Santo Oficio,


Lacordaire lembra as perseguições dos Irlandezes e
dos Polacos ; isto he, dos chatolicos irlandezes pelos pro
testantes inglezes, e dos catholicos da Polonia pelos Or
195

thodoxos Russos. Pois bem , para que foi Lacordaire tão


longe ? Ahi está fresquinha a Italia austriaca e a Italia pa
pal: vede o que fiserão os Austriacos catholicos aos
Catholicos do Veneto e da Lombardia ---vede o que fise
rão os esbirros de Roma e as tropas austriacas nos Es
tados da igreja desde 1830 a 1859.
Pois bem , nesse tempo forão encarceradas e exe
cutadas 60 mil victimas nas cidadellas do papa. Dessas
prisões tenebrosas, tanto dos estados pontificios, como
dos das Duas Cicilias , sahirão milhares de esqueletos am
bulantes, muitos cegos e quasi idiotas por haverem es
tado privados da luz, e do contacto humano por muitos
annos ! Ide, Sr. Padre, com o vosso Lacordaire pregar
para a California. Isto , que ahi fica dito, he de hontem
mesmo - ahi está na memoria de todossão catholicos
perseguindo a catholicos, ou diabos perseguindo a Chris
tãos !
E para prova do que acabamos de diser , copiaremos
aqui um paragrapho da oração funebre, recitada no fu
neral de Nicolini, e que vem por extenso no D. de Pern .
de 15 de Novembro de 1861 - « Durante o feroz do
minio do despotismo sacerdotal e austriaco ; e em quanto
as nossas dissenções abrião a patria aos ladrões estran
geiros, elle ( Nicolini ) sem cessar e com o maior ardor
atacou resolutamente todos os nossos inimigos, e ao
mais feroz de todos elles, a Curia romana, socia venal
de todas as tiranias, que se tem prostituido a todos os
despotas, que ha no mundo-aquella astuciosa gente,
cruel com os fracos, vil com os fortes ; que se apoiou
sempre no publico terror-que jamais derramou uma la
grima pela Italia ; que se proclamou opprimidà to
das as vezes, que se lhe impedio a tirania ; que con
demnou a Italia a eternas nupcias com um torpe e im
mundo marido-que chamou sempre os feroses lobos
-

allemães sobre os povos, a quem davão e dão ainda o


nome de manadas !-que espesinhou os altares para su
bir ao throno ; e que se contaminou no sacrilegio da do
minação temporal. O nobre poeta ( Nicolini ) vatici
nou , ha muitos annos, que o mundo seria libertado das
arpias romanas ; e que a gulosa loba, sequiosa de ouro ,
ticaria affogada no ouro ! » Cremos, Sr. Padre Cam
196

pos, que não recusareis a validade de um documento


transcripto no Diario de Pernambuco .
Lacordaire entretanto trata de justificar ( como de
Maistre e Lamennais ) a inquisição de Hespanha, contra
a unanimidade da Europa civilisada, que a condemnou ;
e que reputa essa epoca horrorosa como um borrão
lançado sobre o Christianismo, assim como um stigma ,
que ainda pesa sobre a fronte da nação hespanhola.
Com effeito, muito menos barbaros forão os Godos e
Visigodos, Hunos e Vandalos, que invadirão as duas pe
ninsulas do Occidente e do Meio dia .
Eis ahi uma das bellezas de Lamennais, que o Sr.
Padre Campos copiou—« Mas o que se procura sempre
esquecer he que a Hespanha deveu ao tribunal da inqui
sição o ter escapado ás calamidades horriveis das guer
ras de religião, que assolaram o resto da Europa duran
te quasi dous seculos. Deveu- lhe tambem a paz inte
rior, e muila cousa mais . D Este finalme muita cousa
mais-quer dizer talvez o assassinato de algum rei, co
mo na França e na Inglaterra, ainda quando fosse por
causas politicas como Carlos 1.º e Luiz 16.° ; ou mesmo
religiosas como Henrique 3.0 e 40
O que entende Lamennais por guerras religiosas ?
O que foi a guerra dos Paizes Baixos, que durou por
mais de 60 annos até os tratados de Munster e de Osna
bruck ? O que forão as guerras da Italia , em que por
muitos seculos se achou envolta a Hespanha ? He ver
dade que nunca houve em Madrid um S. Bartholomeo,
nem Dragonadas, mas houve a inquisição , houverão Tor
>

quemada , Pedro de Arbues , Cisneros ; houverão autos


de fe aos milhares durante perto de 4 seculos ; havião
assassinatos juridicos e o roubo e a expoliação estabele
cidos como instituição religiosa. Quereis agora ver a
consequencia de tudo isto ?
A Hespanhaque em tempo de Felippe 2. (( Bory
de S. Vincent, Hist. des Guer . de Hesp . ) tinha 40 milhões
de habitantes, nem podia ter menos, quando sustentava
uma esquadra de 130 náosde linha de tres pontes, e ou
tros tantos Galeões armados, com duas mil toneladas
de porte cada um ; galeras e brigues e transportes em
proporção . Finalmente essa Ilespanha, em cujos Esta
197

dos nunca se punha o sol , no diser de Mariana, tinha


apenas no tempo de Fernando 7.º dose milhões de al
mas ! e hoje, depois de 33 annos apenas, muitos dos
quaes passados em guerras e revoluções, mas sem in
quisição , conta já de 15 a 16 milhões !
A Hespanha não era só uma nação de primeira or
dem , era a primeira nação do mundo ; e quando ella.
tinha 40 milhões de habitantes, a Inglaterra não tinha
10, e a França não tinha 20. Hoje a Hespanha conta
apenas 15 аa 16 milhões de habitantes, quando a Inglaterra
tem mais de 30 e a França pouco menos de 40 milhões. Se
a Hespanha de Carlos 4. ° fosse um só homem , e lhe
houvessem perguntado, que se havião feito os 28 milhões
da sua população no espaço de dous seculos, elle res
ponderia - Tragou -os o abismo da inquisição !
Vede agora , Sr. padre Campos, se a Hespanha não
daria de bom grado toda uma raça de seus reis pelos 28mi
lhões de almas, que perdeu pela bondade i misericordia
da vossa sacrosanta inquisição ! Se essa estupida ali
cantina de Lamennais não he um violento sarcasmo ati
rado á face da civilisação moderna, não lhe vejo outro
prestimo senão para faser amaldiçoar a nova reacção re
ligiosa , tão ridicula como impotente, tão digna de riso
como de despreso.
Diz Lacordaire que na inquisição hespanhola ha
duas epocas solemnes : uma no fim do século 15.º, em
tempo de Fernando e de Izabel ; e outra no seculo 16.0
no reinado de Felippe 2.0 -- acrescentando que tanto tem
de horrivel a de Felippe 2.0 como de moderada a de
Fernando ; isto he, de Torquemada e de Pedro de Ar
bues ! Lacordaire não estava em seu juiso quando disse
semelhante blasfemia ! Ila aqui alguma cousa alem da
mentira , he a impudencia , o despudor, o descaramento .
>

As apreciações , que faz Lacordaire a respeito da


inquisição , são sempre falsas, contradictorias ou absur
das . Diz elle que Felippe 2. ° quiz introduzir a inquisi
ção na Lombardia , mas que não poude conseguil-o, por
que os Milaneses gritarão logo - Não , não consentire.
mos , por que he uma tirania impôr á uma cidade chris
tāa uma forma de inquisição talhada para Mouros e Ju
deus ! »
198

Não ha nada mais rasoavel do que isto , Sr. padre ;


entretanto o proprio Papa creou a inquisição em Roma
a meiados do seculo 16 (1542) ; e successivamente forão
creadas inquisições em Napoles, na Cicilia, em Venesa ,
e por toda a Italia , onde não havia Mouros nem Judeos,
salvo alguns poucos desde o tempo do imperio romano .
Assim he que todo o horror, que Lacordaire faz pezar
sobre Felippe 2. °, por querer iutroduzir a inquisição na
Lombardia, vae recahir sobre o Papa , e sobre todos os
principes e republicas da Italia, que de feito praticarão
o que Felippe 2.° não poudeconseguir .
X

la cousas que ditas não se acreditão ; escriptas fa


sem arripiar as carnes , ou rir de compaixão por quem as
escreve . Basta por tanto referir certas cousas para jul
gar da boa fé, com que forão ditas ou escriptas. Entre
outras copiaremos as seguintes proposições de Lacor
daire , e ajuise quem quizer o fim de semelhantes dis
parates— A inquisição foi um verdadeiro progresso, Não
fundou ella a liberdade dos cullos, de que tanto se falla ? »
Que resposta se pode dar a essas duas theses, tão
cathegoricamente formuladas, sem o menor rebuço , sem
ao menos o pudor do homem de lettras, que pollue a
cadeira da verdade em nome de uma solemne mentira ?
Com que a inquisição estabeleceo a liberdade dos cul
tos ? e houve quem o dicesse ? Sim, e até quem o re
produsisse !
Outra gentilesa do padre Lacordaire he a seguinte :
- « Constantemente se tem visto Roma ser ao mesmo
tempo a cidade da orthodoxia ee da doçura -- candida como
uma virgem ! e como uma virgem debil ! » -De que
epoca fallava , ou quiz fallar Lacordaire ? Estas e outras
raridades do facundo engenho do padre Lacordaire ficão
reservadas para quando tratarmos da origem da inqui
sição em Portugal.
Se ha um dogma historico, continua Lacordaire , he
que a igreja he pacifica, soffredoura , suave é indul
gente ! O espirito de mansidão se perpetuou na igreja ;
então cita varios padres da igreja até o seculo 5.º. Que
199

grande duvida ! A igreja não podia perseguir, quando


apenas se libertava das perseguições — fraca é abatida
em seu principio, seguia a risca o preceito de S. Lucas
(cap . 9 , v . 54 a 56) . A igreja ainda não tinha a seu
favor o braço secular- não he dessa epoca que deveis
C

fallar, mas do seculo 9.0 ou 10.0 por diante .


Não achaes muito humilde, muito suave e muito sof
fredoura a igreja de Gregorio 7.9, de Julio 2.9, de Ur
bano 8. , de Innocencio 3.0 ; de João 8. , de Alexandre
6. ', de Paulo 4. ', e de tantos outros papas , que honra
rião os thronos de Henrique 8.', de Luiz 11.', de Carlos
9.º, do Bomba 1.º e dos 3 Felippes de Hespanha ? Achaes
que possa haver nada de mais torpe nem de mais hor
rivel na historia profana que o caracter pessoal desses
soberanos Pontifices ?
Conheceis a vida e a chronica de Gregorio 7.º ?
Basta só este lindo episodio (vede bem, um episodio ape
nas de sua vida) : Acendeo uma guerra, que durou perto
>

de dous seculos ; fez correr rios de sangue , fez da Italia


um matadouro perenne ; disimou todos os povos da
Alemanha , da França , da Hespanha e até da Inglaterra ,
que durante essa crusada christã forão envoltos nella
pelas insidias de varios papas . A concordata de Worms em
11 22, que poz fim a questão das investiduras, não im
pedio que a guerra continuasse debaixo de outros pre
textos .
O amor proprio de Gregorio 7.º, as suas primei
ras vantagens contra os Imperadores o levarão ao ultimo
grau de soberba, de vaidade e de audacia ; em seu louco
orgulho elle se julgou ácima de todos os reis da terra. São
notaveis as suas maximas pela inconcebivel filaucia com
que as formulou - entre outras são bem significativas as
seguintes :a
1.2 - Só o bispo de Roma he papa universal da igreja
de J. Christo .
2.a - Só o bispo de Roma pode usar das insignias
esteriores da soberania , como usão os Imperadores !
3.4–0 papa pode anular ou cassar as sentenças de
todos os juizes do mundo ; mas ninguem pode cassar ou
anular as sentenças do papa .
4.2–0 papa não pode ser julgado por ninguem .
200

5.2 -Só a igreja de Roma não ha errado nunca nem


errarú jamais ! ! ! Deixamos a apreciação desta these or
thodoxă ao Sr. padre Campos .
a .
6. - 0 papa he a unica pessoa deste mundo, cujos
pes devão beijar os Princepes Soberanos ! (Que humilda
de, que suavidade, que brandura ! )
-

7.1-O papa lem autoridade para depór os Impera


dores, e prival- os da sua dignidade imperial, e do exer
cicio do seo poder soberano !!
8.8a -0 papa tem o direito de absolver e de liber
tar os subditos do juramento de fidelidade prestado aos
seus soberanos !! ( isto he , tornando -os perjuros I )
E por este bom gosto 27 maximas, qualdellas mais
atroz é mais iniqua - tal era a ignorancia daquelles
tempos, que o Sr. padre Campos quer reviver para honra
e gloria sua !
Foi pois em virtude da 8.a maxima, que Pio 5.º pela
bulla- Regnans in excelsis-libertou do juramento de
fidelidade os Inglezes para com a rainha Izabel. Os In
glezes porem permanecerão fieis apesar da infalibilidade
do papa ; Izabel conservou o seu throno, e os papistas
inglezes pagarão as favas ! E o resultado ? Roma perdeu
a Inglaterra para sempre !!
Vamos a outro desses caracteres nefastos. Paulo 4.°
excomungou o genero humano ; fez levantar em cada
canto da cidade de Roma uma prisão para o Santo Officio;
permittia a seus sobrinhos (os famosos Caraffas) os
maiores escandalos , roubos e assassinatos ; e por elles
teve de declarar duas guerras, de que se sahio mal.
Foi tão horrivel a conducta desse papa , e tornou
se por ella tão odioso ao povo romano, que depois da
sua morte lançou este a sua estatua no Tibre, demolio até
os fundamentos todas as prisões , que elle tinha mandado
construir ; assim como perseguio tambem a sua familia.
Sabe-se pela historia, que o proprio Pio 4.' , seu succes
>

sor, fôra implacavel contra a familia Caraffa !


Urbano 8.º foi outro flagello do povo romano ; elle
não só permittia como sanccionava todos os escandalos,
todas as infamias, todas as depredações , roubos e vio
lencias, praticadas por seus tres sobrinhos os Barberinis
-os quaes forão banidos de Roma assim que aquelle
201

papa expirou . Ainda em sua vida appareceu aquelle ce


lebre pasquim , que retratava bem a sua familia : Quod
non fecerunt Barbari , fecerunt Barherini.
Alexandre 6 .. ! Pois bem, quem diz Alexandre 6.°
diz ao mesmo tempo Lucrecia e Cesar Borgia ! E' a este
infame envenenador ( Cesar) duas vezes incestuoso , a
quem se referia Machiavel , no seu livro do Principe - Ma
chiavel tão mal comprehendido pelos seus contempora
neos ! De outros papas ou de muitos fallaremos em ou
tro lugar. Emfim continuemos a nossa analyse .
XI
Diz Lamennais, que a inquisição, em que o clero só
>

intervinha para definir o delicto espiritual, era essencial


mente tribunal politico, que punia nesta qualidade segun
do as leis da sociedade politica -- que a intervenção da
igreja era toda em favor do culpado, pois que bastava
confessar a culpa para evitar o castigo! Tudo isto é uma
falsidade revoltante ; nem no tribunal da inquisição hou
veram nunca outros juizes senão os inquisidores, sem
pre frades, e mui poucas vezes padres ; como que bem po
diam as victimas confessar, ou assignar tudo quanto que
riam que ellas dissessem, que nem assim evitavam a
tortura , e muito menos a morte .
Ahi tendes o caso dos 29 camponios do vale de Bastan
na Navarra, accusados de terem commercio com o diabo
-todos passaram pela tortura , e alguns mais de uma
vez ; todos confessaram , por exemplo: uma mulher que
o diabo lhe servia de marido , ha muitos annos, e que
sentia grandes dores por occasião do coito-um homem
confessou que servia de marido ee de mulher ao diabo , e
outras gentilezas desta especie . Todos foram queimados
apesar das suas confissões. (Llorente, Hist. da Inq . de
Hesp-E . M. S. Hilaire - Ilist. des Consp . )
A confissão não salvava nunca senão nos casos cha
mados de reconciliação ; isto é , de pequenas culpas, ou
por sangue de judaismo. Então os accusados figuravam
no auto de fé com uma camisola , pés descalços, e uma
vela de cera amarella na mão . Depois, ou iam para o des
terro , que se lhes havia marcado, ou voltavam para os
carceres do Santo Officio pelo tempo , que resava a sen
>

tença , desde o espaço de tres annos até a prisão por toda


26
202

a vida , a que chamavam carcere perpetuo. Mas se o in


feliz era accusado por judaisar, ou por feitiçaria , ou por
ter commercio e trato com o diabo, podia confessar cem
vezes, como os camponios do valle de Bastan , que ia in
fallivelmente ao fogo !
Causa um certo tedio, senão asco, ver cerlos homens
apregoando hontem doutrinas ultra liberaes, e hoje como
verdadeiros sycophantas, insinuando falsidades e calum
nias para compensarem os dislates da sua irreflectida
conducta. Lamennais, cujas obras estão todas no In
dice, cortejando depois a Curia romana , de maneira a
tornar -se não só ridiculo como repulsivo .. E senão veja
se o que por ahi vae :
Filha do protestantismo, diz elle, a philosophia
herdou o genio sombrio de seo pai ! Semelhante dispa
rate será com effeito de Lamennais ? Dil-o o Sr. padre
Campos. De sorte que antes do protesto de Luthero não
havia philosophia - o protestantismo precedeu a Socrates
-

e a Platão, visto que a philosophia é filha do protestantis


mo ! Lamennais disse -o por tolo ? Não , por velhaco ,
e por isso foi que cairam em tanto despresotodas as suas
obras, inclusive 0 -- Livro do Povo - que lhe deu tanta
popularidade.
Diz mais que a philosophia proscreve a Realesa em
nome da tolerancia ; proscreve a religião e seus minis
tros ! emfim proscreve o proprio Deos ! » Custa a crer
que sejam de Lamennais semelhantes desconchavos, ver
dadeiro parto de loucura ; mas dil-o o Sr. padre Cam..
pos, e forçoso é acreditar. Seja porém de quem forem
taes disparates, é certo que não merecem resposta se
ria ; porque seria tambem mister proscrever igualmente
semelhante philosophia em nome da Realesa, da religião
e do proprio Deos ! se uma tal philosophia existisse
felizmente ella só existe na cabeça de Lamennais, ou na
do Sr. padre Campos, que o copiou.
Agora é o proprio Sr. padre Campos quem falla
( A igreja não pode reconhecer a liberdade de atacar a
doutrina, sem trahir os direitos da consciencia , cuja
guarda é. » Prescindamos da algaravia do Sr. padre Cam
pos, e vamos a idéa . A igreja é guarda da consciencia !
Pensavamos que era somente Deos-estavamos em erro !
203

Pensavamos que de telhas abaixo ninguem podia metter


a mão na nossa consciencia - engano ; ha uma cousa ,
que substitue a Deos , é a inquisição ! O Sr. padre Cam
pos diz isso seriamente ?
Eis ahi porque se tem dito que a inquisição não era
só o despotismo, mas a quinta essencia, o requinte do
despotismo ! O despotismo secular ataca o corpo do ci
dadão, invade a sua casa, entra pela porta ou pela janel
la, domina a familia, devassa o lar domestico ; mas a
>

inquisição faz tudo isto, e de mais a mais invade a cons


ciencia da creatura , e quer torturar o espirito . E como
a consciencia é de si mesma impenetravel, a inquisição
desfaz o individuo para poder penetrar na consciencia, e
dominar o seu espirito . O que mais faria o proprio
Satanaz !
Diz ainda o Sr. padre Campos, que a igreja não pode
reconhecer a liberdade de atacar a doutrina, porque se
ria trahir os direitos da sociedade, de que he protectora !
Em que Publicista achou o Sr. padre Campos semelhan
te disparate ? Com que a vossa igreja protectora da
sociedade, e por consequencia ácima della, do poder
civil, da soberania nacional! Isto podia ser dito em
tempo de Gregorio 7.0 - mas agora não he só disparate ,
he parto de soberana loucura. A igreja , Sr. padre,
está no Estado , he este quem a protege , -a igreja he
por tanto protegida , e não protectora !
Deixamos de responder a muitas outras proposições
do Sr. padre Campos,porque são todas neste bom gosto
A igreja, diz elle, he a verdade ! tudo o mais he erro !
E se lhe disem que tambem ha verdades fora da igreja,
como por exemplo : dous e dous são quatro -não, re
plica elle ; dous e dous não são quatro , erro manifesto,
porque --dous e dous são vinte e dous (22) . Finalmen :
te o Sr. padre Campos não só sustenta ó direito, que
tem a igreja de perseguir aos que não obedecem as suas
maximas, como que tambem tem direito de queimar os
dissidentes !
E para que não se creia que inventamos, aqui vae
o que elle escreveu a este respeito ( D. de Pern . de 18
de Julho de 1866 ) -- « A cizania e o trigo germinarão
ao mesmo tempo, e ambos cobrem a terra. Então di
204

sem os servos ao Senhor : Quereis que livremos o VOS -


so campo dessa herva damninha ? Não, lhes responde
o Senhor : não façais nada, porque pode acontecer , que
querendo arrancar o joio arranqueis tambem o trigo ;
deixae crescer ambos até a segadeira, que quando che
gar esse momento dizei aos segadores : separae o joio do
trigo, e lançae o primeiro ao fogo , e o segundo reco
lhei no vosso celleiro ! »
Estou que isto não passa de uma galantaria do Sr.
padre Campos - que essa velha parabola não involve o
pensamento, que elle lhe quiz dar ; nem Jesus Christo
podia prever, apezar de Deos, que houvesse uma raça
de viboras, que torturasse as suas palavras para apoiar a
mais torpe e anti- christãa instituição, que tem existido,
ou possa existir no correr dos seculos- mas he verdade
que dessas divinas palavras se servirão os Domingos de
Gusmão, os Torquemadas, os Aimericos, os Pedro de
Arbues de todos os tempos ! Só temos pesar de uma
cousa , e he que não voltem esses bellos tempos ! que
griapo Torquemada ou Pedro de Arbues não seria o Sr.
padre Campos !
Ainda outra do mesmo Sr. Campos- A escola racio
nalista não comprehende que a igreja e o Papado sejão
as bases unicus de toda a instituição social e religiosa,»
Ora já o Sr. Campos provou que a igreja e o Papado
erão uma e a mesma cousa ; e como a Inglaterra não
reconhece o Papa nem a igreja de Roma, segue -se que
a sociedade inglesa não tem base de qualidade alguma.
O mesmo se pode dizer dos Estados Unidos, da Prussia
e da Russia, da Suecia e da Dinamarca , da Hollanda e do
>

Hanover ; em fim de todos esses pequenos Estados da


Allemanha protestante . No sentir do Sr. Padre Campos
a Hespanha he a unica nação, que tem base solida e re
pousa nos grandes pedestaes : o Papa e a igreja !! Quem
pode resistir ao poder da logica do Sr. Padre Campos ?
XII

O Sr. Campos passa depois a faser a defesa de In


nocencio 3.º, um dos maiores Nagelos, que tem vindo
ao mundo ; o creador da inquisição religiosa, o pregador
205

da crusada contra os Albigenses ; emfim elle que nomeou


Domingos de Gusmão 1.0 inquisidor -mor, é 1.º quei
mador de gente em nomede Jesus Christo, cuja cruz o
tal santo levava aa frente dos esquadrões, que assassina
rão 60 mil pessoas somente em Beziers !
0 Sr. Campos para isto servio - se de um ministro
protestante Hurter . He sempre no arsenal protestante
onde elle vae buscar as suas melhores armas ! Se o Sr.
Campos não he la muito entendido nas Escripturas , pode
gabar -se de que ninguem lhe leva as lampas em mate
ria de protestantismo-he uma especie de Luthero em mi
niatura .
Innocencio 3.º , já se sabe , he um santo homem , he
uma pomba sem fel, he de um desinteresse pessoal que
não tem exemplo — nunca permitio atrocidades contra os
hereges ! se forão queimados, isto he cousa la do frade
Domingos de Gusmão ! Innocencio nunca violou os Cano
nes ; nem a sua intervenção na Alemanha teve nunca por
norma as maximas de Gregorio 7.0 . Emfim o escriptor
protestante purificou como por um crisol a vida e conducta
de Innocencio 3.0
Pois bem , Sr. Padre Campos , nós pelo contrario,
nas questões da Escriptura somente sobre ella funda
mos os nossos argumentos ; nas disciplinares vamos sem
pre buscar a opinião dos Catholicos, desde os Santos Pa
dres e Doutores da igreja primitiva até os sabios e theo
logos modernos ; entre os quaes tem lugar distincto
Bossuet e Fleury. Ao tal Sr. Hurter opporemos estes dous
luminares da igreja gallicana ; dous sabios conhecidos em
todo o orbe catholico , emquanto que o Alemão Hurter
não seria sequer citado se não fosse a traducção de S.
Cheron e Haiber, que o Sr. Padre Campos cita tambem
como se fossem autores distinctos de Hurter !
Eis ahi a Chronica de Innocencio 3.º, que os pro
prios catholicos, como Bossuet e Fleury referem em gran
>

de parte , alem de Bredow, Muller, S. Hilaire , Bouil


let, e outros muitos que collocão esse papa acima de
Gregorio 7. ', do que não ha a menor duvida ; porque
como este conflagrou a Europa, e a affogou em sangue
mas foi muito alem de Gregorio 7.º instituindo a inqui
sição religiosa e os autos de fé ! Sendo eleito em 1198
206

assignalou logo a sua politica com rasgos de ambição


mundana e de interesse pessoal, apoderando - se de An
cona , de Espoleto e de algumas outras praças que reu
nio aos Estados da Igreja .
Unio-se com a Toscana contra oImperio ; e seaceitou
a tutoria do joven Frederico, filho de Henrique 6º, foi mais
>

para oprimil-o do que para protegel-o ; dando mostras do


seo odio contra a Casa de Suabia . Emquanto dous concur
rentes disputavão entre si o imperio durante a menori
dade de Frederico, isto he, Felippe Duque de Suabia, e
Othon sobrinho de Ricardo rei da Inglaterra, o papa pro
tegia ora um ora outro ; e quando Othon estava a ponto
de ser vencido, o Duque de Suabia, seo competidor, foi
assassinado !
Innocencio poz a França em interdicto por occasião
o divorcio de Felippo Augusto ; e a Inglaterra tambem
por não haver o rei, João sem terra , aceitado o arcebis
po de Cantuaria eleito pelo Papa . Entretanto excita a
França contra a Inglaterra, offerecendo o throno inglez
ao rei da França ; mas quando a guerra ia começar, João
sem terra fez a sua submissão, e Innocencio teve de em
pregar outros meios cavilosos para contel-a sem po
der evitar a explosão da mina , que elle mesmo havia
preparado. Esia decepção foi talvez causa da sua morte
no pensar de Bossuet .
Excommungou a Raimundo, Conde de Tolosa ; deo
seos Estados a França e a outros potentados, com tanto
que concorressem para a Crusada contra os Albigenses. Ao
mesmo tempo os Crusados da Terra Santa commettião
as maiores atrocidades em Constantinopla , ee por toda a
parte por onde passavão . Durante a guerra civil da Alle
manha, que Innocencio trouxe sempre ateada no tem
po do seo pontificado, Othon foi vencido por Felippe Au
gusto de França , e Frederico 2.º, pupilo do papa , foi
elevado ao throno em 1212. Não foi de graça a tutoria ,
que custou ao imperio muitas concessões , a ponto de tor
nar o Clero da Allemanha tão poderoso como era o da
Italia .
Se a Italia já estava dividida pelas facções, Innocen
cio as levou a um tal ponto de odio , de violencias e rou
bos, que se tornarão dous campos inimigos (Guelfos e
207

Gibelinos, oa Papistas e Imperialistas). A Lombardia era


o theatro principal destas discordias. Innocencio seguia
a maxima de Gregorio 7.6– dividir para reinar- . Omeio
de estabelecer a theocracia universal era acabar com a
autocracia temporal , fasendo com que os grandes poten
tados se destruissem mutuamente . Éis o motivo desse es
tado permanente de guerra , até que exhaustas, a theocra
cia e a autocracia , cahirão por si mesmas no marasmo ,
que as consumio no seculo 14.º ; e da hi começa o mun
do nova phase , que o levou até o fim do seculo 15.",
em que começa a civilisação moderna .
E porem nenhum dos escriptores profanos tratou da
vida de Innocencio ou do seo Pontificado, como Bossuet
e Fleury. Cada facto da sua vida he marcado como um
ponto de historia , que revella o caracter individual da
quelle papa . Fleury, querendo gravar aindamais a memo .
ria de todos esses factos, refere aa famosa visão de S. Lu
gardo ; o qual tendo visto Innocencio 3.º depois de sua
morte cercado de chammas, lhe perguntou : porque era
assim atormentado? Então lhe respondeo Innocencio
« Por tres cousas, que me terião condemnado ao fogo eter
no, se me não tivesse arrependido á hora da morte. )
He evidente, que S. Lugardo faz aqui allusão aos tres
factos mais notaveis da vida de Innocencio : 1.0-a guerra
3
ateada na Allemanha, na Italia , na França e na Inglaterra .
2.0 -- a Crusada contra os Christãos Albigenses , e a ma
tança de Beziers, de Carcassona , de Tolosa e de todo o
Languedoc : 3,0-a instituição da inquisição, e a creação
dos autos de fe ! Se o papa Innocencio 3.º não está muito
acima de Atila , como um flagello de Deos, então mente
a historia por todos os seos orgãos desde então até hoje .
Michelet, a quem o Sr. padre Campos cita em seu
apoio, fallando de Innocencio 3.º, chama- o ambicioso,
e despotu cruel, a ponto de faser recahir sobre a igreja a
execração de toda a Europa. Depois da guerra ateada
por elle entre a França e a Inglaterra ; quando João
sem terra se submeteu a igreja, já não poude evitar a
consequencia da sua ambição, a ponto demorrer inquie
to, com a consciencia agitada, e duvidando até da sua
missão providencial . Parece pois que Michelet quiz imi
tar a fainosa visão de S. Lugardo.
208

Temo- nos separado do assumpto principal ( a In


quisição ) para não deixar sem resposta nenhuma das
proposições do Sr. padre Campos - assim he que ainda
continuaremos a ocupar-nos, entre outras , da seguinte :
« O abbade de S. Pierre imaginou umprojecto de paz
universal sob a direcção de um conselho amphyctionico
Esse projecto foi tido, e ainda he hoje, como a utopia
de Thomaz Moro- então Leibnitz, genio pensador ! (ou
tro protestante ) disse a este respeito , que sendo impossi
vel que os grandes potentados se sujeitassem á uma es
pecie de novo imperio , era melhor sujeital-os ao papa ,
se S. Pierre podesse faser com que taes potentados
acreditassem na infalibilidade do Vigario de Jesus
Christo !
XIII

Ora he claro , como a luz meridiana, que Leibnitz


não disse isto seriamente ; mas como para provar a ine
xequibilidade do projecto , ou para tornar bem patente
a utupia de S. Pierre ; tanto mais quanto neste seculo ,
e agora mesmo , acabão de frustrar - se duas tentativas
neste genero : uma na Alemanha em 1848, em que o
Santo imperio novamente criado para toda a Alemanha
não teve o menor effeito. ou malogrou-se pela sua ine
xequibilidade- outra na Italia , em virtude do tratado de
Villa Franca em 1859 , pelo qual a Italia devia ficar con
federada debaixo da presidencia do papa !
Pois bem , Sr. padre Campos , ninguem acreditou
na infalibilidade do papa ; e o que mais he, nem o pro
prio Pio 9.0 acreditou nella , tanto que foi o primeiro a re
geitar semelhante Presidencia, que nunca passaria de
uma burla politica sem eficacia nem resultado plausivel .
Vede pois verificado o pensamento de Leibnitz, como
nós vol-o espômos .
Sr. padre Campos, não vos canceis-tirae a reli
gião da consciencia intima , e plantae- a no meio da rua
junto da politica, e vereis que nem religião nem politica.
O Sr. Campos toma sempre ao serio todas aquellas cou
-

sas que lhe fasem conta. - agora le com Voltaire que se


acha as mil maravilhas- , He mister, exclama Voltaire,
um freio, que contenha os reis, e ponha em segurança
209

a vida dos povos— esse freio, disse elle , devia estar nas
mãos do papa . )
O Sr. padre Campos crê que Voltaire podesse dizer
isto seriamente ou de boa fé ? Para Voltaire foi sem
pre a religião catholica um motivo perenne de chufas e
de picantes sarcarmos ; e o papado para elle era a ori
gem de todos os males, que acabrunhavão a França á
meiado do seculo passado .
Elle gritava contra os reis como contra o Clero-não
ha salvação para os povos, em quanto o ultimo rei não för
enforcado com as tripas do ultimo frade, dizia elle . No se
culo 11 , e dahi por diante qualquer novo Estado, que se
elevava ou constituia ,recorria ao papa para seu reconheci
mento ou confirmação, sem se importar com o reconhe
cimento dos outros soberanos .
Nesse tempo gozava o papa de uma especie de Su
zerania temporal. Pois bem , foi contra essa ordem de
cousas, que se opuserão os Imperadores da Alemanha
e reis daFrança e da Inglaterra - foi por isso que arca
rão contra Gregorio 7.º e seus successores, e afinal se
constituio a autonomia dos differentes povos sem a theo
cracia universal .
Hurter traz parte de uma bulla de Innocencio 3.',
disendo não ser permittido a nenhum christão forçar um
Judeo aa receber o baptismo, visto como aquelle que he le
vado por força não tem fé ! Nunca teve execução se
melhante bulla na Italia nem na Peninsula iberica .
Quando tratarmos da Origem da Inquisição em Portugal
diremos como erão tratados os Judeos na Hespanha e
em Portugal ; e como se lhes arrancavão os filhos para
os baptisarem á força. Parece que o Sr. padre Campos
não tem memoria, e que se não lembra do que tem
passado no meio deste seculo .
Não he permittido forçar os Judeos a se baptisa
rem ! entretanto arrancão-se do poder de seus paes os
meninos Mortara e Cohen para os faser. catholicos a
força ; e quando a Europa indignada se declara em peso
contra essa abominavel tirania , Pio 9.º resiste á Euro
pa christã, e conserva em captiveiro os filhos arranca
dos violentamente do seio paterno !
Sr. padre Campos, he mister que isto acabe ; e ahi
27
210

está a mão de Deus para cancellar a obra iniqua do


papado temporal ! Non possumus ! disse Pio 9.0 a Eu
ropa, que reclamava o menino Mortara ; mas a Europa ,
a quem elle se dirige em meio de suas atribulações, lhé
responde tambem agora—Non possumus-he o sistema
das compensações.
Que data tem a bulla de Innocencio 3.º, que cita
Hurter a favor dos Judeos ? Não sabemos - maso que
he verdade he que no 4.º Concilio de Latrão, no anno
de 1215, o mesmo Innocencio 3.º fez passar um Decre
to, ordenando que osIsraelitas troucessem um vestua
rio especial, que os distinguisse dos christãos, como
uma especie de ferrete, que devia excitar a animadver
são do povo contra esses infelizes. Este costume esten
deo -se por toda a Europa, e ainda não foi inteiramente
abolido .
Continua o mesmo Hurter : Os chefes da igreja fo
rão estranhos a todas as perseguições promovidas na
quelles seculos contra os Judeos ; os quaes vivião com
toda a segurança na capital do soberano da chris
tandade . Nenhum genero de vexação pesava sobre elles
-um grande numero se distinguia por uma existencia
honrosa ; alguns até exercião funcções publicas . Mui
O

to hem ! até aqui Hurter, agora nós . E o que va


mos diser he de um artigo do Courrier de l'Europe,
transcripto no Constitucional de 17 de Março de 1863
o artigo tem por titulo-Os Israelitas em Roma .
« Os primeiros papas não se ocuparão muito dos
Israelitas, e baptisarão-nos como que ao acaso . O Chris
tianismo parece então que se tornara uma vertigem de uni
dade, cujo resultado fosse a renuncia universal. »
« Innocencio 3.º ordenou que os Israelitas usassem
de um vestido especial, que os distinguisse dos Christãos,
como para tornal-os assignalados e odiosos ao povo . »
Innocencio 4º prohibe aos judeos que tenhão amas
ou criadas christãas
a João 22 manda queimar o Talmud como livro con
demnado )
« Gregorio 9.º por uma Decretal reprehende a el rei
D. Sancho 2.º de Portugal por favorecer os Judeos ; e
211

ordena aos bispos que o admoestem para emmendar es


te abuso . »
Benedicto 8.º mandou enforcar alguns Judeos
(1012 ) por causa de um terremoto »
« Martinho 5.º protege os Judeos, mas Eugenio 4.°
>

seo Successor , considerando quanto era perigosa a inti


midade entre Judeos e Christãos, prohibe a estes por
uma bulla apostolica ( 1442 ) que vivão com elles, ou se
utilisem dos seus medicamentos. E alem disto , exclue
os Israelitas dos cargos publicos ; prohibe-lhes a cons
trucção de novas synagogas, e torna a fazer vigorar o
Edicto de Justiniano 1.º, que lhes prohibia servirem de
testemunhas com os christãos . )
Nicoláo 5.º emprega -se em fazer desaparecer os pri
vilegios concedidos aos Judeos por Martinho 5.º ; e pro
nuncia formalmente a supressão desses privilegios . »
Pio 2.º no Congresso de Mantua , com o fim de po
der sustentar a guerra com os Turcos , estabelece uma
>

decima de supplemento sobre todos os impostos durante


tres annos ; erão os Judeos condemnados a pagarem a
vigesima parte ; somma enorme, se attendermos ao
seu pequeno numero . )
Não fallemos de todas essas humilhações impostas
sobre os Judeos: ; da sua aparição nos Jogos publicos,
da sua presença nas festas do carnaval, das injurias da
populaçā, &c . , &c . D
« Clemente 10.º um dia, em que precisava de di
nheiro, converteu todos esses vexames em uma renda
annual de 30 mil francos, que os Judeos ainda hoje pa
gão . )
« Paulo 3.º e Julio 3.º protegem novamente os Ju
deos . Paulo 4.9 persegue -os de novo . 0 commercio ,
livre entre christãos e Judeos, parece -lhe ser para a fé
um perigo serio . Emprega por tanto todos os meios de
tornar inteiramente impossivel todo o contacto entre
christãos e Israelitas . »
« Ainda mais . O mesmo Paulo 4.0 cria o Ghetlo .
cerca-o de muralhas, e manda que a noute se lhes fei
chem as portas. Ordena que os Israelitas, homens e
mulheres, para se differenciarem dos christãos , usem
sempre de um véo amarello na cabeça . Prohibe -lhes jo
212

garem com os christãos, e trabalharem ao Domingo .


Prohibe aos medicos Israelitas tratarem dos christãos,
ainda quando estes os requisitem . » (1 )
« Foi a 25 de Julho de 1556 que o Ghetto se lhes
feichou pela primeira vez . Os historiadores da epoca
descrevem a miseria e as desolações, que esta medida
barbara causou entre os Judeos . Hum historiador ec
clesiastico , muito dedicado a Santa Sé, affirma que de
pois da morte de Paulo 4.º. havendo uma sublevação
popular, os Judeos irritados unirão -se ao povo para en
lamear a estatua deste pontifice. »
« Pio 5.º publicou a Bulla ( Hebræorum Gens de
29 de Março de 1569, que prohibe aos Judeos residirem
nos Estados Romanos, em outra parte que não fosse
Roma . Permitte- se -lhes com tudo que possão viver em
Ancona para sustentar o commercio com o Levante
está ainda em vigor esta bulla . A remoção dos Judeos
de Veletri e de Ostia fundá - se nas disposições contidas
naquella mesma bulla . »
Xisto 5.º protege novamente os Judeos-deu-lhes
faculdade de exercerem qualquer profissão, conservando
porém a seu respeito a prohibição de poderem semear
ceredes >

« Sete annos mais tarde, no pontificado de Clemen


te 8. ' , os referidos privilegios foram revogados de novo .
Finalmente os Israelitas cahirão definitivamente debaixo
da direcção da policia para encobrir assim as variações
continuas dos soberanos pontifices a seu respeito »
« Benedicto 14 preparou no seu pontificado o rapto
do pequeno Mortara , pela publicação da bulla « Postre
mo mense . » Não he inutil faser conhecer sumaria
mente as disposições especiaes desta bulla . »
« 1.a A igreja não tem direilo de baptisar os Israe
litas sem o consentimento de seus paes e mães . »
« 2.a Salvo em perigo de morte da creança , ou
sendo abandonada por seus paes .
« 3.a Posto que fosse prohibido o baptismo sem
( 1) Se se souber que naquelles tempos erão os Judeos os
melhores, e talvez os unicos medicos habilitados, ver-se -ha a
que ponto era odiosa e absurda semelhante prohibição !!
213

consentimento dos paes, feito elle tornava-se valido e ir


revogavel . »
4.a Neste caso os filhos não devião ser restitui
dos a seus paes ! »
O pequeno Mortara foi baptisado por uma criada
( se he que o foi) . Lançada fora de casa por outras fal
tas, foi denunciar a policia o seu acto , como uma espe
cie de vingança -o menino não morreu da enfermidade,
e a igreja arrancou-o de seus paes, e ainda hoje o con
serva enclausurado no convento de Saint- Pierre -aux
Lions. D
< Finalmente os Israelitas emancipados em 1798,
no tempo da republica, tornarão a cahir na escravidão
dos papas depois da restauração de Pio 7. Este pon
tifice tornou a pôr em vigor todos os regulamentos vexa
torios dos seus predecessores . »
a Por estes precedentes he facil ajuizar o quanto
tem variado a doutrina da igreja de seis centos annos á
esta parte acerca dos Israelitas-e he para lastimar que
desde Martinho 5.", em lugar de avançar a civilisação
a seu respeito , cada vez se tenha sumido mais na bar
baridade .. )
« Que se pode dizer do estado dos Israelitas em
Roma ? Elles não podem possuir bens de raiz senão no
recinto do Ghetto. " Não podem , sem autorisação, sahir,
ou viajar sem passaporte, ou exercer qualquer profissão
liberal. D Não podem ser engenheiros, architectos e
ainda menos advogados . >
« São oprimidos no seu commercio, porque as leis
a seu respeito ainda vigorão-não podem obter justiça
contra seus devedores, e precisão fazer todos os seus ne
gocios a dinheiro a vista. A proscripção dos Judeos,
que habitavão , em Veletri e Ostia, he apenas um ponto
da questão . He no seu todo que ella deve ser conside
rada . ) ( Le Courrier de l'Europe. )
XIV

Ahi tendes pois, Sr. padre Campos, a verdadeira


historia das relações entre o papado e os Judeos-da
bondade caracteristica de alguns papas, e da execravel
244

conducta de outros; emfim vêde o que foi, e o que ain


da he hoje o poder temporal da igreja ! anathema !
E porém o Sr. padre Campos não he homem , que
se deixe enfiar pelo fundo de uma agulha; agora salta
elle dos protestantes para Cesar Cantu, o mais ridiculo
ultramontano de toda a Italia . Na Camara dos Deputa
dos, de que he membro, vive isolado, porque não per
tence a lado algum pela excentricidade de suas doutrinas
religiosas . Cantu repete pois tudo quanto ja foi refutado
e desmentido ; isto é : a que S. Domingos nenhuma
parte teve na inquizição, e que a missão da Ordem, que
elle creou, não foi para impor a fé, mas para firmar a
sua liberdade. »
Pode um historiador faltar a verdade, fundado em
uma tradição erronea, ou em documentos inexactos e
incorrectos, mas sempre de boa fé . Cantu , porem , men
te com a consciencia da sua mentira . Não he possivel
desmentir com tanto descaro a um sem numero de es
criptores orthodoxos, entre elles , bispos e arcebispos,
prelados e dignidades, quando todos á uma conferem a
S. Domingos a honra de 1. ° inquisidor , e de inventor
da inquisição .
A missão da Ordem dominicana não foi impor a fé,
mas firmar a sua liberdade ! Com effeito, Sr. padre
Campos, se não he divertir-vos á custa dos vossos leito
res, he simplicidade de mais. A liberdade da fe ! sim,
que o digão Beziers, Carcassona , Tolosa , e todo o Lan
guedoc ; que o digão Hespanha e Portugal, e a propria
Italia, e todos os paizes, onde esses lobos ferozes tiverão
um covil .
Ultimamente Cezar Cantu trata de justificar a perse
guição feita pela igreja, porque, diz elle, o erro he por
sua naturesa intoleranle e perseguidor ! Qual deve ser pois
a conclusão deste principio ? he que a igreja , que per
segue , he por sua naturesa intoleranle e erronea ! Nào
era perciso que Cesar Cantu o dicesse ; já o havia dito
e proclamado todo o mundo civilisado .
Deixemos os absurdos de Cantu , e passemos a ou
tro ponto . Entretanto cumpre não deixar passar sem
reflexão o seguinte : « Paulo 3.º fundou depois em Ro
ma a Congregação do Santo Ollicio, mas esse tribunal
215

nunca fez correr sangue » He isto uma verdade incon


cussa , sabida por todos sem excepção .
Nem a inquisição de Roma, nem a de toda a Italia ,
nem a da Ilespanha , e muito menos a de Portugal fi
9

serão nunca correr uma só geta de sangue, salvo em


uma ou outra das immensas torturas, com que erão fla
geladas as victimas , que cahião em seu poder. Não
era necessario que o Sr. padre Campos nos viesse dizer
que enforcar, garrotear e queimar, ou emparedar e em
poçar (como fez S. Domingos com aquella dama Giralda)
não he verter sangue. Nem uma gota de sangue deitão
os enforcados, garroteados ou queimados. Portanto,
Sr. padre, ninguem vos contestará quando diseis, que a
inquisição nunca fez correr uma gota de sangue.
Quanto ao suplicio do poço inventado por S. Do
mingos, foi perfeitamente imitado pelos Jacobinos fran
cezes em Lyon, onde mais de 13 mil pessoas de todos
os sexos e idades forão afogadas ( em 1793 ) no Rho
ne pelos convencionistas Collot d'Herbois, Couthon e
Fouché-e ultimamente no reinado de Fernando 2.0 de
Napoles ( o rei bomba ) um tal Manischalco, agente de
policia , metia a victima dentro de um sacco , que depois
de cosido ou amarrado pela boca , era lansado no mar
com uma balla ou uma boa pedra de contra peso . He
que pegou a invenção de S. Domingos, especie de Ma
nischalco ( 1 ) ou de Collot d'Herbois d'aquelles tempos .
Todavia o Padre Antonio Vieira faz uma pequena
concessão á verdade-Não he o Santo Officio de Roma,
diz elle , mas os inquisidores subalternos, que são man
dados as provincias por aquelle tribunal, os que se mos
trão mais rigorosos , por não se exporem a castigo !!
Se a inquisição de Roma castiga os seus Delegados ,
quando não são rigorosos, he que ella he ainda mais
rigorosa do que elles.. Então refere o mesmo Vieira o
facto de uma prisão , que se dera por engano em um

( 1 ) O ministro da policia em tempo de Fernando 2.º era o


Marquez del Carreto , mas o executor de suas ordens, o tremendo
ensacador, o feroz afogador , era um padre chamado Juliãn Ma
nischalvo, o qual lào odioso 'se tornou, que afinal foi apunhalado
em Melito na Calabria .
216

Judeo velho de mais de 70 annos, e que tinha de mais


>

mais uma perna muito inchada.


Pois bem, reconhecido o engano , o pobre velho
esteve ainda mais de cinco mezes preso, á espera da de
cisão de Roma, sendo afinal solto com muita honra e
reputação, e com gosto e satisfação do inquisidor ! Cin
co mezes de prisão por engano ! e muito gosto de par
te do inquisidor ! Parece-nos que o Sr. padre Campos
não he tão simples, que cite semelhante facto como pro
va da bondade ou da lenidade da inquisição ! O Sr.
padre Campos diverte-se apenas á custa de seus leitores.
E a que vem tudo isto ? para provar que Innocencio XI
foi uma pomba sem fel, amigo até os ossos dos Judeos !
Entrelanto no seu pontificado houve uma sedição do
povo contra os Judeos, em que estes miseraveis forão
assassinados e roubados, até que aprouve a authoridade
mandar cessar a carnificina !!
Outra galantaria do mesmo Innocencio XI foi aquel
le famoso Breve, aprovando a estupida revogação do
Edicto de Nantes, que fez perder a França mais de cem
mil familias. Os Huguenotes emigravão para toda a
Europa, levando a sua industria, e tudo quanto puderão
subtrahir á rapacidade dos seus perseguidores.
Innocencio mandou cantar um Te Deum por essa
obra meritoria, que um seculo depois tinha collocado a
Inglaterra muito acima da França na sua industria fabril,
devida esta superioridade aos emigrados francezes. E
sem embargo Innocencio XI viveu em luta com a Fran
ça por causa do direito de regalia, e das prerogativas dos
Embaixadores francezes em Roma.
Refere ainda Vieira outro facto em tempo de Paulo
4.º, o fundador do Ghetto e o inimigo implacavel dos
Judeos . Uma caterva de mulheres communs christãas
corria as ruas, fingindo -se endemoniadas, commettendo
mil desordens. Perguntados os demonios ( e o Sr. padre
Campos repette isto no 3.º quartel do seculo 19 ! ) por
que se tinhão introduzido naquelles corpos, responderão
que erão Judias neophitas, a quem os Judeos, resenti
dos pelas suas apostasias, tinhão obrigado a introduzirem
se nos corpos daquellas mulheres para as maltratarem !
Pelo que o papa pretendia desterrar todos os Judeos-e
217

o teria feito se um Jesuita não houvesse sustentado , que


nenhum homem tinha o poder de obrigar o demonio a
entrar no corpo humano .
Então conseguio o Jesuita uma commissão para inter
rogar e examinar essas mulheres endiabradas , e á custa
de alguns açoutes em cada uma, confessarão ellas, que
tudo aquillo era industria de uns cortezãos , que baldos
de dinheiro, querião ver se o papa condemnava os Judeos
a morte, confiscando seus bens em favor delles Cor
tezãos. Logo que o papa foi sabedor desse estratagema ,
mandou prender os Cortezãos de noile e mui secretamente,
ordenando que se lhes ſisesse processo, e que na mesma
noule os en forcassem .
No outro dia foi o aquazıl-mór, a quem chamão
Barigelo, dar conta ao papa de que suas ordens fo .
rão cumpridas, e ficou Sua Santidade tão satisfeito ,
que lhé mandou dar dusentos crusudos, dizendo : se não
föra o meo bom Jesuila (esta he mesmo de Jesuita !) eu
estava condemnado por mandur matar ! ( então não era
só desterrar ! ) tantos Judeos sem razão ! Pois bem , Sr.
Padre Campos, não faremos uma só reflexão a esse res
peito - os leitores , que julguem por si toda essa misera
vel alicantina jesuitica
Com effeito ! (vá sem ser reflexão ). Mandar prender
uma porção de homens notaveis a noite, faser -lhes pro
cesso, e mandal -os enforcar na mesma noute, antes do
julgamento e da sentença ! neste caso para que processo ?
De sorte que, sem audiencia dos réos, sem deffesa , em
cinco ou seis horas quando muito : prisão, processo , sen
tença e execução ! Se tudo isto não he uma pêta jesui
lica, he a prova mais solemne de que o papado temporal
he a monstruosidade mais hedionda, que tem existido no
mundo . Semelhante tirannia não a terião soffrido os an
tigos Hurões e Mohicanos da America Septentrional, nem
os Guaycurús e Goytacases do nosso hemispherio.
Finalmente o Sr. Padre Campos conclue o seo aran
zel inquizitorial com um Breve de Innocencio XI , que o
Padre l'ieira cita para mostrar a benignidade e brandura
da igreja acerca dos presos da inquisição - Breve que
nunca teve exécução nem mesmo em Roma, e que não é
senão uma de tantas alicantinas, com que a Côrte de Roma
28
218

embacou por muitos seculos o mundo christão. O que foi


Roma nesse assumpto dil-o com documentos irrefraga
veis o Sr. Alexandre Herculano ; e a elle nos cingiremos
fielmente quando tratarmos desta questão.
A inquisiçoo na Hespanha ,
I

Até aqui nos temos limitado ás palavras e aos pen


samentos do Sr. Padre Campos sobre a materia da inqui
sição , trazida por elle á baila sem a menor provocação nem
>

motivo, senão o querer dar copia de vasta erudição em


materia do Santo Oftlcio ! Bom proveito lhe desejamos - en
tretanto cumpre -nos agora por nossa vez dizer e provar o
que foi a inquisição religiosa ; ao menos para que o povo
possa avaliar o que diz oSr. Padre Campos, e o que disse
rão outros a esse respeito .
Não nos cansaremos em recorrer a muitos autores,
quando temos de sobra em um livro precioso , desenga
no o mais positivo sobre esta materia. O seu autor (o
Sr. Alexandre Herculano) erudito portuguez, e um dos
mais nobres e distinctos caracteres daquelle paiz, basta
para o credito da obra, e a obra (Origem e estabeleci
mento da inquisição em Portugal) para prova de tudo
quanto ella contem . Pouco ou nada, por tanto, diremos
>

de nossa casa , que para isto não ha mister de mais.


Fallando da reacção religiosa, que vae acompanhan
do a reacção material, o Sr. Alexandre Herculano expri
me-se da seguinte maneira : a Ha ahi hypocrisia, quede
pois de minar debaixo da terra, surge em fim á luz do
Sol, e balouçando o thuribulo, incensa todos os que abu
são da força, declarando -os salvadores da religião, como
se a religião precisasse de ser salva, ou coubesse no po
der humano destruil- a. Os hypocritas querem grangear
as multidões para o fanatismo, e com semelhante intento
recorrem a todos os meios para se obter esse fim. )
Alexandre Herculano não escreve a historia da in
quisição , desse drama de flagicios, que se protrahe por
mais de dous seculos-para escrevel-a tinha elle os ar
chivos do terrivel tribunal quasi intactos . Perto de 40 mil
processos ainda restam para darem testemunho dessas
219

scenas medonhas de atrocidades sem exemplo, de longas


agonias .
Nada disto ; Alexandre Herculano escreve apenas
essa luta de 20 annos entre D. João 3.º e seos subditos
de raça hebrea : o rei para estabelecer a inquisição , os
judeos para impedil-a. Nessa resenha o autor esboça
perfeitamente a Corte de D. João 3.", assim como o ca
racter distinctivo da Corte de Roma em uma epoca de
despotismo e de superstição .
O Sr. Padre Campos, que sabe de cór todas as obras
de Alexandre Herculano, que o copia as vezes sem querer,
como succede em muitos lugares de seos escriptos, deve
apreciar tudo quanto dissermos daqui em diante, por
que he delle e somente delle que nos serviremos -- assim
he que Domingos de Gusmão he o unico homem que per
ziste na perseguição dos Albigenses - he ainda o frade
dominicano Raymundo de Penha Forte, penitenciario de
Gregorio 9.', quem entrega a inquisição aos seos con
frades; e taes crueldades praticarão, que foram expul
sos violentamente de Tolosa, de Narbona , e de outras
provincias da França meridional em 1233 ; posto que lo
go fossem restabelecidos no anno seguinte pelo legado
do papa ; e successivamente se forão estendendo pela
Europa como uma rede de perseguição
Um tal Roberto , manicheo convertido, fez -se frade
dominico pelo anno de 1239, e foi o perseguidor mais
ardente dos seos correligionarios.. Por suas diligencias
forão queimadas em umsó dia perto de 200 pessoas por
hereticas, perante grande concurso dos povos da Champa
nha . Foi o terror das provincias da Flandres, onde a ca
da passo ardião as fogueiras acendidas por elle ; e para
que o terror não esfriasse, queimava innocentes, onde
não podia achar culpados. Esses horrores gerarão sus
peitas- Inquirio-se de tanta dedicação e ardôr, e achou
se que Roberto era um malvado .
Forão taes os seus crimes, que um historiador coevo ,
o Benedictino Matheus Paris, disse que o melbor era guar
dar silencio acerca delles . Tirárão - lhe o cargo , e con
demnárão-no a prisão perpetua. Com mais alguma pru
dencia, accrescenta A. Herculano, quem sabe hoje se o
220

seu nome figuraria no kalendario como tantos da Ordem


Dominicana.
Desde então não deixarão os Dominicanos de figurar
como os principaes, e as vezes como unicos agentes da
inquisição. Pela bulla de 1252 os ministros desse tre
mendo tribunal podião compellir o poder civil a executar
o que elles ordenassem por meio de excommunhões e ,
interdictos. He verdade, que taes abominações gerárão
represalias ; que depois de queimarem muitos dissiden
tes, forão assassinados no Aragão os inquisidores Plane
dis, Travesseres e Cadireta ; Pedro de Verona morreu
9

apedrejado em Milão, e outros em diversas partes - mas


allim triumphou o poder terrivel da inquisição ajudado

+
pelo braço secular .
Esses inquisidores assim mortos erão julgados mar
tyres, e os Dominicanos ganhavão de dia em dia uma
consideração e influencia illimitadas ; que os Francisca
nos, seus emulos , procuravão combater, nascendo dahi
disputas vergonhosas entre as duas Ordens . Por esse
tempo procurava o dominico Sueiro Gomes introduzir a
inquisição em Portugal ; mas foi repellido por D. Affon
SO 30
Durante o seculo 14.0 os Dominicos Puigcercos,
Costa , Burguete, Roselli , Gomir, Ermengol , e outros as
>

sociárão os seus nomes a perseguição e exterminio de


muitos individuos accusados de heresia nas provincias de
Valença , Aragão e Ampurias . Entre elles porém avulta
um tal Fr. Nicoláo Eymerico, inquisidor geral da mo
narchia aragoneza .
A. Herculano cita , além destes, os nomes de muitos
outros Dominicos , que se tornárão celebres pelas suas
repetidas atrocidades. A meiado do seculo 15° um Fr.
Christovão Galvez , inquisidor, poude satisfazer todas as
suas ruins paixões, até que Xisto 4 ° poz fim a tanta per
versidade , mandando- o depòr como impudente e impio,
e digno de exemplar castigo .
Um Dominicano Fr. Felippe de Berberis, inquisidor
da Cicilia, vindo á Hespanha pedir aos reis catholicos a
confirmação do antigo privilegio , pelo qual a terça parte
dos bens dos hereges condemnados ficava pertencendo aos
seus julgadores ( excellente arbitrio para que ninguem es
221

capasse ), depois de obter favoravel despacho, tratou de


accordo com Ojeda , Prior dos Dominicanos de Sevilha , e
o Nuncio do Papa , que via nisso grande vantagem para a
Curia romana , de persuadir ao Principe aragonez do
quanto seria conveniente o estabelecimento permanente
do tribunal da inquisição na Peninsula.
Com effeito , Ojeda, Berberis e o Nuncio seduzem
Fernando a estabelecer em seus Estados a inquisição.
Oppõe-se a rainha Isabel, outra alma, outro juizo que
não o do marido ; mas foi obrigada a ceder aos votos
dos Conselheiros do rei ; e o bispo de Osma , Embai
xador de Castella junto a Côrte de Roma , teve ordem de
supplicar ao Papa, que expedisse uma bulla , creando
aquelle tribunal na Castella . Concedida a terça parte dos
bens confiscados aos Julgadores, ( chave de toda essa
infamia ) tornárão-se os Dominicanos os inquisidores por
excellencia .
II

Esse exclusivismo dos Dominicanos offendia as ou


tras Ordens religiosas , assim como aos prelados seculares,
a quem antes competia a guarda da fé — mas a côrte de
Roma , com a sua habilidade proverbial, desfez todos
esses embaraços, e deu o triumpho aos Dominicanos ;
a ponto de fazer curvar o episcopado ante os inquisi.
dores ; pois que se consideravão isentos da autoridade
diocesana .
No Aragão já havia o tribunal do Santo Oficio, mas
não no resto da Hespanha, onde os Judeos primavão
pelas suas riquezas, pela sua industria e seu saber ; e
tambem pela economia que sabe accumular o fructo do
trabalho. Todas essas vantagens davão na vista do povo ,
e forão causa da perseguição que se lhes moveu sob a
apparencia de motivos religiosos.
Conseguida a bulla da creação em 1478 , ainda hou
verão contemplações com a Rainha , alé que finalmente o
tribunal foi constituido em 1480 ; e desde logo começou
a funccionar. O primeiro tribunal foi estabelecido em Se
vilha, e já no fim de 1481 perto de 300 pessoas tinhão
padecido o supplicio do fogo , e 80 havião sido condem
nadas a carcere perpetuo No resto da provincia e em
222

Cadix, nesse mesmo anno , duas mil forão queimadas , e


17 mil condemnadas a diversas penas ( Orig. da Inq. t . 1
p . 61 ) . Entre os suppliciados se contavão muitas pes
soas oppulentas ( era este o maior crime ), cujos bens re
vertêrão em beneficio do fisco e dos inquisidores.
Para facilitar as execuções construio -se em Sevilha
um cadafalso de cantaria , onde os Christãos novos erão
mettidos, lançando - se -lhes depois o fogo. Este horrivel
monumento, que ainda existia no começo do presente
seculo, era conhecido pela expressiva denominação de
Quemadero ! Entretanto o terror fazia com que abando
nassem a Hespanha milhares de familias, acolhendo-se
umas a Portugal, outras a França, a Africa, e até a Italia .
Os que forão para Roma recorrerão ao papa, e acharão
favor, mas favor caramente comprado .
>

A Curia de Roma adoptou desde logo nesta emer


gencia aquelle systema de variação e dobréz, cujos vergo
nhosos motivos explica depois A. Herculano. O papa
desapprova o procedimento da inquisição de Sevilha;
revoga a licença para se nomearem novos inquisidores ;
e por outro Breve nomeia inquisidor o Geral dos préga
dores ( Dominicos ) e mais 7 frades da mesma Ordem.
Não consente que a inquisição se constitua tribunal su
premo sem appellação para Roma, e dá outras provi
dencias, encorajando os Christãos novos para appellarem
para a Curia romana.
E porém este Breve era pura cilada , uma cruel de
cepção – onze dias depois fóra revogado, por haver sido
expertido com summa precipitação. Com effeito, este Breve
tinha sido requerido pelos perseguidos da Hespanha, aos
quaes tinhão sido dados perilões pela Penitenciaria , e por
consequencia tudo isto a custa de muito dinheiro !
Voltando de Roma alguns Christãos novos , munidos
dos pergaminhos da Penitenciaria , e com as copias do
Breve de protecção, apresentárão -se em Sevilha. Mas a
Curia tinha previnido tudo a tempo, revogando o Breve,
e annullando todas as suas disposições. Confirmadas
pois as sentenças da inquisição fórão aquelles infelizes
pontualmente queimados, e seus bens confiscados, esca
>

pando só o ouro despendido em Roma !!! ( A. Il . t. 1 .


p . 66. )
223

O resultado da precipitação da bulla ou do Breve de


2 de Agosto, a sua revogação antes que os Christãos no
vos pudessem chegar á Sevilha na sua volta de Roma; os
perdões da Penitenciaria illudidos , e a boa fé destes Chris
tãos novos burlada, tudo isto devia fazer rebentar de riso
ao rei Fernando, aos inquisidores e ao proprio papa, que
tal farça havia jogadó.
Entretanto, dos 7 frades escolhidos pelo papa para
inquisidores em Hespanha, era um delles um certo Tho
maz de Torquemada ( 1 ) que logo fôra nomeado inqui
sidor-mór de Castella, e no anno seguinte ( 1483 ) tam
bem do Aragão. Torquemada creou logo mais quatro
tribunaes em diversas cidades, com todo o apparato da
de Sevilha.
Quanto á inquisição do Aragão já dissemos anterior
mente quanto basta para provar a suavidade, com que
procedia aquelle tribunal, e o que nelle praticara o fa
moso Pedro de Arbues ( 2 ) , que vai ser canonisado como
( 1 ) Torquemada foi por assim dizer o primeiro Inquisidor
geral da Hespanha -
era frade duminicano, e foi nomeado por
Xisto 4.º em 1483 – foi elle quem organisou lodos os tribunaes
da inquisição em Castella , e lhes deu regulamentos e instrucções ;
nas quaes desenvolveu um rigor, que não tem comparação com as
leis mais ferozes dos barbaros ; nem mesmo com as leis de san
gue do tempo de Mario e de Sylla. Elle obrigou o rei Fernando a
expulsar os Judeos e Arabes depois da conquista de Granada. Fez
morrer nos supplicios, nos carceres e no desterro, durante o tempo
do seu infernal ministerio , 114 mil pessoas, cujos bens forão 10
dos confiscados . Forão 16 annos de roubos e de morticinio sem
correctivo. Felippe 2.º, quasi um seculo depois, apezar de o
supplantou
chamarem o demonio do meio dia não ncm
igualou a memoria horrivel do inquisidor Torquemada.
( 2 ) Outro scelerado, como Torquemada, um tal Pedro Ar
bues foi o primeiro inquisidor-mór no Aragão, em 1484 foi
ello quem creou o primeiro tribunal em Saragoça. Arbues e ou
tro collega começarão a celebrar autos de fé com todos os hor
rores, que os acompanhavão . Erão não somente atrozes como
illegaes estas execuções, pois que se fazião sem respeito pelos di
reitos das cortes ( fueros i ) Crescião as fogueiras , e ninguem es
capava ; não erão Conversos, erão Christãos velhos os perseguidos
houve uma reacção -
debalde Arbues se cobrio com uma cota
de malha e capacete ; foi sorprehendido e assassinado dentro do
proprio tribunal. Os conspiradores forào lodos enforcados, de
pois de se lhes ler cortado a mão direita ; com excepção unicá
inente do traidor que denunciou os seus companheiros - este foi
224

martyr da fé ! Embora apparecessem muitas resistencias,


e até motins e revoltas ; tudo foi abafado pela autori
dade civil , e a Inquisição ficou triumphante. Entretanto
desamparados do poder civil, os Christãos novos, apezar
de cruelmente ludibriados pela Curia romana , ainda re
correrão de novo ao papa.
Fiel ao systema que adoptara, Roma lhes abre nova
mente os braços . Todos aquelles que se dirigirão à Pe
nitenciaria apostolica , e poderão pagar a taxa do perilão ,
ou forão absolvidos immediatamente , ou tiverão um
Breve para o serem pelo Ordinario, com prohibição ex
pressa aos inquisidores para não se intrometterem com
elles.
E porém a Côrte de Hespanha e a inquisição re
clamárão, e Roma declarou que taes perdões erão uni
camente para o fôro da consciencia ! Portanto nova e cruel
decepção - 0 ouro gasto em Roma não aproveitou , e os
infelizes Christãos novos forão queimados, ou condem
nados á carcere perpetuo. Ainda Innocencio 8.° offere
ceu aos Christãos novos a perspectiva de novos perdões ,
e elles cahírão no laço , como homens, que tinhão atrás
de si a fogueira ou a sepultura em vida nos carceres da
inquisição. ( A. 11. t . 1 pag. 74.)
Dissemos que muitas familias de Christãos novos, e
de Judeos ainda não convertidos, havião emigrado para
Portugal. Vamos agora dizer o que foi feito dessà pobre
gente , e tambem da conducta da Corte de Roma, que
não desmentio um só momento a sua, politica atroz, va
riavel e insidiosa para tirar proveito, não só dos perse
guidos como dos perseguidores ; fingindo ampliar ou
revogar seus poderes, quando assim convinha , aos inte
resses da Curia ; sempre ardilosa , sempre avára , sempre
faminta e sequiosa de ouro – era o abysmo de Roma,
que tragava a riqueza da Peninsula iberica !

só enforcado sem ter a mão cortada, apezar de se lhe haver pro


mettido a vida . Duzentos individuos, firesumidos cumplices, fu
rào queimados, e numero ainda maior morreu nos carceres da in .
quisição . O mesmo sobrinho do rei foi condemnado a fazer peni
tencii publica. ( Prescott Hist. de Fern . e de Izabel. ) He este
infame assassino , assassinado por sua vez, que vai ser agora
canonisado ! Horresco referens !
923

Origem da inquisição em Portugal


1

Já dissemos que uma grande parte dos Judeos da


Ilespanha, constrangida a abandonar a patria , tinha bus
cado asylo em Portugal. Infelizmente para os Judeos
existião em Portugal as mesmas causas, que derão mo
tivo á sua perseguição no reino visinho -o povo os- de
-

testava pela preponderancia adquirida , de que abusavão


- as leis os favorecião até certo ponto , e disso tiravão
elles partido para augmentar os lucros da sua industria
em todos os ramos da actividade social .
Apenas fallaremos de passagem da matança dos
Christãos novos em Lisboa pela plebe, aculada por dous
frades dominicanos no anno de 1506 em nome da religião
- matança que durou por varios dias , estando el- rei
D. Manoel ausente por causa da peste ; sendo no pri
meiro dia queimados mais de 300 Christãos novos d'en
volta com Christãos velhos ; no segundo mais de mil,
além de milhares de assassinatos dentro das casas , in
vadidas pela plebe. Donzellas e casadas expellidas do
Sanctuario, onde se tinhão refugiado abraçadas com os
Santos, erão prostituidas e depois atiradas ás chammas !
Os Oſticiaes publicos, que procuravão acabar com o mor
ticinio, pondo diques à torrente de atrocidades, esca
pavão a custo pela fuga. / A. II . t . 1 pag . 147 e se
guintes. )
Dera lugar a esta matança uma procissão de peni
tencia , que sahira da igreja de S. Estevão, e se reco
Thera na de S. Domingos, seguindo -se a celebração de
preces solemnes . Houve então quem visse uma luz ao
lado de um crucifixo , e gritara milagre ! Logo espa
Thou-se que aquillo não passava de uma fraude ; mas os
frades, aproveitando a illusão, predispuzerão a imagi
nação do vulgo para a credulidade, fortalecida pelos ter
rores da peste . Achava -se entre o povo um Christão
novo, que teve a imprudencia de manifestar a sua in
credulidade acerca do supposto milagre - a indignação
dos fanaticos, excitada pelos autores da fraude , commu
29
226

nicou -se a multidão ; o miseravel foi logo arrastado, as


sassinado e queimado !
O tumulto attrahio maior concurso , cujo fanatismo era
excitado por um frade ; e depois sahírão mais dous do
convento armados, um de uma cruz, e o outro de um
>

crucifixo, á imitação de S. Domingos no ataque de Be


ziers e de Carcassona, bradando heresiu, heresiu ! 0
rugido do tigre popular não tardou a reboar por toda a
cidade Os Christãos novos erão arrastados semi - vivos
para as fogueiras improvisadas no Rocio como nas ribei
ras do Tejo. Os dous frades enfurecião as turbas com
seus brados queimai- os, queimai- os ! ! Passarão de
dous mil os queimados nessas fogueiras, e de quatro mil
os assassinados por differentes modos nas casas de Lis
boa e dos arrabaldes.
Finalmente a matanca serenou , quando já não havia
alfaias que roubar, mulheres que prostituir, sangue que
verter ; e os filhos de S. Domingos, recolhendo - se ao seu
antro , ião repousar das fadigas daquelle dia ! Mas el-rei
D. Manoel não perdoou esse attentado cincoenta dos
cubeças forão enforcudos, e os dous frades açuladores
forão presos, processados, privados das ordens, e de
pois garrotiudos e queimatlos. Os outros Dominicanos
forão expulsos do convento de Lisboa ; o qual foi entre
gue á administração dos clerigos seculares, sendo inhi
bidos aquelles frades de tornarem a capital .
Este facto prova o que forão sempre os frades domi
nicos ; isto he, quando não havia ainda um tribunal estabe
lecido em Lisboa , elles fazião a inquisição por sua conta ;
e que longe de cumplicidade da autoridade civil , foi ella
implacavel com os assassinos frades e leigos . Era a he
rança de S. Domingos, que seus filhos recolhião em Por
tugal - erão as fogueiras de Carcassona e de Tolosa, que
revivião nas praças de Lisboa, muito antes de haver uma
inquisição legal ou official!
D. Manoel quiz então assegurar a sorte dos Chris
tãos novos , promulgando varios decretos a seu favor ;
mas esta graça não durou muito, e foi o mesmo D. Ma
noel o primeiro a solicitar do papa uma bulla para a
creação de um tribunal da inquisição, em tudo seme
Ihante ao da Hespanha. Este pedido, porém , não teve ef
9,27

feito , ou por que melhor aconselhado, o proprio rei o ti


vesse retirado, ou porque os Judeos o podessem obstar
em Roma por meio do seu dinheiro. O certo he que até
a morte de D. Manoel não foi perturbada a tranquillidade
dos conversos . Mas isso era apenas uma calma appa
rente ; não tardava o dia , em que toldados os horisontes,
desceria do Céo o raio , que devia ſulminar a l'aça pros
cripta .
Morto D. Manoel, succedeu no throno seu filho mais
velho D. João em 1521 , com menos de 20 annos de
idade. Tido como imbecil, durante o reinado de D.
João 3.º prevalecerão as questões fradescas. Por igno
rancia ou por vicio de educação o novo rei não passava
de um fanatico : -a intolerancia era o seu caracter prin
cipal . lle claro pois que o seu primeiro empenho fosse
a creação da inquisição em Portugal.
A resistencia porém dos christãos novos foi longa e
tenaz ; todavia a vontade inabalavel do rei lutou por mais
de vinte annos e venceu . Por timo dominio absoluto
do potro, da polé e da fogueira , estabeleceu -se incon
trastavelmente na região das crenças religiosas, preva
lecendo sobre a Doutrina evangelica da tolerancia e da
liberdade de consciencia .
Estado politico e moral de Portugal - D. João 3.º ti
nha tanto de fanatico como de devasso ; e o Sr. padre
Campos sabe perfeitamente que quanto mais devasso mais
fanatico ou mais hypocrita. A corte do novo rei o acompa
nhava em todas as aberrações da sua vida ; o clero fomen
tava a exaltação religiosa do rei : o estado da moral publi
ca era deploravel ( A. II . t . 1. pag . 184 )
Os vexames e abusos da administração da justiça
praticavão -se em todas as instancias, tanto no foro se
cular como no ecclesiastico. O reino estava cheio de
vadios, que vivião opulentamente sem se saber como .
O luxo era desenfreado - o vicio do jogo predominava em
todas as classes com as suas falaes consequencias de rou
bos , discordias e miserias domesticas ( A. II . idem ) .
Na ordem ecclesiastica prevalecia a mesma desor
-

dem : -os bispos não cumprião suas obrigações . Co


mião -se os dizimos e rendas, e ao povo faltavku os offi
cios divinos e os sacramentos. As visitas dos Prelados
28

não tinhão por fim instruir o povo, e reformar os cos


tumes, ou prover ao culto ; mas scmente extorquir di
nheiro . O abuso dos interdictos era intoleravel.
Os chamados Juizes apostolicos especiaes , obtidos
de Roma á custo de dinheiro, erão um dos maiores fla
gelos, constituindo -se assim, frades e clerigos immoraes e
ignorantes, em magistrados nos dous foros, cujas causas
avocavão a seu arbitrio . No meio de tudo isto, porém ,
sobresahia a má vontade contra a raça hebrea . ( A.
H. Id . )
11

Pelo que fica dito he de primeira intuição, que a


exaltação religiosa anda sempre de parçaria com a
devassidão , com a crapula , com a luxuria, com o roubo,
com o assassinato , e com tudo quanto ha de mais abo
minavel entre os homens. Essa sociedade porlu
gueza , como a pinta A. Herculano com as cores mais
vivas do que nós, por que apenas fazemos delle um
resumido extracto , era o retrato do rei, da sua Corte,
dos seus validos , do clero em geral, e de toda a so
ciedade , sem exceptuar as familias principaes, e muito
menos o baixo povo.
Que muito era que o fanatismo religioso fizesse proe
zas nesse paiz ? Os pecados da feitiçaria assossiavão - se
aos do Judaismo - viagens aerias nas azas dos demonios,
bodes volantes, phantasmas, ubiquidade ados bruxos
tudo isto foi demonstrado , provado e crido ; porque os
tractos materiaes dados às victimas obrigavão -nas a in :
ventar absurdos taes para satisfazer aos inquisidores. e
justificar a inquisição.
A esse odio implacavel contra os christãos novos veio
juntar - se o da nova rainha, neta de Fernando, que des
de a infancia se tinha acostumado a considerar a inqui
sição como um tribunal indispensavel para a manutenção
da fé. Com ella vierão de Castella varios Dominicanos
para ajudar os seus confrades a apressar a hora da vingan
ça pela morte dos dous collegas , que insuflarão os tu
multos de 1506 em Lisboa . Não se faz idéa dos absur
dos , que então se inventarão contra os christãos novos ;
nem dos aleives para augmentar ainda mais , se fosse
229

possivel, o odio da população e do rei contra a raça


proscripta.
Um facto , enlre mil, provará mais que muito o es
tado precario dos conversos , Uma imagem da Virgem ,
venerada em Gouvêa , appareceu um dia ultrajada. Ti
rou-se devassa , e já se sabe, que esse escandalo foi logo
attribuido aos christãos novos ; tres dos quaes forão im
mediatamente presos e remeitidos para a Corte.
Fez -se -lhes processo , e não faltarão testemunhas, duas
das quaes , Richarle Ilenriques e um tal Barbuda, jurarào
de vista contra os reos . Forão por tanto estes condem
nados a pena de fogo , e morrerão abraçados com um
crucifixo , invocando o nome de Christo entre as chamas
até o ultimo suspiro.
Passados tempos brigarão entre si Richarte e Bar
buda , e aquelle acusou a este de ter sido quem commette
ra o desacato, quebrando a imagem da Virgem ; e então
declarara , que todas as testemunhas da acusação erão
falsas, e que os tres conversos queimados erão innocentes
e assim se explicou o facto de terem os ditos conver
sos morrido abraçados com a imagem de Christo , invo
cando o seu santo nome até o ultimo alento .
Barbuda foi preso, mas derão -lhe escapula em Liz
bca , e abafou-se o negocio por causa do comprometti
mento de grande numero de testemunhas. Pois bem ,
esse facto, ou esse escandalo , longe de modificar a op
pinião, irritou mais os animos ; e dahi por diante forão
ainda mais atrozes as denuncias , os processos, e as fo
gueiras . E quando não bastavão á perversidade da ple .
be e do Clero esses patibulos e execuções morosas por
causa dos termos dos processos , a perseguição fasia -se
por meio de continuas scenas de anarquia ( A. II . 1. 1 .
pag. 192. )
Finalmente em 1531 resolveo D. João 3.º mandar pedir
ao papa uma bulla para crear a inquisição em Portugal.
Dadas as instrucções ao Embaixador muito em segredo
para obter a bulla , com as mesmas condições da inqui
sição da Hespanha, derão - se os primeiros passos junto
de Clemente 7.0-mas o negocio achou em Romamui
tas dificuldades da parte de alguns Cardeaes,
E porém , vencidas essas diſiculdades, expedio-se a bul
230

la de 17 de Desembro de 1531 , nomeando inquisidor geral


para Portugal a Fr. Diogo da Silva , com as faculdades
precizas para desempenhar o mesmo cargo como na
Hespanha. Diz A. Ilerculano, que todos os fundamentos
desta bulla erão falsos, capciosos e indignos do seculo
de Leão X.
Conseguida a bulla , pedio D. João 3.º instrucções á
inquisição de Sevilha ; mas esta apenas consentio que os
mensageiros do rei examinassem alguns processos, e
vissem como se procedia naquelle tribunal. D. João 3.0
queria faser escandalo , que desse nas vistas ao começar
a caçada , que se propunha dos infelizes christãos novos ;
e para isto preparou- se com muitas informações e notas
alim de encetar o novo sistema com a derogação de todos
os privilegios e garantias concedidas anteriormente as
mesmas victimas, que pretendia imolar. Com effeilo,
tudo foi derogado , e os Cristãos novos reduzidos á condi
cão de 1499
Entretanto havia em Roma uma opinião acerca da
inquisição pedida para Portugal , e era de qne á som
bra da religião D. João 3.0 só tinha por incentivo a
idéa de expoliar os Judeos , que constituião a classe mais
opulenta do paiz . Pois bem , a lei de 14 de Junho pare
cia só ter por alvo justificar aquella opinião.
Não era de admirar ouvir então dizer-se em um auto
publico -aimpia lei do Sinai - para deprimir os Judeos ,
e tratar de impio, civado de erros e blasfemias o velho
testamento. Tudo revelava o odio implacavel do rei e
de toda a gente que o cercava-e os Christãos novos
não o ignoravão ! Que triste e lamentavel situação !!
A fuga era quasi impossivel , e alguns, que a tenta
rão , forão tratados com tal barbaridade, que para elles
cifrava -se a perspectiva do futuro na morte e sò na mor
te . Appellar para o rei era loucura , porque o que po
dião esperar de quem , calumniando à religião , havia
condemnado em nome della todas as ideias da moral e
dc direito ? Lembrarão se então de appellar para o papa ;
mas temião irritar o rei , oppondo-lhe esse obstaculo.
E o que fazer ! quando a demora somente da crea
ção do tribunal, depois de conhecida a bulla, foi causa
para novas perseguições, e scenas atrozes como a de
231

Gouvêa ? Não era só o fanatismo , que instigava a plebe ,


mas tambem o roubo e a devassidão -violar uma don
zella , e atiral-a depois á uma fogueira, era tudo isto um
acto meritorio ! (A. H.)
Nesta cruel incertesa , e na recrudescencia da perse
guição popular , os conversos não tiverão outro remedio
senão recorrer ao papa . Com este fim enviarão a Roma
um christão novo , chamado Duarte da Paz , que havia
servido n’Africa, e era cavalleiro da Ordem de Christo ,
homem generoso no trato , audaz, astucioso , eloquente e
activo .
Elrei lhe dera uma commissão , mas logo que se
vio fóra do reino, seguio para Roma , onde föra advogar
a causa dos Conversos , posto que não abertamente como
seu procurador. Clemente 7. tambem enviara um novo
Nuncio a Portugal ; e D. João 3.º tratou de mudar o seu
Embaixador, e de mandar para Roma pessoa idonea para
sustentar a luta já travada entre elle e seus subitos de
raça hebrea.
III

A intenção da Côrte de Roma, mandando para Por


tugal o bispo de Sinigaglia como Nuncio, era negociar
tanto com o numeroso e opulento grupo, que invocava a
tolerancia , como com o bando dos fanaticos, que pro
clamava a perseguição , inclinando -se ora para um , ora
para outro lado . O Nuncio poz em pratica essa politica,
começando por grangear os interesses da sua Côrte sem
esquecer os proprios. O que refere Alexandre Hercu
lano a este respeito he horroroso - ambos os partidos ou
grupos forão assolados em nome da religião e da tole
rancia, ou em nome do fanatismo e da perseguição.
Os pactos illicitos e simoniacos celebravão - se em
casa do proprio Nuncio , sem o menor receio do resul
tado . Foi nesse homem que os Christãos novos come
çarão a achar favor ; mas foi isso por algum tempo com
tal fingimento , e tal arte, que parecia não inclinar - se
nem para um nem para outro lado . Entretanto Duarte
da Paz adiantava em Roma as suas negociações afim
de evitar o cumprimento da bulla de 17 de Dezembro,
ou pelo menos a sua suspenção por tempo indefinido .
232

Com effeito, taes forão as representações, que aſinal.


por um Breve, de 17 de Outubro de 1532 , expedido ao
Nuncio Sinigaglia, mandou Clemente 7.", que ficassem
suspensos os effeitos da bulla de 17 de Dezembro do
anno anterior, prohibindo que as autoridades procedes
sem por modo excepcional contra os Conversos.
D. João 3.º recebeo mal o Breve, e queixou -se para
Roma, donde lhe responderão, que aquella medida cru
so por emquanto sem suspenção absoluta. Continuou
por tanto a luta em Roma entre Duarte da Paz , procu
rador dos Conversos, e o Cardeal Sintiquatro procurador
dos fanaticos, ou nos interesses de D. João 3.0 .
A suspensão , porem , do tribunal da inquisição era
apenas um alivio temporario para os Conversos ; que en
trctanto obtiverão, em 7 de Abril, uma bulla de perdão
para mais encorajal-os. Novas queixas de D. João 3.0 ;
nova resposta paliativa de Roma atim de contental- o.
Nesse mesmo tempo mandava o papa dizer ao bis
po de Sinigaglia , que levasse a effeito à bulla de 7 de
Abril sobre os perdões ; mas a chegada do bispo de Fun
chal, como Embaixador do rei junto ao papa, cos meios
de quc elle se servio para tornar propicias algumas influ
encias poderosas da Curia , fizeram com que Clemente 7.0
cedesse da sua parte, fazendo expedir dous Breves, com
a data de 18 de Dezembro de 1533 : 0 1. ° ao Nuncio
para que suspendesse a execução da bulla de 7 de Abril
sobre os perilões, e de outros mandados apostolicos
0 2. ° a el- rei avisando - o da resolução tomada .
Sem embargo, instava D. João 3.º pela execução
difinitiva da bulla , que creará a inquisição ; e os memo
riaes se repettião , e as instancias se multiplicavão, em
quanto o papa por sua parte ouvia os mais distinctos
theologos e Doutores mais sabios daquelle tempo ; e
acabou por ordenar a el -rei mui severamente , que
xasse de por obstaculos á bulla de 7 de Abril . A vista
desta resolução a causa da tolerancia parecia haver tri
umphado- embora se acreditasse em Portugal, que essa
victoria tivesse custado aos Christãos novos grandes sa
crificios pecuniarios .
Não afrouxarão os procuradores do rei , nem o seo
Embaixador, nem o Cardeal Santiqnatro . A primeira
233

ponderação era contra o mao efeito da bulla de 7 de A


bril em Portugal; a segunda era pelas funestas conse
quencias da suspenção da bulla de 17 de Dezembro de
1531 ; e finalmente pelo descredito da propria Curia , ar
guida de venalidade em todo esse procedimento, e mui
tas outras considerações religiosas, que poderião agravar a
situação da igreja , se não tivesse um meio de sahir dos
embaraços, em que se achava quanto á fé. Tudo porem
era debalde contra a resistencia do papa e da Curia .
Nestas circumstancias escrevia a el - rei D. llenri
que de Menezes, seu embaixador em Roma, referindo um
conselho do Cardeal Santiquatro -- « O que diz Santiqua
« tro he que o não levem estes Judeos tão saboroso , e
« que lhes dêem penitencia de vinte ou trinta mil cru
á salos, ou os que V. A. houver por bem , e que parlaes
a com o papa para súas necessidades, o que diz que V.
« A. não tem cumprido em muitas cousas, em que as
C

é o papá teve ) . ( A. II . t . 2. pag , 48 ) .


O proprio Santiquatro tambem escreveu a el rei, u
he provavel que repetisse o conselho. Era pôr em con
tribuição os Christãos novos por dous lados, por um a favor
da tolerancia, e directamente para com elles ; e por ou
Tro como uma promessa vaga para o futuro a favor de
seus perseguidores ! Ah ! Roma ! ninho de viboras !
Em summa dizia D. Henrique « le Menezes a el-rei que
em Roma o que se queria era dinheiro ; e tanto era as
sim que os proprios Conselheiros de D. João 3.º disião
geralmente , que a benevolencia da Curia para com os
Christãos novos não cra gratuita , co proprio papa nào
estava isento de taes suspeitas.
Entretanto o Breve de 2 de Abril de 1534 veio ate
nuar um pouco as queixas de D. João 3.º, promettendo
lhe ouvir todas as suas reppresentações a respeito dos
Conversos. Mas tal era já o estado da descrença em
Portugal acerca das cousas de Roma , que esse Breve
foi reputado como simples paliativo , pois que o resulta
do devia ser nullo ou insignificante.
Apezar de tudo os Conversos portuguezes vivião no
meio da perseguição mais desabrida. Quando lhes pa
recia que raiava para elles o dia da redempção novas
maquinações , novos martirios lhes preparava o fanatis
30
234

mo nas trevas. Os tribunaes civis e ecclessiasticos erão


outras tantas inquisições .
Delatados e presos, seus bens erão logo postos em
almoeda . Reduzidos a ultima pobreza , maltratados pe
los esbirros , espiravão muitas vezes antes de uma sen
tença . Erão o roubo e o assassinato de mãos dadas ,
com menoscabo das doutrinas da religião-era o căhos
em lugar da luz do Evangelho.
Clemente 7.º estava muito doente , tanto que mor
reu no mez de Setembro do mesmo anno de 1534. Nes
sa situação angustiada do seu espirito fez expedir um
Breve em 26 de Julho, mandando vigorar a bulla de 7
de Abril do anno anterior, e estatuindo a forma da sua
publicação , de maneira que D. João 3. °, nem seus mi
nistros, podesse pôr estorvos, e fulminando censuras mui
graves para dom ar todas as resistencias.
Morto Clemente, subio ao solio pontificio Paulo 3.º,
que foi logo nomeando Cardeaes a dous de seus netos, de
12 a 15 annos de idade . Todos os esforços do Embai
xador e agente do rei de Portugal forão dirigidos a
pessoa do novo papa , antes que podesse contrahir com
promissos com os protectores dos Christãos novos .
IV

O resultado de taes esforços foi que Paulo 3.º man


dou sobreestar na execução da Bolla de 7 de Abril de
1533 , dando por de nenhum effeito o ultimo Breve de
Clemente de 26 de Julho de 1534. Finalmente D. João
3. • já consentia no perdão até alli , mas solicitava a exe
cução da Bulla de 17 de Dezembro de 1531 .
O Cardeal Santiquatro , que se dizia a soldo de D.
João 3.º, fazia de sua parte , e com os seus collegas , tu
dos os esforços para que triumphassem os desejos do seu
protegido . Um Breve pois foi enviado a D. João 3.º , em
que o papa lhe remettia as minutas de algumas resolu
ções ultimamente tomadas a favor da pretenção do rei,
e o admoestava que se contentasse com as modificações
propostas, unicas compativeis com a dignidade da Coroa
portugueza, e com a honra da mesma Sé apostolica .
Era occasião opportuna, diz A. Herculano, para
235

um acto de dobrez, e a Curia romana aproveitou - o. Pe


lo mesmo Correio , e por ventura junto a copia daquellas
minutas enviadas a el-rei , escrevia -se ao Nuncio dizendo
lhe que o papa, cingindo - se ao parecer dos commissa
rios havia indefferido as pretenções dos agentes de Por
tugal ; e por isso se lhe ordenava desse inteira execução
á bulla de 7 de Abril, considerando como nullo o Breve
pelo qual tinhão sido suspensos os seus effeitos !
D. João 3.0 ficou tão irritado, que fulminou as pe
nas mais graves contra os Christãos novos , que mandas
sem dinheiro para Roma — medida baldada, pois os Ju
deos erio os unicos naquelles tempos, que fazião o mo
vimento de fundos para todos os paizes, é o proprio rei
era obrigado a servir-se delles para tambem mandar di
nheiro para Roma .
A luta era pois sustentada pelo lado dos Conver
sos por Duarte da Paz e alguns Cardeaes, que o pro
tegião ; e pelo lado de D. João 3.º pelo arcebispo de
Funchal D. Martinho, por D. Henrique de Menezes, seus
Embaixadores, e pelo Cardeal Santiquatro protector das
pretenções do rei. Nesta conjunctura queixava-se D.
Henrique da importancia , que na Curia romana se dava
a Duarte da Paz, consentindo que fosse competidor n'uma
questão entre Principes . a Mas estes , accrescentava D.
Henrique, alludindo aos Cardeaes, não são Principes
nem são nada ; são mercadores e bufurinheiros, que não
valem trez pretos (1 ) ; homens sem educação , a quem só
move o medo ou o interesse temporal , por que o espiri
tual he cousa de que não curão, )
Finalmente os Conversos de Portugal offerecerão ao
papa por meio do nuncio Sinigaglia trinta mil Ducados,
se quizesse revogar a bulla de 17 de Dezembro de 1531,
que criou a inquisição ; ou fazer nella algumas modifi
cações, isentando os acusados da pena de confisco por
12 annos, e deixando -os livres para sahirem de Portu
gal com seus bens sem o menor embaraço ; e outras
modificações afim de impedir, que forçando -os a perma
necer no paiz, fossem expoliados por meio da nova in

(1) Reaes prelos, mooda de cobre miuda, que então corria


em Portugal .
236

quisição ou por outro qualquer arbitrio do poder civil


ou ecclesiastico .
Quando isto se soube cm Portugal, D. João 3.º foi
as nuvens, e então investio contra Roma, ordenando as
maiores atrocidades contra os Conversos em menoscabo
do ultimo Breve , mandando executar a bulla de 7 de
Abril , e contra todas as ordens da Curia Romana. O pa
pa porem não deixou sem resposta esse procedimento de
D João 3.º, e por um Breve declarou, que as accusaçã
es de Judaismo , feitas contra os Conversos de Portugal ,
crão inventos de seus inimigos ; que os processos contra
os pais, filhos, parentes, e até contra os advogados (coma
fautores e protectores de hereges) era tudo um abuso
que o papa prevenia , mandando que qualquer pessoa po
desse advogar a causa dos Conversos ; que estes tives
sem a liberdade de nomear por seus advogados quem
bem lhes parecesse ; sem que a ninguem fosse licita
perseguil-os com pretexto algum , nem obstar -lhes a sa
-

hida de Portugal, tudo sob pena de excommunhão.


D. João 3.º recuou , e para remediar em parte a sua
falta , tratou de encetar novas negociações diplomaticas
com a Côrte de Roma . O papa reduzio a termos sim
ples as ultimas condições, que propunha para uma tran
sação definitiva , quasi como se achavão no postulado dos
Conversos , offertando os 30 mil ducados ; e era a conces
são de um perdão geral aos Conversos , tanto presos co
mo soltos , dando - se - lhes o espaço de um anno para sa:
birem do reino ; estabelecendo -se depois a inquisição,
com todas as clausulas, que se quisessem. Está claro ,
que essas condições não forão aceitas em Portugal; e el
rei mandou novas instrucções aos seus Embaixadores em
Roma para renovarem uma contenda ja terminada e de
batida até a saciedade .
Fez - se de novo valer o privilegio do fanatismo e da
hypocrisia, que se manifestavão em rugidos de colera até
do alto do pulpito, onde ner era respeitada a Sé apostoli.
ca. Então aconselhava D. Martinho , um dos Embaixado
res do rei , que sendo necessarie remover de Roma o mai
or obstaculo, que se oppunha ás negociações , isto he,
Duarte da Paz, pedia o Prelado que el- rei procurasse attra
hil- o a si por qualquer modo, ou que o mandasse (Is
237

sassinar !! ( 1. t. 2 , pag. 129,)porque tinha sabido


obter o favor da Curia. Então disia o arcebispo de Fun
chal , que os agentes portugueses poderião travar-se de
razões com elle e malal- e .
Essa reluctancia da Corte de Portugal deu seu fruc
to ordinario ; e uma nova bulla , revalidando a de 7 de
Abril de 1533, com as modificações, que o decurso do
tempo aconselhava, pôz os Conversos em situação de ob
terem o beneficio do perdão, cessando todos os processos
por crime de heresia. Ja se sabe - o papa fulminava os
raios da igreja contra os que se oppusessem á execução
dos seus mandados. Esta bulla era de accordo com o
Embaixador portuguez D. Martinho ; mas com ignorancia
completa do seu companheiro D. Henrique de Menezes.
A bulla de 18 de Outubro apareceo em fim em Portu
gal , causando grande sensação na Corte , e entre o pro
prio pove .
D. João 3.º empenhou seu cunhado o Imperador
Carlos 5.", que se achava em Napoles, para conseguir
do papa a revogação da bulla de 12 de Outubro. Carlos
5.° escreven directamente ao filho do papa Pier Ludovico
sobre este assumpto ; mas o papa respondeu , que cede
ria aos dous Monarchas em outras condições menos na
lo perdão -- sen filho disse a mesma cousa .
Enli elanto Duarte da Paz , que acabava de estar com
o papa , quasi a sua vista recebeu de mãos de um agres
sor desconhecido 14 punbaladas ; mas o precavido con
verso não se esquecen nunca que vivia em Roma , e por
debaixo Jas vestiduras trazia cota de figa tempera . Ac.
cusado desse assassinato D. João 3.º , respondeu que
isso era effeito de uma vingança particular, porque se
fosse por sua orilem Duarte da Paz não teria escapado .
Esse attentado amedrontou Duarte da Paz , e lhe
cerceou a energia. Todavia não era esse o motivo prin
cipal, que devia empeiorar a causa dos Christãos novos,
mas a sua avareza . Retirando - se para Roma o Nuncio
Sinigaglia exigio dos Chefes bebreos de Portugal a som.
ma ajustada por contrato , e que se achava ganha em
virtude da bolla de 12 de Outubro de 1535 ; mas os Con
versos recusavão pagal- a sob diversos pretextos, sendo
um delles não haver promessa escripta e assignada pelos ,
238

ditos chefes ; nem ler lido nunca Duarte da Paz autorisa -


ção por escripto para semelhante contrato ou promessa .
Finalmente alguns Conversos de Santarem promet
teram cinco mil Ducados, mas em quanto o Nuncio pro
eurava letras de cambio para Roma, soube-o cl-rei, e
obstou a que se verificasse a simonia , ameaçando os
Christãos novos com as scenas horrorosas de 1506. O
resultado foi qne uma nova bulla de 23 de Maio de 1536
instituio definitivamente a inquisição em Portugal, anul
lando - se virtualmente os effeitos da de 12 de Outubro do
anno anterior .
A este procedimento da Curia romana seguio -se,
como era de esperar, um monitorio do bispo de Ceuta
como inquisidor-mor, em que erão tantos, e alguns tão
ridiculos, os actos que devião servir de indicio de he
resia, que ninguem poderia escapar de ser accusado por
erros de fé, quanto mais aquelles já marcados pela sus
peita de Judaismo.
V

Entre outros muitos casos são notados como erros de


fé, e portanto devião ser denunciados dentro de 30 dias
à inquisição, os seguintes- « O modo de matar as rezes
ou as aves- o provar o fio das facas ou culelos na unha
da mão - o não comer certas variedades de carne ou de
peisema altura das mezas , em que se lomavão as re
feições -- a natureza das mesmas refeições - o lugar do
aposenlo onde se estava por occasião da morte de qual
quer iudividuo - o pôrem os pais as mãos sobre a cabe
-

ça ou no rosto dos filhos - o renovar as torcidas dos


candieiros , ou limpal - os á sexta - feira . -Tambem cum
pria delattar, sob pena de excommunhão, os que an
dassem de noute como as bruxas, ou como os feiticei
ros em companhia do demonio ; ou que chamassem por
este para o haverem de interrogar acerca dos successos
futuros » ( A. H. t . 2. pag . 172. )
As provisões do inquisidor-mór viciarão logo a bul
la de 23 de Maio , e tornarão contradictorias as resolu
ções pontificias. A bulla de 12 de Outubro ficou lellra
morta. Sem embargo , no juizo insuspeito dos Christãos
novos o inquisidor -mór era lido como homem honesto e
2:39

moderado : para o que muito concorrerão os conselhos


do Infante D. Luiz , principe intelligente e energico .
Não afrouxarão os Conversos ; e tendo- se retira
do de Roma Carlos 5. ° e os dous Embaixadores por
luguezes, dirigirão ao papa novas supplicas . Paulo 3 .
ouvio alguns Cardeaes, que o convencerão de que a bul.
la de 23 de Maio devia ser modificada . Debalde San
tiquatro forcejava por desvanecer os remorsos do Pon
tifice, este por fim confessou em phrases grosseiras,
mas sinceras , haver sido illudido .
Nesta situação a Côrte pontificia resolveu enviar
um novo Nuncio a Portugal , e foi escolhido o Protonota
rio Jeronimo Ricenati Capodiferro ; assim como ja era
encarregado de negocios de Portugal em Roma Pedro
de Souza Tavora . Trazia o novo Nuncio a missão de
satisfazer os clamores dos Christãos novos. Era a in
termitencia da febre fanatica , que cedia aos sudori
ficos metalicos , porque passavão os Christãos novos,
ou as sangrias copiosas , que os debilita vão no interesse
da Curia romana .
Eis ahi como A. IIerculano explica essas pha
zes contraditorias da politica dos papas. Concedido a
principio o terrivel tribunal da inquisição, fôra suspen
so à força das diligencias e do ouro dos Conversos . Con
cedido de novo por conveniencias politicas , e por que os
Christãos novos se mostrarão remissos em cumprir os
contratos pecuniarios feitos com Sinigaglia, o papa mos
trava -se cheio de remorsos , porque os Christãos novos
entendião melhor os seus interesses agora ; portanto
voltåva Roma as Doutrinas evangelicas da caridade , da
tolerancia e da justiça, promulgadas pelo filho de Deus á
face do universo . Dir - se -hia que Roma , com o dedo no
pulso da genta hebrea, The calculava os alentos para ,
sem deixar de alimentar-se do seu sangue, não a redusir
a inutil cadaver. ( t . 2. pag . 193. )
Uma Junta lôra pois nomeada pelo papa para rever
a bulla de 1536 – todo o anno de 1538 passou -se nessa
revisão e em consultas . Entretanto o novo Nuncio Capo
diferro libertava ou absolvia por dinheiro todos os con
demnados pela inquisição ; e era tal o escandalo , que D.
João 3.º se queixou delle ao papa ---mas em Roma fazia
010

se a mesma c01153. Chovião os Breves de Roma por di


wheiro ; chovião os perdões e as dispensas. Os preços
variavão na razão inversa (la influencia da pessoa, que
solicitava o despacho. Com isto se justificava o Nuncio,
exagerando o espirito interesseiro da Corte de Roma
D. João 3.0, que lioha outros negocios a tratar com a
Curia Romana, enviou como Embaixador a D. Pedro Mas .
carenhas. Era um dos principaes fins da missão de D.
Pedro evitar a imposição de duas decimas nas rendas
ecclesiasticas do reino ; porqne apezar do seu zelo pela
religião, el-lei combatia sempre com energia as extor
sões da Curia. Ao chegar a Roma, observou D. Pedro ,
que preponderavão nos conselhos do papa os adversarios
da inquisiçãú ; por tanto começou elle por ver se res
tabelecia o equilibrio, espelindo alguns dos contrarios
por meios suasorios e sonantes ,
Entretanto um acontecimento veio exacerbar de no .
vo a luta . Era em Fevereiro de 1539, quando appare
ceu afixada nas portas de todas as igrejas de Lisboa uma
piroclamação dizendo, que o christianismo era um em
buste , è annunciava - se a vinda do verdadeiro Messias.
Apezar do ridiculo desta farça, a agitação foi geral - el
rei promettia dez mil crusados a quem declarasse o au
tor de semelhante blasphemia. Emlim descobriu -se, que
era um Christão novo fanatico pela lei de Moysés - leva
do á inquisição, morren queimado, declarando sempre
até pos tormentos que não tinha complices.
Este acontecimento , porem , exigia duas providen
cias -a primeira era um inquisidor -mór mais energico
que o bispo de Ceula . Com effeilo, um tribunal, cujas
abobadas não resoassem de continuo com os grilos dos
atormentados, e onde a polée o potro jasessein no pó
como esquecidos, erão cousas monstruosas aos olhos
dos fanaticos. A segunda era obter do papa maior ar
bitrio para os inquisidores.
Para a primeira proveu el-rei, nomeando seu irmão
o infante D. Henrique, metropolita bracarense , mancebo
de 27 annos de idade , e de conducta depravada, pois
sabia a hypocrisia daquelle lempo conciliar as demons
trações do zelo religioso com a quebra de todas as leis
da decencia c da disciplina ecclesiastica (A. II. ;..
241

pag . 212.) Para obter a segunda providencia derão-se as


ordens necessarias a Pedro Mascarenhas Embaixador em
Roma .
Com o fim de obter do papa mais exempção para os
inquisidores , assim como a approvação da nomeação do
Infante D. Henrique para inquisidor -mór, visto que os
Canones exigião 40 annos de idade para o cargo, e elle
tinha apenas 27 , el - rei cedeu da contribuição das duas
decimas sobre o rendimento da igreja lusitana a favor do
Papa ; com tanto que alguma cousa revertesse para o fis
co. (Tudo isto he abominavel , mas muito catholico no
sentir do Sr. Padre Campos . )
E demais, acrescenia A. Herculano, convencido o
Embaixador, que onde reina a venalidade , só a corrup
ção pode dar triumpho, empregava os meios para com
prar a todos e a tudo. Nem a propria reputação dos
Cardeaes Simonetta e Ghinucci, cuja probidade severa
excluia qualquer esperança , o fez recuar.
A influencia desses prelados, inimigos acerrimos das
preltenções de D. João 3.º, era o que D. Pedro mais te
mia . Simoneta resistiu a primeira proposta, mas cedeu
por fim -era um velho respeitavel. lla o quer que se
ja de inſernal nas ironicas desculpas , com que D. Pedro
Nascarenhas narra ao seu rei a prostituição daquellas
cans ! « o que fiz, diz elle, não se toma em Roma por
maldade , nem se estranha, porque lie o costume da terra !
Não me espanta , continua , o valimento que aqui teve
Duarle da Paz , tendo -lhes dado a comer tantos crusa
dos e portuguczes. » ( 1)
A primeira medida do novo inquisidor mör , o In
fante D. Henrique, foi nomear novos membros para o
conselho da inquisição, sendo um delles Fr. João Soares,
de quem se dizia de Roma , que era frade de poucas let
tras mas de grande audacia e ambição ; homem perigoso
e de vida dissoluta.
Travou -se logo conflicto entre o Infante D. Henrique
e o Nuncio Capodiſerro ; el - rei sentio-se agravado na
pessoa de seo irmão, e mandou pedir ao papa a revoca
ção do Nuncio . Outra grande luta em Roma-Paulo - 3.º,
( 1 ) 0 Portugnez era uma moeda d'ouro daquelle tempo.
31
242

cedendo umas vezes , parecia inclinar - se a fazer algumas


concessões ; mas logo voltava a sua persistencia, e se
queixava da falta de consideração em Portugal para com
a Santa Sé .
Para essas concessões exigia o papa tres cousas :
1.aа que o Infante fosse demittido do cargo de inquisidor
-2.a que se fixasse de um modo positivo o recurso para
Roma -3.a finalmente , que se communicassem aos réos
os pomes das testemunbas de accusação . O Embaixador
aceitou estas condições para transmillil-as a Portugal.
Entretanto o papa não conseptia na revocação do Nuncio ;
e todas as suas concessões erão sob a condição de que o
Nuncio continuaria a sua missão em Lisboa.

VI

Em quanto Paulo 3.º transigia de certo modo com


D. Pedro Mascarenbas, os Conversos conseguirão uma
bulla secreta , pela qual os confiscos, nos crimes reli
giosos , ficavão perpetuamente abolidos . Outra bulla acau
ielava os interesses dos Conversos , e lhes dava garan
tias contra os processos da inquisição.
Esta bulla era uma victoria , que a tolerancia alcan
çava , embora tivesse custado rios de dinheiro-lal era
o estado da contenda nos fins de 1539. Depois veremos
como esta victoria dos perseguidos não passava de um
clarão fugitivo, de uma vāa esperança, que a má fe du
Corte de Roma (A. II.) dentro de pouco tempo ia tornar
inutil , perdendo-se assim lantos esforços e sacrificios.
Já não era Duarte da Paz o procurador dos Conver
sos, mas um doutor Diogo Antonio , unido a outros Con
versos, que o ajudavão em Roma . A astucia de D. Pedro
Mascarenhas conseguio afinal a revocação do Nuncio ; 0
qual sahindo de Porlugal, não publicou a bulla em fa
vor dos Conversos , deixando - os assim em peiores cir
cumstancias que d'antes .
Qual foi a causa de semelhante procedimento em um
homem , que antes protegia os christãos novos, e tantos
lucros tirara daquella protecção ? Soube -sedepois que fora
uma questão de dinheiro. O Nuncio queria que lhe pa
243

gassem em Lisboa o que já havia custado muito dinheiro


em Roma .
Em todo o anno de 1540 continua a luta em Roma
a meiado do apno torna a balança a inclinar-se para
o lado dos Conversos ; mas esta inclinação não durou
muito, apesar da retirada de D. Pedro Mascarenhas de
Roma , o inimigo mais implacavel dos christãos novos ,
Ficou adiada a questão sobre o Infante D. Henrique, que
continuou no exercicio do cargo de inquisidor-mor, ape :
sar da sua pouca idade . As cousas continuarão assim até
meiado de 1541. Parece que os ministros de D. João
3. ° havião adoptado o systema das dilações, da hesitação
calculada , que em laes circumstancias era o mais con
veniente .
A perseguição começa a tomar om caracter de sys
tema desde 1540 por diante. De 1533 a 1536 erão raros
os processos - de 1536 a 1539 são ainda poucos . He de
1540 a 1547, que o seo numero cresce espantosamente ;
o para cumulo de maiores desgraças uma circumstancia
imprevista veio ainda mais agravar a sorte dos Conversos.
D. Miguel da Silva , bispo de Viseo, irmão do conde
de Portalegre, föra creado em França e na Italia ; e por
seos dotes litterarios se tinha relacionado com o que ba
via de mais elevado em Roma -- Já Clemente 7.0 o linha
querido fazer Cardeal , mas a isto oppoz -se D. João 3. °,
por que não queria que um seo vassallo hombreasse com
seo irmão o Cardeal D. Affonso .
E porem, morlo este , Paulo 3.º fez Cardeal a D.
Miguel da Silva , c o chamou a Roma ; ao que ainda se
oppoz o rei com futeis pretextos - mas D. Miguel partio
sem licença para Hespanba ; o que foi grande escandalo
para D. João 3.º, que fez tudo para que voltasse, mas em
vão-dalli passou-se D. Miguel para Veneza, onde devia
esperar a publicação da bolla do seo Cardinalato .
Era mister indispôr o papa contra o bispo de Viseo
-o proprio D. João 3.º escreveo sobre isto, e a questão
parecia tomar um aspecto grave , quando novas supplicas
dos Conversos portuguezes vierão despertar o animo do
papa pelas perseguições atrocissimas, de que erão vic
timas em Portugal. Os infelises Conversos enviarão novo
procurador, um tal Diogo Fernandes Netto , individuo da
244

maior confiança , ao passo que novas sommás fôrão pos


tas à sua disposição .
Os Conversos portuguezes pedião um novo Noncio
para Portugal, e para isto offerecião dez mil cruzados ao
papa, e uma mezada para o futuro Nuncio de 250 cruzá
dos . De tudo isto foi informado o novo Embaixador por
luguez Chrislovão de Souza ; com o que ficou babilitado
para responder com energia as estudadas ponderações
de Paulo 3.0
Com effeito , em uma audiencia lembrara o Embai
xador ao papa o quanto tinbão levado de Portugal para
a Italia os dous anteriores Nuncios, Sinigaglia e Capodi
ferro - lembrou -lhe quantos erão os pretendentes a esse
-

lugar, e por que . Sendo porem interrompido pelo papa,


que quiz deffender a honra dos dous ex-Nuncios , Chris
tovão de Souza fel - o calar recordando -lhe os actos do
corrupção de ambos ; e sobre tudo de Sinigaglia, expulso
de suas funcções pelo proprio tribunal da Rola. Emfim a
audiencia tomara o caracter de uma altercação, em que se
não pouparão as allusões pungentes de parle a parte.
Parece impossivel que o papa soffresse tanto !!
E por que soffria ? Eis ahi a rasão- « Paulo 3.0
pretendia , e esperava obter para seo nelo 0o Cardeal Far
nese, uma pensão sobre os reditos da abbadia de Alco
baca ; e por isso importava -lhe não romper abertamente
com D. João 3.º !! Por outro lado as offertas dos Con
versos não erão de despresar. Convinha pois conciliar os
dous interesses , e as dilações offerecião um meio seguro
de chegar a esse fim » (A. H. 1. 2. p . 326) .
Agora, Sr. padre . Campos , consultae a sombra de
Lacordaire para que vos diga , se Roma daquelle tempo
era uma virgem candida, ou antes uma prostituta muito
devassa ! Vede como a Curia prepara o desenlace fatal
de toda esta questão , e recebe em troca da sua infamia
1

a gorgela da meretriz das praças de Babilonia.


Dependia pois o negocio da Nunciatura da decisão
de D. João 3.º sobre a mercê da pensão para o Cardeal
Farnese-Roma e Portugal capeavão . Paulo 3.º quiz
fozer valer o que elle chamava um aclo de sua cons
ciencia ; isto he, a satisfação aos clamores dos conver
sos . Nova audiencia , novo escandalo , em que os im
245

petos da colera afugentavão o decoro, a ponto de confes


sar o proprio papa , que o futuro Nuncio receberia dos
Conversos um subsidio mensal ; no que elle , com gran
de espanto do Embaixador, não via inconveniente algum
-tal era a perversão das ideas na Curia romana !!!
( A. H. t . 2. p . 327 ) .
.

Em uma outra audiencia em Bolonha' o Embaixador


Christovão de Souza convenceu-se em fim de que o Car
deal Parisio , e os demais protectores dos Christãos no
vos , ou para melhor dizer , o ouro e as promessas des
tes preponderavão 11a Curia . Aborrecido pois de tão
aturada luta, o Embaixador deixou a comitiva do papa ,
e foi para Veneza , donde voltaria para Roma , quando o
papa tambem voltasse . Em Veneza encontrou-se com
o bispo de Viseu D. Miguel da Silva , que alli esperava
a publicação do seu despacho de Cardeal . -entretanto
promettia elle ao Embaixador voltar para Portugal , logo
que recebesse as ultimas ordens d'el-rei.
Logo que o papa voltou a Roma, voltou tambem o
Embaixador portuguez, mais resignado e mais submisso :
querendo com isto desvanecer os resentimentos, que as
discussões de Bolonba poderião ter gerado . Quando po
rém recomeçavão as negociações com mais calma , um
novo facto veio romper as boas disposições entre a Cu
ria e D. João 3.º ; isto he, o bispo D. Miguel da Silva
era proclamado Cardeal , e chamado a lomar assento no
Sacro Collegio . O papa e o bispo tirarão a mascara
não tardou o rei em fazer o mesmo . Uma Carta regia
fulminava o bispo, sem reconhecel - o como Cardeal , pri
vando-o de lodas as honras e mercês , que recebera da
Coroa , desnaturando -o da patria, e tirando -lhe os direi
tos de cidadão .
Em seu despeito D. João 30 mandou retirar o seu
Embaixador ; o qual respondendo a carta d'el-rei, The
agradecia a mercè de o tirar da Capital do mundo ca
tholico ; dessa Roma , que compurava (1 prosliluida Ba
bilonia , e onde os poucos dias , que lhe restavão de de
mora, erão para elle como se jazesse no inferno ( A. I.
1. 2. p . 335 ). O Cardeal Silva respondeu a Carta re
gia de D. João 3.º pulverisando todos os seus argumen
los como falsos e indignos da menor fe , não por elle
246

rei , mas pela deslealdade de seus ministros . Como era


de esperar D. Miguel da Silva collocou -se do lado dos
.

Christãos novos, e foi dabi em diante seu prolector.


VII

Com o rompimento entre el- rei e o papa , com as


esperanças que nascião da influencia do povo Cardeal ,
podião os agentes dos Conversos empregar novos es
forços para melhorar a sorte das victimas , cuja per
seguição crescia em Portugal de dia em dia . Mas , o
que podião esperar de Roma os Hebreos portuguezes á
vista de toda essa historia passada ? Desde esse desfe
cho, diz A. Hercnlano, as resistencias e os esforços dos
Conversos não são mais do que o estrebuxar da presa
moribunda nas garras da besta - fera.
A atrocidade dos inquisidores, a dobrez e a cu
biça da Coria romana, o fanatismo das multidões, a hy
pocrisia de muitos, e a corrupção de quasi todos, ahi
ficão para frustrar toda e qualquer esperança por mais
plausivel que fosse. Quanto horror não deve inspirar
ás almas bem formadas semelhante epocha !
No fim de vinte annos de negruras, de traições , de
crimes, de vilanias de toda a especie, a inquisição as
senlada sobre solidas bases cessa de temer a propria
ruina . Ao espectacolo de todas essas infamias e torpe
zas succede o silencio, só interrompido pelo crepitar mo
notono das fogueiras, pelo correr dos ferrolhos nos Car
ceres , que se converlein em sepulcros ; e pelos gemi
dos que se alevantão do meio das hecatombas !
Que o leitor indulgente nos siga ainda alravez dos
ultimos recessos deste pandemonio repugnante, em que
o fizemos entrar , e que alluinia uma luz sinistra , o se
convencerá de que a sociedade daquelles tempos, que
ignorantes ou bypocrilas ousão propor -nos como modelo,
não só estava longe de valer a actual , mas tambem con
siderada de um modo absoluto, era profundamente deprn
vada ! ( A. H. t. 2. p . 343.)
Começa pois a inquisição de Portugal a estender -se,
fortificada com a nomeação do Infante D. llenrique pa
ra seu chefe . Mais seis tribunaes, successivamente crea.
247

dos, levarão a perseguição e o terror a todos os angu


los do reino . Novas instancias para Roma-resolve-se a .
nomeação de um novo Nuncio , e foi escolhido Luiz Lip
pomano, bispo coadjutor de Pergamo, em cujas faces
Cavadas, nos ademalles devotos, nas exterioridades aus
9

teras do prelado italiano , Cbristovão de Souza não via


senão a tabolela ridicula de um hypocrita. Esle Nun
cio devia trazer para Portugal a bolla declaratoria, que
Capodiferro tinha deixado de publicar quando se retirara ;
assim como outra abrogando perpetuamente os confiscos
nos crimes de religião .
0 Nuncio partio com effeito para Lisboa , mas sem
as citadas bullas . A razão he muito simples : ainda se
esperava reatar as boas relações com D. João 3.º, e
obter delle as mercês pecuniarias para o nelo do papa .
Era um noro jogo , em que só perderião os Conversos.
As instrucções para o bispo de Pergamo só tratavão de
haver dinheiro de Portugal, quer do proprio Fisco ,
quer do Clero ou do povo . A. Herculano expõe todos
esses alvitres miadamente .
Taes erão as astocias , conforme se pensava na Cu
ria romana , com que ainda se poderião tirar grossas som
mas de um povo exhausto, he verdade, mas supersti
cioso e credulo. Quanto ao que diz respeito aos chris
lios novos, e que A. Herculano relata com minucioso
escrupulo , só serve para mostrar o ultimo ponto da
decadencia moral, a que naquella epocha de profon
da corrupção se havia geralmente chegado.
Para que se veja o estado de espantosa corrupção
do Clero de Portugal no seculo 16 ; ou de ambos os
Cleros , ainda mais do regular que do secular , e até das
proprias freiras ; pedimos aos nossos leitores que procu
rem ler todo o livro 7.º da Ilistoria da Origem da inqui
sição por A. Herculano ; e ali verão , como sempre acon
lece , que a exaltação religiosa he consequencia infalivel
da mais torpe devassidão do Clero . Entretanto prosiga
mos na bisioria da luta entre o rei de Portugal e seus
vassalos de origem judaica .
Tenta de novo D. João 3.º, não por um Embaixa
dor acredilado em Roma , mas por agentes secretos, op
por difficuldades aos esforços dos Conversos : ao passo
248

que estes exhaustos, empobrecidos, jão deixando o


campo aos seus figadaes inimigos"; e perdendo a cohesão
necessaria entre elles para um fim commum , como era
a resistencia unanime e accorde contra as astucias dos
agentes porluguezes.
Carlas forjadas, em que era compromettido o novo
Nuncio , habilitavão el -rei a oppôr-se a sua vinda , ou a
não admittil: 0 ; lal era o voto dos inquisidores . Assim
se fez - o bispo de Pergamo foi intimado em Hespanha
-

para que não continuasse a sua viagem sem nova ordem


do papa. Interveio nesta questão o Imperador Carlos 5.',
que não gostava de ver seu cunhado metlido nessa luta
com o papa ; e afinal o Nuncio foi convidado a fazer a
sua entrada em Portugal pelo proprio rei . Aqui começa
claramente o abandono da causa dos Christãos novos
pela Curia - romana , onde sempre predominou o calculo
dos interesses materiaes.
Com effeito, já dissemos que o Cardeal Parnese ,
neto do papa e seu ministro, pretendia obter uma pen
são de tres mil escudos de ouro nas rendas do mosieiro
de Alcobaça . Para que D. João 3.0 cedesse, foi mister
>

que Roma cedesse tambem de alguma de suas condições


- cedia el-rei do castigo do cardeal Silva , e Roma da
substituição de um Embaixador por um simples agente .
Esta serenidade era presagio infallivel de furiosa
procella contra os Christãos uovos, começando pela pri
são do seu procurador em Roma Diogo Fernandes Neito,
sob o futil pretexto de judursar ( 1) ; e isto n'um paiz
onde erão permiltidos os Judeos ! Quanto ao castigo do
cardeal Silva , o papa propunha chamar para o thesouro
pontificio as rendas do bispado de Viseo ; de que já o
cardeal estava privado pelo Decrel: de D. João 3.º , que >

o desnaturalisou .
Depois de alguma reluctancia vierão a um accordo
( 1 ) Quando Paulo 3.0 fingia recusar a inquisição perma.
nente em Portugal, apparentando grande interesse pulos Chris
>

tãos novos, creava a inquisição em Roma ( 1542 ) ; e a primeira


victima, nella encarcerada, foi o procurador des mesinos Christãos
novos junto á Santa Sé Diogo Fernandes Netto por crime de ju
daismo ! para dar satisfação a D. João 3.0 e que viva o papa !
( A. H. 1. 3. ° L. 7.° )
249

o papa e o rei . Ila chagas que gerão horror, e outras


que só gerão ledio . Assim iudo se combinara para ul
lima ruina dos Christãos novos . Roma sabia calcular : as
grossas sommas, que elles podião despender , era ape
ras um ganho transitorio - as pensões que o rei de
Portugal podia conceder, e concedia, erão permanentes
e seguras. A Curia romana buscava conciliar ludo : 0
maximo lucro com a poaderação dos valores, e com a
mais alta probidade commercial no trafico das cousas
santas. ( A. II . 1. 3 p . 92. )
Os Ciristãos novos, perseguidos por toda a parte ,
reagirão com muita efficacia , derramando em Roma o
ouro ás mancheias, com tal profusão que Balthasar de
Faria , agente de D. João 3.º , desde logo receiou o trans
torno do negocio tão bem afigurado. A sede de ouro era
tal naquella Babiloniu de prostituição ( A. II . ) , que quan
do os Judeos abrião os cordões á bolsa , o primeiro em
bate tornava -se irresistivel .
Nos documentos de então , que chegárão até nós ,
continúa A. Herculano, e que não erão destinados a pu
blicidade, podemos hoje descortinar toda a hediondez da
gangrena, que lavrava nos animos, apezar da hypocri
sia , com que se revestião as formulas, exprimindo um
falso sentimento de dignidade e de pudor , ou de uncção
religiosa acompanhada do desejo de seguir os caminhos
de Deos .
Os Conversos em suas queixas apresentavão im
portantes documentos, e provas exhuberantes das per
fidias praticadas com elles ; das torturas e penas por
que os faziãopassar ; das injustiças atrozis de que erão
victimas ; emfim fazião commover lodos os animos ainda
não eivados da gangrena , que consumia a maior parte
da Curia . Esses poucos, salvos da corrupção universal ,
tomárão parle nessa reacção em favor das viclimas ;
muitos dos outros fizerão -no por dinheiro.
As scenas de inauditas barbaridades pralivadas pelos
inquisidores e seus agentes em Portugal , durante o se
culo 16." , são horrorosas ; e com documentos á vista
descreve - as A. llerculano no seu 3.° volume .. Lea-as o
Sr. padre Campos, se he que as não leu antes de escre
ver a sua apologia da inquisição religiosa, e diga , com a
32
250

mão na consciencia , se Roma , que tudo isto podia evitar,


negando a sua autorisação a semelhante tribunal , he ,
como diz o padre Lacordaire , candida como uma vir
gem, ou como diz A. Ierculano, prostituida como Ba
bilonia !
Recommendamos especialmente ao Sr. padre Cam
pos, que lèa o Liv. 8.º do 3.º tomo , em que vem a his
ioria da inquisição de Coimbra , e o que pralicava o
bispo de S. Thomé, o Dominicano Fr. Bernardo da Cruz,
inquisidor - mór daquela diocese , com as Christãas novas
encarceradas no castello da cidade. Sr. padre , tudo isto
he muito edificante -- deve quadrar vos as mil maravi
lhas - viva a inquisição do Sr. padre Campos !
Depois do inquisidor de Coimbra Fr. Bernardo, se
gre -se o inquisidor de Aveiro , digno emulo do domini
cano , e lão dissoluto como aquelle. Todos estes factos
estão provados com o testemunho de centenas de pessoas
ecclesiasticas e seculares, invocadas nas queixas dos
Christãos novos ; e depois por expontanea declaração de
muitas dellas .
VIII

Os mesmos factos, as mesmas torpezas se repetião


em Lamego , em Viseo , na Guarda , em Trancoso, em
Evora, na Covilhã , no Porto , e em Braga - nunca hou
ve maior subversão proclamada em nome do Evangelho
nunca o Christianismo fôra tão calumpiado ! Os in
quisidores tinhão adoptado um arbitrio para apurar a
verdade : era a confissão de um réo contra outro ! Estas
confissões erão extorquidas com os tractos - no potro
ou na polé o filho accusava o pae , o marido a mulher ,
on vice versa , a mãe a filha ; e accusarião ao proprio
Deos, se o inquisidor désse a entender , que tal confissão
os livraria daquelles intoleraveis martyrios.
E porém , a vingança dos frades Dominicanos, pelo
que soffrerão os seus confrades cm 1506 em Lisboa , era
implacavel . Os tormentos pausados não os satisfazião -
por toda a parte açulavão a plebe contra os Christãos
novos ou o calabouço ou a anarchia ; era sempre a
morle com mais ou menos agonia ( A. H. ).
Nem a belleza com o seu pudor, nem a velhice ,
251

tão digna de compaixão na mulher, eximião o sexo fra


gil da ferocidade brutal dos falsos defensores da religião.
Havia dias em que 7 ou 8 erão meltidas a tormento
essas scenas reservavão -nas os inquisidores para depois
do jantar : servião - lhes de pospasto (de café ! )
Muitas vezes naquelle acto disputavão os inquisi
dores entre si qual das victimas tinha mais perfeições
nas formas corporeas , emquanto a desgraçada donzella
se estorcia nas dores intoleraveis dos tractos ou des
maiava na intensidade da agonia . Então um applaudia os
toques angelicos do rosto , outro o fulgor dos olhos, ou
tro os contornos voluptuosos do seio , outro o torneado
das mãos !! Os carrascos tornavāu - se artistas ! ( A. II .
tom . 3 , pag . 173. )
Durante o anno de 1543 ou 15/44 , em um dos autos
de fé de Lisboa , havião cem sentenciadós a diversas pe
nas , entre elles vinte á pena de fogo -- por judúisarem
nos carceres ! Forão queimados 19 ; isto he, 12 homens
e 7 mulheres ; porque uma fôra recon:luzida aos car
ceres por haver confessado suas culpas. Com effeito ,
era tão infame essa horda de assassinos , que nem ao
menos , diz A. H. , tinha senso commum !
Judaisar nos carceres ! Como e de que maneira , en
cerrados , como estavão, um a um , separados por gros
sas paredes, privados de luz , e as vezes presos com pe
sados grilhões ou fortes correntes -- como praticar acto
algum externo de uma religião , que não ousavão con
fessar nos tormentos ? Quaes erão pois esses ritos do
judaismo praticados pelas victimas da devassidão e da
rapacidade dos inquisidores ? Elles mesmos nunca o
disserão em suas sentenças ; nem poderião dizel- o, por
que tudo isto não passava de uma torpe ficção, ou de
uma infamementira ( A. H.
A vista deste acervo de factos he que os procura
dores dos Christãos novos apresentarão em Roma uma
nova justificação de seus reiterados clamores. A respon
sabilidade de tão graves males recahia loda sobre o papa ,
que permitindo è creando a inquisição em Portugal,
abrira largo campo a todas as paixões ruins ; principal
mente ao fanatismo, a luxuria e á rapacidade do Clero
regular.
252
Paulo 3.º mais de uma vez o confessara a nimia
condescendencia, que mostrara para com os desejos de
D. João 3.º , ainda mais exaltara essas paixões. Julga
va - se pois em Roma uma necessidade tomar alguma me
dida para conter a inquisição em Portugal. O papa en
tendeu que era tempo de intervir de novo a favor dos
Conversos ; e tratou de mandar um novo Nuncio para
Portugal . Esse Nuncio devia ser João Ricci, mordomo
do Cardeal Farnese .
Em Portugal preparavào - se para recebel- o com toda
a reserva, ao passo que se dizia , que elle vinha com
prado pelos Christãos noros . Eniretanto, D. João 3.0
mandou encontral - o na Ilespariha, è dizer -lhe que , se
vinha oppor estorvos á inquisição, não era possivel que
el - rei consentisse na sua admissão em Portugal ; e que
nesse caso relivesse a sua viagem , até que o papa res
pondesse as considerações , que a este respeito el-rei The
havia feito .
Ricci porém respondeu , que erão falsas as informa
ções , que el-rei tivera a sen respeito ; que outra era a
sua missão ; isto he, tratar unicamente da reunião do
futuro Concilio . Em consequencia desta declaração el
rei consentio na vinda do novo Niincin ; e por uma carta
fel- o sabedor desta sua resolução, permillindo - lhe a es
trada no reino .
Ambos calculavão -
Ricci esperava remover em
parle os embaraços no desempenho da sua missão ; e
D. João 3.º pensava atar assim as mãos do Nuncio , tor
nando inutil a sua vinda . Mas um Breve de Paulo 3.º a
Luiz Lippomano, Nuncio residente em Portugal, decla .
rava qual era a missão de Ricci ; e logo que fôra publi
( ado , mandou el-rei de novo sustar a vinda do mesmo
Ricci .
Nesta conjunctura tomou D. João 3.º a resolução de
mandar á Roma um agente extraordinario, encarregado
de levar ao papa nima carta em termos energicos. Foi
pois enviado Simão da Veiga , pessoa em quem el - rei
muito confiava. A carla do rei era uma longa Iliada a
favor da ioqnisição , e de seu irmão o infante D. llen
rigne, inquisidor-mór do reino de Portugal.
Entre outras muitas cousas dizia D. João 3.º ao
253

papa –– « Entretanto o escandalo , que se temia , contra


a santa inquisição, foi prevenido pelo juizo de Deos. O
Breve de 22 de Setembro , negociado para salvar os réos
sentenciados em Lisboa, como remedio chegou tarde »
( A. H , 1. 3 , pag . 204. ) Vê- se pois , accrescenta o mesmo
A. Herculano, que a inquisição , receiosa da missão do
novo Nuncio , tinha de prevenção reiluzido á cinzas todos
os desgraçados, que elle poderia salvar !! Viva a inqui
sição religiosa do Sr. padre Campos ! Viva , viva !
Paulo 3.º respondeu nos mesmos termos energicos
por um Breve a carta de D. João 3.', dizendo que a in
quisição era uma delegação da Sé apostolica ! ( que con
fissão ! ), e o seu objecio inteiramente, espiritual, por
tanto que ninguem podia disputar - lhe o direilo de exa
minar os actos dos inquisidores, e de ouvir as queixas
dos perseguidos . Assim se evitaria que Deos buscasso
algum dia nas mãos de ambos, rei e papa , as manchas
de sangue de tantas victimas ! Apezar desta resposta ,
continuárão as negociações , e chegou - se a um accordo ;
isto he, ceder-se um pouco de parte a parte.
Finalmente uma carta do Cardeal Santafiori ( outro
nelo do papa ) affiançava a D. João 3.º que se farião as
concessões, que elle queria para consolidar a inquisição
em Portugal ; mas que para isto era mister que elle , rei ,
consentisse na entrada do Nuncio Ricci no reino . Nesse
mesmo sentido escreverão tambem a el rei o seni men
sageiro Simão da Veiga , e o celebre Ignacio de Loyola ,
que muito concorreu para o definitivo estabelecimento
do Santo Officio em Portugal ( 1 ) .
Como depois da tempestade armada entre o rei e o
papa ; como depois da carta em termos tão energicos
daquelle, e da resposta ameaçadora deste , poderão che
gar a um accordo, em que devião realisar-se todos os
desejos do rei, havendo a maior larguesa de parte do Pa
pa ? A. Ilerculano explica este desenlace perfeitamente
á vista de documentos originaes e de toda a fé, que elle
tinha presente da Torre do Tombo, que be o cartorio
uacional dos Portuguezes .
A prellenção do Cardeal Farnese (nelo do papa) de
11 ) São agora seus filhos, que vem de novo insuflar a su
perstição e o fanatismo nesta terra , donde já forão banidos por
suas gentilezas !
254

avullada pensão , havia lantos annos , foi resolvida favora


velmente, não em bens de mosteiros, como antes se tra
tava , mas em rendas mais seguras das mitras de Braga
e de Coimbra -Essa pensão era de 3 : 200 crusados an
nuaes. D. João 3.º lembrou - se que essa preltenção era
para elle uma divida ; portanto não só a mandou pagar,
como remelteu logo para Roma tres annos adiantados .
O fulgor do ouro illuminou o animo do Cardeal ; e forão
pelos ares todos os escrupulos acerca das injustiças e
das infamias praticadas com os Christãos novos pela in
quisição de Portugal.
0 Nuncio Ricci fez a sua entrada solemne em Lisboa ,
sendo recebido com grande distinção na Côrte, fasendo
se- lhe apenas sentir, como coovencionado em Roma, que
não exerceria outros poderes senão os puramente espiri -
tuaes . O Nuncio porem mostrou -se logo indisposto con
tra a inquisição , e appresentou ao rei as queixas moti
vadas dos Christãos novos.
Era outra vez a mesma politica de dobrez da Curia
romana . Ao passo que o Nuocio ostentava em publico
favor e protecção para com os perseguidos, Paulo 3.°
por uma bulla elevou ao Cardinalato o Infante D. Henri
que, irmão de D. João 3.º, e o inquisidor-mór em Por
tugal ; contra o qual haviam as maiores queixas , porque,
alem de estupido e devasso , era de uma perversidade
inaudita .
IX
Afinal era ainda mister outra bulla, que devia subs
tituir a de 1536, cujos effeitos linhão de cessar em 1546
-era a bulla , que, segundo a promessa do papa , devia
estabelecer definitiva e permanentemente a inquisição em
Portugal. Aqui vollão outra vez os escrupulos de Pau
lo 30 era o seu confessor um frade franciscano no
interesse dos Christãos novos , que retinha por momen
tos to triumpho do fanaiismo. Se esse serviço era gra
tuito, diz A. H., a Deos compette julgal- o . O certo he
>

que debalde trabalhavão os mensageiros do rei em acce


lerar a marcha desse negocio , e nada conseguirão senão
boas palavras , e descobrir afinal, que era procurador dos
Conversos o proprio confessor do papa .
Os governos fracos nunca tiverao outro remedio se
não sujeitarem - se á Côrte de Roma; e nenhum mais fraco
255

que o de D. João 3.º. Era mister resistir ou corromper


-tomou pois o segundo partido : Roma a corrompida ,
D. João o corruptor- pelo menos o jogo era franco .
Farnese , neto do papa, não estava saciado com as som
mas recebidas - era mister mais . Pois bem , deu - se- lhe
de mais . As rendas ordinarias do bispado de Viseu , e as
dos beneficios , que desfrutava o Cardeal Silva , erão avui
tadas- el - rei mandon offerecer ao papa a administração
daquelle bispado e daquelles beneficios para o Cardeal
Farnese . Era o preço que offerecia pela concessão deli
nitira da inquisição em Portugal.
O effeito não podia ser duvidoso , Tão ricos bene
ficios, tão pingue prelasia, alem da pensão ja concedida ,
devião abrir os olhos ao moço Cardeal , e ministro de seu
avô , para ver quão grande serviço a Deos ia prestar com
o estabelecimento definitivo da inquisição em Portugal!
A raça hebrea fôra afinal achada mais leve na balança
da justiça de Roma , e por isso era condemnada . Uma
bulla foi logo publicada, prorogando por mais um anno
a de 1536 , para dar lugar a povas explicações ; ou antes
para guardar certas formulas de decencia , com que se
acoberta o remorso , illudindo a consciencia , a qual nem
sempre a suprema corrupção alcança reduzir ao silencio
(A. II.t. 3. pag. 266. )
0 drama precipitava-se evidentemente para o desen
lace . Em 1547 o Cavalleiro Ugolino , sobrinho do falle
cido Cardeal Santiquatro, chegava a Portugal com as bui
las definitivas da inquisição e do perdão - mas a deste
era condicional, e Ugolino tinha ordem nas suas instruc
ções secretas para assegurar a el - rei , que fecharia os
olhos á sua execução .
A pezar de tudo não agradarão a D. João 3.º algn
mas das condições da builla de perdão, e leve de occor
rer de novo a Roma , por meio do bispo do Porto , que
linha ido para o Concilio de Trento . A pertinacia do
bispo triumphou - forão suprimidas todas as limitações
ao amplo exercicio do poder concedido aos inquisidores.
A balalha estava ganha , desde que se decidira que
as victimas não sahirião do reino , e que os algozes po
dessem exercer livre, plena e desassombradamente o seu
>

officio . Os Christãos novos estavão definitivamente per


256

didos. Conforme a oppinião dos membros do Sacro Col


legio , os inquisidores.qiierião carne humana ! -- A Curia
fornecia- lh'à -mas na Carta de aviso certificava aos com
pradores, que tinhão de pagar á vista o preço da merca
doria (A. H. t . 3. pag . 309. )
A luta estava portanto concluida -a inquisição na
plenitude do seu terrivel poler ia emfiin appresentar -se
rodeada dos instrumentos de martyrio sobre um throno
de cadaveres - podia fartar -se de carne humana ! (A. II .
idem . )
Pelo lado da Cîrle de Roma o contrato acerca do
sangue dos miseros hebreos estava honradamente com
prido ; restava receber preço . A mercadoria era ex
cellente por mais que el-rei a menoscabasse -os deffei
tos que lhe punha era o desdenhar costumado do com
prador - Roma sabia bem o que vendia ! (A. I , idem ).
0 Cavalleiro Ugolino , que trouxera as bullas, vinba
autorisado para liquidar o negocio do bispado de Viseo ,
e dos outros beneficios pertencentes a D. Miguel da Sil
Va . Em harmonia com as declarações anteriores o pa
pa não cedia a el - rei um ceitil das rendas passadas ; ludo
devia ir para Roma, em compensação da boa vontade ,
com que se prestava a satisfazer os dezejos do rei ; cal
cando assim aos pés os Canones , e considerando como
vaga a Sé de Viseo, estando vivo o seu legitimo pastor, e
sem haver resignado a mitra .
Essas rendas anteriores destinavão- se a fabrica de
S. Pedro - era a capa com que se envolvião aos olhos
da Europa espantada todas as rapinas e corrupções da
Corte de Roma. A inquisição estava pois comprada e paga
a concessão foi completa ; não admira que fosse cara .
A. Herculano diz que o Cardeal Farnese recebera logo
das rendas passadas quarenta mil crusados.
O Cardeal teve uma vida dilalada , e viveo mais de 40
annos depois desse contrato , barganha, ou simonia ; vindo
por lanto a receber de Portugal por meio de semelhante
contrato perto de meio milhão de cruzados ; alem do que
custarão os Nuncios e os outros Carileaes, assim como
despesas de chancellaria e outras feitas em Roma.
Tudo isto foi somente do rei de Portugal, sem con
tar com o que despenderão os christãos novos em todas
257

essas transacções tenebrosas , nas quaes se punha em


almoeda a vida de milhares de creaturas innocentes ; e
por coja deffesa e protecção Roma lhes vendia tão caro
o qne sabia negar -lhes com plausibilidade quando o fa
natismo e a hypocrisia pagavão melhor.
Ainda assim muilas familias hebreas, que não pude
rão sair de Porlugal, de tempos a lempos erguião suas
mãos supplicantes para o Supremo pasior , fasendo rolar
o ouro nos covis da corrupção romana --mas os resul
tados estavão longe de corresponder aos esforços e sa
crificios empregados. Era impossivel retardar a torrente
impetuosa da intolerancia-a inquisição tornava -se de dia
em dia mais solida ; e o temor, que ella inspirava, cada
vez mais profundo . (a . H. t. 3. L. 10 )
.

Em tres factos capitaes se podem computar as ten


dencias do espirito mais alroz , da mais anti- christãa ins
tituição , que a maldade humana podia inventar ; a saber :
nas prisões arbitrarias - nos longos captiveiros sem pro
cesso , e nas fogueiras devorando promiscuamente o
christão e o judeo para honra da inquisição e gloria de
Deos ! alem dos tractos da polé e do polro, das provas
d'agoa e do fogo !
Eiş o que foio seculo 16 , seculo corruplo e feroz,
em que se associa o nome horrivel do Castellano Felip
pe 2.0 com os dos papas Paulo 3.º e Paulo 4.0 ; e por pa
drão de gloria o nome de um fanatico, ruim de condição
e inepto , chamado D. João 3.º (A. II . Ibid . )
Aqui conclue A. Herculano a sua historia da Ori
gem da inquisição , elaborada á vista de documentos au
tenticos, e toda comprovada com escriptos contempora
neos. Quando um homem da tempera do autor da histo
ria de Portugal, lansa em publico um documento dessa
ordem , quem se atreverá a contestal-o ? Para nós o Sr.
Alexandre Herculano não he só o mais distincto lillerato
de Portugal, he lam bem um dos mais nobres caracteres
daquelle paiz .
Eis ahi o que foi a inquisição , quer em Roma, quer
na Hespanha, qner em Portugal - horrores e infamias por
toda a parte. A rapina, a luxuria, a vingança , a torpesa ,
a perversão do coração humano levada ao ultimo grao de
avillamento - ludo isto foi a inquisição religiosa, que me
33
258

receo um dithyrambo do Sr. padre Campos ! Tão certo


he que nunca o evangelho penetrou em Pajeú de Flores !
A INQUISIÇÃO NO BRAZIL
1

E porem dissemos no principio do artigo sobre a


inquisição, que se -nos confrangia o coração ao conside
rarmos, que um brasileiro fosse o apologista de semelhante
instituição ; e que por demais fosse um pernambucano !
Com effeilo, alé no Brasil veio percurtir o som in
fernal da matraca , que prècede a procissão dos autos de fé.
Poderiamos dizer muito a este respeito à vista de docu
mentos importantes que possuimos ; mas temos levado
tão distante esta resposta , que mais parece um tratado do
que um artigo ; ao passo que he mister calcular com a
impressão tão custosa entre nós ,
Assim he que nos devemos contentar com os dous
importantes documentos, que vamos transcrever ao pé
da lettra : 0 1.º he uma carta de Francisco Adolpho Var.
nhagen , escripta de Lisboa , em Julho de 1845, e trans
cripta na Revista trimensal do Instituto historico e geo
graphico do Rio de Janeiro , l . 7. pags. 427 e seguintes.
0 2. he um artigo extrabido da - Barca de S. Pedro
-

n. 16 de 1848, resumindo a primeira carta do referido


Varnhagen sobre a mesma materia , e que vem no lomo
6.º da mencionada Revista , contendo todas as listas dos
autos de fé da inquisição de Lisboa no seculo proximo
passado .
Estes dous documentos completão o bosquejo, que
fisemos da historia da inquisição , para que o Sr. padre
Campos tenba tempo de arrepender-se das blasphemias
e falsidades, que disse na sua citada apologia , e de pedir
perdão a Deos pelo haver ultrajado na pessoa de seouni
genilo filho - o qual veio em seo santo nome annunciar a
gloria de seo pae , e pregar a tolerancia e a paz entre os
homens .
« Illm
film . Sr. - Em additamento aá minha carta de 17
de Fevereiro do ano passado, que pela bondade de V.
$. sahiu impressa na Revista do Instituto ( Tomo 6.
259

pag. 322 ) , devo communicar que , tendo eu conseguido


ver as restantes listas dos autos de fé da Inquisição de
Lisboa no seculo passado , me acho hoje melhor em cir
cumstancias de dar conta do resultado final do seu
exame. Corri igualmente por alto as listas respectivas
aos Tribunaes de Coimbra , Evora e Goa ; mas algum
caso que nellas se topa , e que diz respeito ao Brazil, não
deve ser considerado senão cɔ.no excepção ; pois que
foi Lisboa quem se arrogou officialmente a malfadada
gloria de limpar o Brazil do sangue israelita ; cruenta
empresa , que começa a ser executada com ardor do
apoo de 1704 por diante . E' provavel que mais demo
radas investigações nos venham descobrir o vehiculo
por onde tal perseguição passou ao Brazil. Por enquanto,
pedindo ao Instituto suspensão de seu joizo contra um
individuo Doutor Theologo, que tantos creditos merece
pela obra de Monsenhor Pizarro, não deixarei de lem
brar-lhe que, meado do anno de 1702, chegou ao Rio o
Bispo D. Francisco de S. Jeronymo , que acabava de ser
Qualificador da Inquisição d’Evora , e que junto a influen
cia prelaticia reuniu mais de uma occasião a de quem
fazia as vezes do Governador nessa capital . Todavia se
ria arriscado o iniciat- o desde já como o Torquemada
do Brazil .
« A perseguição vê-se progredir no seu tempo, o
jà o auto de fé de 1709 publica sentenças contra colonas
Brazileiras. O anno de 1713 foi o de maior safra ; sen .
tenciaram - se 66 colonos do Brazil, comprehendendo 39
mulheres, não por heresias, mas pela maior parte só
por terem sangue judaico. Em 1716, que foi a segunda
colheita mais abundante , ainda os condemnados exce
deram a 30 ; tendo em 1714 sido 25, dos quaes 11 do
sexo feminino. No numero dos homens neste anno
sentenciados , comprehendem - se dous christãos novos
>

de 67 annos de idade, e nascidos em Portugal , que fo


ram relaxados um em carne, e outro só em estatua ,
por ter tido a fortuna de se cobrir com a bandeira Fran
ceza . Este ultimo já o Instituto conhecerá , pela minha
carta antecedente , que deve ter sido José Gomes Silva , 0o
qual, ao que parece, se encobrira antes com o nome de
Marcos Henriques « convicto, ficio, falso, simulado ,
260

confitente diminuto , impenitente , e revel » ; disseram


delle os do Santo Tribunal. E que seria feito do pobre
perseguido , a não se haver feito revel, quando vemos
que a perseguição se estendeu a Catharina Marques, sua
tilha ? Achou -se esta defunta nos carceres em 1765 ; e
a ser ella a mesma Catharina Marques que em 1717 se
dá por filha de João Alvares Vianna , sendo então con
demnada a carcere perpetuo devia ter naquella data 67
annos de idade, o que não admira quando sabemos que
a justiça do Tribunal não admillia excepçoes para a ve
Ibice nem decrepitude . Em 1714 fóra tambem achada de
funta nos carceres « .Ignez Ayres, christãa nova, de 81
annos de idade, ( ! ) viuva de André de Barros de Mi
randa, mercador, natural da Villa do Crato , e moradora
na cidade do Rio de Janeiro . > Em 1723 fui da mesma
fórma achada defupla a Margarida Mendes, cuja quali
dade de sangue ao certo não consta, casada com Ber
nardo Ribeiro , lavrador de mandioca , natural e morador
na cidade do Rio de Janeiro. » E em 1720 ardéra na fo
gueira expurgatoria , sendo relaxada em carne « Thereza
Paes de Jesus, de 65 annos de idade , parte de christãa
nova , casada com Francisco Mendes Simões, mestre de
meninos ; natural e moradora da cidade do Rio de Ja
neiro , Estado do Brazil , convicta ; ficta, falsa, simulada ,
>

confitente diminuta , variante, revogante e impenitente !! »


Grande Deos ! E com taes palavras cavilosas permittistes
que a superstição e a maldade humana sophismassem na
terra vossa alla justiça ! Beato S. Domingos , seria as
sim que desejaveis fossem interpretadas vossas intenções
na obra coja existencia se deveu talvez a vós ? ! .... Por
impassivel que seja o escriplor,, e por mais que se queira
persuadir, que já não existe nenhuma dessas infelizes
creaturas, é instinctamente illudido pela imaginação, que
quasi lhe faz ouvir gemidos e lamentos desfallecidos das
desgraçadas velbas moribundas ; e ao cabir em si , apenas
ousa clamar : - Quão mesquinhas, acanhadas e cheias
de erros são as obras dos homens ! -
« Nos apontamentos que ora envio , vêem - se com
prehendidas com varias sentenças mais sele desgraçadas
sexagenarias ; a saber : Magdalena Peres, Thereza de
Leão, Catharina Gomes, Brites Pereira , Brites Cardosa,
261

Brites de Lucena , e Maria Rodrigues. Tambem a piedade


chama a altenção a favor da memoria de 11 infelizes me
ninas, com menos de 20 annos de idade, das quaes tres
só com 16 , e uma por nome Maria da Silva , que aos 5
de Outubro de 1723 foi, oa idade de 13 annos , chamada
perante os Inquisidores para ser reconciliada por culpas
de judaismo, e voltou dabi a 4 annos para a degradarem
elles para o Algarve !
( Assim repetia -se no Brazil o tributo da idade media
de certo numero de donzollus para um monstro de Lis
boa ; com a differença que os Srs . Inquisidores , ou os
que lhes faziam as vezes, evitavam as dolorosas scenas
de separação das familias, fazendo-as embarcar todas in
teiras . Com effeito , tirada a inquirição de haver sangue
de Judeu n'um individuo da familia, tanto bastava para
essa inquirição se estender a seus consanguineos mar
ranos, como se dizia em Hespanha. Entre as classes
perseguidas, notam-se muitos medicos e advogados, e
alguns ecclesiasticos ; aquelles por christãos novos, e
estes ultimos por varios abusos , entrando neste numero
o de se fingirem familiares do Santo Officio para pren
derem gente , etc. ; se bem que entre os achados de
funtos nos carceros se conte o « Padre Peres Caldeira, de
60 annos de idade, parte de christão novo , sacerdote do
habito de S. Pedro, advogado, natural e morador na ci
dade do Rio de Janeiro ,
« . A Inquisição de Lisboa celebrou 76 autos de fé
desde 1700 até 1778 , em que foi o ultiino de que temos
noticia ; sendo porém em 1767 o ultimo que compre
hendeu gente vinda do Brazil . Não pareça porém que
pela conta mencionada correspondesse regularmente um
auto de fé a cada anno : pelo contrario, o regular era
passarem-se um , dous, e ás vezes mais algum anno, sem
haver tão devota justiça ; mas, celebrando -se n’um anno
um auto de fé publico, era por via de regra seguro se
guir-se dabi a dias outro particular nas salas do Santo
Officio, por ventura para aquelles protegidos a favor de
quem os Inquisidores queriam dar alguma prova de
contemplação aos empenhos de parentes, elc . Destes ula
timos, não se publicavam os nomes pela imprensa , como
>

se fazia aos primeiros.


262

« Nas nolas que ora remetto comprehendem-se de


Brazileiros natos mais de 120 condemnações em' ho
mens,, e igual numero em mulheres, sendo passante de
100 destas ultimas filhas do Rio de Janeiro , e só ac
cusadas de judaismo . Em filhos do Rio contamos nestas
mesmas notas umas 96 condemnações , e perto de 80
em colonos vindos de fóra, de ambos os sexos : indi
viduamos nos de Portugal 22 por crime de bigamia, o
que era rarissimo em filhos do Brazil.
( Não possuindo o borrão das notas de que man
dei para esse Instituto a copia , que acompanhava a mi
nha 1.a carta sobre este assumpto, não me é possivel,
juntando - as ás que ora remetto , coordenar de tudo um
mappa designando o numero total de individuos que o
Brazil mandou para Lisboa durante os 60 e lantos annos
de 1704 a 1767 ; e isto porque o numero das condem
nações , ao qual por ora só tenho alludido , é distincto do
>

numero de individuos, a que ellas se referem ; sendo


este ultimo um tanto menor, visto que pessoas ha, que
apparecem sentenciadas mais de uma vez . Este numero
de individuos se obleria com a maior exactidão , se al
gum de nossos consocios quizesse abi encarregar -se de,
por meio de uma lista alphabetica, abater os nomes re
petidos.
« 0 numero pois das condemnações da Inquisição
de Lisboa no seculo passado , respectivas ao Brazil,
comprehendendo as da minha carta anterior, anda por
perto de 540 ; e não erraremos orçando em 450 todas
as pessoas que vieram presas do Brazil ; das quaes um
terço foram Brazileiros, outros Brazileiros natos, e os
ultimos 150 de colonos de um e outro sexo, já domi
ciliados .
« Deus Guarde a V. S. Lisboa , 22 de Julho de 1845 .
C

Illm . Sr. Manoel Ferreira Lagos, 2. ° Secretario Per


petuo do Iostiluto, - Francisco Adolfo de Varnhagen . "
II

O artigo da -Barca de S. Pedro- que segue , con


.

tem algumas repetições da carta que acima fica trans


cripta - poderiamos corta - las para evitar a redundancia ;
263

mas iriamos delurpar o artigo tão bem escripto, e talvez


cortar a unidade do pensamento do autor . Deixamol -o ,
portanto , como está , pela regra de que — quod abundat,
non nocet.

« O Brasil e a Inquisição. -- O art. 9.º do Tra


tado de 19 de Fevereiro de 1810, entre o Principe Re
gente de Portugal e S. M. Britannica, (1 ) pelo qual
se estalue que não se estabelecerá no Brasil a loqui
sição, porque nunca a houve nesta parte da Monar
chia porlugueza, he uma amarga ironia, que desco
bre loda a perfidia do governo da antiga metropole.
Não tinhamos, he verdade, no Brasil um Tribunal da
Inquisição, mas ahi estavão os Bispos com os Fami
liares do Santo Officio por toda a parte , que não dei
xavão um momento de exercitar a sua tremenda autori .
dade sobre os infelizes colonos ; com tanto mais horror
quanto era preciso arrancal-os dos seus lares para le
val-os á uma masmorra duas mil leguas distante , e quasi
sempre por um só individuo era arrastrada oma familia
inteira, qualquer que fosse o numero e a idade dos mem
bros , que a compunhão .
« A perseguição, que soffrerão os Colonos do Bra
sil durante 63 annos do seculo passado , he um facto tão
nolavel , que por si só revela todo o segredo da admi
nistração colonial : terror e nada mais , sem um atomo
de justiça ou de equidade. Com effeito alé a mão nos
treme a decifrar os caracteres desse drama infernal, que
por 76 vezes foi á scena durante 78 annos do seculo pro
ximo passado ; nessas scenas sanguinosas ou de estu
pida superstição figurarão os Colonos do Brasil desde o
ando de 1704 até o de 1767 , o ultimo em que apparece
( 1 ) O art. 9o do Tratado de amizade e alliança de 19 de
Fevereiro de 1810 he como segue – « Não se tendo até aqui es
« tabelecido, ou reconhecido no Brasil a Inquisição ou Tribunal
( do Santo Officio, Sua Alteza Real o Principe Regente de Por
« tugal, guiado por uma illuminada e liberal politica , aproveita
« a opportunidade, que lhe offerece presente Tratado, para
« declarar espontaneamente no seu proprio nome, e no de seus
«a turo
Herdeiros e successores , que a Inquisição não será para o fu
estabelecida nos meridionaes dominios americanos da Co
<< rôa de Portugal. »
264

gente levada da nossa terra para servir de holocausto


em no auto de fé ( 1 ) .
( A cruenta empresa de limpar o Brasil de sangue
israelita começa com ardor no anno de 1704 , com
quanto hajão alguns faclos semelhantes anteriores á essa
epoca . Foi no Rio de Janeiro onde se desenvolveu essa
feroz perseguição dos primeiros annos do seculo pas
sadó , sendo Bispo daquella Diocese D. Fr. Francisco de
S. Jeronymo, que acabava de ser Qualificador da Inqui
sição de Evora . Em 1711 , quando Duguay Tronin occu
pou a cidade do Rio de Janeiro, achavão -se presas pelo
Santo Officio mais de cem pessoas, além das que tinhão
figurado no auto de fé de 26 de Julho do mesmo anno .
que forão 52. O anno de 1713 foi o da maior safra :
sentenciárão-se 66 Colonos do Brasil, comprehendendo
39 malheres, não por heresia , mas pela maior parte só
por terem sangue judaico.
a Em 1716, que foi o da 2.a colheita mais abun
dante, ainda os condemnados do Brasil excedêrão de
>

30 , tendo sido de 25 no anno de 1714, dos quaes forão


11 do sexo feminino. No numero dos homens, neste
anno sentenciados , ha 2 Christãos novos de 67 annos de
idade, colonos do Brasil ainda que nascidos em Porlu
gal , os quaes forão relaxados um em carne , e o outro
somente em eslalua por ter tido aa fortuna de se cobrir
com a bandeira franceza. Nem a idade nem o sexo in
fluião sobre esses tigres de sotaina , cuja ambição era
augmentar o numero de suas victimas com todos os tor
mentos , qne lhes suggeria sia brutal ferocidade. Brites
Lopes , natural da villa da Cachoeira na Bahia , foi con
demnada á habito perpetiio na idade de 16 annos : Ca.
tharina Rodrigues, enviada do Rio de Janeiro, tinha 92
annos quando foi condemnada a carcere e habito per
peluo.
« Entre as mulheres dá -se ainda maior despropor
ção nas idades que nos homens ; Branca Rodrigues, na
lural do Rio de Janeiro , foi condemnada a carcere o
1.1 ) Este curioso artigo'he fornado pelas listas dos colonos
do Brasil, condemnados pelo Santo Officio, publicadas na Revista
do Inst. hist. bras. tom . 7.0 pags . 51 a 86 ; o de uma Carta im
pressa no mesmo tomo, pag. 427 .
265

habito perpetuo na idade de 17 anos : cm 1714 fôra


achada defunta nos carceres da Inquisição Ignez Ayres ,
remettida do Rio de Janeiro por Christàa nova , lendo
.

81 annos de idade ; algumas e não poucas forão con


demnadas com 19 a 21 annos , outras com muito mais
de 60 e de 70. Tamibem o numero dos que forão le
vados aos carceres em tenra idade avulta muito mais nas
mulheres que nos homens ; assim repetia -se no Brasil
o tributo da idade média de certo numero de donzellas
para um monstro de Lisboa. ( 1 ) Entre as classes per
seguidas notão -se muitos medicos e advogados, é al
guns ecclesiasticos , os primeiros por Christãos novos, o
esses ultimos por abusos .
v Ale o auto de fó de 17 de Junho de 1731 só li
nhão figurado viclimas do Bispado do Rio de Janeiro ,
que então ainda abrangia Minas Geraes, S. Paulo , Goyaz
c Matto -Grosso, e algumas do Arcebispado da Bahia ;
inas neste anno começa a colheita do Bispado de Per
nambuco, sendo a Paraliha o campo mais fertil e abun
dante . Esta perseguição atroz começou sendo Bispo do
Pernambuco ' D. Fr. José Fialho, que em 1738 passou
para Arcebispo da Balvia , onde felizmente pouco se
demorou . Horrorisa por cerlo ler essas listas de pros
cripções, que arraslavão para immundas enxovias ſa
milias inteiras, desde a mais tenra idade até a decrepi -
tude. No auto de fé de 18 de Junho de 1741 , deparamos
pela primeira vez com um condemnado natural e mora
dor na cidade do Pará, chamado Thomé Teixeira , por
culpa de bigamia, e no de 20 de Setembro de 1761 ap
parecem por igual culpa dous do Maranhão tambem pela
primeira vez .
« Forão sem duvida o Rio de Janeiro e a Parabiba
as duas provincias do Brasil, que mais filhos seus man
dárão para Lisboa a fim de abjurar com penas crueis o
sangue judaico, que lhes impulavão ; abjurar o sangue,
( 1 ) Tenha-se presente que, com menos de 20 annos de idade
entrarão para os Curceres do Santo Officio onze infelizes moni
nas brasileiras, das quaes tres somente de 16 annos, e uma por
nome Maria da Silva, que aos 5 de Outubro de 1723 foi, na idade
de 13 annos, chamada perante os Inquisidores para reconci iar-se
por culpas de judaismo. e voltou dabi a 4 annos para ser degra
dada para o Algarve.
34
266

como se fosse uma crença !! estupidos , e ainda mais


do que estupidos, ferozes por instincto . Em 1720 ardera
na fogueira expiatoria, sendo relaxada em carne , The
reza Paes de Jesus, de 65 annos de idade, parte de
Christãa nova , casada com Francisco Mendes Simões,
mestre de meninos ; natural e moradora na cidade do
Rio de Janeiro , Estado do Brasil, convictu , ficta , fulsa ,
simulada , confitente diminuta, variante, rcvogante e im
3

penitenle !!! Deos de infinita misericordia ! ! que blas


femia contra a lua infinia justiça e sabedoria !! Tirai
a essas palavras o som articulado , que ellas contêm , e não
>

serão mais do que o rugido do ligre ou do leão .


« Quem tiver lido o antigo Regimento do Santo
Officio de Portugal, dado aos 22 de Outubro de 1640 pelo
Bispo da Guarda Dom Francisco de Castro , Inquisidor
Geral em Lisboa, modificado muito mais de um seculo
depois pelo que fez o Cardeal da Cunha, e approvado
pelo Regio Alvarà do 1. ° de Setembro de 1774, e se
lembrar de algumas palavras soltas, que repetem os caba
listas ou disidores da buena dicha , achará o mesmo
fundo mistico , obscuro , magico e cabalistico , palavras
solias , sem sentido , lão somente para aterrar e confun
dir, a mesma balburdia ou algaravia, o mesmo desprezo
pela palavra de Deos , o inesmo insullo ao bom senso e
á intelligencia humana.
a O potro e a polé, dous tormentos da Inqnisição,
não eram de mais tortura que essas palavras magicas im
postas pela superstição mais refinada, pelo requinte da
perversidade humana. Se houve jamais heresia contra o
catholicismo, fui a Inquisição religiosa a maior de todas
as beresias, porque ainda ninguem perverteu , desvir
tuou , coutradictou tanto a moral do Evangelho como
esses scribas da nova lei chamados Inquisidores. Ao re
cordar todas essas atrocidades , os gemidos , os lamentos
de todas as victimas , a innocencia de tantas virgens tor
turadas pela linguagem estupida e feroz dos Inquisidores,
até mesmo a lascivia , a concupiscencia ! ( 1 ) o sangue se

( 1 ) Veja -se a historia da Inquisição da Hespanha pelo Dr.


Llorente, etc. Origem da Inquisição em Portugal por Alexaudre
Herculano,
207

nos gela nas veias , e não podemos deixar de bradar


infamia sobre a memoria de todos esses monstros !
« A nossa imaginação aturdida pela lembrança de
tantas infelizes creaturas nos fez desviar um pouco do
nosso objecto ; vamos portanto concluir este artigo, um
dos mais importantes para a historia da nossa adminis
tração colonial .
« Dos documentos pois que temos á vista se deduz,
que o numero das condemnações da Inquisição de Lis
boa no periodo de 63 annos, que decorrem de 1704 á
1767, respectivas ao Brasil , anda por perto de 540 ; quo
destas perto de cem pessoas já se achavão residindo em
Portugal , onde forão presas ; porém 450 pouco mais ou
menos forão remeltidas do Brasil. Destas ultimas po
dem-se contar como Brasileiros natos dous terços 011
300 , e um terço ou 150 colonos de um e outro sexo já
domiciliados aqui .
« A maior parte destas condemnações fundava-se
em culpas de Judaismo, seita que, ainda mesmo sem a
professar, os sentenciados devião abjurar uma ou mais
vezes , dando - se casos de o fazerem alé a oitava . Estas
colpas de Judaismo não tinhão de ordinario outro fun
damento do que simplesmente o sangue de Christão
novo ; além da abjoração tinhão outras varias penas,
como levar habito nos autos de fé, prisão nos carceros,
perpetua ou á arbilrio , desterro , etc.
« Faremos menção de um individuo , o Dr. Antonio
José da Silva , natural do Rio de Janeiro, Advogado ,
2

poela e autor daquellas celebres Comedias, Alecrim e


Mangerona , Variedades de Protheo e outras , de que tantas
recordaçoes ainda conservamos desde a nossa infancia.
Na idade de 21 annos fez a sua 3.a abjuração , sendo es
tudante canonista , e foi condemnado a carcere e habilo
perpetuo . Tendo apenas seis annos lhe arrancárão sua
pobre mãi, a infeliz Lourença Coutinho, tambem natural
do Rio de Janeiro , para ir fazer numero no anto de fé de
9 de Julho de 1713 ; a 16 de Outubro de 1729 torna ella
a apparecer em outro auto de fé, e vai desterrada para
Castro Marim como Christåa nova . Dez annos mais tarde,
quando seu filho vai em prestito de carocha e sambe
nito para subir á fogareira, ella já viuva e sexagenaria,
268

o acompanha e fica na terra, orphảa de tudo, com uma


sentença de carcere á arbitrio , que naturalmente com
pletou no dia da sua morte .
« O desgraçado poela Antonio José da Silva , não foi
o unico Brasileiro condemnado á fogueira pela Inquisi
ção de Lisboa. A primeira de todas estas victimas do
Santo fogo, de que já fallamos, foi Thereza Paes de
Jesus, relaxada em carne aos 65 annos de idade, parte
de Christãa nova , que ardera em 1720 , sendo casada, na
tural e moradora na cidade do Rio de Janeiro : em 1726
foi relaxado em carne j Padre Manoel Lopes de Car
valho de 44 annos , natural da cidade da Bahia : em
1729 leve ignal sorte João Thomaz de Castro, de 31
annos , Christão novo , Medico, solteiro , filho de Miguel
de Castro Lara , natural do Rio de Janeiro : na mesma
occasião foi relaxado em estalua por ter apparecido de
funto nos carceres, Braz Gomes de Siqueira, natural da
villa de Santos, mercador e parle de Christão novo . Po
rém o que ainda he mais, em 1731 lambem outra Brasi.
Jeira foi victima da fogueira do Santo Officio , a saber :
Guiomar Nunes , Christãa nova , de 37 annos , casada, na
toral de Pernambuco, e moradora no Engenho de Santo
André , districto da cidade da Parahiba:
( A Inquisição de Lisboa celebrou 76 aulos de fé
desde 1700 até 1778 , que foi o ultimo, de que ha no
ticia , sendo porém o de 1767 tambem o ultimo, em que
apparece gente remettida do Brasil : era a mão pode
rosa do Marguez de Pombal, que sostinha, posto que
ainda pendente sobre nossas cabeças , o archole da In
quisição para nos não reduzir á cinzas. As condemna
ções por culpas, que os Inquisidores de Lisboa reputa
vão muito mais leves que o ter sangue de Judeo , como
bigamia , sodomia , eic . , apparecem em muito menor nu
mero ; encontram - se 22 em colonos vindos de l'orlugal
por crime de bigamia, o que era rarissimo em filhos do
Brasil . Finalmente o novo Regimento dado pelo Car
deal Cunha ao Santo Officio de Lisboa, e approvado pelo
Alvará do 1.° de Setembro de 1774, diminuio em grande
parte as perseguições, que se fazião, reduzindo a appli
cação dos tormentos de tal sorte, que só em casos mui
restrictos erão permillidos .
209

a Eis -ahi a historia abreviada desse periodo de san .


gue e de fogo para o Brasil, em que nem os vinculos
mais sagrados da natureza erão respeitados. Como ha
via de prosperar: 0 paiz, dividido por sérias desconfian
ças , e sujeito a todas as vicissitudes de um governo ty
rannico, e até abominavel pelo requinte de maldade,
qne empregava em todas as suas relações com os Colo
nos ? Ilora asiaga para o Brasil foi aquella, em que soou
pela primeira vez a palavra -
Inquisição - Deus a mal
diga para sempre. » ( Burcu de S. Pedro --n . ° 16—1848 )

Eis -ahi o que foi a inquisição , remora da civilisação


por muitos seculos . O que são hoje os Judeos ? elles mo
vem o mundo com a sua alavanca de ouro a Ingla
terra e a França fazem delles seus ministros e deputados .
A Camara dos communs allerou a formula do juramento
de seus membros somente para aduillir no seu seio um
Judeo , que se negava a prestar o juramento conforme o
rito da igreja anglicana .
Em tempo da restauração , Vilelle, ministro de Carlos
10, era Jndeo, e foi feito Grā - Cruz da Ordem de Christo
por D. João 6.º de Portugal. () Barão de Rolchildt foi con
decorado com a Cruz de S. Gregorio Magno por Grego
rio 16.0 emfim os Judeos servein nos exercitos dos
povos christãos, e na propria França la muitos Gene
raes e Officiaes superiores dessa seita .
Muitos medicos e escriptores distinctos são Judeos.
– Cohen he Judeo da Synagoga ; entrelanto he um fer
voroso advogado do poder temporal do papa . Luiz Na
poleão não se importa qne o seu ministro da Fazenda
seja judeo – na França não ha religião do Estado . O Ju
déo senta -se na Camara dos depulados junio do frade
Lacordaire foi deputado em 1848. Os grandes banqueiros
do Brazil em Inglaterra tem sido sempre Judeos — ao
menos ainda não tivemos de queixar -nos da sua má fè !
Dizei- nos agora, Sr. padre Campos , que mal iem
vindo ao mundo dessa nova ordem de cousas ; da pre
ponderancia dos Judeos nos negocios financeiros dos
Christãos ; nessa mescla da vida social entre homens,
270

que se podem chamar nossos progenitores espirituaes ,


pois que a religião christaa he filha legitima da judaica ?
Deixae que a civilisação acabe com a intolerancia,
e acabar -se-ha tambem toda e qualquer distincção , toda
e qualquer divergencia entre os sectarios das diversas
religiões do globo — religiões que se hão de confundir
-

todas afinal no symbolo da cruz , quando o Evangelho


for a lei universal do genero humano .
0 que ganhou a Peninsula iberica com a inquisi
ção ? A llespanha era sem a menor duvida a primeira
nação da Europa pelo fim do secolo 15 - Portugal era
uma verdadeira potencia maritima ; e nesse genero
muito mais adiantada que a sua visinha . Espanta o nu
mero de suas esquadras e de suas descobertas nos se
culos 15 ee 16, devidas a essa famosa Escola de Silves ,
creada e presidida pelo sabio Infante D. Henrique filho
de D. João 1.º ( 1 )
Com quem creou o Infante essa brilhante Escola ,
quem forão seus primeiros mestres ? forão Judeos ; por
que erão elles os unicos mathematicos , astronomos e
Physicos daquelles tempos — forão elles que applicarão
á marinha de Porligal a bussola e o astrolabio , instru
mentos inventados por esses Arabes da Hespanha, em
cujas escolas aprenderão ( 2 ).
Ainda mais , Sr. padre Campos , para que possais
avaliar a importancia da nação portugueza no seculo 16,
vos indicaremos um documento , que podeis ler, se qui
zerdes , no Diario de Pernambuco de 16 de Julho de
1857 ( ha dez annos ) – he um artigo sob o titulo -–-
Poder maritimo de Portugal no seculo 16.0 - em que
vem uma lista de todas as esquadras , que sabirão de
Portugal para Asia, para Africa e para o Brazil , com o
numero de páos, e os nomes dos Capitães-móres, que
as commandavão .
Pois bem , o que he feito dessa lIespanha e desse
( 1 ) Indice chronologico das navegações, viagens, descobri
montos e conquistas dos Portuguezes, pelo Cardeal Pairiarcha de
Lisboa Fr. Francisco de S. Luiz.
( 2 ) Dizem alguns escriptores, que o Astrolabio fôra inven
tado por um desses Judeos , que acompanhavão como Cosmogra
phos o Infante D. Henrique.
271

Poringal do seculo 16 ? Dizem alguns historiadores que


800 mil Judeos ( e outros mais de um milhão ) deixarão
a Hespanba, e forão levar a loda a Europa o seu saber,
a sua riqueza e a sua industria -- mais de 200 mil dei
xárão Portugal ; e os que ficarão forão reduzidos á ul
lima miseria ( 1 ) . Emquanto o resto da Europa se illus
trava com as sciencias dos emigrados hebreos, a Penin
sula iberica se embrutecia , trocando a industria pela
poltroneria, o saber pela ignorancia crassa da fradaria ,
>

e a riqueza pela miseria e pelo caldo das portarias !


Em Portugal sobre tudo a pobreza era o estado
normal do povo - a propria nobreza era pobre , e vivia
dos bens da Coroa ou das Ordens militares ricos só os
Conventos , as abbadias, as confrarias e nada mais . Dos
poucos bens livres que restavão quasi todos estavão gra
vados com encargos pios . O estado da lavoura era de
ploravel -
o commercio e a industria estavão pas mãos
dos Judeos . A que estado pois ficaria reduzido Portugal,
depois da emigração ou da perseguição dos Judeos ?
Como vierão ter os Judeos á peninsula iberica , quan
do , em que tempo ? Encontramos diversas opiniões e
todas ellas poden ser mais ou menos verdadeiras. Di
zem alguns historiadores , que a primeira emigração, que
veio ter á Peninsula , foi em consequencia da conquista da
Palestina por Nabucodonosor — outros affirmão,, que os
C

Judeos começarão a frequentar os portos da Peninsula


por via do commercio em tempo dos Macabeos – pre
iendem ontros que fora depois da ruina de Jerusalem
por Tito, quando se dispersárão pelo mundo, que vierão
ier á llespanha. Seja o que for, o certo he que na in
vasão dos barbaros do norte já existião Judeos na Pe
ninsula , confundidos com os Cantabros , Vasconsos , Cel
tas e Iberos .
Durante o dominio dos Godos correrão os Judeos
fortuna varia . Nas leis gothícas se encontrão muilas ten
dentes a opprimil- os e a conserval- os na inferioridade a
respeito dos Chistãos. Com os Arabes , porém , a sua sorle
melhorou , não porque o Crescente fosse mais tolerante
( 1 ) Ozorio De rebus gestis Emmanueli A. Herc . Orig .
da inquisição em Portugal.
272

que o Christianismo; mas porque os Arabes crão mais


illustrados que os Godos. Panor. V. 1. p . 19. )
Foi nessa nova sociedade que os Judeos participarão
de todo o saber dos Arabes , confundindo -se com elles , a
ponto de que os grandes sabios da raça judaica passas
sem como philosophos arabes , como por exemplo : Avi
cena no seculo 10 ) , Avenzoar e Averrhoes nos seculos 12
e 13, e outros muilos sabios de origem judaica, consi
derados como Arabes , á cojas escolas pertencião.
Os Arabes introiluzirao na llespanha a medicina
e a philosophia dos Gregos ; elles traduzirão o Organon
de Hypocrates e as obras de Aristoleles. Forão elles que
creárão esse systema mixto de philosophia racional emo
ral , que prevalece ! até fios do seculo passado. Inven
tárão oul introduzirão a bussola , se he que fora inveni
ção dos Chips muitos seculos antes ; mas decididainente
inventárão a algebra ; e como diz o Barão de Humboldt
no sen Cosmos, forão elles os verdadeiros fundadores
das sciencias physicas. As escolas da Andaluzia não erão
inferiores á de Bokhara na Asia , tão afamada no seculo
10, e que tão grandes homens produzio.
Os Judeos, confundidos com os Arabes, primario
em todas as sciencias e artes que estes professavão ; 0
á proporção que o Christianismo avançava na conquis
ta contra, os mouros , estes se retiravão, mas ficavão os
Judeos , de quem se servizo os Christãos como medi
cos , mathematicos, astronomos e banqueiros.
O certo he que até meiado do seculo 15 os hebreos
tinhão decidida preponderancia na Peninsula iberica . Foi
essa mesma preponderancia que os arruinou - o ciume
e a inveja desencadearão contra elles todo o odio popi
lar, açulado pelo Clero , que não podia suportar as exi
gencias dos exactores fiscaes quasi todos judeos.
Eis abi pois a historia - a peninsula iberica perdeu a
maior parte da sua população e da sua riqueza com a
inquisição. Embruteceu-se , tornando - se fraca e impo
tenle-Portugal perdeu todas as suas praças na Costa
d'Africa , e afinal quasi todas as suas preciosas conquis
las da Asia (1) . A sua marinha poderosa aniquilou - se ;
( 1) Veja -se no Jornal do Recife de 5 de Setembro de 1866
um Officio do vice-rei da India , Saldanha da Gama, descreven
273

-Os seus grandes navegadores desaparecerão. Em com


pensação ficarão-lhe muitos convenios, muitos frades , e
de mais a mais a bulla da santa crusada !
Sem embargo acreditamos que a inquisição foi um
facto providencial , assim como o poder temporal do pa
pa -- neste porém facilmente encontramos o designio da
Providencia, como uma necessidade até certo tempo pa
ra a unidade do Christianismo - mas quanto a inquisi
çào força he confessar, que ainda não pudemos desco
brir o desiginio supremo, ou o fim de semelhante ins
lituição , a não ser uma epocha de vingança , de cruesa ,
de expoliação , de rapina , de martirio e de torpesas
foi uma epocha de provações, e nada mais . Altos são
os juizos de Deos !
Todavia he incomprehensivel o desenlace de alguns
factos na marcha ascendente do genero humano para a
sua perfeição . Os Judeus, lão perseguidos pela igre
ja de Roma , tão vilipendiados e maltratados pelas De
cretaes dos papas ; tão abatidos pelo odio popular cimen
tado pelo clero da Hespanha e de Portugal, são hoje os
arbitros das nações pelas súas grandes riquezas - fazem
empres!imos ao papa para sustentar o poder temporal, e
gosão de uma consideração collossal nos povos mais civili
salos(2) ; em quanto que essa Roma , outr’ora tão soberba
do os effeitos da inquisição de Goa , e da perseguição promovida
pelos frades contra os naturaes do paiz ; de tal sorte, que fizerão
despovoar e empobrecer aquella vasta e rica colonia, obrigando
a einigrar a maior parte dos indigenas, que forão levar a rique
za e a industria para as possessões inglezas e francezas.
(2) Agora mesmo acaba de dar- se um facto singular para
prorar a incomprehensibilidade dos designios da Providencia.
Quando cholera devastava a Cidade de Londres o anno proximo
passado, notou-se que em todo o bairro dos Judeos no East-End.
mesmo na classe mais pobre, nenhum caso se deu dessa moles
lia , escapando milagrosamente do flagelo. Em 1849 já se havia
observado o mesmo phenomeno, dando-se então um caso por 12
pessoas entre os christãos. O que quer dizer que quando a clas
se pobre dos Judeos escapava da epidemia , morrião milhares de
Irlandezes catholicos- e razão de semelhante milagre ? E '
que os Judeos são mais aceiados, mais sobrios que os Irlandezes
os quaes alem de sujos e porcos quasi todos são dados a bebi
das espirituosas. E' que Deos premeia a virtude onde a encontra ,
e pune o vicio em qualquer parte em que se oculte.-( J. do Re
cife de 18 de Janeiro de 1867 )
35
274

e lão feroz, lioje agonisa dolorosamente , sew qne haja


uma só nação catholica, que ouse estender-lhe a mão .
>

Tão certo he que Deos escreve certo por linhas lortas.


Finalmente somos forçados a concluir com o artigo
sobre a inquisição. Poderiamos dizer muito mais, se
quizessemos fazer um livro em lugar de um folheto ; mas
isto seria um sacrificio sem compensação. Agora res
la-nos o final dos artigos do Sr. padre Campos; isto he,
a Invocação dos Santos, em que se elle espraiou, com:
3

promettendo a causa , que procurou deffender .


Cumpre advertir, que entramos nesta discussão com
muita repugnancia ; e protestamos, que a não havermos
sido provocados tão directamente pelo Sr Campos, nun
ca diriamos uma palavra sobre semelbante assumpto .
Vá pois por conta daquelle Senhor o que dissermos
forçados por uma imprudencia, que não tem quali
ficação .

Invocação dos Santos - Culto das Imagens.

A invocação dos Santos e o culto das imagens forão


mais duas instituições ou praticas roubadas ao paga
nismo . Não era mister, que o Sr. padre Campos citas
se o santo padre Homero em favor da sua ihese, como
havia citado os santos padres Virgilio e Ovidio em favor
do Purgatorio - bastaria ler Bergier nos seus artigos
Evocação e Paganismo- para nos convencermos destas
verdades. Quem havia tomado dos Pagãos o seu Pur
gatorio, bem podia tomar tambem os seus semideoses e a
sua apotheose .
Com effeito os Pagãos, acostumados com o seu
Polytheismo, não podião acomodar-se com o Monotheis
>

mo judaico. Um só Deos, sem forma alguma material,


em um Céo deserto, quando elles tinhão o seu Olympo
tão povoado de Deoses e Deosas , era cousa que elles
não podião conceber . No segundo seculo foi pois ne
cessario fazer conservar a Jesus Christo a forma huma
na , depois da sua ascenção ao Céo , onde não podia
existir a materia corruptivel, como diz S. Paulo ; por
់ 275
consequencia onde só permanece a sua natureza di
vina .
No fim do 4.° seculo um Concilio de Constantino
pla declarou que Maria era mai de Deos ; por tanto ahi
iemos já duas formas humanas ( homem e mulher ) ha
bitantes do Céo ; mas ainda assim os convertidos do Pa
ganismo não comprehendião , que Deos vivesse tão so
litario ; ou que o culto fosse dirigido a um Ente imagi
nario , em lugar de sel-o a um Ente visivel , palpavel , cu
jas formas erão, por assim dizer, as das suas proprias
imagens.
Ora, depois da conversão de Constantino quasi to
do o imperio romano se tornou christão ; ao passo
que os Judeos , dispersos não offerecião neophitos para
a nova propaganda ; assim he que do 4.° seculo por dian
le os Christãos erão todos de origem pagāa , cojas tenden
cias erão para o politheismo. Tornava -se pois de ne .
cessidade ampliar o pumero dos habitantes do Céo por
meio de novas levas , dando-se a palavra Santo signifi
cação mui diversa do que lhe attribue a Escriptura .
Com effeilo na infancia das nações os caracteres de
rei e de sacerdote achavão -se muitas vezes unidos. Es
les homens , quasi sempre elevados pelo conseblimento
commum , procuravão o bem de seus semelhantes ; e por
isso erão não só respeitados e obedecidos durante a vi
da , como adorados depois da sua morte . Erão pois con
siderados como Deoses da primeira ordem-Dii majo
rum gentium - Os fundadores das republicas, os legisla
dores e os heróes de cada povo erão lidos como Deoses
da 2.a ordem -- Dii minorum gentium .
A medida dos beneficios, que estes seres privilegia
dos fazião aos seus semelhantes, recebião delles as hon
ras e distinções , não só em vida como depois de mor
tos - a magestade foi o primeiro premio , e a divindade
o segundo ; ambos se adquirião por meio de serviços
relevantes feitos aos homens , a quem era facil naquel
les dias de simplicidade e de superstição fazer passar da
admiração e gratidão àá adoração e á crença .
A passagem de heroe, rei , sacerdote ou legislador
a Deos ou Semideos, fazia - se por meio de uma ceremo
nia completa, a que se chamava apothcose - cra a Cano
276

nisação dos Deoses do paganismo, ou dos Santos, que


se. Ihes ajuntavão no Ceo . Até nisio mesmo os catholi
cos imitao perfeitamente os pagãos , tanto no processo
das virtudes e merecimentos do morto , como na cere
monia da Canonisação , pela qual fica o Canonisado ips
cripto na lista dos Santos, e aplo para ser collocada a
sua imagem em um altar, e receber adoração .
Desde o seculo 5 , º para diante as igrejas estarião re
pletas de imagens, se a isto não se oppusesse o primeiro
mandamento da lei de Deos , Todavia começou -se a
collocar nellas as imagens de Maria e de Jesus ; mas
ninguem se atrevia a prestar- lhes adoração até o seculo
9.º, em que definitivamente foi decretado o cullo das ima
gens. Bem vê pois o Sr. Padre Campos que a igreja
passou perfeitamente durante nove seculos sem Santos,
e o Christianismo fundou-se , cresceu e prosperou de uma
maneira espantosa sem o colto das imagens
Dissemos que desde o seculo 5.º as igrejas estarião
cheias de imagens, se a isto se não oppuzesse o primei
ro mandamento da lei de Deus . Com effeito diz o Exu
do, Cap. 20 vv. 1 a 5 o seguinte- , Deos fallando a
Moysés disse : Eu sou o Senhor teu Deos , qne te tirei
da terra do Egipto, da casa da servidão. Não terás
Deoses estra ngeiros ( 1) diante de mim . Não farás pa
ra ti imagens de esculptura (2), nem figura alguma (3)
de tudo o que ha em cima no Ceo , e do que ha em baixo
na terra ; nem de cousa , que haja nas aguas debaixo da
terra . )

(1 ) Outra falsificação da biblia pela igreja catholica; outra


fraude para atenuar o grande peccado do cnlto das imagens. O
que quer dizer Deuses estrangeiros? Onde estão os nacionaes se
não entre o paganismo ? Eis ahi a tradução deste verso pelos Seten
ta --- Não terás outros Deuses, que não sejam eu » . E assim o lião
nas suas biblias,S. Cypriano e S. Agostinho - Non habebis Deos
absque me, ou præter me - Não sou eu que o digo , Sr. Padre Cam
pos, he o proprio padre A. Pereira no lugar citado.
(2) Imagem de esculptura - Debaixo deste nome se entendem
todas as imagens de vulto, de qualquer materia que sejao, como
estatuas (justamente as actuaes imagens dos nossos santos), rele
vos, & A. Pereiru .
(3) Figura alguma -Debaixo deste nome se entendem de
mais a mais as pinturas (como os retabulos e os registros) os de
buxos, ou sejao em pedra, ou em pau ou em lenço . A. Pereira,
277

« Nào as adorarás, nem lhes daràs culto, porque eu


sou o Senhor teu Deos, o Deos forte e zeloso , que vin
ga a iniguidade dos pais nos filhos até a terceira e quar
ta geração daquelles que me aborrecem . »
No Levitico , Cap . 26- « Eu sou o Senhor vosso
Deos. Não fareis para vós idolos nem imagens de esculp
tura , nem levantareis columnas ; nem na vossa terra po
reis pedra assignalada para a adorardes, porque eu sou
o Senhor vosso Deos ) ..
No Deuteronomio, Cap . 5 - Não farás para li ima.
gem de esculptura , nem figura alguma de tudo que ha no
alto do Ceo, nem em baixo na terra.. Não as adorarás,
nem lhes darás cullo, porque eu sou o Senhor leu Deos . )
Bem ve o Sr. Padre Campos, que este he o primei
ro mandamento da lei de Deos, que os catholicos sup
primirão, on a vossa igreja, para poderem a seu salvo
faser imagens, prestar - lhes collo e adoral-as ; como se
fosse possivel illudir on enganar a Deos por um sacri
legio tão nefando , como faser da casa de oração um mu
seo de pequenos idolos, tão ridiculos uns como os ou
tros, quer sejam de homem , qoer sejam de mulher,
quer de quadrupede quer de ave, porque tudo islo he ex
pressamente probibido por Deos --por cuja infracção abi
-

está a sua vingança, não só nos paes como nos filhos até
a quarta geração.
Dissemos que a igreja tinha prosperado durante 9
seculos sem o colto das imagens e a canonisação dos
Santos . Com effeito, o papa Constantino (708) foi o pri
meiro que decretou o culto das imagens, e era tal a ten
dencia dos Cbristãos de origem pagāa para o politheis
mo , que o Imperador Leão 3.º foi obrigado a proscrever 至

semelhante idolatria , ou semelhante collo , do qual abu


sava com rustica superstição a cega credulidade do povo.
Esta medida produzio sedições e desordens promovidas
pelos padres e frades interessados na conservação de um
ial abuso . Os Iconoclastas (quebradores de imagens) fi
carão sendo um objecto de horror para a plebe.
IC
0
Na Italia succedeu ainda peior. Gregorio 2. ° sus
tenta o Decreto de Constantino, e Irava com o Impe
rador Leão uma luta sobre o culto das imagens . Gre
278

gorio 3.0 fez mais : por outro Decreto (731 ) renova o de


Constantino sobre o mesmo culto , e condemna os Icono .
clastas ; fasenilj sublevar toda a Italia contra o Impera
dor. Morto este , ha um peqneno interregno, e depois
sobe ao throno Constantino, filho de Leão 3. ° que foi
ainda mais inhexoravel com o culto das imagens que
seu pae .
O Imperador Constantino convoca um numeroso Con
cilio em Constantinopla para acobertar- se com a autori
dade da igreja . Neste Concilio não somente foi condem
nada como idolatria toda a lionra , que se tribulasse ás
imagens em memoria dos seus originaes , como até forão
condemnadas a exculplura e a pintura como arles abo
minaveis. Depois dessa epoca os Imperadores do Orien .
te cahirão em grande desprezo em Roma e na Italia , on
de os papas ja contavão com a protecção dos Franceses.
Sem embargo, Carlos Magno se decide contra o culto
das imagens. O Concilio de Francfort, presidido por elle,
condemnou, semelhante cullo . Leão 4.º , filho do Impe
rador Constantino , prosegue na perseguição das imagens ,
chegando até a desterrar sua propria mulher, a Impera
triz Irene, por haver occultado imagens debaixo da ca
beceira da sua cama . Convocado o 2.0 Concilio de Nicea
(787) decidio que se devia dar as imagens a adoração de
honra , e não a verdadeira latria, que só he devida á na
turesa divina .
O papa Adriano, mandando para França a traducção
das actas deste Concilio , acabou de escandalisar os Fran
cezes , prevenidos já contra os Gregos e contra o seo
culto ; por que na monarchia não se dava honra alguma
as imagens (Gaillard, 2.0 vol . Pariz 1785) .
Carlos Magno mandou compôr por varios bispos , e
publicou em seo nome os Livros Carolinos, cujo titolo
he o seguinte- « Contra o Concilio que se teve occulta
e arrogantemente na Grecia, para fazer adorar as ima
gens » (Gaillard , ibid .) Somente este lilulo dá idéa das
injurias, que contem este livro contra o Concilio de Ni.
cea (0 2.0) , e contra o culto das imagens.
Finalmente o Concilio de Francfort reprovou o de
Nicea com o ultimo despreso, e o rei mandou ao papa os
seos livros Carolinos, como para atear o fogo das dispu
279

tas . Mas o papa então devia tudo a Carlos Magno, e a


sua resposta foi cheia de circumspecção e de respeito,
posto que sustentando a doutrina de Nicea , sem con
demnar a da França ; e dizendo afinal, que se recebera
o Concilio dos Gregos fora para evitar que cahissem em
novos erros . (Eginhard, Hist. de Charlemagne) ( 1)
O papa Leão 3.º, successor ve Adriano, em 796 man
dou logo a Carlos Magno o estandarte de Roma, pedindo
lhe que enviasse algnem para receber o juramento de
fidelidade dos Romanos- prova sensivel dos seos direitos
de soberapia sempre reconhecidos. Tres annos depois
Leão teve que fugir de Roma perseguido ; mas Carlos o
fez voltar aquella cidade cheio de honras, e dispondo -se
para o acompanhar. Com effeito, chegando Carlos Magno
a Roma , foi proclamado pelo papa na igreja Imperador
dos Romanos, contra a expectativa do mesmo Carlos , que
segundo Eginhard não esperava tal cousa .
Todas essas demonstrações , e muitas outras ques
tões theologicas, em que o Imperador gostava de ingerir
se , fiserão esfriar um pouco o seo zelo a respeito da
questão do culto das imagens ; e como a decadencia da
sua dynastia começou em seos filhos , de quem os papas
não fiserão caso , não mais apparece em França a referida
questão até fins do seculo decimo (986) , em que o papa
João 16 se lembrou de canonisar os Santos ; isto he , de
introduzir a apotheose dos pagãos, depois do colio das
imagens . Alguns autores dizem , que já Adriano 3.0, um
seculo antes , havia decretado a mesma Canonisação , que
só veio tornar- se effectiva do secolo 10 por diante.
Por tanto até o seculo 9.º não houve Santo ( como
se entende hoje ) , nei culto de imagens, nem adoração ;
por que Deos não necessita do saber do homem para
deffender as suas obras (Job , Cap . 13, v . 7) , vem de com
>

panhia , por que enche por sua grandesa lodo o espaço ,


nem de agentes e ministros, por que a sua soberana von
taile não ha quem resisla sem mister de executores.
E se Deos não habita em templos feitos pelos ho
mens (Act . apost. Cap. 17 v . 24) ; se os teinplos são
apenas casas para a oração , onde os fieis vão rogar a

( 1 ) Veja -se a traducção em francez por benis - Pariz 18 ! 2 .


280

Deos em comum pelos vivos e pelos mortos ; le uma ido


latria abominavel encher essas cazas de imagens profanas,
e desviar para ellas a oração , que se devia dirigir unica
mente a Deos .
Dizem alguns que os Apostolos fallarão de Santos ;
por tanto a instituição do culto e da canonisação, se não
he de origem divina, he pelo menos do tempo dos Apos
tolos . Na verdade S. Paulo nas suas cartas , e outros
Apostolos , assim como S. Lucas nos Actos apostolicos
fallão muitas vezes de Santos-mas em que sentido ? . Ve
jamos : S. Paulo usa muitas vezes dessa palavra em duas
accepções --a 1.a quer dizer por ella christãos ou con
vertidos, e esta he a verdadeira denominação-a 2.a os
pobres.
Chama Santos aos Conversos, ou aos que acredita
vão em J. Christo- Sois cidadãos dos Santos e domes
ticos de Deos ) dizia elle aos Ephesios- e nesse mesmo
lugar elle se chama ou se diz o minimo dos Santos. Na
mesma Carta aos Ephesios , continua— « e para que pos
saes comprehender com lodos os Santos qual seja a
largura e o comprimento, a altura e a profundidade » E
no Cap. 6. v . 18. manda rogar por todos os Santos . Na
Carta aos Colossenses, Cap. 3 , v . 12, diz tambem- , vós
pois como escolhidos de Deos , Santos e amados, revesti
vos de entranhas de misericordia . )
Ainda chama Santos aos christãos da igreja de Co
rintho (1 Corioth . cap . 1 v . 2) dizendo : « A igreja de
Deos em Corintho, ang santificados em J. Christo , cha
mados Santos, com todos os que invocào o nome de N.
S. J. Christo em qualquer lugar delles e nosso » (Idem ,
Cap. 6. v. 1 .)- « Atreve-se algum de vós, teodo negocio
contra outro, ir a juizo perante os inimigos , e não á pre
sença dos Santos ? Mas o que se vê he, que um irmão
litiga com outro irmão , e isto diante dos infieis. )
E na mesma carta aos Corinthios (Cap . 7 , v . 14) conti
nua S. Paulo - « Por que o marido infiel he sanctificado
-

pela mulher fiel; a mulher infiel pelo marido fiel - d'ou


ira sorte vossos filhos não serião limpos ; mas agora são
Santos . »
Na Carta aos Romanos (Cap . 1. v . 1.) « A todos os
que estão em Roma, queridos de Deos , chamados Santos,
>
281

graças vos sejão dadas , e paz de parte de Deos nosso pae ,


e da de J. Christo nosso Senhor > Ainda ( Roman. cap .
15. v. 25) « Estou de partida para Jerusalem em servi
co dos Santos. >>
III

Bem se vê que em todas essas passagens, e em


muitas outras, que seria enfadonho copiar, S. Paulo cha .
ma Santos aos que creem em J. Christo , isto be , aos con
vertidos . Esta he a espressão geral , ou o sentido da pa
lavra Santo , empregada por S. Paulo tantas vezes , como
ainda na seguinte passagem- (Romanos, Cap. 16 v . 1 e .

2) « Recomendo -vos a nossa irmãa Febe , que está no


serviço da igreja de Cenchris, para que a recebaes no Se
nhor, como devem fazer os Santos. )
Quanto aos pobres, eis abi como se expressa S.
Paulo (Romanos, Cap. 15 v . 26 ) « porque à Macedo
nia e a Acaia tiverão por bém fazer uma colleta para os
pobres do numero dos Santos ( dos conversos ) , que es
ião em Jerusalem » ( 1 Corinth. Cap. 16 v.1. ) « Quan
to as colletas , que se fazem a beneficio dos Santos ( po
bres ) , fazei tambem vós o mesmo que eu ordenei as Igre
jas da Galacia . « Ultimamente ( 1 Thimoth . Cap. 5. v .
10 ) - « Approvada com testemunho de boas obras, se
edúcou hem a seus filhos, se executou a hospitalidade,
se lavou os pés aos Santos ( pobres ), se accusio ao ali
vio dos atribulados, se praticou toda a obra boa ) Eis
ahi pois como S. Paulo chamou tambem Santos aos po
bres conversos .
Quando não fosse suficiente o primeiro mandamen
to da Lei de Deos para obstar o culto das imagens, como
fica domonstrado, bastaria o que refere S. Lucas ( Act .
apost . Cap . 10 , v . 25 e 26 ) -- « E aconteceu que quan
do Pedro estava para entrar , sahio Cornelio a recebel-o ;
e prostando-se a seus pés o adorou - Mas Pedro o levan
tou , dizendo : levanta-ie, que eu tambem sou homem ! ; )
S. Pedro não quiz ser adorado em carne para sel-o em
pedra , páo ou brouze !-são gostos .
Passemos agora a provar com o proprio Abbade
Bergier, no seu Dicc . de Theologia, que a invocação dos
Santos não he outra cousa senão a Evocação dos Decses
36
282

do paganismo. O que era a evocação ? era uma oração ,


ou uma especie de prece, pedindo aos Deoses tutelares
da Cidade um favor ou mercê qualquer ; assim como
chamando os Deoses protectores de uma nação inimiga
para que abandonem os seus protegidos, e venbão habitar
entre os supplicantes, prometendo erigir-lhes templos e al
tares, e outras offrendas em paga da sua mudança . As
offertas e as promessas erão por tanto o meio conhecido
entre os pagãos para merecer um beneficio dos seus
Deoses !
O que he porém a invocação dos Santos ? Uma ora
ção , uma prece, uma supplica dirigida a qualquer santo
para que se digne ( dizemos theologos- interceder )
conceder -nos tal ou qual favor, como a nossa propria saude,
ou a de um parente ou amigo enfermo, ou para que façamos
uma boa viagem quando a emprehendemos ; ou que seja
mos felizes em uma empresa ; ou a satisfação de um de
sejo - para o que sempre acompanhão promessas ; e es
sas promessas exigem oma prompla paga no caso de ser
feito o favor .
Essas promessas são tanto mais valiosas quanto mais
caro custão, quer sejão missas, festas, edificação de uma
igreja ou de um altar, resplandores, encarnação nova;
esmolas para os mesmos Santos ( prebendas das irman
dades ), de maneira que nunca o beneficio ou milagre
fique por pagar, nem o milagre se faca por graça gra
tuita—isso não ; de que hão de viver os Santos, se não
trabalhão ?
A Igreja de Roma , para fugir da impiedade do cul
to das Imagens , faz crer que não são mais do que si
mulacros, e não vera effigie do Santo on Santa que re
presentão , como os Deoses do paganismo, que erão uma
ou a mesma cousa que suas imagens, onde habitavão.
Mas isto mesmo não passa de uma alicantina - as vossas
imagens tem para o povo a mesma significação-não
são simples simulacros, não são copias , mas os proprios
originaes ; não he a materia bruta, mas a encarnação do
Santo em pessoa ; e tanto assim heque a vossa igreja con
demna irremissivelmente ás penas eternas do inferno,
e as leis civis impunhão a pena de morte , a todo aquelle
que commelle o menor desacato contra uma imagem .
283

As imagens, por tanto, eutre os catholicos não são


vãos simulacros mas o Santo em pessoa , ao qual he de
dicado um templo , como por ex : igreja de S. Francisco,
de S. José, de S. Gonçalo, de Santa Anna, de Santa Ri
ta, &c . A propria igreja catholica assim o reconhece ,
quando manda benzer a imagem para receber adora
ção. No espirito do povo o benzimento da imagem he
a encarnação do Santo , ou a evocação que o obriga a
vir habitar na sua imagem, ou por outra, he a transmi
gração do Santo para a sua toca.
A oração, a supplica he sempre dirigida a um San
to, e he este quem faz o milagre ; e assim se costuma
dizer : tal Sanlo he muito milagroso ! O fanatico nunca
pensa em Deos-a idea de Deos nunca lhe passa pela ca
-

beça ; o seu espirito está cheio de outros Deoses, que


são os tantos Santos da sua devoção ! Nunca ouvi
reis a um pedinte dizer : devolo de Deos , mas sem
pre devolo de Nossa Senhora do Carmo, ou das Dôres ou
da Penha , devoto do patiarcha S. José, ou de Santa An
na , ou de Santa Thereza &c. A devoção pois só he de
vida aos Santos , por que só elles fazem milagres .
Se uma dessas beatas entra em uma igreja , onde ha
varios altares, dirigi-se a todos elles , e a cada Santo en
via uma oração e faz uma supplica ; e naquella cabeça
supersticiosa ha de tudo menos a idea de Deos, de que
se não recorda . Ella sabe de cór uma porção de rezas,
e a unica que devia recitar a toda hora, o Padre Nosso ,
porque nos foi ensinada pelo proprio Jesus Christo, he
justamente aquella que raramente recita.
Na cabeça de uma beata Deos nunca entra nas suas
combinações supersticiosas - todas as invocações de Ma
ria Santissima são para ella outras tantas entidades reaes,
cujo poder milagroso depende as vezes da forma da
oração , da offrenda ou da promessa . Oh ! as promes
sas ! he muito commum dizer-se : fiz uma promessa a
Santo Amaro, ou fulano fez uma promessa a Santo An
tonio . (1 )

( 1) Ha bem poucos annos, en. uma das ruas principaes desta


capital, uma familia abastada, que possuia alguns escravos de
ambos os sexos empregados no ganho, recebia a noute o sala
284

Dizei- nos agora, Sr. padre Campos, onde está a


differença entre a evocação pagãa e a invocação roma
na ? qual a differencia entre a Estatua de Juno ou de Mi
nerva e a imagem de Santa Anna ou de Santa Cecilia ?
Ha, Sr. padre, assim mesmo grande differença, e vem a
ser, que as Estatuas dos Deoses do paganismo erão qua
si sempre obra dos maiores artistas, dos primeiros es
cultores ; erão verdadeiros monumentos da arlé - mas
as imagens dos vossos sanlos são o que ha de mais tos
co , de mais miseravel e de mais ridiculo pela imperfei
ção do trabalho, e até mesmo pela vilesa da materia , por
que as vezes he apenas um pedaço de páo ouco , com a
figura de uma cara, e nada mais
IV

Cremos que não insistereis no sentido da palavra


Sanlo , empregada por S. Faulo, pelo proprio d . Christo ,
pelos Apostolos, e antes por Jeremias, por Joel , e no
Livitico, e em outros lugares dos livros sagrados . Pois
bem , Bergier diz que esse sentido era justamente o que
lhe davão os flebreos, os Gregos , e depois os Latinos ;
isto he , dedicado, consagrado a Deos ; porque assim erão
considerados todos os convertidos ; e he por isso que
S. Paulo os chamava Santos.
Nesse mesmo sentido era que a Judea se chamava
Terra Santa, e Jerusalem a cidade Santa , porque erão
dedicadas a Deos , e alli não se praticava a idolatria .
E o que tem tudo isto de commum com os vossos san
rio desses escravos, e um vintem que faltasse era motivo para cas
tigo violento , mas não era logo .
As 8 horas da route começava um chamado terso cantado
com um tal berreiro, que encomodava a visinhança e durava até
depois das 9 - As quatro horas da manhãa começava o chicote e
a palmatoria a pagar os feitos da vespera-era o ajuste de con
tas. Esta operação durava as vezes uma boa meia hora , seguin
do - se de novo o terso cantado até depois das cinco da manhãa .
Então cameçava o chamado serviço de casa , e depois para o ga
nho . Uma familia, que ainda existe, e morava em uma casa de
permeio , nos contou muitas vezes esses rasgos de selvageria, no
ineio de um povo que se diz civilisado . Eis ahi a religião, que
o Sr. padre Campos preconisa : bacalhau e resa , um terso e uma
surra ! que lhe faça hom proveito .
285

tos de hoje ? Pois bem , Sr. Padre , juramos pelo San


>

tissimo nome de Deos , que não quereriamos viver em


companhia com alguns delles neste mundo , e muito me
nos no outro .
Felizmente , para bonra e gloria de Deos , essa olaria
de faser imagens , e essa chancellaria de dar passapor
tes para o Ceo, estão acabando. Ainda esperamos na mi
sericordia divina , que no corrente anno não se darão o
escandalo e a impiedade de ver elevar sobre um altar , e
consagrada á veneração dos verdadeiros Christãos , a ima
gem do mais torpe e do mais infame assassino , que ja
mais existio ; do horrivel fanatico Pedro de Arbues , in
quisidor geral da Navarra , muito mais infame e cruel que
Torquemada e Cisneros .
Segundo o Principe dos Apostolos (S. Pedro) um ho
mem não pode ser adorado ; nem a sua imagem , por
que assim o prohibe expressamente o primeiro manda
mento da lei de Deos , e por que Deos he o Senhor for
te e zeloso , que castiga a iniquidade dos paes nos filhos
até a quarta geração . Mas Roma confunde a todos n'um
só culto, embora diga que são cultos differentes ! Pois
bem , Sr. Padre , como não tendes Deos , substituistel- o
pelos vossos santos ; de maneira que , como diz S. Paulo ,
(Galatas, cap . 4 , v. 8 ) « Como não conheceis a Deos ,
servis aos que por naturesa não são Deoses . »
Desta arte o unico cullo , que existe para vós he o
dos Santos , ou o das imagens, o da materia crassa , o
dos idolos de loda a especie e forma, quer homens . quer
mulheres ou meninos , quer aves quer quadrupedes ; sem
contar com as reliquias, outro genero de adcração lão
estupida e nojenta, que as vezes recahe sobre um tra
po , sobre um pedaço de burel ceboso , ou sotaina , ou
qualquer outro vestido que tivesse pertencido a um de
VOSSOS santos .
Tudo profanaes, tudo materialisaes, até as dores
moraes ! Cravastes selle punbaes no seio purissimo da
Virgem Santissima ; e depois dessa profanação, appre
sentais a sua imagem , assim ultrajada, á veneração dos
fieis ! Impios ! E ainda mais impios que os proprios
Judeos ! Estes romperão a superficie das carnes de J.
Christo por meio de açoutes - vos outros rasgastes-The
286

o peito, arrancando-lhe o coração para apresental-o, ain


da vertendo sargue , aos olhosdos Christãos ! Quem se
rá mais assassino vós ou os Judeos ?
Até do parto fisestes um objecto de adoração e
do parto de uma virgem !! O que vale o pudor para
vós ? Agora nos lembramos do que disse o celebre Dr.
Patroni, que acaba de morrer em Lisboa , na sua Biblia do
Justo Meio- Menstruo Sexual, portentosa obra do Crea
dor, eu me transporto aplaudindo com acatamento os
maravilhosos effeitos da tua sacra essencia ! » Mas o Dr.
Patroni, dirão, passara por um desassisado ! e a vossa
igreja, Sr. Padre ?
O proprio Deos não escapou das vossas profana
ções ; por ahi andão estampas representando a Deos em
forma humana, envolto em uma grande capa , e tendo na
cabeça um triangulo luminoso . Uma das grandes vir
tudes de Deos he a Providencia : pois bem , nem esta es
>

capou da vossa profanação -ahi a representaes na forma


de um grande olho humano , inscrito n'um triangulo . Sois
por tanto Antropomorphitas : ( 1 ) seita aliás condemnada
pela mesma igreja !
Não admira porem , Sr. Padre Campos ,que a vossa
igreja jogne lão porcamente sobre a credulidade publi
ca ; o que verdadeiramente espanta he que ainda não
tenhamos um governo, que cuide na educação do posso
povo para preserval-o ao menos daquelles que lhe chu
pão o sangue, pervertendo a sua moral, não só pelo máú
exemplo de uns, como pela ignorancia e bypocrisia de
outros. Em resultado, o que temos nós em materia de
religião ? qual he o ensino religioso, que se dá nas nos
sas escolas , e até nas nossas familias ? Contrista ao ver
dadeiro Christão a falta de sentimento religioso , que se
nota na nossa mocidade .
Eo que he a vossa igreja ? Christka ? não - ella po
de ser tudo : idolatra, pagāa, feiticeira, budhista , brah
mista, menos christãa, isso não , Sr. l'adre ! A religião
christãa he toda fundada no espiritualismo - o Deos de J.
Christo não tem forma alguma material , he puro espi

(1) Antropomorphitas-- hereges que attribuião aa Deos a forma


humana , como typo do primeiro homem .
287

rito ; de maneira que fizestes de uma religião loda espiri


tual o receptaculo da materia corruptivel - substituistes
o espirito pela carne, pela pedra , pelo páo, pelas rou
pas , pelos trapos, e até pelas imundicias !
Para confundir-vos , Sr. Padre , başlão-me as Escrip
turas, e por isso as detestaes — he com ellas que vos hei
de esmagar. Parece que S. Paulo , escrevendo aos Ro
manos, prophelisava tudo quanto passa modernamente
na igreja de Roma , e no seu culto . Com effeito, diz
elle (cap . 1 vv . 23 a 25) « E mudarão a gloria de Deos
incorruplivel em semelhança de figura de homem corrup
livel, e de aves e de quadrupedes e de serpentes.
« Pelo que os entregou Deos aos desejos dos seus
corações, á imundicia : de modo que deshonravão os seus
corpos em si mesmos . »
« Os quaes mudarão a pontade de Deos em menti .
ra : e adorarão e servirão a creatura antes que ao Cre
dor , que he bem dito por todos os seculos- Amen . )
Os padres catholicos, ou a sua igreja distingue os
cultos deste modo : chiamão de latria o que se presta a
Deos ; e de dulia o que se presta aos santos ; distincção
falsa e ridicula , por que ambas essas palavras, de ori
gem grega, tem a mesma significação . E demais, onde
ha entre nós culto a Deos ? onde está o templo dedica
do a Deos . Onde existe outro culto entre nós senão o
dos santos ?
Pelo amor de Deos , disei - nos , Sr. Padre , qual a dif
ferença entre os dous cultos ? Resa-se e prosta -se a gen
te diante dos santos-0 que mais farieis a Deos ? onde
está Deos para vós, para a vossa igreja , para essa Ro .
ma prostituida (na phrase de A. Herculanoj onde o uni
co Deos que existe para ella he o ouro ? Roma devassa ,
cujos costumes escandalisão toda a Italia ?
Se não houvessem santos , nos dirão , quem havia de
interceder por nós ? A invocação dos santos he pois ne
cessaria para a intercessão-he mister pedir-lhes para que
peção por nós ! São pois os santos os intercessores ou
medianeiros entre Deos e os homens.
Pois bem , ainda outra blasphemia, ainda outro sacri
legio ,ainda outra idolatria ; porque substituisles falsos
Deoses a J. Chrislo , unico mediador entre Deos e os ho
288

mens . Eis o que diz S. Paulo a este respeito (Timoth .


cap . 2 v.5) « Porque só ha um Deos, e só ha um mediador
entre Deos e os homens, que he Jesus Christo homem . )
Ainda mais , o mesino S. Paulo em outro lugar (He
breos , cap . 12 , v . 24 ) diz assim— , Ea Jesas, mediador
.

do novo testamento, e a aspersão do sangue que falla me


lhor que o de Abel » Logo como oppondes ao proprio
sangue de J. Christo o dos martyres, em cujo numero
occupa Abel o primeiro lugar ?. Haverá sangue ou sa
crificio mais grato a Deos que o do seu prorio filho imo
lado pelas culpas do gencro humano ?
Desenganae -vos, Sr. Padre, de que a favor da dou
trina da vossa igreja, e do culto sacrilego das imagens
não achareis um só ponto de apoio nas Escripturas ; nem
sereis capaz de citar um só testo, do qual se possa in
ferir ao menos leve presumpção de semelhante culto ;
ao passo que para pulverisar as duas instituições pagãas,
de que faseis alardo (culto e canonisação) basta abrir os
dous testamentos em qualquer parte , onde achareis um
preceito divino , ou im conselho , ou uma advertencia ,
ou uma prohibição formal para vos confundir, para vos
aniquilar.
Nos Evangelhos vereis que J. Christo , não só orava
por seus discipulos, como por todos que cressem nelle,
para que fossem todos unidos, como o proprio Christo a
seu pai . (S. João . cap . 17, v . 20 ). " A que vem pois a
>

intercessão dos santos ? E mais adiante disse tambem o


mesmo J. Christo - Eu estou nelles, e tu estais em
mim ! » Em outro lugar (Ibid . v . 23) Para que elles se -

jão consumados na unidade » Eis ahi, Sr. Padre, a'uni


ca e verdadeira communhão dos santos ; isto he , a uni
dade em Jesus Christo -a unidade da fé nelle , e em
Deos que o enviou para que dessemos testemuho da sua
gloria.
Bem vedes, Sr. Padre, que as Escripturas excluem
a falsa e impura doutrina da vossa igreja ; e que vós , fa
sendo -a valer como verdadeira, daes prova autentica de
que não sois Christão. A vossa idolatria chega a mais :
a intercessão de J. Christo não basta , he mister a dos
santos : o sangue de J. Christo, derramado por nós so
bre o madeiro da Cruz , não tem para Deos tanto valor
289

quanto baste para salvar- nos ; he mister tambem o san


gue dos mariyres ! Será isto verdade ?
J. Christo apresentou-se entre os homens; tomou a
sua forma para fallar -lhes, para instruil-os com a pala
vra e com o exemplo - chamou a todos os homens irmãos
indistinctamente ; tornou-se o medianeiro natural en
tre o homem e Deos-e todavia esquecemol- o ; despre
samos o sacrificio da sua vida, do seu precioso sangue ,
e da sua sagrada paixão para vírmos supplicar a um ou
tro homem como nós, que não deve as suas virludes se
não á intercessão do mesmo J. Christo !! Tudo isto, Sr.
Padre, he tão estupido, que basta a simples rasão para
repellir como insulto a magestade divina , como um sa
crilegio, como uma blasphemia.
V

O Abbade Bergier confunde muito de proposito os


anjos com os santos, como para justificar o culto das ima
gens , citando varias passagens do velbo testamento, em
que os anjos aparecem como commissarios ou enviados
de Deos . Com effeito , no velho testamento são os anjos
que intercedem a Deos pelos homens ; erão elles tam
bem considerados como guardas de cada homem - ain
da hoje costumamos dizer : 0 nosso anjo da guarda .
Erão igualmente os unicos mediadores, antes de J. Cbris
lo ter vindo ao mundo ; porque só elles entretinhão as
relações entre Deos e os homens; erão tambem de cer
to modo os executores da vontade de Deos ! E porem
em que lugar, Sr. Padre , encontraes o menor culto aos
anjos no velho testamento ? ( 1)
E porem ludo isto passou antes da vinda do Mes
sias . Depois que o proprio Deos se revelou aos homens
em carne , e se poz em contacto com elles, que papel
( 1 ) O Padre Antonio Pereira cita os dous cherubins, qoe Deos
mandou collocar sobre os dous lados do Propiciatorio , (Exod .
cap. 25 v. 20) como duas imagens . Mas quem não vê pisto ape
nas dous ornamentos (comosão as cariatides) cubrindo o oraculo
com suas azas de ouro ? Ainda hoje se usa collocar nas tribunas
das igrejas um anjo de cada lado ; mas ninguem ainda se lem
brou de chamal-os imagens, nem de prestar-lhes adoração-são
apenas ornatos architectonicos, e nada mais .
37
290

fasem os anjos ou os santos ? Ainda comprehendemos a


missão dos anjos como arautos da gloria de Deos ; mas
desde que J. Christo foi o mensageiro da boa nova, desde
que elle foi o enviado de Deos para cumprir um dos maio
res misterios, o da redempção , elle se tornou então o
2

unico medianeiro entre Deos e os bomens , entre o Crea


dor e a creatura. Todo outro medianeiro creado pelos
homens , que não o Christo , he um atentado contra a ma
9

gestade divina.
Diz Bergier, que o culto das imagens data da origem
do Christianismo. Ile tão miseravel esta falsidade, que
basta recordar as datas dos Concilios e dos Papas, que
decretarão semelhante instituição para desmentir formal
mente a Bergier. Ora , o christianismo viveo em Roma nas
Catacumbas, nos subterraneos , nas ruinas durante os qua
tro primeiros seculos ; isto he, até a conversão de Cons
lantino . Os Christãos não linhão , nem podião ter igre
jas nem culto exterior, porque não era tolerado ; e Roma,
que era , por assim dizer, o Pantheon dos Deoses de to
do o mundo, só não admittia o Deos dos Christãos ! On
de estaria pois o culto das imagens ?
Nas proprias catacumbas encontrarao-se depois sig
naes visiveis de um collo, mas sem nenhum objecio ma
terial , que o indicasse, nem de escultura nem de pintu
ra . Foi o primeiro Concilio de Nicea, que decretou a
consubstanciação do verbo com o pae - foi o primeiro
Concilio de Constantinopla , no fim do quarto seculo,
que declarou que Maria era mãe de Deos .
E sem embargo, não ha um só documento, não ha
um só Concilio, um só papa , que decretasse culto para
essas imagens ; nem ellas figurarão nunca até o seculo
9.º, como objecto de culio externo ; com quanto he
de supôr, que os Christãos lhes prestassem o culto in
terno, como expressão de reconhecimento a J. Christo
por ser o mediador entre Deos e os homens, e à Maria
como mãe do redemptor do Genero humano .
Vamos agora occupar-nos do facto , que deu lugar á
uma certa opinião , de que o colto das imagens datava
dos tempos apostolicos. No seculo 9,º um pintor cha
mado Luca, ou da cidade de Luca na Toscana, fez o re
trato de uma mulher com um menino ao collo ( como
291

depois fizerão o mesmo, tanto Rafael como laptos ou


tros celebres pintores ) ; este quadro ou retabulo inti
tulou-se da virgem Maria . Ora Luca presta -se muito a
um qui pro quo : com um s mais abi ' temos Lucas ; e
Lucas foi Evangelista , e viveu no tempo dos apostolos ,
posto que nunca visse a Jesus Christo, e muito menos a
Virgem Maria .
O Evangelista Lucas era de Antiochia , e foi conver
tido por S. Paulo, de quem se tornou amigo fiel, com
panheiro e Secretario . Era medico de profissão, como
diz o mesmo S. Paulo muitas vezes, e não pintor como
prettende a igreja . A fraude por tanto he tão misera
vel, que o proprio Bergier não se atreveu a lansar mão
della ; contentando - se cum dizer somente que o culto
das imagens dala dos Apostolos ,sem citar a menor prova ,
sem exbibir um só documento , que o alleste.
Passemos agora a mostrar a grande afinidade, que
existe entre a Evocação dos Deoses do paganismo e a
Invocação dos Santos de Roma .
Entre os pagãos havião Deoses protectores de uma
nação, de uma cidade, de certos lugares, e até de cer
tos individuos : era um commercio entre os Deoses e
os homens por meio dos padres -- era o cullo e a devo
ção em troca dos beneficios temporaes, que delles se
esperavão . Os Deoses tutelares recebião as offrendas
onde erão adorados, como Jupiter na Ethiopia, Venus
em Citbera , em Paphos, em Milos, e em outras partes,
onde tinha templos ; Juno em Carthago, Diana em Ephe
so, Minerva em Athenas, Apollo em Delphos ; e assim
por toda a parte, onde era admittido o culto especial de
um Deos ou de uma Deosa , coja imagem era reveren
ciada sobre todas .
O mesmo se da entre os Catholicos : cada pação ca
tholica, cada cidade , e até cada freguezia tem seus pa -
droeiros ou Oragos . O Brazil tem Nossa Senhora da Con
ceição por Padroeira , ó Rio de Janeiro S. Sebastião,
Pernambuco Santo Antonio, Maranhão S. Luiz , S. Paulo
O mesmo Santo , o Rio Grande do Sul S. Pedro , Babia
>

Todos os Santos, Santa Catharina, e assim por diante.


Cada freguezia tem o seu Orago, a quem se faz uma fes
292

ta esplendida- cada Santo rezide em sua igreja , ou be


hospede nas dos outros .
Cada individuo tem a sua devoção ; isto he, iem
um santo especial , a quem pede e roga todos os dias
pelos bens temporaes ; e a quem promete oma missa,
uma vela , ou uma esmola . A todas as invocações da Vir
gem Maria, qualquer que seja a sua denominação, se pro
mettem missas , velas, esmolas, até mantos bordados e Co
rôas, festas sumptuosas , que são outras tantas bachanaes,
em que a irreverencia anda a par da devoção,e a immora
lidade a par da superstição .
Trabalho dava a S. Paulo banir de Epheso o cul
to de Diana . Ali se fazião uns como relicarios, a que
$ . Lucas cbama nichos , com a imagem de Diana ; obra
de prata , que se vendia em toda Asia menor, e circula
va com uma devoção igual a que hoje se presta aos re
licarios de Maria Santissima, ou de qualquer outro
Santo .
Um dia certo ourives, que fazia esses nichos , e li
nba occupada na sua officina muita gente, convocou o
povo , e lhe fallou de Paulo de maneira a provocar
um lumulto contra este apostolo, do qual só escapou
pela presença de espirito de alguns de seus discipulos.
( Act. apost. Cap. 19 , v.v. 04 a 29 ) .
Quem diria então a S. Paulo, que os nichos de Diana
se chamarião hoje relicarios da Virgem ou de Santa Anna ;
ou que Diana seria substituida por Santa Rita , Santa Ce
cilia, Santa Ursula e suas companheiras ? Quem diria
que uma religião, fundada sobre os dous granıles dogmas
da existencia de Deos puro espirito, e da immortalidade
d'alma espiritual, se tornaria pura e simplesmente mate
rial pelo culto pagão das imagens ?
Ainda concebemos que os pagãos, que desconhe
cião a existencia deum só Deos, e que ignoravão a verdade
da immortalidade d'alma , em que só crião alguns poucos
philosophos, adorassem as imagens de seus Deoses ; mas
que os Christãos , acreditando todos na existencia de um
sò Deos todo espirito , e na immortalidade de uma al
ma immaterial , se dessem ao culto material das imagens,
collocando sobre os altares a estalua de um homem ou
de uma mulher, ou a forma de um Cordeiro ou de uma
293

pomba ; e prestando - lhes adoração, como se fossem ou


tros tantos Deoses ; isto , sim , nos faz acreditar o que
disia Volney , que Roma era tão pagāa no fim do secolo
passado, como nos dias da Republica ou dos primeiros
Imperadores .
VI

Mas as imagens, nos dirão , são já uma necessida


de do culto actual - he mister fallar aos sentidos do po
vo rude --be mister mostrar -lhes uma figura , que excite
o seu entusiasmo ; por que elle não comprehende um
Deos puro espirito , um Deos sem forma alguma conhe
cida , um Deos que não fira a sua vista, que não altrahia
a sua attenção, um Deos a quem elle não falle, for assim
dizer , dirigindo-lhe uma prece ou uma rogativa pessoal
mente ; a quem não possa tributar directamente a home
nagem do seu reconhecimento pelos bens lemporaes,
que julga merecer em retribuição das offrendas ou das
promessas, que lhe faz .
lloje assim he, devemos confessal- o ; como foi em
tempo dos Gentios e pagãos -o povo he sempre poro
por toda a parte . Mas , sabeis por que se torna quasi
impossivel melhorar a condição do nosso povo a este
respeito ? He porque ha muita gente , que vive desse cul
to material, sem fallar dos que fazem e vendem imagens,
a que o povo chama imaginarios.
Com effeito, quanto mais Santos mais festas, mais
missas, mas sermões, (e os sermões, Sr. Padre ? ), inais
musicas, mais cera , mais foguetes , mais armações, mais
volantes , mais lentejoulas , mais galões , e outras bugia
rias, com que se enfeitão as igrejas. - Quanta gente vi
ve disso , começando por vós , Sr. Padre ?
Tocae pois no culto das imagens , e vereis levan
tar -se uma caza de maribondos , que vos arrancarão a
pelle ; ou vos acontecerá o mesmo que a S. Paulo em
Epheso , onde o ourives Demetrio , fallando ao povo con
tra a pregação deste apostolo , dizia :
a Varões , vós bem sabeis , que nosso ganho nos re
sulla deste artificio (os nichos de Diana ) ; estaes ven
do, que não só em Epheso , mas em toda a Asia , este
Paulo com as suas persuasões aparta do nosso culto mui
2

294

tas gentes, dizendo que não são Deoses os que são fei.
los por mãos de homens. Pelu que não somente correrá
perigo de que esta nossa profissão venha a ficar em descre
dito , senão que o templo deDiana será lido em nada , e co
3

meçará a cair por ierra a magestade daquella que he


allorada por todo o mundo ) (Act . apost. Cap. 19 v.v.
24 a 27 ).
Pois bem , tocae no culto material , e vereis como pu
lulão os Demetrios por toda a parte ; além dos Bouzos ſa
mintos, que gritarão pela inquisição religiosa para vos
queimarem em vida. O colto das imagens he por tan
to um negocio de compra e venda ; ou por oulra , he uma
verdadeira especulação de ganho, de que falla o Conci
lio de Trento no preambulo do Decreto do Purgatorio,
« E quanto aquellas cousas, que parecem curiosidade e
superstição, é sabem å lucro lorpe, as prohibão como
escandalos e tropeços dos fieis. »
Instituir uma capella ou hermida, collocar nella uma
imagem , não muito vulgar , como por exemplo : Santo
Antão -publicar alguns milagres , como aquelle que aca
ba de chegar-nos das Alagoas para edificação do Sr. Vi
C

gario Capitular - pendurar nas paredes da capella alguns


braços e pernas de cera , com um letreiro descrevendo
a natureza do milagre, he tudo isto muito natural e
comesinho entre nós ; e ninguem ousará dizer, que es
ta farça não seja muito licita , e ao mesmo tempo confesse,
que he uma especulação de lucro, como oulra qual
quer .
Calculae as inimeras festas de igreja, que se fazem
em Pernambuco durante o anno ; o consumo de cera ,
de fogueles, e outros fogos de artificio, de musicas, de
armações , de sermões e de padres - ajuntae a ludo isto
as subscripções para os collegios catholicos de Londres ,
Polaco de Roma, os dinheiros de S. Pedro , o calote do
Padre Ananias , as canonisações de Santas, e outras
muitas cousas ; e perguntae depois com quanto tem con
corrido o Clero de Pernambuco, o bispado mais pingue
de todo o Brazil , e os catholicos da Esperança para
o asylo dos invalidos ou para as familias pobres dos vo
luntarios desta provincia .
Perguntae tambem a esses mesmos especuladores ,
295

com quanto tem concorrido para o grande hospital de


Caridade , ainda em começo, donde tem voltado muitos
desgraçados , por que não achão nelle um leito vasio ,
que osadmita ; quanto tem dado para o collegio das Or
phâas , onde não ha um só lugar para tantas infelizes
creanças , que por ahi andão sem asylo, visto que o co
legio não as pode receber por falta de meios ?
E ainda direis que ha religião em Pernambuco, ou
ao menos que exista o menor sentimento religioso ? On
de, Sr. padre, ainda concedendo -vos, que essa estupida
idolatria fosse uma religião , mas nunca religião christãa ?
Se medirdes a estenção do espirito religioso por essas fes
tividades, que ahi se fazem , deveis convirem que nenhum
paiz no mundo foi mais religioso do que actualmente es
ta provincia ; e sem embargo nunca houserão tantos cri
mes ; nunca a immoralidade se ostentou mais ufana e
atrevida ; nunca a devassidão, o assassinato , o adulte
rio, 0. roubo constituirão , como agora, litulos de bene
merencia .
Poderiamos citar muitas outras analogias entre o
paganismo e o intitulado catholicismo : entre outras as
que se dão nas chamadas procissões ; as quaes são
uma pura imitação das numerozas farças pagāas , hoje pa
ra nós tão ridicolas, umas como outras. Uma das pro
cissões mais notaveis dos pagãos era a que se fazia no
Egipto ( creio que na cidade de Mendes) chamada do
Phallus. Pois bem , quereis entre os catholicos uma
procissão analoga ? ahi tendes a do santo -burro de Ve
rona !
Porque vos intitulaes catholicos, e não christãos ?
Catholico quer dizer universal, e nada mais ; assim se
cbamava no seu começo a religião , que Jesus Christo man
dou pregar em todo o mundo : in mundum universum
Mas hoje que sois apenas a nona ou a decima parte do
Genero humano , graças à vossa catholicidade, que sigui
ficação tem para vós a palavra catholico ! Só n'uma
cousa sois sinceros, e he que vos não atreveis a chamar
vos christãos , porque o não sois , porque mentirreis a vós
mesmos e á vossa propria consciencia.
Renegasles a J. Christo desde que , pervertenilo a
sua santa moral , substituistes o espirito pela materia ;
296

um Deos infinitamente bom e amavel , um Deos misericor


diosissimo, um Deos clementissimo, um Deos todo amor ,
um Deos pae do Genero humano, pelo Deos dos pagãos,
revestido de todas as ruins paixões ; paixões condemnadas
no homem pela moral de J. Christo, como a ira, a colera ,
a vingança, o exterminio ; salvo pondo na outra conchada
balança , onde se acha a vingança de Deos , uma bolça cheia
de ouro , que'a faça inclinar pelo seu peso ! Sr. Padre ,
se houvesse um Deos semelhante ao vosso , eu Siria
atheo .
VII

Sabei, Sr. Padre Campos, que abomino o Deos dos


Judeos, o Deos feroz e sanguinario do Pentateuco. -Foi
talvez a unica notavel alteração, que fez J. Cbristo na
lei antiga , modificando a idéa do Ente Supremo ; e elle
>

o explica varias veses , dizendo que assim foi preciso na


quelle tempo por causa da dureza do coração dos Is
raelitas quando sairão do Egypto ; mas que na epoca da
sua pregação os Judeos estavão inteiramente modifica
dos , depois de tantas calamidades por que havião pas
sado .
Então J. Christo anuncia um Deos de bondade e de
amor, e nunca falla delle senão chamando-o meu pae' , >

nosso pae ou vosso pae , que está no Ceo . Declaro- vos ,


Sr. Padre , que o meu Deos he o Deos que J. Christo pre
gou , he o Deos do Evangelho, que a minha lei he so
mente o Evangelho, a minha unica fé o symbolo dos
Apostolos , nada mais e nada menos .
Será isto uma impiedade ? Pois bem , deixae-me ir
para o inferno, onde vivirei em muito boa companhia
com todos os Apostolos e Evangelistas , e com todos os
Santos padres até o 4.° seculo da igreja. Ide vos para
o Ceo com Domingos de Gusmão , com Pedro de Arbues ,
com Torquemada e Cisneros , com Alexandre 6.° e Pau
lo 4.º, com todos os Gregorios , exceptuando uns quatro ;
emfim com a escoria do Genero humano .
Achaes muito ousada esta minha lingoagem ? Assim
será , mas he mister pôr um paradeiro nessa redea solta ,
que corre a sociedade brazileira sem rei nem roque ; on
de qualquer perverso , qualquer devasso , qualquer san
297

deu levanta a voz.e prega a immoralidade e a corrupção


como regras de bem viver. Já que o governo não se
importa com a sociedade civil , nem com a religião , ao
menos aquelles que fazem parte della , alcem tambem à
sua voz para condemnar a idolatria, e faser prevalecer
o Evangelho, se he que somos curistãos .
Dissemos anteriormente que os pagãos, convertidos
ao christianismo, não podiao conceber um Ceo deserto ,
quando elles tiphào antes um Olimpo tão povoado . En
cher o Geo de habitanles era pois uma necessidade da no
va propaganda christka - mas isto não se podia faser logo
-forão necessarios seculos para desarraigar o mono
theismo judaico, que J. Christo havia pregado, e depois
delle os Apostolos e seus discipulos .
Ainda outra rasão, que impedia a prompla coloni
sação do Ceo até o seculo 9. ou 10.' , era a simplicida
de do cullo christão em seu começo ; alem de que as
funcções do culto erão gratuitas- não havia pois estiónu
lo para alargar o circulo das ceremonias ecclesiasticas.
E porém desde que a religião encarnou-se na poli
tica, desde que os papas começarão a dar leis ao mun
do , desde que o clero, ou que os padres tornarão-se, de
cidadãos que erão de cada Estado , subditos e esbirros
do papa , então o culto tornou - se um officio, como entre
os pagãos e idolatras , e o clero foi só considerado como
cobrador ou exactor dos tributos votados aos Deoses
os paires forão dahi por diante os thesoureiros das of
frendas Sagradas .
Multiplicar por tanto esses tribulos, essas offrendas
estava no interesse do clero ; e o meio mais facil era
multiplicar os altares, multiplicando os Deoses . 0 Olim
po ficou logo muito aquem da prodigalidade dos papas
cada papa levava ou mandava uma colonia para o Ceo ;
fasiãu -se santos , como se fazem formas em uma olaria .
O Ceo christão foi invadido por uma horda de barbaros ,
e acabou por eclipsar o Olimpo dos pagãos.
E porém , o que he um santo ? he um hospede que
enviaes para a casa de Deos sem o seu consentimento | E
quem vos disse , que Deos admittirà o presente que lhe
fazeis ? Se um amigo vosso mandasse para vossa casa
38
298

um hospede sem rossa licença , he muilo provavel que


mandasseis passeiar o amigo e o hospede.
Vamos agora explicar os meios , que empregava a
igreja para multiplicar os santos e os allares - era sem
pre a fraude, e quasi sempre só a fraude. Eis ahi um
exemplo :
No fim do 4. ° seculo , ou a meado do quinto , os Hu
nos fizerão prisioneiras duas virgens : uma chamada Ursu
la , que se diz filha de um dos reis da heptarchia bretona;
e a outra chamada Undecimilla, que ia em sua compa
nhia . Ambas ellas , diz a legenda, soffrerão o martyrio em
Colonia .
Pois bem , quereis saber uma maravilha ? de Undeci.
milla fizerão Undecimillia, nome que em latim significa
Onze mil; portanto – « Ursula et Undecimillia Virgenes »
quer dizer- « Ursula e onze mil virgens » !!
Aqui lendes de uma pancada onze mil martyres, e
por consequencia onze mil santas vivendo no Ceo . Cre
mos que o Olimpo nunca teve tanta gente casamenteira ,
e por isso acabou logo . Mas tudo isto he o cumulo do
absurdo ! Não, he apenas a igreja do Sr. Padre Campos ,
e nada mais .
Outro meio engenhoso de fazer santos foi o seguin
te : Acharão - se depois muilos ossos humanos nas Cata
cumbas de Roma ; cousa muito natural , que para isto fo
rão ellas feitas ; mas como era nesses subterraneos inter
minaveis, onde os christãos se refugiavão para celebrar
os misterios da sua fé, todos esses ossos förão conside
rados como dos primeiros christãos ; e por isso forão
canopisados a trochemoche. Não se sabia de quem erão
não importava ; em lugar de Paula ou de Pacatula derão
os nomes de Perpetua ou de Felicidade .
Tudo foi baplisado de novo , com poodo um catalo
go de milhares de nomes . O mesmo aconteceu com os
ossos achados nas ruinas do Circo - devião ser dos mar
tyres , que morrerão entre as garras dos tigres e dos le
ões , embora alli houvessem tambem escravos condem
nados á mesma pena , e gladiadores mortos em combate ,
que não erão christãos .
Os santos pois dos papas differem muito dos semi
deoses pagãos . Estes tinbão sido lomens prestim osos,
299

que havião feito muitos beneficios aos seus semelhantes ;


aquelles porem pela maior parte misanthropos, só tinhão
por grande virtude o fugirem da sociedade , e viverem
cobertos de andrajos , comendo gafanhotos, e separados
inteiramente da commuhão dos homens. Tirae uma meia
dusia , como João de Deos ou Vicente de Paulo, e deixae
que o tempo apague todos esses nomes barbaros sem a
menor importancia para o Genero humano .
Os papas nunca fizerão santos no interesse da so
ciedade, mas tão somente da superstição ou da igreja de
Roma . O que significa a canonisação promettida do fa
cinora Pedro de Arbues , senão odio á geração actual ?
Pois bem , esse odio se revella a cada instante. He no
momento , em que o povo italiano applaude a obra da
sua completa nacionalidade, que Pio 9.º se lembrou de
o excommungar pela quinta vez . No ultimo Consistorio se
creto o papa amaldiçoou a Italia , enchendo o povo italia
no de mil apodos, e fazendo as suas costumadas lamen
tações , e sombrias profecias.
Elle não cria na evacuação de Roma pelos France
ses , e a nada cedia , nem mesmo aos conselhos de Mr. de
Sartiges , embaixador de Napoleão - mas, começada a
evacuação , e desenganado de que a tal Legião de Antibes
he incapaz de perserval-o da tendencia do povo romano
para a unidade nacional , começa a mostrar- se mais trata
vel , por que vê que , fóra de Roma , elle não passaria de
um hospede muito incommodo ee muito importuno . (Cor .
resp. de Genova-J . do Com .)
VIII

A ideia que dá a igreja dos santos amesquinha a


idéa , que devemos formar de Deos . O Santo he um
empenho para Deos - he assim , diz o Sr. Padre Campos ,
que na terra buscamos a intervenção dos mais poderosos
para alcançarmos o bom exito dos nossos negocios tem
poraes ! De maneira que o Deos do Sr. Padre Campos
he uma especie de Presidente , ou de Chefe de policia ,
cu de Juiz municipal , para quem procuramos o em
penho ( porque nos não fiamos na sua justiça ) de um
300

de seus parentes ou amigos ! Que triste idéa faz de Deos


o Sr. Padre Campos !!
Não era necessario que S. Panlo o tivesse dito, bas
tara a simples luz da razão para advertir -nos , que o uni
co mediador entre Deos e os homens não pode ser outro
sepão J. Christo . Tirae a divindade a d . Christo, e
elle deixará de ser o mediador ; porque Deos só pode es
tar em contacto com a divindade, isto he, comsigo mes
mo.. A lembrança de collocar um homem ou uma mu
Ther em contacto familiar com Deos he tão estupida , ou
tão ignobil , que revolta a qualquer rerdadeiro christão.
As almas que se salvão, gozão apenas da presença inef
favel de Deos , e nada mais .
Ainda he mais profano, e até sumamente ridicnlo
o que acrescenta o Sr. Campos , dizendo- « Os santos são
os amigos , os filhos de Deos, que os atlende com a bene
volencia de um amigo, e com a bondade de um pae ! 0
credilo, que gosão no Ceo, he uma recompensa, que De
os lhes concede, uma prerogativa , que J. Christo Thes
obteve ! O Senhor os associou à sua gloria ! (de sorte
que quando tivermos de invocar a Deos deveremos di
zer -- Deos e Companhia— ) á distribuição de suas graças
(aqui está todo o enigma ! Para Deos os Santos , para os
Santos os Padres ! ) como havia associado os Apostolos
aos seus trabalhos, milagres e martyrios durante a sua
vida mortal . )
Bem se ve por esse torpe aranzel , impio e sacrilego,
que Deos, o infinito , o incomprehensivel, o Creador do
Universo, onde existem , não milhões de mundos , mas
milhões de sóes , ou de sistemas planetarios como o nos
so , he abi tratado como o Juiz de paz da roça , como um
João Fernandes ! Deos unindo a sua gloria a alma do fe
roz assassino Pedro de Arbues ! Sr. Padre Campos, po
deis vos medir a extenção de semelhante blasfemia ? e
he um padre que tem a audacia de dizer, que he soli
dario com a doutrina do Evangelho, que vem rebaixar a
gloria de Deos ao nivel da miseria humana ! Vade retro ...
Diz o Sr. Padre Campos-Deos associou os santos
à distribuição de suas graças ! aqui está a chave do enig.
ma . Deos não pode cuidar nas cousas miudas, porque
tem muito em que cuidar na vastidão do espaço , e nos
301

milhões de mundos, que elle creou-deixa portanto aos


seus caixeiros (os santos) o cuidado de ouvir as suplicas
dos mortaes ; isto he, daquelles que soffrem em seus in
teresses temporaes, como por exemplo : daquelle que
The ſugio um negro , ou perdeu uma carteira com dinbei
ro , ou comprou um bilhete de loteria , e quer que lhe
saia a sorte grande -- ou da moça que quer casar, do fi
lho que fugio da escola e pede que o não caslignem , do
criminoso que deseja ver-se livre do poder da justiça
emlim todo isto vae aos santos por meio de um pedito
rio em regra , acompanhado de uma promessa , sem a
qual a supplica seria indefirida !
Ora , a promessa mais breve e facil he ama missa a
tal on qual santo , uma vez que baja com que pagal-a ;
e tanto mais merito ba na supplica quanto mais avul.
tada he a esmola ; portanto santos e missas,missas e pa
dres he tudo a mesma cousa . De sorte que bem se pode
rião applicar á homilia do Sr. Padre Campos sobre a in
vocação dos santos aquelles versinhos de Bocage :
Procurador, não me enganas ,
Tu procuras para ti .
Diseis que os Santos são os amigos , os filhos de Deos !
o que quer dizer que só os Santos o são, e mais ninguem .
Estaes completamente enganado, Sr. padre, e tanto mais
quanto parece que nunca lestes as Escripturas. Nunca
J. Christo tratou os homens senão como seos irmãos !
Duvidaes acaso da divindade de J. Christo ? Ora , se o
filho de Deos he nosso irmão , não o pode ser senão pelo
pae ; logo somos todos filhos de Deos ; e filho de Deos he
o genero humano sem excepção, se acreditaes queno
principio Deos só fez um homem e uma mulher . ( Por
ventura Deos só o he dos Judeus ? não , he tambem dos
Gentios. (Romanos, cap. 3. v. 29) .
S. Paulo ainda ho mais explicito na seguinte passa
gem (Colossenses , Cap . 3. vv . 10 e 11) — « Ě revestindo
vos de novo , que he aquelle que se renova para o conhe
cimento, segundo a imagem daquelle que o creou : onde
não ha differença de Gentio e de Judeo , de circumcisão e
de prepucio , de barbaro e de Scytha, de servo e de li
vre : mas Christo he tudo e em todos . »
302

Então Sr. padre , só os Santos são filhos de Deos ?


J. Christo ensinando, como se devia orar a Deos ( Math .
Cap . 6. v . 9) dizia- « Padre nosso » e não meo pae ; e
por que ? he que J. Christo sabia que o homem não era
um individuo, mas um genero ; e quiz que cada um pe
disse por todos, por que todos são, sem a menor excep
ção , filhos do mesmo Deos .
Vós , Sr. padre, nos fazeis desesperar com o vosso
catholicismo intolerante, com os vossos Santos , com o
>

vosso purgatorio, com a vossa inquisição, com a vossa


idolatria ; mas pelo amor de Deos não nos obrigueis a
colocar-nos , como S. Paulo, na dura necessidade de com
parar-vos com aquelles, cujo fim hea perdição, cujo Deos
ħe o venlre. (Filipp. cap. 3. v . 19) -Oh ! não , Sr. padre,
por ora ainda fasemos melhor conceito da vossa hones
tidade. -He mister, porem , que ao menos vos mostreis
christão, uma só vez se quer .
O Sr. padre Campos diz , que a crer os protestan
tes não se encontra na Escriptura texto algum , que possa
autorisar a invocação dos Santos -- miseria ! diz elle, ig
norancia crassa dos Protestantes ! e então começa a der
ramar textos em favor dos Santos por este bom gosto : a
Escriptura diz , que somos obrigados a orar uns pelos
outros - logo ha Santos ! Jacob pedio ao anjo que o aben
coasse - logo ha Santos ! Deos perdoou muitas vezes as
revoltas dos Hebreos a pedido de Moyses-logo ha Santos !
O Sr. padre Campos disse tudo isto seriamente ? não o
cremos ; divirtio-se apenas á custa dos seos leitores na
forma do seo louvavel costume .
O Sr. padre Campos continua a serie dos textos da
Escriptura, que justificão a invocação dos Santos ; para
o que cita um daquelles pedaços gongoricos dos sermões
do padre Antonio Vieira, tão cheios de trocadilhos (conce
ti dos Itaļianos) como era de gosto no seculo 17.°, isto
he, da decadencia da lingoa portugueza . He uma dessas
ampliações de pessimo gosto, que hoje seria ridiculo re
produzir - todavia, vamos as provas da Escriptura a fa
vor da existencia dos Santos .
Com effeito, diz o padre Antonio Vieira o seguinte :
Figura da Cruz foi a Vara de Jessé adorada por Jacob
logo ha Santos ! Figura da Cruz foi a Vara de Arão flo
303

rescente-logo ha Santos ! Figura da Cruz foi a Vara que


tocou e acendeo o sacrificio de Gedeão - logo ha Santos !
Figura da Cruz foi a Vara de Assuero - logo ha Santos !
Figura da Cruz foi a Vara que sahio de Syão-logo ha
Santos ! Figura da Cruz foi a Vara de Moyses-logo ha
Santos ! foi a Vara de Jonathas, que vertia mel-logo ha
Santos ! Quem pode pois resistir á logica poderosa do
Sr. padre Campos ? Vejão lá quantos textos elle acumulou
para esmagar os protestantes, estupidos que nunca lerão
as Escripturas ! Decididamente o Sr. padre Campos in
ventou a polvora !
O nosso autogonista continua a serie de suas provas,
tiradas das Escripturas, a favor da invocação dos Santos,
dizendo : « Não vemos que J. Christo nos ordena , que
oremos por aquelles que nos perseguem ? » donde elle
deduz que ha Santos ! « Não orou elle mesmo pelos seos
sacrificadores ? » logo ha Santos ! « Não recommenda S.
Paulo aos fieis que orem por elle ? » logo ha Santos !
Quem á vista de semelhantes provas pode mais duvidar da
invocação dos Santos e da adoração das imagens ? Oh !
os Protestantes são uns asnos, que nunca lerão as Es
cripturas !
Até aqui pode dar-se certo grao de fanatismo, ou
certa dose de superstição, que leve o espirito á essas
aberrações, a que chamamos mania- uma especie de
loucura parcial, que consiste n'uma idéa fixa ; mas o que
se segue he o cumulo do ridiculo , que um homem se
rio não ousaria dizer sem provocar o escarneo de qual
quer homem sensato ! Os protestantes são uns nescios,
diz o Sr. padre Campos, que não cessão de perguntar,
como he possivel que os Santos, qne estão no Ceo, co
nheção nossos pensamentos , nossos desejos, e as orações
intimas que lhes dirigimos ?
Pois bem , o mesmo Sr. Campos responde a esta per
gunta de uma maneira cabal e satisfactoria pela seguinte
forma : « Logo que qualquer pessoa dirige a sua oração
a um Santo , Deos vae immediatamente revelal-a ao tal
Santo, communicando -lhe o theor da oração, que faze
mos . O Santo instruido assim por Deos, faz um relatorio
da nossa supplica, e Deos despacha então o nosso pedido
favoravelmente ou de modo contrario. Se o despacho he
304

favoravel, o Santo he naturalmenle o ministro executor ;


è se não ..... diabo leva o indeferido ao supplicante,
mas não devolve a esmola da missa—essa não, fica -se
com ella !
Não abusaremos mais da paciencia dos nossos leito
res a este respeito - passemos pois a outro assumpto .
IX

O Sr. Campos falla dos Iconoclastas, como se fossem


de origem protestante - está completamente enganado .
Os primeiros Iconoclastas forão os catholicos --- forão pois
elles os primeiros quebradores de imagens-Em seo fu
ror nunca respeitarão nem as obras da arte . A famosa
Estatua de Minerva do Parthenon em Athenas, a do Apollo
de Delphos, a de Jupiter Olimpico de Phidias na Elide, a
de Diana em Epheso , a de l'enus de Coido na Caria, e ou
tras obras de grande valor de Phidias, de Praxiteles , e de
outros estatuarios de grande fali,a, forão destruidas pelos
christãos do 4.° seculo por diante ; e o que ficou ainda
na Grecia e em Constantinopla pelos Cruzados, quando
se apoderarão desta cidade.
O caracter do Christianismo, desde que sabio das
perseguições dos Cezares , foi a perseguição e a destrui
ção de tudo quanto havia de notavel na civilisação an
tiga, apezar da doutrina mais tolerante do Evangelho —
e esse caracter prevaleceu na igreja até a renascença ou
até a invasão de Constantinopla pelos Turcos no seculo
15º . Os Turcos procedião da mesma maneira - tal era
.
.

a indole das religiões , que nascerão da judaica.


Diz o Sr. padre Campos que tem por Maria Santis
sima a maior devoção e singular confiança ; mas que
para alcançarmos os soccorros , que lhe pedimos, deve
mos esforçar -nos por imital-a na santidade e pureza de
sua vida ! Já sabiamos dessa devoção do Sr. Campos ;
e para prova do culto que rende a mãe de Deos, ahi
esiá a santidade e pureza de sua vida. Se ha uma vida
pura e sem mancha be a do Sr. Campos ! assim o diz
toda esta cidadecullo
- quem poderia pois duvidar da since
ridade do seu ?
0 Sr. Campos quer entretanto, que o culto das
305

imagens não seja só de bocca ; elle quer suffragios pelos


mortos, para que lhes apressem o allivio e purificação
no fogo do purgatorio ! ( que bom allivio , que lhe faça
muito bom proveito ! ) Estes suffragios constituem , diz
elle , um laço de caridade entre os homens e os santos ,
que pedem por nós a Deos ; assim como nós pedimos
aos Santos os bens temporaes de que necessitamos . E
como J. Christo disse « Pedireis tudo o que quizerdes,
e ser -vos -ha feito ) ( S. João, cap . 15 , v. 7 ) , quanto
mais pedirmos , mais obteremos ; quanto mais tivermos
a quem pedir, tanto mais teremos quem nos dé ! isto ho
logico !
O que ha porém de mais engraçado he que o Sr.
padre Campos accusa os Protestantes de pagãos por ha
verem alguns citado a Seneca e a Plinio ; quando os San
tos padres da primitiva igreja citarão não só a Platão,
como o denominárão divino ; porque elles virão na vida
e morte do seu Justo os traços principaes da vida e
morte de Jesus . E quando o Sr. Campos fazia esse re
paro , citava a Homero para provar a efficacia da ora
ção ! e havia antes citado igualmente Virgilio , e creio
que a Ovidio quando tratou do Purgatorio ! He mister
mais um pouco de memoria para não cahir nos mesmos
erros que condemna .
Ultimamente conclue o Sr. Campos com uma so
lemne descompostura a Luthero ; e diz então que ape
zar disso houve quem sustentasse que o mesmo Lu
thero fôra um instrumento de Deos na grande obra da
revolução franceza ! Não dissemos semellante dispa
rale , nem commelleriamos um tal erro de historia . O
que dissemos foi que a divina Providencia se servira
delle como instrumento na grande obra da emancipação
dos povos no seculo 16.0 !
Acreditavamos que não cahia a folha de uma ar
vore , nem podia cabir sem a vontade de Deos isto
nos ensinárão na nossa infancia . E se a folha de uma
arvore não pode cahir sem que Deos consinta que ella
caia , como poude dar - se um dos maiores acontecimen
tos do mundo moral , qual foi a reforma religiosa , sem
a vontade de Deos ?
Entretanto vemos agora , que o Sr. padre Campos
39
306

he manicheo, e proſessa a crença do bom e máo prin


cipio ; ou por outra o culto de Deos e o do Diabo : que
para que morra uma grande porção de gente nas guer
ras , nos terremotos, nas inundações e nas pestes, tudo
isto pode acontecer pela vontade de Deos ; mas para a
regeneração do homem, para a emancipação do espi
rito, para o progresso da sociedade só o diabo póde in
tervir - assim he que Luthero foi o instrumento do
diabo, e não de Deos, como falsamente suppunhamos !
Muito obrigado , Sr. padre Campos, pela lição .
A’ vista do que fica escripto podereis pepsar , Sr.
padre Campos , que somos inimigos encarniçados das
imagens, é uns furiosos Iconoclastas ! Pois bem , Sr.
padre, estaes completamente enganado . Não somos Ico
noclastas , nem permittiriamos nunca , se estivesse em
nossas mãos, que alguem o fosse impunemente . Detes
tamos a violencia , parla donde partir, ou seja sobre o
que fôr - o tempo he o mais poderoso iconoclasta ; e a
civilisação he filha do tempo e da paciencia para esperar .
De todas as violencias a mais detestavel , e a mais ly
rannica , he a que se exerce sobre a consciencia ; ora ,
muita gente tem sincera devoção pelas imagens com
que direito póde alguem forçar essas consciencias timo
ratas á mudarem de culto ou de adoração, quando nun
ca lhes ensinarào outra cousa ? Educae primeiro a nova
geração ; ensinae-lhe o culto de Deos, que he o unico .
verdadeiro , e o unico que deve render o Genero humano
ao seu Creador.
Não só respeitamos a consciencia , como os costu
mes e os habitos de qualquer povo . Quando passamos por
uma igreja aberta, nunca deixamos de tirar o nosso
chapéo. Quando passa o Viatico ajoelhamos quando
passa uma procissão e o povo ajoelha, ajoelbamos tam
bem ; porque he regra de boa educação nunca tornar -se
o homem notavel por actos contrarios aos costumes e
usos publicos. Não somos pois inimigos das imagens ;
mas da superstição , do fanatismo, e sobre tudo da hypo
crisia, que ellas gerão .
O tempo e a civilisação acabarão com as imagens ,
e restabelecerão o verdadeiro e unico cullo , que he o
devido tão somente a Deos, Creador do Universo e Pae
307

do Genero humano ; nào do Deos dos Judeos , mas do


Deos de J. Christo) , desse Deos piedosissimo , misericor
diosissimo , clementissimo, emfim desse Deos todo amor .
Esse he o meu Deos , Sr. padre ; vós tereis o Deos que
vos parecer, e estareis muilo no vosso direito .
Não nos importamos pois com o culto das imagens.
Sabeis porém o que desejamos ? He ver no nosso paiz
plantada a verdadeira liberdade de consciencia : he ver
um templo catholico, com todas as suas imagens, ao
lado de uma synagoga e de um templo protestante, e de
uma mesquita musulmana , e de um pagode chinez - he
ver que todos os homens se dirijão a Deos , como bem
lhes parecer ; porém ser que ninguem possa intervir na
maneira por que orão , nem nas suas intenções .
Então, e somente então , teremos plena liberdade ; e
>

só assim seremos um povo civilisado. Tal he o prin


cipio inconcusso , que rege a sociedade civil na Ingla
terra e nos Estados Unidos ; taes são os fructos, que
promette a civilisação actual.
Quanto a vossa intolerancia , cremos que o diabo
não he tão feio como o pintão ; sobretudo porque ten
des o máo habito de zombar, e até de escarnecer dos
vossos leitores, dando-lhes gato por lebre - cremos até
que sois tolerante de mais . Não sabemos se crêdes sin
ceramente nas imagens ; mas o que sabemos lo que
ellas rendem tanto para vós , como para os outros pa
dres de requiem e de missar .
X

O que he soberana verdade, o que salta á vista de


todos, he que vivemos em uma época de transformação
social que para chegarmos ao grande fim da Provi
dencia , revelado nas seguintes palavras de S. João Cbry
sostomo ( Hom . de perf. carit . ) - - « Havendo Deos for
mado o primeiro bomem , quiz que todos procedessem
delle , afim de que o Genero humano formasse uma só
familia » he mister que passemos por uma decomposi
ção absoluta de todos os elementos , que constituem a
sociedade, desde o seculo 15.", em que esta decom
308

posição começou , alé a consumação do designio provi


1

dencial. Em que época ? os anjosque respondão.


He justamente a esse designio da Providencia, que
allude Chateaubriand ( Mem . d'alem tum . ) quando diz
« Será este futuro poderoso , livre em toda a plenitude
da igualdade evangelica ; mas elle ainda está longe de
todo o horisonte visivel . Antes de chegar ao fim , antes
de attingir a unidade dos povos, á democracia universul,
será mister atravessar a decomposição social, tempo de
anarchia , de sangue talvez , de fraquezas certamente.
Esta decomposição está começada , mas não está promp
ta, nem ainda bastante fermentada para produzir de
seus germens um mundo novo . )
de pois, Sr. padre Campos, como em uma época
lão movel como as areias do deserlo , podereis vós plan
tar a intolerancia religiosa dos seculos 12 a 18, que já lá
forão. Quando tudo desapparece, até as instituições mais
antigas ; quando a Carta da Europa se muda de anno em
anno ; quando o papado expira consumido pela decrepi
tude ; quando todas as aspirações da sociedade conde
zem á mais illimitada liberdade de consciencia , não se
reis vós que açamareis o espirito humano, pondo -lhe
uma mordaça !
O Sr. Campos conclue o seu trabalho com uma es .
pecie de funcção baccbica, muito commum entre os
poetas latinos. Os antigos poetas portuguezes, por imi
tação, estão cheios dessas canligas naquelle mesmo es
tylo de Horacio, desses festins epicuricos, sem que al
guem dissesse, que os velhos poetas portuguezes erão
por isso pagãos. Figurav3-se uma especie de banquete ,
em que se cantavão louvores a Baccho , aos outros Deo
ses, semideoses e heroes . Pois bem , o Sr. padre Campos
tomou essa farça por um culto, e até por uma nova reli
gião -
- e tudo isto apezar das ultimas palavras do festim ,
que elle transcreve .
Eis -abi um specimen do tal hymno bacchico , a que
o Sr. padre Campos chama religião « Os irmãos -
a

grandes copos . E em lendo -se bebido , termina o sacer


dote o officio com a seguinte oração — Eterno e omni
potente Bacchio , que principalmente no beber constitues
a humana sociedade ! Sé-nos propicio ; e permitte que
309

estes , cuja cabeça bamboleia com a bebida de hontem ,


alegrem -se com a bebida de hoje ,> e assim seja , á força
de beber e mais beber -
Amen . »
Ora aqui tem os nossos leitores ao que chama o
Sr. padre Campos uma religião do tempo da revolução
franceza ! Dil-o de boa fé ? talvez ; mas isto deporia
muito contra a sua tão preconisada intelligencia . O certo
he que elle toma ao serio tudo quaolo encontra nos su
bios que consulta , como por exemplo : o abbade Gaume
e outros ejusdem furfuris.
Finalmente o Sr. padre Campos ferrou as velas e
lançou ancora , como elle mesmo diz ; não sem fal
lar do trabalho titanico , que lhe consumio tempo e pa
ciencia . Todavia não lhe escapárão os textos das Es
cripluras , os dados da tradição , os pareceres dos Santos
paares , os conceitos dos interpretes, os argumentos dos
apologistas , as opiniões dos sabios , as decisões dos Con
cilios, e mil outros subsidios citados por elle , catados
aqui e alli ; cuja difficuldade de reunir , desenvolver, dis
cernir e applicar, elle deixa ao criterio dos competentes
avaliar !
0 Sr. padre Campos daria todo esse trabalho pelo
amor de Deos , indo levaria em conta dos seus peccados;
mas o que sente dentro d'alma he que o Sr. Alexandre
Herculano tivesse tomado a defesa do casamento civil ,
càlamidade que ameaça o Brasil, como o maior golpe
que Deos poderia desfechar em sua ira sobre nossas
cabeças ! Mas elle espera na divina Providencia que a
idéa , apezar do patrono, esteja hoje morta em Portugal,
e que não reviva no Brasil , apezar do assoberbamento
das publicas desvenluras, c da omnipotenciu arbitraria do
governo !
He verdade que tres nações catholicas, a Belgica
com 5 milhões de babitantes, a França com 37 milhões,
e a Italia com 24, ao todo 66 milhões de habitantes, tem
o casamenlo civil obrigalorio por lei – assim como que
ainda não o adoptárão a Hespanha com 15 milhões, e Por
tugal com 3 ; isto he , 18 milhões de habitantes. O ter
mo pois de comparação he de 66 milhões de catholicos,
que tem o Casamento civil obrigatorio, por 18 milhões
que o não lem . Quer o Sr. padre Campos que sejamos
310

mais catholicos que a Belgica , que a França, ou que a


Italia ? Pois diz isso seriamente , ou continúa a zombar dos
seus leitores ?
Temos , ha muito, feito um trabalho sobre o Casa
mento civil , desde que o Sr. padre Campos assignou
aquelle celebre parecer, que lhe valeu a prelazia domes
tica ; mas , intervindo um estrangeiro na luta, não qui
zemos então publical -o ; nem hoje cabe elle neste opus
culo , tão extenso já vae , e fóra de nossos calculos .
Pois bem , quer saber o Sr. padre Campos o que
justifica plenamente o assoberbamento das publicas des
venturas, como disse ? he que o Governo deixe correr a
sociedade brasileira á matroca, sem cuidar de organi
sal-a desde o seu fundamento ; he que consinta que
uma autoridade estrangeira , encravada no Brasil , inter
venha em actos paramente civis , como os contractos ma
trimoniaes . Eis -ahi como podereis justificar o vosso as
soberbamento das publicas desventuras. O mais não tem
senso commum .
EPILOGO

Temos respondido ao Sr. padre Campos ; e porém


quizeramos dizer mais alguma cousa para aproveitar o
ensejo desta impressão. Não sabemos se caberá , ou se
verá a luz o que agora escrevermos ; entretanto consig
nemos as nossas ideas, quando menos para não esque
cel -as de futuro .
U Sr. padre Campos falla do protestantismo como se
föra um facto peculiar de Luthero ; sem se lembrar que
o caracter distinctivo de todas as religiões e seitas , que
partirão do Judaismo , he'o mais solemne protesto . ()
protesto, pois , he o principio de todas as novas religiões ;
be a iniciação de todas as seitas .
O que foi o Christianismo ? um protesto solemne
contra a corrupção do sacerdocio e do pontificado ju
daico . Mahomet protesta igualmente contra o judaismo ,
paganismo e christianismo. Phocio protesta contra a so
berania e concentração de Roma . Gregorio 7.º protesta
contra a autocracia imperial -- a autocracia protesta con
-
311

tra a theocracia pontifical. Estes dous protestos custá


rão rios de sangue, durante mais de dous seculos .
Ainda mais, Luthero protesta contra a corrupção da
igreja de Roma . Os Gregos modernos protestão contra o
Islamismo ; e toda a Italia protesta contra o poder tem
poral do papa . Assim he que todo o mundo marcha de
protesto em protesto , até que se cumpra o designio pro
videncial ; isto he, que o genero humano forme uma só
familia ; e que o Evangelho seja a lei universal do genero
humano.
Sem embargo , vencido o scisma do Occidente , jul
gou - se que o Catholicismo dominasse todas as seitas,
quer cedendo um pouco ás exigencias dos Gregos, quér
conservando a unidade romana nos paizes onde nunca se
havia alterado sob nenhum pretexto . Engano manifesto
a unidade não poude conservar-se ; o enthusiasmo sa
xonio rompeu com todas as tradições da igreja latina ;
e dahi começa a era da emancipação moderna - altos
são os juizos de Deos !
O Sr. padre Campos he inexoravel com os protes
tantes ; falla sempre delles com esse odio concentrado ,
que lhe fica tão mal , sem se lembrar que Deos não ex
clue a ninguem , nem faz excepção de pessoas (Act . apost.
Cap . 10 , v. 34 ) ; antes em todas as nações lhe be aceilo
aquelle que o teme e obra o que he justo (Id . Id . v . 35 ).
Se Deos não he só dos Judeos, mas tambem dos
Gentios ( Romanos , Cap . 3, v . 29 ) , com que direito ex
cluis vós os protestantes da presença de Deos ? Quem
vos deu essa potestade ? Deos não necessita das vossas
mentiras para que em sua defensa falleis falsamente
( Job , cap. 13 , v . 7 ) .
Jesus Christo fallou sempre em nome do genero
humano . Orae , dizia elle , pelos que vos persegucm , para
serdes filhos de vosso pae , que está no Céo ; o qual faz
nascer o sol sobre bons e máos , e vir a chuva sobre
justos e injustos (Math. cap. 5 , v . 44 a 47 ) .
Pae nosso , venha a nós o vosso reino , o pão nosso
de cada dia dae - nos hoje ; perdoae as nossas dividas
como nós perdoamos aos nossos devedores ( Math . cap .
6, v . 9 ) , são expressões, que denotão a solidariedade
do homem para com seus semelhantes. Quem vos auto
312

risou a romperdes essa solidariedade, essa cadêa , que


prende o Genero humano, e fará delle uma só familia ?
A tolerancia moderna , diz o Sr. A Herculano, (Orig.
da Ing . t. 1 , p . 7 ) ainda não soube exprimir-se mais no
bremente , nem com mais philosophia do que Salviano,
o chamado mestre dos bispos , que tantos elogios mere
ceu a S. Eucherio , e a outros padres da primitiva igreja .
« São hereges, dizia Salviano fallando dos Arianos,
são -no, mas ignorão -no. Hereges entre nós, não o são
entre si , porque tão catholicos se reputão, que nos tem
por hereticos. O que elles são para nós , somos nós para
elles .
( A verdade está da nossa parte, mas elles pensão
que está da sua. Cremos que damos gloria a Deos ; elles
pensão lambem que o fazem . Não cumprem o seu de
ver : mas , longe de o suspeitarem , acreditão servir a
religião.
« Sendo impios . persuadem -se de que seguem a ver
dadeira piedade . Enganão-se ; mas he de boa fé, e por
9

amarem a Deos, e não porque o aborreção. Alheios a


crença verdadeira , seguem com sincero affecto a sua ;
e só o Supremo Juiz póde saber qual será o castigo de
seus erros . »
No tempo da inquisição, continúa A. Herculano, o
mestre dos bispos teria perecido n'uma fogueira , se hou
vesse escripto estas admiraveis palavras, onde tão judi
ciosamente se achão ligadas a tolerancia doutrinal e le
gitima com a tolerancia material e externa. Que dizeis a
isto, Sr. padre Campos ? talvez que o Sr. A. Herculano
he um enormissimo herege ! Pois bem , somos dous in
anima una — pensamos igualmente como elle .
Tendo o governo italiano chamado para as suas res
pectivas dioceses os bispos , que se achavão refugiados
em Roma ; estes não só acquiescerão , como pedirão a
mesma graça para os membros do episcopado que os
acompanhavão. Por esta occasião agradecerão os mes
mos bispos por uma carta ó seu chamamento, fazendo
algomas reflexões, a que teve de responder o ministro
Ricasoli , dizendo entre outras cousas as seguintes :
a o governo não deseja menos do que vós, mon
senhores, que a Italia goze dentro ein pouco do mag
313

nilico e imponente espectaculo religioso , de que se feli


citão hoje os cidadãos livres dos Estados-Unidos da Ame
-

rica , em presença do Concilio nacional de Ballimore , on


.

de se discutem livremente as doutrinas religiosas , e cu .


jas decisões, aprovadas pelo papa , hão de ser proclama
das e observadas em cada cidade ou aldeia , revestidas
de todas as sancções espirituaes, sem nenhum exequatur
ou plucet. )
« Peço-vos , com tudo , monsenhores , que vos dig
neis considerar, que esse espectaculo admiravel he a
liberdade que o produz : a liberdade professada e respei
tada por todos , em principio e de facto , nas suas mais
amplas aplicações à vida civil , politica e social . »
« Nos Estados Unidos he livre a todo o cidadão
observar a crença que lhe parece melhor, e prestar ho
menagem à divindade nas formas, que lhe parecem mais
convenientes.. A par, da igreja catholica eleva -se o tem
plo protestante , a mesquita musulmana e o pago
de chinez ; a par do Clero catholico funccionão o con
sistorio de Genebra e a congregação methodista. ”
« Semelhante estado de cousas não promove con
fusão nem abatimento. E porque ? por que nenhuma re
ligião pede ao Estado protecção especial ou privilegio ;
cada uma vive , desenvolve -se, e pratica-se sob a egide
da lei commum ; e a lei , igualmente respeitada por to
dos , garante a todos uma liberdade igual . )
( A intenção do governo italiano he demonstrar ,
tanto quanto em si caiba, que tem fé na liberdade, e que
pela sua parte quer applical- a , com tanta amplidão,
quanto lh'o permitirem os interesses da ordem pu
blica . )
. « Diz pois aos Bispos, quis voltem para o seu mi
nisterio, de que se afastarão precisamente por motivos
de ordem publica. Não põe a isto mais condição algu
ma do que a seguinte : importa a todo cidadão , que de
seja viver tranquilo, de se limitar ao exercicio das suas
funcções , e de observar a lei . O Estado encarrega -se
de impedir que ellas possão ser perturbadas ; somente
exige que não peção nenhum privilegio , se não querem
soffrer restricção alguma. O principio de todo o Estado
40
314

livre, de que a lei he igual para todos, não admille dis


lincção da menor especie . »
« O governo seria feliz, se podesse affastar toda a
suspeita, e renunciar a toda perseguição ; e, se não pra
tica actualmente a este respeito tudo quanto deseja, he
por que o principio da liberdade, que adoptou e poz em
pratica , não he no mesmo gráo adoptado e praticado
pelo Clero.
« Observae, monsenhores , a differença que existe
entre a situação da igreja na America e a sua situação
na Europa . Naquelles paizes virgens a igreja estabele
cou-se no meio de uma sociedade nova, mas que levava
comsigo da mãe patria todos os elementos da socieda
de civil. »
a Representando o mais puro e o mais sagrado dos
elementos sociaes, esse sentimento religioso, que sanc
ciona o direito , santifica o dever, e reune n'um pensa
mento mais elevado do que todas as cousas terrestres , >

as aspirações humanas , não procurou alli senão o go


verno agradavel a Deos, o governo dos espiritos. Vio
da com a liberdade, e engrandecida á sua sombra , a
igreja encontrou nella tudo quanto bastava para o seu
livre desenvolvimento , para o tranquilo e fecundo exer
cicio do seu ministerio ; e nunca procurou probibir aos
outros essa liberdade, que tinha a fortuna de gozar ; nem
tirar para si partido exclusivo das instituições, que a
protegião .
« Na Enropa , pelo contrario , a igreja pasceu no
momento da decadencia do grande imperio, que havia
subjugado toda a terra ; constiluio -se no meio dos ca
tbaclysmos politicos e sociaes dos seculos barbaros ; e
julgou que devia dar-se uma organisação bastante forle
para resistir ao naufragio de toda a civilisação entre as
vagas crescentes da força bruta e da violencia. )
« Mas em quanto o mundo, saindo do limbo da idade
média , se recompunha e retomava o caminho do progres
>

so, que lhe tinha sido marcado por Deos, a igreja pre
tendia communicar a tudo quanto com ella tinha rela
ção , a immortalidade do dogma de que he guarda ; e
por isso via com inquietação o desenvolvimento das in
telligencias, a multiplicação das forças sociaes ; e de
315

clarou - se inimiga de todas as liberdades , negando a


inais preciosa e a mais incontestavel de todas , a liber
dade de conciencia . >>
« Daqui nasceu o conflicto entre o poder ecclesiastico
eo poder civil,por que o primeiro representava a sujei:
ção e a immobilidade, e o segundo, pelo contrario, a
liberdade e o progresso . »
« Este conflicto , em consequencia de condições es
peciaes, tomou na Italia as mais graves proporções, por
que a igreja , pensando que para exercer o seu ministerio
espiritual , fóra de toda a autoridade secular, lhe era ne.
cessario um reino, encontrou - o na Italia . O poder ec
clesiastico acha-se por isso mesmo aqui em contradic
ção, não só com o poder civil, como com o direito na
tural. »
« Eis aqui a origem dessas desconfianças, e dessas
precauções , que indiquei na minha circular, o que pro
>

vocarão as vossas reclamações, quando não forão ins


piradas senão pela necessidade da situação . »
& Os bispos não podem considerar - se entre nós co
mo simples pastores d'almas ; por que são ao mesmo
tempo os defensores e os instrumentos de uma autori
dade , que contraria as aspirações nacionaes . E por
tanto a autoridade secular constrangida a submetel -os
á medidas , que lhe podem parecer necessarias para a def
feza de seus direitos, e dos da nação .
« E como se ha de fazer cessar este deploravel e
perigoso conflicto entre os dous poderes - entre a igreja
e o Estado ? Só a liberdade pode conduzir - nos a essa
situação , que vós monsenhores, invejaes na America .
De- se a Cezar o que he de Cezar, e a Deos o que he
de Deos, e a paz entre o Estado e a igreja não será
mais alterada . >>
« Creio que a liberdade he boa de professar e de
praticar - creio lambem que tem a virtude de attrabir
a si os espiritos dos que são chamados a gozar dos seus
beneficios. »
Tenho pois a confiança , monsenhores , de que ,
regressando ás vossas dioceses, no meio da população,
que quer permanecer catholica , mas sem renunciar os
direitos e as aspirações da nação á que pertence, bem
316

direis essa liberdade que vos protege ; e na qual será


possivel fundar a conciliação de interesses, que alé ago
-

ra tem parecido inconciliaveis – Ricasoli.- ; ( D. de P.


de 31 de Janeiro de 1867. )
II

A carta , qne fica transcripta, he o documento mais


importante para provar a necessidade da liberdade civil
e da liberdade religiosa : liberdades que devem andar em
parelhadas , se não quizermos falsear uma e outra por
meio de restricções odiosas , 01 de interpretações ab
surdas , ou de sofismas revoltantes .
Com effeito , sabeis por que o nosso povo não tem
religião ? he por que lemos uma religião do Estado. A
lei dá uma religião aos Brazileiros : não importa qne a
tenhão ou não na sua conciencia , a lei supre a fé. Pre
sume-se que todo o brazileiro he catholico, porque as
sim o diz a Constituição , e basta .
Quereis espirito religioso ? permitti a liberdade de
todos os cultos sem distinção - a concurrencia produsirá
o phenomeno desse sentimento , que só se desperta pe
Jo estimulo dos differentes cultos . Cada qual qner nes
le caso ser mais assiduo , mais dedicado ao seu culto,
ao culto da sua escolha , do seu agrado .
Podeis violentar o corpo , mas nunca o espirilo.
Se quizerdes comprímil-o , elle se refugiará no sanctua
rio da conciencia intima , no Sancta-Sanctorum do co
ração humano . A religião não se impõe , ensina-se ; e
o que ensina he mestre, não he algoz.
Podemos assegurar-vos, Sr. padre Campos , que nunca
teremos verdadeiro sentimento religioso em quanto tiver
mos uma religião do Estado . E o que he esse espantalho ?
cousa nenhuma ; he apenas um culto privativu pago pe
lo governo, e nada mais. E isto mesmo já não existe ,
porque actualmente o governo paga tambem o culto pro
testante , ou os pastores protestantes das suas colonias .
A’excepção do beneplacito imperial, para execu
ção das bullas e Breves pontificios, o governo não se
importa com mais cousa alguma , que tenha a menor
relação com a religião do Estado- vivemos em um es
317

tailo excepcional . Entretanto bate-nos á porta om gran


de acontecimento, que terá de alterar as nossas rela
ções temporaes e espirituses com a Corle de Roma .
O Papado expira lentamente nas agonias de uma
morie , que ninguem calcularia em 1848–expira com o
poder temporal, visto que , desde mil annos, o Papado
>

fez desse poder a primeira necessidade da sua existen


cia . E como o poder temporal está quasi extincto , ou
prestes a extinguir-se, o pontificado será apenas um si
mulacro nas unhas de Victor Manoel, ou de qualquer
outro soberano, em cujo territorio se vá asylar.
Dado esse facto , continuará ainda a farça ridicula
da Nunciatura apostolica no Rio de Janeiro ? ou o go.
verno terá o valor de decretar, que dalli em diante fica
devolvida aos bispos do Brazil ( cada um na sua respec
tiva diocese ) toda a plenitude do poder espiritual sem
reservas ?
Ainda bem -tendes confiança nos nossos bispos ?
Tem elles a instrucção, a capacidade sufficiente, e o pat
triotismo necessario para se haverem como christãos,
e como cidadãos do Brazil ? Terão , ainda mais , o bom
senso de se contentarem com a sua missão ; isto he ,
com o governo dos espirilos , como diz Ricasoli pa sua
circular aos bispos da Italia ? Hoc opus .
Esta questão não he nova para nós ; encarando-a
por oulro lado , ha mais de vinte annos que pensamos
nella . E para provar o que acabamos de dizer, copia
remos em seguida om artigo da Barca de S. Pedro, que
escrevemos , ha 19 annos, a este respeito- eil -0 :
A Lei do Padroado .
« Uma das grandes necessidades do Brazil na actua
lidade he uma concordata com a Côrte de Roma. A
occasião creio que he favoravel, porque sendo , como he,
o S.S. Padre Pio 9.º muito illustrado, não poria a me
nor duvida sobre qualquer justa reclamação do nosso
governo, principalmente a respeito do tribunal da Nun
ciatura . »
« Com effeito, he vergonhoso para o Brazil , que
exista na capital , onde reside o Imperador, um tribu
318

nal estrangeiro, que não só decide de cousas espirituaes ,


com menoscabo da autoridade dos nossos bispos , mas
até de negocios temporaes , e puramente civis, como dos
contratos matrimoniaes. & . »
« Quem souber que os bispos do Brazil não podem
dar uma dispensa de cunhadio, e que dos confins do Im
>

perio he mister recorrer á Nunciatura por uma licença ,


que custa rios de dinheiro. Quem souber as sommas,
que annualmente se esgotão somente por este canal, sen
do que as multas , por extraordinarias e pesadas , equi
valem muitas vezes á uma negativa . )
« Quem souber que infinitas pessoas do povo vivem
em concubinato, á vista de seus parochos, porque não po
dem pagar as taes chamadas mullas, e muitas vezes nem
requerer pelo duplo capal : do governo, de quem he mis
ter haver licença para a impetração, e da Nunciatura
para obter a dispença. )
« Quem souber que os actuaes missionarios não po
dem prehencher as suas funcções apostolicas, porque to
cão todos esses embaraços, permittidos ee até sancciona
dos pela inprevidencia do governo, que está a mercê de
taes imposições , não só contra a autoridade de seus pro
prios bispos , senão tambem contra as regalias do Pa
droado imperial . »
« Quem souber, que o Internuncio foi á uma colo
nia , que está debaixo da protecção do Imperador, e do
alto do pulpito declarou nullos todos os matrimonios
havidos entre pessoas de diversos cultos. Quem sou
ber , que a negativa de uma dispensa semelhante, reque
rida em tempo, foi causa de uma apostasia em Pernam
buco . »
« Quem souber que no Brazil ainda não existe uma
lei , qué regule os contratos matrimoniaes, e que a mo
ral do nosso povo, de uma nação inteira , depende de um
tribunal estrangeiro, encravado no paiz . Qaem souber,
que engañamos a todos os estrangeiros, chamando -os
como colonos , para diser - lhes depois : Não vos podeis
casar sem licença de um agente diplomatico, que a seu bel
prazer, se lhe não derdes muito dinheiro, declarará do alto
do pulpito, dentro de vossas proprias igrejas , que vossos
319

filhos são illegitimos , concubinasvossas esposas, e nullos


Vossos matrimonios. )
« Quem souber, que nos Estados Unidos, onde tam
bem ha catholicismo, não existe tribunal da Nunciatura ;
e que todos os bispus catholicos gosão da plenitude de
suas jurisdições episcopaes . Quem souber, que toda a
America hespanhola repellio os taes tribunaes da Nun- .
cialura ; é que só , nós carregamos com essa imposição,
como um labeo contra a nossa nacionalidade, dirá que
somos o povo mais immoral e mais ignorante do conti
nento americano . »
« O que fez o Internuncio Bedini, declarando nullos
por disparidade de cultos entre os nubentes, os casamen
tos celebrados na colonia de Petropolis ? (1 ) Eu vol-o
digo : destruio a fé dos contratos publicos, aniquilou
salva e guarda das leis do paiz, infundiu , plantou des
de o principio a cisão entre os membros da mesma fa
milia , atacou a Constituição do Estado, e incorreu nas
penas do art. 277 do nosso codigo criminal. D
« Se explicardes na Europa o mecanismo actual da
nossa administração interna , ninguem poderia acreditar
que na America houvesse um povo de raça branca , tão
grosseira e estupidamente governado. »
« O que são os bispos do Brazil ? Pouco mais do
que Vigarios capitulares, sem primasia de honra nem de
jurisdição nas suas dioceses . O tribunal da Nunciatura ,
despojando os bispos do Brazil da sua jurisdição espiritu
al, reduzio-os á simples governadores dos seus bispados . »
< Sou catholico , mas quero a religião pura e sem
mancha ; quéro que ella não pese somente sobre as
bolças sem o alivio das consciencias ; quero o culto ,
quero a gerarchia ecclesiastica, mas quero tudo isto pa
ra boara e gloria de Deos , e utilidade do povo ; quero
que os bispos actuaes tenhão a mesma autoridade e ju
(1) Eis ahi porque dissemos, que a tal igreja do Sr. Padre
Campos não he christã : a theoria de Bedini opõe -se ao que ensi
na S. Paulo . mandando expressamente que se não separem os
esposos de fé distincta, por que o marido infiel he santificado pe.
la mulher fiel ; e a mulher infiel pelo marido fiel ; disendo que
assim são seus filhos santos. ( 1 Corinth . Cap . 7 vv . 12 a 14)
320

risdicção, que linhão quando a igreja do Brazil perlencia


ao Grão Mestrado das ordens militares. »
« Esses titulos , e essas denominações não devem
nem podem mudar a natureza das cousas; he misler que
os bispos sejão bispos aqui ou acolá, agora ou em qual
quer tempo . >
« E , porem , de quem he a culpa ? Porque, aca
bado , extincto pela independencia , o Grão Mestrado
das ordens militares, não fisestes uma lei do Padroa
do ? Porque não definistes a mais importante das attri
buições da Corôa, aquella que liga o lmperio e o Sum
mo Sacerdocio, o throno e o altar ? Porque ficastes
atraz das republicas hespanholas, tão catholicas como
nós, porém muito mais previdentes e patriotas ? O que
he, disei-me, o Padroado no Brazil , depois da extincção
do Grão Mestrado da Ordem de Christo ? »
« O Imperador deve exercer o Padroado como Re
presentante da Soberania nacional , e protector do culto
externo ; porem este padroado não se entende de ma
neira alguma como exercicio do poder espiritual, se
não tão somente como garantia de prevenção e repressão
contra a invasão deste Poder sobre os direitos civis e
politicos do povo. Deve haver una certa cohesão entre
o throno e o altar, mas de maneira que não se confundào.
« Não he mister para isto recorrer ao Direito publico
ecclesiastico francez, ou á declaração de 1682 ; porque
ninguem duvida hoje, de que os reis são independentes
do Papa , pelo que toca ao Poder temporal ; e que o po
der do Chefe visivel da igreja he limitado pelos sagrados
Canones . D
« O direito do padroado , em todas as nações catho
>

licas, sempre foi considerado do dominio temporal ; por


que nos paizes , onde ha uma religião do Estado , ao Su
premo poder cumpre a sua conservação, propagação, e
manutenção do culto ; e até mesmo onde os soberanos
percebem os fructos das igrejas vacantes, e de outros be
.

neficios curados , fasem-no em virtude de antigos direi


tos temporaes , como fundadores e patronos nalos dessas
igrejas.
« Em Portugal , porem , e sobre ludo no Brazil , os
reis exercião a jurisdicção espiritual tambem por meio de
321

um tribunal chamado da Consciencia e Ordens ; mas fa


sião-no por delegação , como Grão-Mestres perpetuos das
Ordens militares, em virtude da Bulla de 4 de Janeiro de
1551 , que he do theor seguinte . »
« É constituimos e deputamos ao mesmo Rei João
« (3.") , ou ao que adiante för de Portugal e dos Algar
)

a ves, ou Rainha, ainda que seja menor, por perpetuo


« e irrevogavel Administrador, ou Administradora de ca
a da uma das dilas tres Milicias , e de seus Mestrados,
a dos seus direitos, e pertenças sobreditas ; assim nas
( cousas espirituaes, como lemporaes. & . >
« Esta delegação , pois , foi a que reccusou a 1.a as
semblea geral do Brazil, quando negou o Beneplacito á
Bulla impetrada pelo 1.º Imperador para exercer o pa
droado , como tinhão exercido até alli os antigos Reis de
Portugal, em nome da Ordem de Christo ; poque , sendo
o Brazil já um Estado independente , entrava no absolu
10 e plenissimo exercicio da sua soberania , a qual não
admitte, nem pode admittir delegação alguma . » .
« Entretanto o facto he que o Brazil, como conquis
la , pertencia no espiritual á Ordem de Christo ; e que os
Reis de Portugal , como Grão -Mestres perpeluos desta
Milicia , exercião o Padroado ecclesiastico e laical . Toda
via , aquelles Monarchas tiverão muitas veses que arre
pender -se desse poder mixto , que custava ao paiz som
mas enormes. Vejão - se os tres Decretos de 4 de Agos
to de 1760 , mandando pôr em inteiro vigor o de 5 de Ju
lho de 1728, interrompendo toda a relação com a Corte
de Roma. »
« No Brazil actual, porem , nada ha de commum
com essa ordem de cousas , porque , pelo que toca ao
espiritual , acabou - se a delegação com a extinção do Grão
Mestrado no Imperio ; e no que respeita ao temporal,
nem está deffinido o que seja o padroado, nem a manei
ra de assegurar a vital garantia de prevenção e repressão ,
agara mais que nunca, tão importante e necessaria. Fa :
sei por tanto a lei do Padroado, defini ama das mais im
portantes regalias da Coroa em um paiz , que tem uma
religião do Estado. » (B. de S. P. 3 de Junho de 1848)

41
322

III

Não podemos saber como sairemos Jessa situação,


quando ella se appresentar - não sabemos se o governo
está preparado para recebel-a como ella vier ;se tem
mesmo pensado um só momento em semelhante even
tualidade ; seja o que fôr, a grande questão religiosa
nos bate á porta . e o Governo tem necessariamente de
assumir uma grande responsabilidade na maneira de
tralal- a .
Entretanto devemos confessar, que temos medo do
governo do nosso paiz , porque a experiencia nos tem feito
convencer de que a intervenção do governo em materia
de organisação interna , ou das grandes questões de or
dem publica e de economia politica , como população ,
industria e riqueza nacional , he sempre em pura perda.
Trata -se por ex : de emigração -- no momento em que o
governo mette o dedo, ficae certo que o negocio está
perdido.
Vamos pois a um simples facto, e bem recente. Sa
be -se geralmente que a emigração , que mais convem , he
a expontanea ; por que he a que traz a familia inteira ,
a que promette mais moralidade , a que traz seus peque
nos haveres , e a que não pesa ao Estado ném aos par
ticulares . Temos muilos exemplos nesses colonos, que
tem vindo adherir ultimamente ás nossas colonias do
Rio Grande do Sul e de Santa Catharina.
Entretanto a Assembléa geral decretou seis mil con
tos para atlrahir colonos á custadogoverno. Crearão-seim
mediatamente sociedades de colonisação no Brazil, e Com
panhias na Europa ; fez -se de ludo isto uma vasta especu
lação ; gastou-se o dinheiro em grande parte ; pois bem ,
quereis saber o resultado ? Limpamos a Alemanha dos
seus réos de policia ; troucemos para o paiz uma esco
la de roubo e de embriaguez , como esses Belgas, que vis
les mendigando pelas nossas ruas , e inutilisamos essa
fonte de emigração , talvez por muitos annos.
Agora repete -se o mesmo facto , ainda com mais
escandalo. Acabada a guerra civil nos Estados . Unidos ;
submetidos pela força os Estados do Sul , apareceu a ideia
de uma emigração espontanea daquelles Estados para o
323

Brazil . Capitalistas, homens de negocio, agricultores,


artezãos , todos mortificados em seu amor proprio , fe
ridos pela perda da escravatura , pensarão trocar a pa
Iria vencida e humilhada por uma nova patria sem
labéo .
Houve pois uma propaganda em favor da emigração
do Sul ; alguns Norte-americanos, notaveis pela intelli
gencia e fortuna, vierão ao Brazil e percorrerão o Im
perio. Tendo sido acolhidos com muita benevolencia
pelos Brazileiros, augmentou -se -lhes o estimulo da emi
gração . Sociedades particulares tratarão de animar es
te gigantesco projecto, quando o governo se lembrou de
intervir, contratando com uma Companhia norte-amo
ricana a remessa de emigrantes daquelle paiz para o
nosso .
Qual foi o fructo dessa medida do governo ? Res
ponderemos com a Revista Commercial de Santos, de 28
de Dezembro ultimo, que se diz bem informada :
« Alem de alguns individuos e poucas familias, diz
a cilada Revista, que se tem mudado definitivamente dos
Estados Unidos para o nosso paiz, u facto mais notavel
sobre a emigração americana he a chegada recente de
200 e tantos emigrados, no ultimo Paquete de Nova
Yorck . Alem desses annuncia-se que devem vir pelos
paquetes seguintes algumas centenas mais de emigrantes
da mesma procedencia, com destino a este imperio : »
( A respeito desses emigrantes , chegados ultima
mente , temos as mais desagradaveis informações, que
nos apressamos em communicar ao publico. Essas in
formações são insuspeitas e dignas de fé, por que nos
forão transmittidas por um honrado negociante, vindo
no mesmo Paquete de Nova -Yorck, e vorte -americano
como os seos companheiros de viagem . )
« A maioria dos emigrantes, recem -chegados, he
composta da escoria da sociedade de Nova Yorck - gatu
nos , vadios, mendigos, elc . Os seos costumes são tão. de
pravados, o seo comportamento em toda a parte tão
digno de uma repressão energica, que mesmo a bordo
do paquete, em que vierão de passagem , alguns forão
postos a ferros por ordem do commandante do Vapor ;
324

o qual vio -se forçado a lançar mão desse meio para


manter a ordem dentro do seo navio . » (1 )
« Ainda mais entre a bagagem heteroclita desses
cavalleiros da fortuna encontrarão -se gazuas e outros ins
trumentos proprios para comelter roubos dentro das
cidades . »
« Eis de que elementos se compõe a maioria da
primeira turma de emigrantes , que nos vem remellida
pelos agentes do governo imperial nos Estados Unidos. »
« Entretanto , e em compensação infallivelmente
desigual) no meio dessa cafila de bandidos, capases de
tudo , vem cerca de vinte plantadores, que desgostosos
>

da presente situação politica e social da união ameri


cana , transferem a sua residencia para o Brazil , que que
rem adoptar por patria. Esses são gente pacifica, labo
riosa e morigerada. >>
« Ve-se pois que os agentes do governo , incumbi
dos da emigração nos Estados Unidos, estrearão o peior
possivel no desempenho da sua commissão . Esses agen
ies dominados , ao que parece , pelo espirito de especu
lação , apanhão a torto e a direito nas ruas da Nova Yorck
vagabundos e réos de policia, que alli formigão, afim
de envial- os para o Brazil , fazendo assim jus aos esti
pendios promettidos. »
a Entretanto sabemos que ha na União americana uma
classe de individuos , cuja emigração para o Brazil mui
10 nos conviria : são os plantadores dos Estados do Sul ,
que em vista da nova ordem de cousas alli estatuida, não
querem , nem podem continuar a viver em seu seio ; e
por isso aspirão a expatriar - se. Esses são os que nos
convem .
Até aqui a Revista commercial de Santos . Com ef
feito, a ninguem lembraria ir recrutar agricultores á ci
dade commercial de Nova Yorck ! Mas, em fim pode
se dizer : devia por ventura o Governo ser indifferente
á essa tendencia de emigração norte - americana para o
Brazil ? Não .

(1 ) O mesmo aconteceo com outra porção dessesbandidos, que


a titulo de emigrantes norte -americanos forão ter á provincia do
Rio Grande do Sul. Os Jornaes daquella provincia estão cheios
dos attentados e das immoralidades comettidas por essa gente .
325

E porém qual devia ser então a sua missão ? Cui


dar tão somente de preparar terrenos disponiveis para
vendel - os aos emigrantes por um preço modico, Bu
dal- os, se assim julgasse conveniente, nas melhores pa
ragens, como á margem dos rios navegaveis, ou nas
zonas percorridas pelas estradas de ferro, ou junto a
costa do mar ; de maneira que os emigrantes acbassem
á sua chegada terras para comprar ou gratuitas, se as
sim julga o Governo melhor.
Depois o governo proporcionaria transporte gratui
to ou barato aos emigrantes desde as capitaes , ou por
tos a que chegassem , até as terras que lhe fossem ven
didas ou doadas. Fóra disso toda a ingerencia do go
verno nesse negocio não servirà senão para impedir a
emigração expontanea .
Quanto a inlervenção das Sociedades particulares
de colonisação, achamol - a util e conveniente com o fim
puramente humanitariu ; isto he , que só cuidem do bem
estar material dos emigrantes . Esta intervenção phi
lanthropica accelerou a corrente de emigração para os
Estados Unidos depois da paz de 1815 por diante .
Aplaudimos pois a Sociedade creada con este fim no
-

Rio de Janeiro . mas quem sabe se não acabará por ul.


timo em alguma especulação de lucro ? Parece que já
se solicita a participação do governo ! para que ?
Pelo que fica dito ver- se-la se he ou não justo o nos
sc medo sobre a intervenção do governo nos negocios de
grande monta . Entretanto, quem ha de dirigir a mar
cha do paiz senão o governo ? Deos lhe ponha a vir
tude , por que são lantos e tão graves os negocios do
paiz, be tão tremenda a nossa situação politica, religio
sa e financeira, que só Deos nos poderá salvar .
Infelizmente para a nossa epocha parece que todas
as difficuldades se augmentão, e apparecem de chofre !
E senão veja -se a questão da escravidão , que vem co .
incidir com todas as outras - lão grave, se não mais, que
as questões religiosa e financeira.
Ila muitos annos, que começou o trabalho lento
da emancipação dos escravos - era a consequencia ine
-

vitave da extincção do trafico . A guerra civil dos Es


lados Unidos veio dar um grande impulso á ideia , que
326

germinava nos espiritos elevados. Varias Sociedades,


principalmenle Maçonicas, ionarão agora a dianteira
nesta philantropica propaganda.
O Brazil e Cuba conservavão a escravidão á sombra
dos Estados Unidos ; nação poderosa, a quem nenhum ou
tro povo se atreviria a impôr condição alguma de sua exis
tencia politica. Mas em fim a questão da escravidão foi
discotida, disputada e condemnada dentro do proprio paiz
-Dinguem lhe exigio a liberdade dos escravos ; foi a
mesma nação que a decidio ; uma parte forçou a outra
a ceder, e a escravidão desapareceu nos Estados- Unidos ;
por tanto no Brazil e em Cuba a escravidão não lem mais
razão de ser- a questão he de tempo !
Entretanto pode haver espirito lão maligno, que se
lembrasse de obrigar-nos a lançar repentinamente no
meio da nossa sociedade dous milhões de feras sem aça
mo, sem preparo nem prevenção alguma , unicamente
como um elemento de perpetua anarchia. O inconveni
ente de semelhante medida estão- no apalpando os pro
prios Estados Unidos .
A loglaterra , que preparou os seus escravos de Jamai
ca , durante perto de vinte annos , para a emancipação ;
agora mesmo , depois de 25 annos de emancipados, foi
obrigada a fazer uma carnagem horrivel nesses miseraveis.
Accusado o governador da ilha dessa matança , foi com
pletamente justificado por uma commissão da Camara
dos Communs, que veio sindicar dos motivos da ac
cusação .
He pois de primeira necessidade , que tomemos des
de já medidas de prevenção para esse desenlace , que não
pode deixar de ter lugar dentro de mui poucos annos ;
principalmente se não tomarmos algumas providencias
com o fim de acautelar essa calamidade , porque estão
passando os Estados do Sul da união americana . Qual
será pois a primeira medida á tomar ? Decididamente
deve ser a emancipação do venlrc escravo !
Não nos enganemos com as aparencias para não
termos de que arrepender- nos . O corpo legislativo não
deve retirar -se este anno sem decretar a emancipação do
327

ventre escravo (1 ) . Só então poderiamos diser a Euro


pa e a America . « Estamos em mãos de acabar - os que
nascem são livres, e os escravos vão morrendo , visto que
não ha mais importação .
Todavia cumpre pôr um lermo á escravidão, que por
esse modo ainda poderia durar mais de cincoenta annos ;
isto he , que a aurora do anno de 1880 appareça alumian
do esta terra do Brazil livre da peste da escravidão do
mestica . (2)
Esta medida não he nova para nós-ella se acha jà
consignada na nossa legislação antiga com respeito a Por
tugal ; como se verá pela Carta Regia de 16 de Janei
ro de 1773 .
Portugal não marcou termo para a emancipação ab
solula ; deixou isto á acção do tempo , mas nós não o po
demos faser, á vista da opinião do mundo civilisado . Mar
cando um termo proximo , como o anno de 1880 , tivemos
em vista duas cousas : 1.4- não lançar de choffre no
meio da sociedade dous milhões de feras sem açamo ,
como ja dissemos -2.° evitar uma indemnisação aos se
( 1 ) A lei não pode ser casuistica ; os regulamentos do governo
devem prevenirtoda a especie de fraude da data da lei por diante :
como a inscripção ou registro dos recem -nascidos para evitar a frau
de de antidaias- o cuidado da creança emancipada para que não
morra á mingua , occupadas as mies com o serviço dos senhores
>

graves penas e grande vigilancia para que as crianças não sejão


engeitadas afim de locupletar-se o senhor com o serviço das mães
-emfim outras muitas precauções para tornar a lei proficua, sal
vando a geração liberta .
(2) Eis ahi algumas das condicões do resgate dos escravos das
colonias inglezas da America .
Os escravos de uma certa idade passarão para o estado de
aprendizes trabalhadores, e fiserão delles tres cathegorias ; isto he,
aprendizes trabalhadores ruraes adstrictos ao solo ; aprendizes tra
balhadores ruraes não adstrictos ao solo ; e aprendizes trabalha
dores não ruraes. Seis annos de aprendisado forão impostos ás
duas primeiras classes, e quatro annos á terceira, a datar do 1.0
de Agosto de 1834 .
Os senhores tiverão direito ao trabalho de seus escravos de
outr'ora, convertidos em aprendises, com a condição de proverem
a sua subsistencia. Os tribalhadores negros tiverão porem a fa
cuidade de resgatar os annos de serviço , que ainda devião forne
cer á seus antigos Senhores. ( Wolinari, sobre a abolição da es
cravidão .
328

nhores ; o que não poderiamos faser sem aniqnilar as ge


rações futuras sob o peso de uma divida impagavel .
Já se sabe que não admittimos a menor indemnisa
ção ; esse têrmo marcado para o anno de 1880 serve mais
que muito para o resgate, não do direito de propriedade
que não existe , mas da bòa fé com que tinhamos a cou
sa possuida . Em todo esse espaço de 13 annos servirão
os escravos actuaes a seus senhores , como aprendises
trabalhadores ruraes adstrictos ao solo , ou como aprendi
ses trabalhadores não ruraes ; com a condição de prove
rem os senhores a sua subsistencia .
Todas essas medidas podem ser tomadas sem gran O

de alteração na ordem do trabalho , uma vez que tudo seja


meditado e prevenido pelos regulamentos do governo,
sem faser violencia aos proprietarios nem aos libertos.
Pode ser que alguem julgne inconciliaveis os interesses
de ambos os lados ; mas não he assim - tudo se pode
conciliar sem grande abalo , como se pretende faser em
Cuba , marcando as relações entre os antigos senhores e
>

os novos libertos - assim tenha o governo juiso .

Vamos ainda a outro desmazelo ou inercia dos nos -


sos governos , sem excepção de côr politica . Os nossos
governos não vivem , vegetāo - todo o mundo faz o que
quer , com tanto que não perturbe o dolce far niente do go
verno ! Esta be a dialhese ou disposição constitucional
dos nossos governos . Eis ahi uma prova :
Não ha quem ignore que os Jesuitas forão lançados
fóra do Brazil e de Portugal, poscriptos e banidos pela
lei de 3 de Setembro de 1759 ; que desde 7 de Junho do
apno anterior (1758) tinhão sido suspensos de pregar
e de confessar no Patriarcado de Lisboa ; e successiva
mente em todos os bispados lo reino . Seos bens forão
todos sequestrados ; suas igrejas e collegios tiverão on
tros destinos . Sabe -se igualmente que toda essa legisla
ção nunca fôra revogada em Portugal , nem no Brazil.
Corridos ultimamente da Italia , refugiarão-se no Ve
neto ; e quando se verificou a entrega do Venelo á ltalia ,
la forão bater as portas da Austria. Mas Vienna, Trieste,
329

o Tyrol, emfim toda a Austria Thes fechon a porta --- nin


guem quer saber da roupetta .
Pois bem , elles ca vem agora para o Brasil , onde ha
muito preparão o se! ninho em Santa Catharina, no Rio
Grande do Sul, ultimamente em S. Paulo , e agora em Per
nambuco . Invadem -nos por todas as partes , e pretten
dem immediatamente tomar conta da educação da infan
cia , e agora mesmo das missões no interior da pro
vincia !
Quem lhes lleu essa autorisação ? Estrangeiros no
Brazil , quem os autorisou a tomar semelhante ingeren
cia na predica e no ensino ? Para os Capuchinhos fez -se
uma lei geral , e algumas Provincias fiserão lambem leis
especiaes para isto- mas quem autorisou os Jesuitas ,
quem os chamoni, quem lhes permittio o que estão fasen
do ? O bispo , dirão, ou o Vigario Capitular ! mas quem
autorisou o bispo a derogar as leis do paiz , ou o que tem
de ver o bispo com subditos estrangeiros, exercendo fun
ções publicas sem licença do gorerno ?
Em Pernambuco o escandalo vae mais longe. Os Je
suitas não se importão com a legislação do paiz - monta
rão um collegio para meninas com mulheres italianas ,
que se disem ellas mesmas irmãas de Santa Dorothea ;
collegio que os lacs padres dirigem . Tratão agora de
monlar ontro collegio para meninos, dirigido unicamente
pelos proprios padres.
São iambem Jesuitas o Reitor e alguns mestres do
Seminario episcopal . Trata- se de pôr Jesuitas á frente
do Collegio dos Orfãos, estabelecido e mantido pelo Go
verno . Disem tambem que vae um para Fernando co
mo capellão engajado, que nem o portuguez sabo . Em
fim tudo respira Jesnitismo em Pernambuco .
Se esses foragidos ao menos nos troucessem saber e
industria ; isto he, sciencias e artes, ainda bem ; mas di
sem geralmente que são todos de uma ignorancia crassa
-que, alem das praticas costumadas de exercicios e
actos de devoção supersticiosa , nada mais ensinão-que
C

a doutrina do Evangelho não entra nas suas pralicas ,


cheias de superstição, de fariatismo e até de absurdos.
Alem do mez mariano, crearão já outra alicantina
chamada - mez (loloroso - em Solembro. São pois dous
330

meses perdidos para as mulheres do povo, que vão alli


levar o seu dinheiro e as súas velas para ter lugar a en
trada na Igreja, perdendo assim a noute e o dia. E a po
licia o que faz ? a policia dorme, em quanto os Jesuitas
velão . -
Calcula o Governo lodas as consequencias do seu
abandono , da sua decidia , ou da sua imprevisão ? Pois
agora Jesuitas no Brazil, quando toda a Europa, e so
bre tudo a Italia papal os repelle ? Pois a educação ele
mentar de ambos os sexos pode ficar á cargo de estran
geiros ? Pois as nossas missões podem ser confiadas a
quaesquer aventureiros ( que não são outra cousa os Je
suitas !) sem a menoringerencia ou licença do Governo ?
Pois Jesuitas no Brazil no anno de Graça de 1867 ?
Faça emfim o governo o que quizer, que he bem se :
nhor dos seus narizes.
Um dos grandes males da Italia meridional era o
ensino , que se dava nos grandes e pequenos Seminarios
-todos os vicios e crimes partião desses focos impesta -
dos pela ignorancia e pela superstição . Victor Manoel
suprimiu quasi melade ; alterou a disciplina interna, mu
dou a ordem dos estudos e das materias , deu novos esta:
tutos , creou novos estudos , soprimiu outros , e abriu as
portas dos Seminarios a quem quizesse frequental - os.
Finalmente reduziu os Seminarios á Liceos ou Gym
nasios, nomeou novos reitores e mestres, creou inspec
tores para esses estudos , e pož os Seminarios debaixo
da salva e guarda da autoridade civil . O resultado tem
justificado completamente as medidas do Governo.
Alguns bispos rosnarão - mas o governo da Italia
não discute com os seus subditos- manda, e os bispos
obedecem . Tambem rosnarão com o casamento civil ;
mas desde o dia 1.º de Janeiro de 1866 ficarão abertos
os registros dos casamentos, nascimentos e obitos, e nin
guem mais oužou dizer uma palavra - be que na Italia o
governo faz o seu officio ; isto he , governa.
SE *
Poderiamos ir mais longemas para que ! Quem
nos ouviria, quem faria caso do que dissessemos ? Lou
cura seria pensar, que işlo mesmo, que acabamos de
escrever , tivesse outro fim que não uma especie de de
331

sabafo patriolico. E sem embargo , esta patria pode ser


de todo o mundo, menos nossa .
Ahi tem pois o governo muito em que pensar , muito
em que cuidar, e muito mais em que entreter -se : a guer
ra em primeiro lugar, e Deos nos livre , que ella não es
teja concluida até Maio , segundo a opinião do nobre
Marqnez de Caxias. Depois vem mesclar-se a questão
financeira, o grande deficit, e a immensa divida ! e para
cumulo de males , novos e pesados impostos! mas , que
remedio ?
A guerra em primeiro lugar, dissemos nós ! Sim ,
esta guerra he um caso gravissimo de honra - não ha
meio termo possivel ; o Brazil ou o Paraguay; o Impera
dor ou Lopes . He uma vergonha, que o Paraguay dos
Jesuitas tenha affrontado por mais de dous annos o colos
so do Brazil . Não he o povo culpadó - são as facções, he
0 .... O povo ! que nos mostrem outro mais valente
e mais patriota na America meridional. Que culpa tem
elle que esbanjem por impericia o seu valor e o seu
patriotismo ?
E o corpo legislativo , ou a nova Camara dos Deputa -
dos ? Não será melhor do que a que acabou . Novos es
candalos, e nada mais . Ninguem espere cousa alguma
de um corpo collectivo composto de semelhantes elemen
tos ! Ainda se houvesse quem lhe imprimisse um pen
samento ! inas quem ? donde partirà a ideia, donde o
impulso , donde a inspiração ? Hoc opus .....
Finalmente ferramos velas e lançamos ancora no
mesmo porto , em que fundeou o Sr. Fadre Campos ; e
bem perto delle para que nos não escapem os seus mo
vimentos ; nem o seu bote vá a terra que o nosso o não
acompanhe. Só uma cousa lhe pedimos, e hé que não
repitta a scena demasido torpe daquelle famoso artigo
do Diario de Pernambuco de 3 de Julho do anno pro
ximo passado .
Se o fizer, sua alma , sua palma !
Recife 15 de Janeiro de 1867 .
0 Christio Velho,

Fim da segunda resposta .


332

O BENEPLACITO IMPERIAL

Acabamos de ler no Diario de Pernambuco de 2 do


corrente, um artigo em resposta a outro da Esperança ,
assignado pelo Sr. Dr. Jeronymo Vilella , que nos affligio
por vermos nelle estampado o nome do nosso amigo .
Com efeito desconhecemos o estylo e a argumentação
do velho escriptor. O ameno Sr. Vilella desappareceu ;
fundio -se o lente de direito publico ecclesiastico da
nossa faculdadle ! – A que veio toda aquella algaravia ?
O Sr. Vigario Capitular em quatro palavras disse ao
Sr. Bispo confirmado as razões por que não conferio a
posse do bispado em seu nome ao Sr. Conego João
Chrysostomo ; assim como porque o não investira do
governo da Diocese cm virinde da provisão do mesmo
Sr. Bispo confirmado.
Cóm effeilo - Legem habemus, disse o Sr. Vigario
Capilular, e disse muito bem . O procurador apresentou
a Bulla de confirmação, mas não apresentou o benepla
cilo imperial, sem o qual não podia ter execução a re
ferida bulla, visto como pela Constituição do Imperio e
pelo nosso direito putrio, nenhum Breve , Bulla ou Cons
iluição apostolica pode ter execução no paiz sem o Placet
Imperial .
Achaes, Sr. Dr. Vilella , que se pode dizer mais ?
Achaes que no Brazil fosse mister sustentar com autori
dade estranha um acio fundado no nosso direito patrio
escriplo, e sobretudo na nossa Constituição ? O acto do
Sr. Vigario Capitular foi tão curial , foi tão legal , que o
governo supremo não pode deixar de approval-o , sob
pena de rasgar a Constiluição com as suas proprias mãos .
Se o Sr. Vigario Capitular não tivesse procedido da
quella maneira, teria commertido um crime. Ignoravam
acaso a legislação do paiz os que promoveram a farça de
15 de Dezembro ? Não , era mister um escandalo , e fi
zeram-no em duplicata .
Ilouve duplicata de escandalo , dentro e fóra do
Cabido , segundo nos asseverou pessoa circumspecta ; e
esse escandalo foi o fim, que tiveram em vista os que o
promoveram . Eis-abi pois o que são os Santões da nossa
ierra ! Oito dias de poder, ou um escandalo .
333

Depois do luminoso e laconico officio do Sr. Dr. Fa


rias, de 16 de Dezembro ultimo, ao Sr. Bispo confir
mado, o Sr. Dr. Vilella , se queria prestar um serviço ao
seu amigo, deria dizer tão somente, ou explicar qual
era o direito putrio, cm que se havia fundado u Vigario
Capitular para denegar -se á execução da Bulla sem o
Erequalur Imperial - e foi justamente o que não fez o
Sr. Dr. Vilella . Quiz mostrar copia de erudição ; falloa
do direito poblico ecclesiastico ; fallou , citou mesmo
muitos autores, accumulou muita doutrina, mas do di
reito patrio nem uma palavra ; e era a unica cousa que
tinha de fazer !
Com effeilo ! A que vem os Sacramentos e o profes
tantismo , e a profissão de fé catholica do Sr. Dr. Vilella
questão da posse do bispado em virtude de uma
Bulla sem o beneplacilo regio ? Lastimamos a decaden
cia da linguagem vehemente e seductora do nosso anti
80, e sentimos que, longe de aproveitar o que elle disse
>

ao Vigario Capitular, não fizesse outra cousa senão des .


locar a questão da sua verdadeira base , isto he, do nosso
5

direito patrio incontroverlivel, para o campo das con


troversias do direito publico ecclesiastico , onde á cada
passo se chocam as opiniões, e se contradizem as dou
trinas. Felizmente o Śr. Vigario Capitular firmou defi
nitivamente o seu procedimento sobre dous valiosos es
teios , isto be, sobre a Constituição do Estado, e sobre o
nosso direito patrio.
Onde achou o Sr. Dr. Vilella no nosso direito patrio
que o beneplacito, isto he, que o direito magestatico do
Placet, longe de ser absoluto , fosse restricto, e só se
referia á materia mixta ? Onde achou no nosso direito
escripto a doutrina — que exigir o placito regio para
malerias de fé he captivar o espirito, e a consciencia do
povo á vontade do chefe do Estado ? Emfim , a que vem
toda aquella tirada do Abbade Turquais ?
Para confirmar o que disse, cila depois a autoridade
do Bispo Conde de Irajá , que admitte a doutrina do be.
neplacito regio limitado. Pois bem , qual a lei , a con
cordata, ou disposição de direito patrio , em que elle se
fundou para dizel -o ? Nem o Sr. Bispo Conde , nem o Sr.
Dr. Vilella , podem distinguir, onde a lei não distingue ;
104

ninguem , por mais elevado que seja , pode modificar o di


reito escriplo senão o proprio legislador .
Vamos agora provar ao Sr. Dr. Vilella , que a grande
regalia da coroa , que o direito magestatico do Placito
não lem , nem nunca teve em Portugal limitação alguma .
Como demonstração , citaremos em primeiro lugar a
carla de lei de 6 de Maio de 1765 , mandando que , se
guodo o costume antigo do reino , em conformidade de
um dos mais impreteriveis direitos da soberania da co
róa, que a ella he inherente , e della sempre inseparavel,
e sempre inalienavel, as Bullas , Breves e Rescriptos,
emanados da Curia de Roma , se não publicassem , nem
tivessem no mesmo reino execução alguma sem 0. real
beneplacito - ( onde está aqui a limitação ?. )
Outra carta de lei de 2 de Abril de 1768 , fulminando
a Bulla chamada da Cên do Senhor, e os indices expur
gatorios, vindos de Roma , e introduzidos clandestina
mente em Portugal , manda que sejam nullos sem pre
ceder para a publicação delles o regio beneplacito.
Outra de 5 do mesmo mez e anno, onde diz « E
attentando- se pela outra especificamente a todos os so
breditos respeitos contra a corja destes meus reinos,
onde os Senhores Reis delles usaram sempre do refe
rido direito de prohibirem com penas externas dos casos
occorrentes, até os mesmos livros e papeis concernentes
à religião e á doutrina , e onde desde os principios da
monarchia não permittirum que se executassem as Bullas,
Breves ou Rescriptos da Curia Romana , sem precede
rem as suas Cartas de publicação ou Regio beneplacito ;
succedera etc. , > ( onde está aqui a limitação ? )
Outra de 30 do mesmo mez e anno , declarando
nullo e irrito o Breve contra o Duque de Parma por ser
attentatoriu dos direitos os mais sagrados da coroa , esta
belecidos em leis , costumes , e concordatas por muitos
seculos observadas em Portugal .
Os mesmos fundamentos são invocados na provisão
de 10 de Março de 1764, em que El- Rei reserva ao seu
immediato conhecimento todos os casos de excommu
nhão contra os tribunaes , Ministros, Magistrados e offi
ciaes de justiça ; não só a respeito das excommunhões
fulminadas por ecclesiasticos seus vassallos, mas ainda
335

a respeito das excommunhões e declaratorias da Curia de


Roma , quando cahem sobre materias temporaes.
Ainda outras leis , Alvaràs , Provisões , que seria es
cusado cilar á vista do que vamos dizer.
Appenso a lei de 6 de Maio de 1765 vem um docu
mento importante, e he o recurso de força interposto
para el- Rei pelo Procurador da Corôa contra a introduc
cão clandestina do Breve -- Apostolicum Pascendi - No
citado recurso lê-se o seguinte .
« Daqui vem que o direito de se apresentarem aos
mesmos Principes Soberanos, e de fazerem estes exami
nar todas e quaesquer Bullas, todos e quaesquer Breves, e
todos e quaesquer Rescriptos, ( onde está a limitação ?)
que aos seus Estados são dirigidos pela Curia de Roma ;
para se expedir sobre as mesmas Bullas, Breves e Res
criptos i Regio Beneplacito , antes de se lhes dar exécu
ção alguma. Este direito, digo, he um direito certo ,
inherente á soberania dos Principes, que não reconho
cem superior no temporal, e della inseparavel ; e um di
reito, que como tal , nem os ditos Principes podem ab
dicar de si mesmos , para o albearem ; nem admitle al
guma prescripção, nem necessita de concordatas com a
Curia de Roma , nem de privilegios por ella concedidos. )
O Procurador da Coroa continúa provando que o
mesmo costume, e o mesmo direito inconcusso se davam
em França , na Hespanha, nos Paizes -Baixos, nos reinos
de Napoles e da Cicilia ; e em todos os outros Estados da
Italia , posto que fossem tão visinhos da Curia de Roma,
como o Piemonte , Milão , Florença, Mantua e Veneza .
Vejamos agora qual era o direito antiquissimo do
beneplacito regio em Portugal.
O art . 32 da Concordia d'el -Rei D. Pedro I , he do
theor seguinte :
« Que el-Rei tinha mandado, que ninguem publi
casse letras do papa , nem seu mandado, pela qual razão
o papa estava aggravado dos prelados, tendo que pelo seu
azo se embargavam suas letras que se não publiquem ,
como deviam , o que se fazia em todos os outros Reinos,
>

e pedia -nos por mercê que quizessemos revogar a dita


ordenação . D
« Respondeu el-Rei, que nos mostrem essas letras ,
336

e ve -las -hemos, e mandaremos que se publiquem pela


guiza , que o devem .
O art . 82 da concordata , feila por el - Rei D. João I ,
he tambem do theor seguinte :
« Item , que se impetram Bullas apostolicas para
beneficios ou demandas , ou hào sentença sobre beneli
cios, que não ousam publicar, porque pela defeza e pena
da Ordenação do reino, até qne hajain carta de licença
l'el- Rei ! .... o que he contra direito , conhecer dos actos
da Igreja , e sobre sentenças e feitos do papa , e conhe
cem de sorreição e falsidade . )
Responde el-Rei, que elle não fez esta cousu de
Novo , antes assim se costumon sempre em tempos
dos Reis que ante Elle foram antigamente , e isto he mais
or conservação da jurisdicção e liberdade da Igreja,
que seu prejuizo, e porque achou que sempre se assim
itsou , e que não ia contra a liberdade da Igreja, antes
era em seu favor : mandou que assim se guardasse o
assim o entende daqui em diante guardar ; e assim se
guarda em outros reinos e terras ; e qne a Ordenação
e maneira que em isto lem , he hoa ,e não pertence isto a
elles . »
Ainda ho mais explicilo o protesto que os embaixa
dores do mesmo rei D. João i fizerain no Concilio de
Constança , que se acha encorporado na sessão 22 do
mesmo Concilio .
« Que os reis de Porlugal tem seus reinos , terras
e dominios livremente , e livres sem reconhecerem supe
rior algum vivente na terra, mas somente a Deus , prin
cipalmente em materias lemporaes : e concluem protes
tando , uma e muitas vezes , instante e instantissima
mente , que todo o que for ordenarlo, disposto e con
cordado, depois deste protesto, por quaesqner volos
contra direito e justiça, seja nullo , irrito e vão ; eo
tambem que tudo o que for ordenado por taes
tos , ou quaesquer outros do presente Concilio , ou de
quaesquer outros prelados de qualquer condição , Es
tado , Dignidade ou Preeminencia ! ( Veja bem ) seja da
mesma sorte nullo ; e não possa fazer damno, detri
mento ou prejuizo ao Serenissimo Rei Nosso Senhor,
nem aos seus reinos, nem aos prelados e terras sujeitas
337

ao dilo rei : e que não tenham nem devam ter al


guma execução nem obediencia nos seus reinos , terras e
dominios senão em quanto, e naquellas cousas , nas
quaes o mesmo rei nosso amo, depois de informado pelo
presente protesto , quizer, lhe parecer, e agradar prestar
o seu consenlimento ,
Ainda poderiamos citar a renuncia de D. João II de
Portugal , e a opposição das Cortes , dos primeiros Con
selheiros e maiores jurisconsultos do reino, negando
que o rei podesse abdicar, sem o consentimento de to
dos os Estados do reino , aquelle direito , de que usou
amplamente o seu successor D. Manoel, e este legou de
pois intacto aos seus successores . ( 1 ) 0
De tudo quanto fica dito se deduz : 1.° que o di
reito do Placito regio he antiquissimo e inconcusso em
Portugal, e em todas as nações catholicas ; 2.º que esse
direito nunca teve nem tem limitação em Portugal ,
quaesquer que fossem as Bullas , quaesquer que fossem
os Breves , ou quaesquer outros Rescriptos da Curia de
Roma ; 3.º que toda essa legislação he nossa , e que o
direito patrio ecclesiastico portuguez he lambem o nosso
proprio direito patrio , em virtude da lei de 20 de Outu
bro de 1823, que o mandou vigorar para por elle se
regolarem os negocios deste imperio .
He portanto claro como a luz meridiana, que nem
o Sr. Dr. Vilella , nem o Sr. Bispo Conde podiam limitar,
>

restringir, ou distinguir um direito , que não tem limita


ção em si mesmo , que nenhuma lei, Decrelo , Alvará ou
Provisão dos reis de Portugal limitou , nem restringio ;
que nenhuma distincção ba na materia das Bullas ou
Breves ; nem mesmo se acha uma palavra sobre Bullas
penitenciarias , ou Bullas disciplinares ou mixtas, que
digam relação ao fôro interno ou externo ; como por
exemplo em França , onde o Dec. de 28 de Fevereiro de
1810 limitou o 1.º dos artigos organicos da Convenção
( 1 ) Quanto á renuncia de D. João 2.º do direito do bene
placito , causou ella tantos disturbios e desordens no reino, que
elle proprio vio - se obrigado a revogar a dita renuncia , como ori
gem de tantos males , pela carta regia de 4 de Fevereiro do
1495, que vem por extenso na 2.a parte Demonstração 6.a da
Deducção chronologica -- pags . 84 e 85 .
43
338

do anno IX da Republica , declarando , que os Breves pe


nitenciarios, para o fôro interno tão somente, podiam ser
executados sem autorisação .
Pois bem , esta limitação , em termos tão expressos ,
servio para que alguns bispos em França abusassem , es
tendendo-a a seu bel-prazer, a ponto de contestarem ao
rei o direito do beneplacito , como se ve do facto dado
em Lyon a 21 de Novembro de 1844, quando o Cardeal
de Bonald , Arcebispo de Lyon e de Viesna, por um seu
Edicto, mandou publicar a Bulla pontificia Auctoren fie
dei de 28 de Agosto de 1794, que não tinha sido publi
cada em França .
Nesse Edicto o Cardeal censurava não só os artigos
organicos da concordata do apno IX , como contestava
igualmente ao poder real o direito de exame das Bullas ,
Breves, Rescriptos e outros actos da Santa Sé . Este acto
attentatorio do Cardeal Arcebispo foi cassado como nullo
e irrito pela ordenança real ( do rei Luiz Filippe ) de 9
de Março de 1845, condemnando a doutrina do Cardeal .
( Vede Dupin ,Manual de Direito publico ecclesiastico . )
0 Beneplacito entre nós não he só uma lei , um cos
tume antiquissimo , um direito inherente á possa sobe
rania , como além de tudo isto uma solemne garantia
nacional. O $ 14 do art. 102 do nosso codigo funda
mental não he só constitucional como attribuição de um
dos poderes politicos do Estado, mas tambem como ga
rantia da nossa independencia e da nossa liberdade , o
Imperador póde negar ou conceder ( sem limitação ) o
beneplacito aos Decrelos dos Concilios e letras aposto
licas, e a quaesquer outras Constituições ecclesiasticas,
que se não oppuzerem á constituição ( porque se forem
oppostas á ella, são nullas , irritas e vás ipso faclo . )
O Sr. Dr. Vilella , como lente de uma faculdade de
direito no imperio, commette uma grande falla ( senão
um crime ) ensinando uma doutrina contraria á letra e
ao espirito da nossa Constituição. O Sr. Dr. Faria foi ex
plicito ; sustentou o seu acto , e fundou - o na nossa Cons
lituição e no nosso direito patrio . Gostamos de ver uma
autoridade ecclesiastica cumprir assim o seu dever , sem
essa farisaica compuncção, que meia duzia de casacas to
maram para si ; e aos quaes o Sr. Dr. Vilella quiz imitar !
339

o Sr. Dr. Vilella mui superior a elles em todos os sen


lidos !
Pois bem , esta disposição constitucional não he
uma simples formalidade , e teve a sua sancção penal nos
>

arts . 79 , 80 e 81 do nosso Codigo criminal .


Quanto a posse do Bispo, por seu procurador, em
virtude das Bullas de confirmação, com ou sem o Exe
quatur imperial, ou da necessidade do Beneplacito para
execução das mesmas Bullas , seria estupido por demais
entrar em semelhante questão . Para a posse he mister a
Bulla , e para que ella possa produzir o seu effeito, he
mister o Beneplacito. Contrariar esta doutrina, seria dar
couces contra o ferrão, como fazem os bois aperreados .
Poderiamos citar muitos factos para provar, que
nunca os reis de Portugal cederam um apice deste seu
direito vastissimo . Agora mesmo temos à vista todo o
processo da questão importante entre Portugal e a Curia
Romana , sobre a confirmação do Arcebispo de Evora Fr.
Joaquim de Santa Clara , que o papa negava sob pretexto
de doutrinas erroneas professadas pelo dito arcebispo
eleilo , e cuja retractação exigia Sua Santidade , como
conditio sine qua 101 .
D. João VI, rei do reino unido de Portugal , Brazil
e Algarves, não só se oppoz a que o eleito se retrac
lasse, como prohibio expressamente que o fizesse em
quaesquer termos ; estranhando ao seu ministro em
Roma o haver aceito do Cardeal Gonçalvi uma minula
para esse effeito ; e mandou ao mesmo ministro, que
jostasse com toda a energia e efficacia até conseguir a
Bulla em forma ordinaria, chegando até ameaçar no ul
timo extremo com um rompimento com a carte de Ro
ma , e fazendo -lhe saber, que el-Rei estava deliberado a
mandar fuzer a confirmação dentro do reino na fòrma da
disciplina antiga ! ( Officio do Marquez de Aguiar, de 30
de Julho de 1816, para o Patriarcha eleito de Lisboa . )
Outro officio do mesmo Marquez ao Arcebispo eleito,
prohibindo -lhe em nome de el -Rei que se retractasse de
qualquer maneira que fosse ; e outro á Regencia do
reino de Porlugal , dizendo -lhe que, se as Bullas de con
firmação do Arcebispo de Evora contivessem outra ou
340

outras clausulas, além das ordinarias, não lhes désse o


seu Placilo . ( 1 )
Então , Sr. Dr. Vilella , necessitam ou não de bene
placito as Bullas de confirmação ? Qual be o Bispo do
Brazil , ou de Portugal , cujas bullas de confirmação não
lenbam tido o compelenle beneplacito ?
Assim procederam em todos os tempos os Reis Fi
delissimos de Portugal e do Brazil ; e não vemos no paiz
quem tenha mais fóros de catholicismo do qne elles .
Pois bem , Sr. Dr. Faria , compra o seu dever, que o
paiz lhe será grato . ( 2 )
Pedimos perdão ao Sr. Dr. Vilella de algumas expres
sôes menos delicadas a seu respeito, porque sabe que
seriamos incapazes de uma offensa, não só por immere .
cida , como porque não be nosso costume ferir aos nos
sos amigos ; mas creia , que o seu artigo nos compun
gio e nos contristou dentro d'alma . — Um liberal da tem
pera antiga .( Jornal do Recife de 9 de Janeiro de 1866. )
( 1 ) Ainda hemais explicito o seguinte Aviso , que copiamos
do Diario de Pernumbuco de 9 de Janeiro de 1866 -- Ministerio
do Imperio, 12 deMarço de 1864 Accuso o recebimento da
copia que acompanhou o officio de V. Exc . , com data de 10 do
corrente , do auto da posse do Rvm . Bispo da Diocese da Dia
mantina D. João Antonio dos Santos, cumprindo -me declarar a
V. Exc. , que nesse auto se devia fazer menção da Portaria de 23
de Novembro ultimo, concedendo ás letras apostolicas de confir
mação daquelle Prelado o Imperial Beneplacito, que he indispen .
savel para que Ellas tenhão execução . - O que V. Exc . fará
constar ao referido Bispo = José Bonifácio de Andrada e Silva
Sr. Presidente da Provincia de Minas Geraes .
( 2 ) Foi finalmente approvado o procedimento do Vigario
Capitular, como previamos, pelo seguinte Aviso 6.a Secção -

Rio de Janeiro - Ministerio dos negocios do Imperio em 30 de


Dezembro de 1865 – Tenho presenie o officio de V. S. de 16 do
corrente, em que expõe os factos que se derão na reunião do Ca
bido da Cathedral dessa Diocese , que V. S. convocou, para
empossar o Governador do Bispado, non.eado pelo respectivo
Prelado ; e bem assim declara que não o empossou em razão de
não ter tido ainda a Bulla de confirmação do mesmo Prelado o
competente Beneplacito na forma determinada na Constituição
do Imperio. Em resposta tenho dedeclarar-lhe, que o Governo
Imporial approva o acto, que V. S. praticou em obediencia á
dila Constituição . – Deos guarde a V. s . - - Marquez de Olinda
Sr. Vigario Capitular da Diocese de Pernambuco ( Diario
de Pernambuco de 11 de Janeiro de 1866. )
341

O Bispo de Pernambuco , Sua ausencia .

Questão preliminar- Póde um Bispo sahir da sua dio


cese sem licença do governo ? Não . O Bispo he empre
gado publico , porque recebe do thesouro um ordenado
certo (congrua), e está por isso sujeito as leis, que re
gulam as licenças dos empregados (art. 10 $ 7.º do acto
addicional, onde o Bispo he collocado entre os emprega
dos geraes, depois do Presidente -é o Av . de 4 de Ju
-

nho de 1832. )
O Concilio de Trento não regula para isto , porque
não he lei no Brazil, senão o Cap . 1.0 da Sessão 24 de
reformatione matrimonii- (Lei de 3 de Novembro de
1827) . Logo os Bispos não podem sahir das suas dioce
ses em virtude do Cap . 1.0 da Sessão 23 do citado Con
cilio , que não rege no paiz ; e quando regesse ficaria sem
effeito , por ser contrario á leis posteriores.
E fique dito uma vez por todas, que o Concilio Tri
dentino só tem vigor no Brazil , quanto ao fòro interno
>

dos Bispos, ou a sua jurisdição espiritual, e isto mesmo


com as excepções, qne marcão as nossas leis civis-mas
quanto ao fôro externo , ou ao temporal , só he lei o cita
do Cap.1.º da Sessão 24 de reformatione, elc .
E' uma vergonha vêr os nossos advogados , Juizes ,
e o que mais he, o proprio governo do paiz, fazendo obra
com o Concilio de Trento , e tendo- o como lei do paiz !
Quem derogou pois o Dec. da primeira Assembléa Le
gislativa Geral do Brazil de 3 de Novembro de 1827 ?
Miseria das miserias .
Se não aproveita para a ausencia dos Bispos sem li
cença o Cap . 1.º da Sessão 23, tão pouco aproveitaria
licença do Papa ; porque esta licença seria sempre con
cedida por um Breve , ou Rescripto pontificio qualquer;
e para ter effeito seria mister o beneplacito imperial .
Neste caso haveria uma inutil duplicata de licença , por
que se o governo não quizesse conceder a licença, nega
ria o beneplacito .
E porem , se apezar disto o Bispo sabir ? O governo
pode e deve mandar- lhe suspender immediatamente to
das as suas temporalidades por crime de desobediencia,
como fez D. João VI, ainda Principe Regente , com o Bis
>
342

po de Bragança e Miranda D. José Joaquim da Cunha de


Azeredo Coutinho. (1 )
Sobre a licença do Primaz, de que trata o Concilio,
diremos - e quem a concede ao Primaz ? So o governo
neste caso seria um circulo vicioso , do Bispo para o Me
tropolita , e do Metropolita para o Governo. Portanto só
o Governo Supremo do Estado, á vista da nossa legislação ,
pode conceder licença aos Bispos , para que possão sahir
das suas dioceses !
Um recente Aviso do governo declarou, que os Bis
pos não podem eximir - se da superior inspecção do Impe
rante, como Bispo exlerior da Igreja ! Meu Deos ! O que
aqui vae de algaravia ! Pois ainda no seculo XIX o titulo
de Bispo exterior da Igreja , que o primeiro Concilio de
Nicea (no principio do seculo IV ) concedeu ao Imperador
Constantiuo, em virtude da sua conversão ?
Não senhor - neste mundo ha um direito preexisten
te a toda humana instituição, he o direito de soberania ,
que não reconhece superior sobre a terra . Foi em vir
tude deste direito que a primeira Assemblea Geral Legis
lativa do Brazil negou o Placet á Bulla impetrada por
D. Pedro I para exercer o Padroado como Grão -mestre
das tres ordens militares , da mesma forma e maneira
porque o exerciam os Reis de Portugal seus antepassados.
Com effeito , he em virtude da soberania, e só della ,
que o Imperante exerce o Padroado, pela suprema ins
pecção, que deve ter sobre todas as cousas, que lhe es
tão sujeitas; quér a soberania seja exercida pelo Rei, ou
por um Presidente, quer por uma Junta ou pela repre
sentação nacional - acima do soberano só Deos. Esta é
pelo menos a doutrina do nosso direito patrio ecclesias
tico .
Voltemos pois á licença dos Bispos . Se não tivessemos
a Provisão de 23 de Agosto de 1824 (collecção Nabuco )
bastaria a de 23 de Janeiro de 1807 , expedida pela Mesa
da Consciencia e Ordens, para collocar a questão no seu
( 1 ) Vede a palavra Temporal no Diccionario juridico de Pe.
reira e Souza—« Em certos casos se obriga os Bispos, e outros
« beneficiados a executar as leis do Principe debaixo da pena de
« se lhes no
Thomaz tomarein as temporalidades.
seu Indice .-
» O mesmo diz Fernandes
343

verdadeiro ponto de vista . E' tão necessaria a licença do


governo, quanto sem ella, sahindo o Bispo, devolve- se
ao Cabido todo o exercicio da jurisdicção episcopal .
Isto é tanto verdade, que o proprio Bispo Monte , ape
zar da tendencia para as doutrinas da Igreja, o que é
muito commodo para os Bispos , porque nada mais elas
tico do que os sagrados canones ; depois de citar o Con
cilio de Trento sobre a ausencia temporaria dos Bispos ,
conclue dizendo.- « Entre nós intervem tambem o go
verno nas licenças para os Bispos sahirem das suas dio
ceses . »
Para que esse-entre nós intervem tambem o go
verno ? E quem intervem mais senão o governo e só o
governo ? Eis ahi porque tudo se acha falseado no Bra
zil . O Sr. Conde de Irajá cita mal o Concilio de Trento ,
que não rege nesta parte ; e em outros lugares sustenta
doutrina opposta á legislação do paiz ; de sorte que he
um engodo toda essa doutrina ecclesiastica, que se acha
em contradição com a legislação civil , unica que rege,
e tem vigor.
E' tempo de voltarmos ao antigo direito ecclesiasti
co portuguez - não ha Estado no Estado- não ha duas
legislações, nem o clero deixa de ser subdito do Impe
rio , nem ha lei ecclesiastica contraria aos usos, costu
mes , leis e estylos do Imperio, porque não as havia tam
bem contrarias aos estylos do reino de Portugal .
Os Bispos são empregados publicos, posto que de
alta categoria , e como taes estão sujeitos a toda a legis
lação, que regula as relações entre o governo e seus agen
tes . No foro interno ninguem lhes póde metter a mão ;
mas no fôro externo são empregados como todos os ou
tros ; e Deos nos livre , que assim não fôra.
O Padre Feijó, como Ministro da justiça, disse em
um Av , ao Arcebispo da Bahia, que se lembrasse de que ,
.

apezar de arcebispo, era subdito do Imperio , e como ar


cebispo era empregado publico , porque recebia um or
denado do thesouro, portanto estava sujeito ao governo ;
mas não he disto que se trata, senão de licença .
Quando não fosse materia já decidida pelo governo
imperial, como se deprehende do Relatorio do Ministro
do Imperio deste anno, fallando da questão relativa á au
344

sencia dos Bispos das suas dioceses ; e de outras varias


decisões anteriores, bastaria a resolução de 2 de Outu
bro de 1865 , conformando-se com o parecer da secção
dos Negocios do Imperio do Conselho de Estado, decla
rando, que a ausencia dos Bispos não podia realisar- se
sem previa licença do governo imperial- (J. do R. de 17
de Junho de 1866. )
O recentissimo Av . de 6 de Julho de 1866 declara
que as disposições do Concilio de Trento devem ser ob
servadas de barmonia com a legislação do imperio ; com
a qual devem igualmente conformar - se os prelados bra
zileiros .
A circular de 29 de Janeiro deste corrente anno,
sobre que suscitou duvida o Bispo do Ceará, deu lugar a
uma resposta do governo ao mesmo prelado em data de
3 de Julho proximo passado , nos seguintes termos :
Que a disposição do Concilio Tridentino, conceden
do aos Bispos poderem ausentar - se de suas Dioceses
O

. por tres meses, só procede pelo que respeita a necessi


dade da licença do superior ecclesiastico.
Que as leis civis obrigam a todas as classes da so
ciedade, cada uma na esphera das suas respectivas func
ções .
Que por tanto os Bispos não podem eximir- se da su
perior inspecção do imperante, como Bispo exterior da
igreja.
A resolução , tomada sobre o parecer da secção do
Conselho de Estado , estabelece que a licença do governo
para os Bispos é indispensavelma materia foi decidida á
vista da legislação civil, sem offensa das disposições eccle
siasticas ; e aquella legislação estabelece , que ninguem
possa deixar o exercicio do lugar que occupa, salvo os
casos extremos, sem licença do legitimo superior.
A regra geral he a que se acha exposta no parece
da secção do Conselho de Estado, approvado pela reso
lução de 2 de Outubro de 1865. Da regra geral não ha
lei, que isente os Bispos ; e a provisão de 23 de Agosto
de 1824 declarou , que basta a ausencia do Bispo sem li
cença para que a Sé seja considerada vaga .
O governo , com a circular de 29 de Janeiro do cor
rente anno , não fez mais do que exigir a observancia
345

das leis , as quaes são obrigatorias para todos; e os bis


pos não se podem dizer humilhados, quando prestão obe
diencia ás mesmas leis. Como cidadãos não podeu , ante
a lei , ter mais privilegios que outro qualquer.
Entende pois o governo imperial, diz ainda o cila
do Aviso de 3 do corrente, que deve manter a resolução
de 2 de Outubro de 1865, de que deu conhecimento aos
Bispos na Circular de 29 de Janeiro de 1866 .
A' vista pois de toda essa doutrina, que ahi fica ex
pendida, pode haver quem duvide, que os Bispos não po
dem deixar as suas Dioceses sem licença do governo
imperial ?
Entretanto sabemos que o governo , attendendo aos
justos motivos de urgencia, aprovára a ida do Bispo de
Pernambuco ao Pará sem licença previa . Mas sempre é
bom que fique registrado o facto , para não cahir ein outra ,
(Jornal do Recife, & de Agosto de 1866. )
O Bispo de Pernambuco e a sua ausencia .
I

Com este titulo publicamos um artigo no Jornal do


Recife de 8 do corrente, provando que os Bispos 110
Brazil não podiam sahir das suas Dioceses sem licen
ça do governo. Os que tinham opinião contraria , e os
proprios Bispos, fundavam -na no cap . 1.º da Sessão 23
do Conc. de Trento - então dissemos , que esse cap . c
sessão não vogavam , porque do Tridentino só era lei
no Brazil o cap. 1.º da sessão de 24 do referido. Con
cilio .
Julgamos então, que para provar o nosso dito bas
tava citar a lei de 3 de Novembro de 1827 ; a qual man
clava ficasse em effectiva observancia em todos os Bispa
dos e freguezias do imperio o referido cap . 1.º da Ses
são 24, e dando outras determinações , além das con
teudas no mesmo Concilio .
Ora , mandar por uma lei , que fique em observan
cia uma determinação qualquer, é prova sufficiente de
-

que essa determinação não era lei antes -e se o cap . 1.º


da Sessão 24 não era lci , tão pouco era o Concilio , de 3

44
346

que essa sessão fazia parte integrante ; porque nada


mais absurdo do que fazer lei da parte de uma lei pre
existenle-.e se o Concilio era lei no Brazil, devia sel- o
igualmente o cap. 1.º da Sessão 24 ; ao menos que se
não suponham tão estupidos os legisladores da primeira
assembléa geral do Brazil , que ignorassem complela
mente , que o Concilio de Trento era lei no Brazil .
No dia 10 , porem, sahio no mesmo jornal uma res
posta assignada J. F .. ou refutação do nosso artigo ou
da nossa doulrina, como erronell, subversiva , como prin
cipio falso ; emfim fomos grosseiramente desmentlidos
com o enlono , com o ar de sapiencia , que costumam
arrogar - se oscharlatães, quando querem impingir as suas
drogas . Esse entono, esse ar de mestria poderia mo
lestar- los, se pela leitura da tal resposta não vissemos,
que essa audacia era filha da mais crassa ignorancia.
O articulista contesta o que dissemos , quando as-
severamos , que o Concilio de Trento não era lei do Bra
zil , senão o cap . 1.º da Sessão de 24, etc. « Não é
assim, diz elle ; pois que o Concilio de Trento foi acei
10 em Portugal sem reserva pelo Dec. de 12 de Setem
bro de 1564, e lei de 8 de Abril de 1569 ; e por tanto ,
além de obrigar em consciencia obriga lambem civilmen
te por essa mesma lei, que passou a ser lei do imperio
pela lei de 20 de Outubro de 1823. »
Não só não ignoravamos o Dec. de 12 de Setembro
de 1564 e a lei de 8 de Abril de 1569 , senão que já as
haviamos citado d'outras vezes , e quando não, ahi está
o Padre Monte , que as cita nos seus Elementos de Di
reito Ecclesiastico ( lem . 1.º pag. 37, schol. ) com refe
rencia a Mello Freire, de quem copiou essas datas - o
de tal modo se exprimio , que parece ser de Mello Freire
tudo quanto disse sobre o Concilio de Trento-o que é
justamente o contrario ; por quanto Mello Freire ( Ins.
de Dir. civ. lusit. Liv . 2.° Tit. 3.° , $ 46-nota ) diz o
seguinte :
« El-Rei D. Sebastião , que Deus tem, como gover
nador, e perpetuo administrador das ordens militares
deste reino , precedendo o parecer de uma junta de let
trados, que mandou fazer em Evora, no apno de 1573 ,
assentou que o Concilio Tridentino não derogava os
347

privilegios das milicias, e que por tanto se não acceila


va a respeito dellas quanto parecia derogal- as, »
Bem vedes, Sr. articulista, que lá se foram por ter
ra o Dec. do Cardeal D. Ilenrique ( 1 ), como tutor de sen
sobrinho el - rei D. Sebastião, assim como tambem a
sua propria lei de 8 de Abril de 1569. E se soubesseis
( que de carto não sabeis ) , que naquelle tempo lodo o
reino de Portugal constituia bens da corôa e ordens , e
que todas as igrejas de Portugal, a excepção de alguns
conventos e matrizes, dotadas pelo Supremo Padroeiro ,
estavam adstrictas á alguma das tres ordens militares ;
assim como que os bens da coroa gosavam dos mesmos
privilegios , porque o rei era o Grão mestre das ditas
ordens, verieis então que nada restava em pé do Conci
cilio de Trento , senão o cap. 1.º da Sessão 24 de reform .
matr .
E por que ficou vigorando o cap . 1.º da Sessão 24
em Portugal (2), depois de derogado o Concilio na qua
si totalidade pela resolução de 1573 ? Pela mesma ra .
são porque tambem ficou vigorando em França , depois
que o Concilio Tridentino foi cassado por todas os par
lamentos do reino - porque fóra admillida essa parte dis
ciplinar em Hespanha, Napoles e Veneza , onde nunca
fôra publicado o mesmo Concilio .
(1 ) Para instrucção dos Leitores, diremos quem era esse Car.
deal D. Henrique - Era filho d'el-rei D. Manuel , e irmão de D.João
3.0 ; foi o primeiro inquisidor mór, e no 1.º anno do seu cargo
fizerão -se 5 mil e tantos processos na inquisição – foi clle quem
mais concorreu para que se creasse a inquisição em Portugal -
Sendo chamado ao throno por morte de seu sobrinho D. Sebas.
tião em Africa , foi tão imbecil , tão estupido e miseravel, que
entregou por sua morte Portugal aos Hespanhoes de mão beija
da , deixando de chamar ao throno sua sobrinha D. Catharina ,
Duqueza de Bragança, a quem o throno pertencia por ser filha
legitima do infante D. Duarte, e por consequencia sobrinha do
tal Cardeal. Era estupido e fanatico, duas qualidades que na
quella epocha ornavão a Igreja
(2) Não ficou vigorando ; nem do Concilio tridentino ficou
em pé cousa alguma em Portugal, depois da resolução de D.
Seböstião no anno de 1573 , como diz Mello Freire no lugar cita
do .-0 Cap . 1.° de Sessão 24 do referido Concilio só começou
a vigorar em Portugal depois da lei de 13 de Novembro de 1651,
que o mandou executar em virtude de reppresentação das Côr
tes , como diremos mais adiante.
348

Finalmeute porque o Cap . 1.º da Sessão 24 fő


ra votado pelo dito Concilio á instancias dos Reis de
França , de Ilespanha e de Portugal ; os quaes muito se
empenharam para abolir e condemnar os casamentos
clandestinos, que por sua irregularidade causavam con
tinuos escandalos , querellas e desordens, que em gran
de parte compromettiam a ordem publica, e causavam
graves damnos e prejuizos as familias .
Para ainda mais provar a vossa ignorancia nestas
materias, citarei Borges Carneiro ( Dir . civil de Port. tom.
1 pag . 61. Nola ao n . 2 do § 17 ) fallando do Concilio
de Trento .
# Posto que o Alv . de 12 de Setembro de 1564
mandasse a todas as autoridades do reino e dominios ,
que dessem toda a ajuda e favor, que pelos prelados
Thes fossem requerida, para execução dos Decretos do
Conc . Trid ., mandados guardar pela Bulla de 25 de Ja
neiro do dilo anno , a qual se havia coin elles publicado
na Sé de Lisboa ; e posto que o Dec. de 8 de Abril de
1569 aceitasse nova e indistinctamente o dito Concilio ;
ao mandasse inteiramente praticar neste reino e con
qnistas ; com todo . estas leis , devidas á educação do Sr.
.

Rei D. Sebastião , que conta va então dez annos de ida


de, e a nociva influencia dos Jesuilas, nunca se puze
Iam em observancia .; bem como nem o mesmo Concilio
assim indistinctamente. Pois nas materias temporaes
não podiam ser valiosas tantas novidades contrarias ás
leis , costumes, concordatas e Regalias de Portugal, de
pendentes da Soberania , e não do poder espirilual ; e
esta mesma sorle leve o Concilio em Veneza , Napoles ,
Flandres, pelas ordens de Filippe II de 24 de Julho
ve 1565. )
Referindo -se igualmente á acceitação d'el-Rei D.
Sebastião do Concilio de Trento , pelo Alv , de 1569, diz
o Desembargador José de Seabra ( na sua Ded . Chron .
P. 1.2 D. 5 SS 128 e 129 ) o seguinte .
De sorte que não sendo a dita acceitação do Sr.
Rei D. Sebastião ; mas sim , e lão somente de Martim
Gonçalves da Camara, e de seu irmão Luiz Gonçalves,
e dos mais legisladores Jesuitas : veio a ficar inutil, e
reduzida aos termos das outras leis por elles publica
349

das com irrisão e ludibrio dos homens doulos e sabios


daquelle infeliz e deploravel tempo. »
Não fizeram nada em segundo lugar os mesmos
Jesuitas com o referido Dec. da acceitação do Concilio ,
e cartas circulares á ella respectivas, na parte relativa
as offensas da autoridade real , e á usurpação do Supre
mo poder da magestade desta real corôa ; porque , nem
a Curia de Roma podia fazer despreso dayuella real pes .
soa e dignidade, para The impôr o desar da sujeição,
havendo - a Deos creado soberana, nem privar a mesma
magestade e a nação portugueza dos direitos e costumes ,
que estabelecem a independencia da coroa , que se en
volve inseparavelmente com a dos seus vassalos ; e que
por isso não seria cessivel , ou abdicavel pelo mesmo
Sr. D. Sebastião , como são primeiros principios e re
gras vulgares, de que só duvida a corte de Roma , e
seus escriptores, sem que até agora achassem alguma
razão plausivel para persuadirem as cortes da Eu
ropa .. )

« Logo se manifesta, que o mesmo Sr. Rei D. Sebas


lião não podia acceitar o dito concilio, nem na Curia de
Roma entender - se a sua acceitação senão para dar a
Deus o que era de Deus , e reservar.para Cezar o que
era de Cezar. »
Pelo que fica dito , e pelas opiniões dos Jurisconsultes
do reino , vê - se , que a acceitação d'El - Rei D. Sebastião
do Conc. trid ., cahira immediatamente em desuso , e
que não se fez mais caso, tanto que vemos no seculo 17
e 18 muitas disposições disciplinares para a igreja lusi
tana sein a menor referencia ao Concilio de Trento , e
outras como o Alv , de 14 de Abril de 1781 , chamado
das faculdades, em que apenas se menciona o dilo Con
cilio sem a menor aplicação da sua doutrina.
Ainda outra prova de que o referido Concilio não
era tido com o lei em Portugal , é o Alv . de 10 de Maio
de 1805, mandando crear seminarios nas igrejas onde
os não houvessem ; no qual assim se expressa o Prin
cipe Regente- « conformando-me com as disposições do
Santo Concilio de Trento, mando elc . »
Logo não se tratava de uma lei preexistente no paiz,
350

mas de uma lei estranha, como se dissesse - confor


mando-me com as disposições de tal lei romana , ou de
qualquer outra nação visinha, como se costuma usar
em falta de lei patria ; visto que do contrario seria o
mesmo que dizer --conformando -me com as ordenações
do reino , ou com tal lei : o que nunca se disse ; porque
o rei não se conforma com a lei preexistente , mas man
da-a executar. Só se diz - conformando -me - quando
se trata de doutrina, que não é lei no paiz , como pa
receres de tribunaes , de juntas , do procurador da co
rôa , etc.
Eis ahi o que é , pois, o vosso Concilio de Trento :
-publicado em França, foi cassado depois por todos os
parlamentos do reino-punca foi publicado na Hespa -
nha , nem na Flandres , nem em Napoles, nem em Ve .
neza,-publicarlo em Portugal , foi logo derogado pelo
mesmo rei D. Sebastião , depois da sua maioridade não
foi acceito em loda a Alemanha, que para elle não con
correra ! O que fica pois para o vosso Concilio entre o
catholicismo ? Cousa nenhuma, nem mesmo os Esta
dos Romanos, como vereis .
Com effeito , tanto encommodara as testas coroadas
5

daquelle tempo a doutrina imprudente do Concilio ácer


ca do poder temporal e das regalias , de que estavam de
posse os reis catholicos, que Roma nunca se altreveu a
encorporar este Concilio nos canones da Igreja ; de sor
te que nem o Concilio de Trento , nem os de Piza, de
Constança, e de Basiléa, formam parte do corpo de direi
>

to canonico da igreja romana ! e por consequencia não


obrigam a ninguem em consciencia, e muito menos co
mo lei ! Entendeis ?
O que ha porém de mais engraçado é a maneira co
mo explica o articulista a lei de 3 de Novembro de 1827,
e isto com o maior desembaraço do mundo ! « A lei de
3 de Novembro ( diz elle ) não diz que o Concilio è ape
nas recebido no Brazil nó capitulo relativo ao matrimo
nio ; mas sim , que os effeitos civis do matrimonio , pa
ra os quaes somente pode legislar o poder civil, porque
o vinculo sacramental é da exclusiva competencia da
igreja, deviam ser regulados pelas disposições do mes
mo Concilio, no lugar cilado , e homologado ! »
351

Nisto que ali fica trancripto, não ba só ignorancia ;


e se não ha má fé de parle do articulista, então ha
mais alguma cousa , ha verdadeira falla de senso, ha
idiotismo
>

.
Em primeiro lugar, diz a cilada lei de 3 de No
vembro apenas , que as disposições do Conc. Trid . na
sessão 24 C. 1.º fiquem em observancia em todos os
bispados do imperio ; procedendo os parochos a receber
os noivos, quando lh'o requererem , etc. Onde falla a
lei dos effeitos civis do matrimonio ? onde diz semelhan
te disparate ?
Pois mandar que se execute como lei do Brazil
uma disposição ecclesiastica , que trata justamente do
recebimento dos noivos á face da igreja, e das palavras
de presente do parocho, o que constitue a fórma do Sa
cramento, é tratar dos effeitos civis ? Pois já vistes
effeitos civis senão do contracto civil , tacito ou expresso ?
e a que viria aqui contracto civil, quando só se tra
ta do Sacramento ? Dizei , onde enxergastes nesta lei
as palavras - effeitos civis ? ( Jornal do Recife de 27 de
Agosto de 1866.)
II

O Decreto de 3 de Novembro de 1827 só teve por


objecto mandar observar como ' lei uma disposição eccle
siastica, provando com este acto, que tal disposição não
era tida como lei anteriormente .
Quanto a dizerdes, que o vinculo sacramental he da
exclusiva competencia da igreja, e que o poder civil só
pode legislar sobre os effeitos civis do matrimonio, he
questão para que não estaes habilitado pela vossa igno
rancia nostas materias.
Effeitos civis, ou legaes, só podem dimanar da legi
timidade do matrimonio; e legitimos só são os matrimo
nios celebrados na conformidade das leis civis do Impe
rio . A Consolidação das leis civis, art . 97 , diz o se
guinte : « 0 matrimonio não pode ser celebrado contra
as leis do Imperio ; e será punido o ecclesiastico, que re
ceber os contrahentes, não se mostrando habilitados na
conformidade das mesmas leis >
Sabeis quaes são essas leis ? São o citado Decreto de
352

3 de Novembro, modificado, quanto aos casamentos mix


tos , pela lei de 11 de Setembro de 1861, e Regulamento
de 17 de Abril de 1863 ; Aviso de 10 de Fevereiro de
1864 ; arts . 247 e 248 do Codigo Criminal ; e todas as
leis e Avisos, de que faz expressa menção a citada Con
solidação .
Qual é pois a legislação , que rege no Brazil ácerca
do matrimonio ? é a legislação civil , entre a qual está
comprehendido o Cap . I da Sessio 24 do Concilio de
Trento, modificado pelo Decreto de 3 de Novembro ; as
sim como a parte da Constituição do arcebispado da Ba
hia , de que falla o mencionado Decreto , e nada mais .
Parece por um lado , que ha estudada má fé em se
9

melhante modo de argumentar ; isto he, adulterando as


palavras para tirar dellas uma conclusão a seu geito ;
mas por outro vê- se que o que ha, e parece evidente, é
a supina ignorancia destas materias .
Depois dessa serie de disparates, conclue o articu
5

lista , dizendo muito ufano - a Já se vê que não é uma ver


gonha ver os nossos advogados , os nossos juizes, e o
proprio governo ( como haviamos dito no nosso primeiro
artigo ) faserem obra pelo Concilio de Trento, e terem -no
por lei do paiz ! » Mais este couce em remissão dos nos
sos peccados!
E o lugar citado é homologailo ? Os pedantes são
muito amigos desses palavrões, que não tem sentido ,
nem applicação conveniente . Quem lhe homologara os
miolos !
Prouvera a Deos , que o governo guardasse ao me
nos o decoro de sustentar em uma monarchia as regalias
da corôa e da soberania nacional . Só a ignorancia do go
verno (e não má fé) pode admittir como lei o Concilio de
Trento em todas as suas partes, quando o repellirão to
dos os reis catholicos, como attentatorio contra as immu
nidades e regalias da corôa .
E o que se tem seguido dahi ? he que os bispos do
Brazil , mais expertos que sabios , aproveitando este en
sejo, movem todos os dias ao governo difficuldades e ques
tõesinhas , pendencias e duvidas , servindo -se do Conci
lio como de uma arma de arremesso ; de sorte que o
governo vê-se a cada passo na necessidade de lutar com
353

elles , e de disputar sobre frioleiras ; ou de sacrificar o


decoro da corôa e da soberania nacional, humilhando
se diante dos bispos , subditos do Imperio, e como taes
subditos do governo imperial.
E senão, haja vista do que aconteceu na questão dos
Seminarios com os bispos do Pará, do Maranhão e do
Rio Grande do Sul ; e ultimamente com o do Ceará sobre
a questão da ausencia dos bispos sem licença do gover
no. Na Italia o governo suprimio mais de 60 seminarios ,
somente nas provincias do Sul , alterou a disciplina e o
ensino, demitlio e nomeou outros professores, e nin
guem disse nada , nem se levantou borrasca , nem encom
modou ao governo -e porque ? porque o governo da Ita
lia tem consciencia do que faz, e ninguem se atreve ati
rar-lhe á cara com o defunto Concilio Tridentino , que
Deos haja
O governo portuguez, desde fins do seculo XVI por
diante, tratou de uniformar, em falta do Concilio de Tren
to, a disciplina da igreja luzitana, conforme a disciplina
antiga , sein as innovações do citado Concilio . Assim ha
uma infinidade de Alvarás ee de leis, regulando a disciplina
ecclesiastica até 1821, e ainda depois até 1832. Os por
tuguezes nunca sobresahirão nas sciencias exactas, physi
cas ou naturaes ; mas nas positivas e abstractas forão
eminentes , e tiverão grandes jurisconsultos, theologos e
canonistas .
Eis ahi porque se diz , e com razão, que o corpo
do direito ecclesiastico Luzitano he o mais completo , o
mais perfeito, e o mais liberal que existe na Europa ;
mesmo com respeito ao direito ecclesiastico francez : por
quanto , muito antes da reunião do clero gallicano , que
produzio as declarações chamadas - os 4 artigos - em .

1682, já os embaixadores de el-rei D. João I haviam pro


testado no Concilio de Constança (1414) ( protesto , que an
da annexo á Sessão 22 do mesmo Concilio ) contra todas
as usurpações quer dos Papas quer dos Concilios, que
podessem offender as regalias da corôa ; por quanto os
Reis de Portugal tinham seus reinos livremente, e livres
sem reconhecerem superior algum vivente na terra , mas
sómente a Deos .
Depois de todos esses disparates do nosso aristarco,
45
354

segue - se uma prelecção sobre a ausencia dos bispos - em


que, diz elle , pelos Canones o bispo póde sahir da sua
diocese á chamado do Papa ou do Metropolita ; mas se
gundo as leis civis , o bispo , como alto funccionario do Es .
tado, não pode effectuar a sua ausencia sem accordo do
governo (accordo ou licença ?)
E' verdade , continúa o articulista, que muitos bispos
franceses em 1847 ou 1848 ( he impossivel neste anno,
porque foi o da queda de Luiz Filippe em Fevereiro)
sahirão de França para Romasem o beneplacito do go
verno, com o que o rei Luiz Filippe ficou muito contra
riado, ao ponto de ser rude com o arcebispo de Paris ;
e ha poucos annos outros bispos fiserão o mesmo
por occasião da canonisação dos martyres do Japão. Isso
porém, acrescenta o articulista, foi um conflicto entre os
Prelados e o governo, que ainda bem terminou com a
manifestação do desagrado do governo francez.
Pois bem , em tudo isto ainda se prova a ignorancia
do articulista . A doutrina sobre a ausencia dos bispos
em França , Hespanha , Portugal e Brazil he unanime. Diz
o art. 20 da lei de 18 germinal do anno X, que os pre
lados da igreja gallicana , ainda quando sejão chamados
pelo papu, por qualquer causa que seja, não podem sa
hir fóra do reino sem consentimento , licença ou permis
são do rei-e a razão he acrescenta Dupin, Manual do
Direito publico ecclesiastico ) porque os bispos são vase
salos do rei de França, e não de nenhum outro soberano.
Eis ahi porque se exige na França que os bispos se
jão franceses de nascimento ( a mesma lei de 18 germi
nal, Tit. 2, art . 16. ) O mesmo se exige em Portugal e
no Brazil, onde os estrangeiros não podem obter benefi
cios, nem pensões ecclesiasticas--( Lobão, Notas a Mello
Freire - Liv. 1 , Tit. 5 § 16 )
Sendo pois esta a lei em França , onde a lei he respei
tada, admira o facto, que refere o articulista com o rei
Luiz Filippe ; e basta a data para fazer duvidar da sua
veracidade-muito mais quanto Luiz Filippe não era mui
to condescendente com o clero, como se vê do seu Dec.
de 9 de Março de 1845, condemnando a doutrina do Car
deal de Bonald , arcebispo de Lião e Vienna , e mandan
do cassar a pastoral do mesmo arcebispo, de 21 de No
355

vembro de 1844, como nulla , irrita e de nenhum effeito ;


* pastoral em que o arcebispo mandava publicar a Bulla
auctorem fidei, que não tinha sido admittida em França.
Quanto ao que diz o articulista acerca da ausencia
dos bispos de França sem licença do Imperador Napo
leão, está completamente engana do --uns forão á Roma
de accordo com o mesmo Imperador, como o arcebispo
de Paris- outros com licença , como o bispo de Or
leans ; e a maior parte ou quasi todos os prelados não fo
rão , porque não quiserão pedir licença ao governo, ape .>

sar de saberem , que não lhes seria negada .


Com Luiz Napoleão sabem todos os bispos de Fran
çaque não podem brincar , porque elle não lhes passaa
mão pela cabeça. (1)-Osbispos em França não tem fô
-

ro privilegiado . - Monsenhor Dupanloup, bispo de Or


leans, já foi duas vesesao banquinho dos réos .
Na Hespanha a doutrina acerca da ausencia dos Bis
pos he a mesma que na França-os bispos não podem
sahir fora do reino sem licença d'El-Rei - Vide Mejia,
-

Const . civ . do Clero ) -- Llorente - Defesa da Const. civ.


do Clero ). Em Portugal prevalece a Provisão de 23
de Janeiro de 1807 ; e no Brazil a de 23 de Agosto
de 1824 - doutrina reconhecida pelo proprio bispo Mon
te , e firmada por varias resoluções e Avisos do gover
no do Brazil, como já fizemos vêr no nosso anterior
artigo .
Continúa o articulista com o seu aranzel, disendo,
que não admitte por subversiva (perdoamos a expressão
grosseira pela ignorancia da lingua) a nossa opinião, de
que não há duas legislações no Estado ; porque, diz elle ,
não pode deixar de haver essas duas legislações , visto
que, se o Estado tem a sua legislação, a igreja tambem
tem a sua ; porque são dous poderes distinctos, com ca
racteres distinctos, e autonomia propria , podendo uma
(1) Em principio de 1861 publicou o Bispo de Poitiers uma
pastoral, em que comparava o Imperador Napoleão com Pi
latos , disendo que nos negocios de Roma não importava só lavar
as mãos como o Pretor romano, que nem por isso se salvara .
O Imperador, fundando -se no art. 1.º da Declaração do Clero
francez de 1682, mandou não só cassar a dita Pastoral, como re
prehender ao Bispo que a publicou.
356

subsistir independente da outra ( o que he inteiramente


falso . )
Ainda mais prova da ignorancia de parte do articu
lista , confundindo o direito publico ecclesiastico com o
>

direito patrio ecclesiastico-0 1.º he para a igreja uni


versal, e não obriga senão quando he expressamente
aceito por cada Estado ou nação –0 2.º para as igrejas
particulares ou nacionaes . Nada temos que ver com o
direito publico ecclesiastico, porque as nossas relações
com a Čuria romana estão marcadas no nosso direito pa
trio ecclesiastico, que he somente do que se trata .
Dizei agora vós, sabichão, onde está entre nós o co
digo do nosso direito patrio eccleiastico ? Está entremeia
do, está mesclado com a nossa legislação civil - por toda a
parte encontrais uma lei civil junto de uma lei ecclesias
tica , como por exemplo , a lei de 3 de Novembro de
1827, e o Cap . 1. da Sessão 24 do Concilio de Trento .
>

Ignorais acaso, que nenhum Breve , Bulla, Constitui


ção ou Rescripto pontificio pode ter effeito ou execução no
Brazil sem o beneplacito imperial ? Pois bem , o bene
placito he a sancção da lei ecclesiastica ; e logo que ella
he sanccionada pelo poder temporal, torna-se leido paiz ,
e faz parte das nossas ordenações .
Não ha portanto duas legislações, porque não ha dous
poderes legislativos. nem douspoderes executivos no Es
tado - não ha Estado no Estado . Eis ahi porque o nosso
direito patrio ecclesiastico não está separado do nosso
direito civil, e ambos formão um só corpo de direito pa
trío ; a que estão adstrictos todos os brazileiros , sem
differença de classes Dem de gerarchias.
Continúa o articulista dizendo, que o argumento do
Padre Feijó de que o arcebispo da Bahia era empregado
publico, porque recebia um ordenado do thesouro, é
um principio falso ! pois que os bispos e os parochos
podem ser considerados em certa relação como funccio
narios do Estado , mas não como empregados . A con
9 .

grua , que recebem, diz elle, não he honorario, ou orde .


>

nado arbitrado por serviço feilo ao Estado ( que chor


rilho de disparates , meu Deos ! ) mas sim um subsidio
obrigatorio, que em direito não he mais do que uma res
tituição pelos dizimos, que erão propriedade da igreja,
357

e que passarão para o Estado em virtude da Concordata


entre a Santa Sé e o Rei D. Diniz de Portugal !
Sois tão ignorante, senhor articulista , que nem sa
beis , que não ha Dizimos no Brazil, porque forão aboli
dos , sem necessidade de concordata com a Santa Sé , que
nada tem que ver com a administração fiscal do paiz.
Mas, não adiantemos a questão , e vamos por partes.
0 argumento do Padre Feijó de que o arcebispo e
os parochos erão empregados, porque recebião ordenado
do thesouro publico , he um principio falso , diz o articulis
tameporque ? em certa relação (responde ) podem ser
considerados como funccionarios do Estado ..; mas não co
mo empregados ! O que dizeis pois prova mais que muito,
que não conheceis a legislação do paiz, nem a língua por
lugueza ; por que funccionario quer dizer homem , que
exerce cargo ou emprego publico ; logo, vós mesmo , cha
mando -os funccionarios , confessais que são empregados
publicos . (Jornal do Recife 28 de Agosto de 1866. )
III.

Edemais , chama-se empregado publico a todo aquelle


que tem assento na folha ; isto he, que percebe um or
denado certo. Tem os bispos assento na folha ? esta he
a questão . Pois bem , abi iendes para vos confundir pro
>

vas de sobejo nas tres provisões do thesouro publico do


Rio de Janeiro :
A primeira de 19 de Julho de 1811 , dirigida a Junta
da Fazenda de Pernambuco , mandando pagar, por or
dem do Principe Regente , a congrua respectiva ao bispo
da mesma capitania, tendo principio o seu vencimento
desde o dia em que embarcar no porto daquella cidade ,
reglilando -se pela certidão do capitão do navio , em que
se transportar ; mandando - lhe fazer assentamento na fo
-

lha para continuação do pagamento da dita congrua.


A segunda de 17 de Janeiro de 1812 , dirigida á
Junta da Fazenda do Reino de Angola , mandando pagar
ao bispo a congrua respectiva ; lendo principio desde o
dia em que embarcar, regulando- se pela certidão do ca
pilko do navio ; mandando-se -lhe fazer assentamento na
folha compelente para a continuação do pagamento da
mesma congrua .
358

A terceira de 2 de Outubro de 1823, dirigida tam


bem á Junta da Fazenda de Pernambuco, mandando pa
gar ao bispo de Cochim , nomeado governador do mesmo
bispado , a respectiva congrua , procedendo -se ao neces
sario assentamento na folha, afin de poder perceber a
mencionada congrua . E assim muitas outras provisões,
que vos poderia citar
Ha tambem a Carta regia de 8 de Novembro de
1608, passada por el -Rei Filippe 3.° de Hespanha e 2.0
de Portugal, como governador e administrador da Or
dem de Cavallaria do Mestrado de Christo , mandando
accrescentar os ordenados dos Ecclesiasticos do Estado
do Brazil. Aqui não se falla de congruas, mas de orde.
nados, que he o que percebem os empregados publicos.
Ainda mais provas, se quizerdes . Officio do ministro
do reino Marquez de Aguiar , de 30 de Julho de 1816,
dirigido ao arcebispo eleito de Evora, respondendo a
supplica , que este fizera a el-Rei, pedindo -lhe que o
excusasse do arcebispado pelos dissabores , que lhe tem
causado as duvidas sobre a confirmação ; e porque en:
tende, que pelos seus annos e achagues he superior ás
suas forças o emprego para que fora nomeado . Eis-ahi o
proprio arcebispo, usando da palavra emprego sem me
noscabo da sua dignidade, e o governo repetindo -a , fir
>

mou a verdadeira accepção da palavra , isto he, uma


funcção publica .
0 Aviso de 19 de Junho de 1832 , mandando res
ponsabilisar o Juiz de Paz de Olinda por não haver cum
prido o seu regimento , quando o bispo eleito e vigario
capitular de Pernambuco recusou obedecer a notificação ,
que recebera para uma conciliação em virtude da lei, que
não exceptua cidadão algum por maior que seja o em
prego, de que goze na sociedade.
Ó Aviso de 4 de Junho de 1832,, dirigido ao arce
bispo da Bahia ; estranhando - lhe o ter -se pegado a dar
ao Presidente da Provincia as informações, que este lhe
pedira; e dizendo -ihe que os parochos do Brazil são
verdadeiros empregados publicos, em razão do ordenado
e emolumentos que recebem . A Regencia espera , que
satisfazendo as reqnisições do Presidente , cumpra assim
359

o seu dever , dando o exemplo de obediencia as ordens


do governo , e evitando assim olterior procedimento.
Finalmente , além de tudo isto, ha o art. 10 $ 7.0
do acto addicional , collocando o bispo entre os empre
gados geraes , depois do Presidente da provincia. Este
artigo constitucional da lei de 12 de Agosto de 1834 re
gulou a lei de 3 de Outubro do mesmo anno , decla
rando que o Presidente da Provincia era a primeira an
toridade della ; e que todos os que nella se ach arem ,
lhe são subordinados, seja qual fór a sua classe ou gril
duação. A recusa do arcebispo da Bahia sugerio lam
bem o § 2.º do art . 5.º da mesma lei de 3 de Outubro,
autorisando o Presidente a exigir dos empregados as in
formações, que julgarem convenientes para a boa exe
cução das leis .
Em nenhuma nação tem os bispos tantas honras e
privilegios como em Portugal e no Brazil . Em Hespanha
apenas são equiparados aos conselbeiros de Indias, e
tem o tratamento de senhoria illustrissima ; em França
e na Italia tem o tratamento de Monsenhores, e só os car
deaes tem tratamento especial - o de Eminencia. Mas em
Portugal e no Brazil são grandes do reino on do imperio ,
tem tratamento de Excellencia reverendissima, e fazem
parede entre os condes .
Os bispos do Ultramar tinbam alé, por uma carta re
gia , precedencia aos proprios capitães- generaes. Esta
precedencia , porém , perderam -na pela lei de 3 de Ou
tubro de 1834 , e compete hoje aos Presidentes das Pro
vincias. Em compensação os bispos do Brazil tem hoje-

fôro privilegiado pela lei de 18 de Agosto de 1851 – art.


1.0
Passemos agora a tratar do subsidio obrigatorio, que
em direito não he senão uma restituição pelos Dizimos,
que eram propriedade da igreja , e que passaram para o
Estado em virtude da Concordata entre a Santa Sé , e el
rei D. Diniz , como assevera o articulista.
>

Ora , no Brazil não ha dizimos, porque foram abo


lidos por lei -— o Estado nada percebe ,, portanto não ba
restituição tollitur quæstio. Sem embargo, como
muita gente pode ignorar ( entre ella o articulista ) o que
360

foram os dizimos , e porque se falla tanto delles, ramos


dizer o que la a este respeito .
Os Últramontanos elevam os dizimos até Abrahão,
porque dera á Melchisedech a decima parte dos despojos
que fizera sobre os quatro reis , que tinha vencido e
Jacob promettera a Deos a decima parte de tudo quanto
podesse haver na Mesopotamia ( Genesis C. 14 v . 20 .

C. 28 v . 22. ) Mas isto não passou de offertas voluntarias


dizimos propriamente ditos foram instituidos por
Deos , quando tratou da distribuição das terras de
Canaan .
Deos reservou a tribu de Levi para guarda e serviço
do tabernaculo, e para que della sahissem os ministros
do culto - e mandando repartir as terras de Canaan en
tre toilas as tribus ( aquem e além do Jordão ) , excep
tuou dessa partilha à tribu de Levi, e disse -- «a porque
-

dei em herança aos Levitas os dizimos dos filhos de


Israel , por islo digo que os Levitas não terão outra be
rança entre os filhos de Israel > - ( Num . C. 18
Josué C. 14. )
A lei nova substituio á lei antiga , e os dizimos des
appareceram -- ninguem dirá que obriga a lei nova uma
instituição puramente judaica - e demais , onde estava
a tribu de Levi, onde o tabernaculo ? A religião christka
começou pela pobreza voluntaria — seus ministros vi
viam de offertas voluntarias ; e foram tantas e lão fre
quentes e poderosas, que já no seculo IV se queixara
Santo Athanazio, de que a rigueza das igrejas fosse causa
da corrupção do clero.
No seculo V começaram os christãos expontanea
mente a pagar ao clero o dizimo das suas searas. Como
essa liberalidade esfriasse pelo correr dos tempos , al
guns concilios, como os de Tours e de Macon no VI se
culo , o de Arles no VIII , o de Trosly ( no Soissonais ) e
>

outros nos seculos IX e X fizeram obrigatorios os di


zimos -- e como ainda isto não fosse sufficiente , recor
reu o clero á autoridade dos principes, que por suas
leis tornaram forçado o pagamento do dizimo á Igreja ;
do qae se seguiram os mais horriveis abusos , só compa
rados aos da sacralissima Inquisição - e ludo isto quan
do as Igrejas estavam pinguemente dotadas.
361

Nos ultimos concilios dos seculos IX e X foram exi


gidos os dizimos , não só da lavoura, como dos animaes,
e ultimamente até da industria e do commercio. Os frades
por sua vez tambem exigiam dizimos ; e por direitos se
nhoriaes muito antigos se pagavam dizimos feudaes aos
proprietarios do solo. Os dizimos eram chamados reaes ,
quando eram das colheilas, e destinados ao cura da pa
rochia , a que pertenciam as searas - pessoaes os dizimos
da industria , tambens destinados ao cura da parochia
dos trabalhadores — mixtos os dizimos , que se cobra
vam de tudo indistinctamente, assim dos animaes , como
da lā , do leite , das aves, etc. , o que se chamava dizimo
das miunças ; e ultimamente dos legumes e das horta
liças . Nada escapava áá rapacidade dos exactores, quér
leigos quér ecclesiasticos .
Bem se vê que , sendo os dizimos um imposto tem
poral , os principes, que o haviam creado, podiam tam
bem abolil - o , ou dar- lhe outra direcção ou destino ; e
tapto assim que muitas leis foram feitas em favor do cle
ro para que podesse cobrar esses dizimos por si mesmo ,
quér em generos quér em dinheiro – sendo obrigadas to
das as autoridades civis a prestarem o auxilio do braço
secular ao clero , sempre que este o exigia para cobran
.ça do dizimo .
Houve tempo , até o seculo XIV , em que era tal a
legislação civil a este respeito , que a lavoura teria des
apparecido de Portugal, se a mão de Deos a não tivesse
amparado com um Rei como D. Diniz de gloriosa memo
ria ; a quem a gratidão do povo fez dar o cognome de
Rei lavrador, que a historia transmittio aos vindouros.
Foi este principe, que horrorisado das avanias o
vexames , que praticava o clero com o pobre povo , a
ponto de provocar repetidas desordens , e serios distur
bios, por uma medida de prudencia chamou o dizimo
para o fisco , e deu aos curas d'alma um ordenado , que
na algaravia da igreja se chama congrua.
Pois bem , vêde toda essa legislação barbara e sel
vagem na collecção de Duarte Nunes do Lião, mandada
compilar por el-Rei D. Sebastião, e vos horrorisareis de
todo esse apparato de poder clerical concedido pelos
Reis da primeira raça . He mister estar muito abaixo dos
46
362

Hollentoles para desejar , que revivam esses tempos de


barbaria clerical.
De tudo quanto fica dito se deduz - 1.º, que o ar
ticulista ignorava inteiramente o que era dizimo - 2.º
C

que o dizimo nunca fóra propriedade da igreja, como


elle disse - 3.º que, começando por um acto exponta
peo, e acabando por uma imposição do poder temporal,
este o podia abolir quando quizesse 4.0 que ainda
mesmo quando quizessemos remontar ( passe ) ao velho
testamento, a lei nova abolio essa pratica, substituindo-a
pelos dous voluntarios - 5.º que não existindo dizimos
-

no Brazil, não ba, nem pode haver compensação nos or


1

denados, que percebem os clerigos como empregados


publicos, desde o bispo até o coadjutor de parochia.
Até aqui inculca -se o sabichão de sciencia infusa ;
mas daqui por diante revela -se o pedante ridiculo de
fazer rir. Sobre a denominação de bispo exterior da
igreja, diz elle, dada aos imperantes catholicos i que
ninguem deu ) , emana toda da munificencia dos ponti
fices !!! Aqui he que cabe a geito o risum teneatis do
velho Horacio ! Nem apezar de dizermos a origem da
phrase ou da denominação de bispo exterior, unica que
existe, deixou o pedante de sahir-se com o solemne dis
parate da muniſicencia dos pontifices !
Pois bem , apresentai uma só Bolla, ou Breve pon .
tificio, ou um rescripto qualquer, dando a um sequer
dos reis catholicos o iitulo de bispo exterior da igreja !
Nomeai o papa, que o conferio, e a quem ! Isto porém
seria impossivel, e o articulista em ar de mestre quiz
apenas dar-nos um quipáo, corregindo a nossa propo
sição !
He por isso que se diz , que a ignorancia be muito
atrevida ! Sabeis porque o primeiro concilio de Nicea
deu a Constantino o titulo de bispo exterior da igreja ?
e sabeis porque lhe deu o titolo de bispo, e não o de
pontifice, que elle tinha na religião pagãa | Se nada disto
sabeis, a que vindes denunciar-vos perante este povo,
que já começa a conhecer-vos ? vossa alma , vossa
palma ! ( Jornal do Recife de 29 de Agosto de 1866. )
363

IV

Haviamos dito no nosso primeiro artigo , que era


em virtude da soberania que o Imperador doBrazil exer
cia o direito do Padroado, e não como bispo exterior
da igreja ; expressão que não tem entre nós a menor
aplicação ; porque o nosso Imperante não necessita de
delegação estranha para exercer um direito inherente a
corða . Pois bem , o articulista emendou o nosso erro,
e com toda a sabença de sachristia dissenão ha tal so
berania : o titulo de bispo exterior é uma graça , que
emana da munificencia dos Pontifices !! Este homem
não tem miolos !
Ainda bem-para confundil- o bastará citar um au
tor, que é delle muito conhecido. Com effeito , o Sr.
Conselheiro Autran , homem respeitavel pela sua idade e
pelas suas lellras, disse o seguinte no seu compeudio
de Direito publico $ 85 nota 4.2
« O direito natural do poder temporal é exercer
autoridade e inspecção sobre tudo o que interessa á or
dem publica e ao Estado. Em virtude deste direito, e
para pôr a soberania nacional ao abrigo das usurpações
do poder espiritual, é que a Constituição confere ao po
der executivo a attribuição de conceder ou negar o be
neplacito aos decretos da authoridade ecclesiastica. »
O Sr. Conselheiro Autran não é suspeito nessas ma
terias, porque professa quasi os mesmos principios re
ligiosos que o articulista ; somente com uma differença,
e é que aquelle conselheiro é muito mais illustrado, e
entendido nessas cousas do que o tal pseudo -aris
tarco .
Eis ahi porque desde 1843, época em que foram
secularisadas as ordens militares no Brazil, clamamos
por uma lei , que defina o Padroado imperial ; tanto nas
materias puramente laicaes como espirituaes, em con
formidade da Bolla de Julio III de 4 de Janeiro de 1551 .
Em 1848 na Barca de S. Pedro ) estabelecemos os fun
damentos da lei -e foi desse artigo que o Sr. Conselhei
ro Nabuco se servio no seu Relatorio de 1855 para re
commendar ás camaras a necessidade de uma lei do Pa
droado . Se isto se tivesse feito, haveriamos poupado
364

muito tempo perdido em disputas vās , e evitado ao go


verno dissabores e humilhações .
Segue- se depois uma longa tirada de parvoices ,
algumas das quaes cheiram á blasphemia ! Fallando
da munificencia dos Pontifices, diz o articulista, que
diante della o imperante e o escravo são iguaes , porque
são duas almas resgatadas com o sangue do fundador
da igreja / e esta ?
Com que Jesus Christo , que chamou a todos ir
mãos ; que admillio a todos, sem differença de classes,
ao mesmo banquele celestial ; que nivelou todas as con
dições ; que igualou a todos diante de Deos ; que creou
o seu apostolado da gente mais infima da sociedade - Je
sus Christo , que disse que aquelle que quizesse ser o
primeiro seria o ultimo-não foi elle que creou a igual
dade entre os homens , a quem chamou irmãos - elle
Deos , como seu Pai , sem comparação com os Papas, ver
mes , que se espojam sobre a terra em signal de po
dridão !
Não ha publicista, que fallando da liberdade , da
fralernidade, e da igualdade perante a lei, não se refira a
Jesus Christo, e não aos Papas. E' nessa bella doutrina
dos Essenios , que Jesus Christo se apoiou para procla
mar á face da terra a igualdade e a fraternidade entre
os homens .
E o vosso Papa ? è o escandalo do orgulho huma
no. Gregorio VII decretou , que só o Papa pode usar
-

insignias exteriores da soberania - que o Papa pode an


nular todas as sentenças de todos os juizes do mundo
-que logo que é eleito canonicamente, fica santo pelos
merecimentos de S. Pedro - que o Papa é a unica pes
sôa deste mundo , a quem os reis devam beijar ospés-
e assim neste gosto até 27 proposições de igual jaez
verdadeiros disparates de que ninguem hoje faz caso ,
nem a propria igreja.
Jesus Christo nunca vestio senão uma tunica in
consotil-sempre andou de pés descalços- Papa usa
de purpura e de brocado ,de Thama e de pedras precio
sas ; e para cumulo do despreso , em que tem o genero
humano , usa da cruz de Nosso Senhor Jesus Christo
nos sapatos, para que todos lhe beijem os pés . De
365

sorte que a cruz, que os Reis lrazem pendente do pes


coço , o Papa a Iraz nos pés ! Vade retro !!
Eis ahi a vossa igualdade perante o Papa ; será tu
do isto sómente ignorancia ? Desconfio de tanta imbe
cilidade . Os cavalhelros de industria costumam as ve
zes a fingirem - se idiotas para poderem embarcar a sua
bisca --- pobre de quem se fia nelles !
0 articulista ainda diz mais, isto é , que os reis
são vigarios geraes do Papa ! Credite, Pizones ! e como
taes é que interviuham nas licenças para que os bispos
podessem sair das suas dioceses! Os reis vigarios ge
raes do Papa ! e por consequencia seus subditos !! Igno
rancia só ? qual !
Mas este homem não tem a menor idea do direito
publico universal, nem do nosso direito patrio ; nem
ao menos idéa do que seja a independencia dos povos , >

nem das suas relações internacionaes ; e muito menos


do que seja a soberaniu , esse direito inalienavel e im
prescriptivel das nações modernas ! é uma especie de
Dulcamara , vendendo um elixir feito com hervas do
Japão !
Com que , ainda o repetimos com toda a indigna
ção , o Imperador do Brazil é vigario geral do Papa !
é subdito do Papa , e como tal seu delegado no exer
cicio da vigararia geral ! -lerá tambem assento na fo
lha de Roma ? Póde dar-se um insullo mais pungente
contra o Brazil , contra a sua independencia, contra a
sua soberania ? Isto não tem outra resposta, senão com
uma mão de ferro . Serão todos esses desatinos filhos
só da ignorancia ? não - latet anguis. . . aqui ha mais
alguma cousa .
Apezar porém de tudo, preferimos antes tel - o co
mo um grande ignorante , mesmo um pouco aparvalba
do, do que supol-o ( como se diz geralmente ) agente
da propaganda jesuitica. E para prova de qne não nos
enganamos no nosso juizo, veja -se o que elle diz a
respeito dos bispos do Brazil.
Com todo o ar de importancia , que se arrogam os
pedantes , diz elle ; que os bispos do Brazil estão, no
espiritual, exclusivamente sujeilos ao Papa ; e que no
governo ccclesiastico estavão em relação com a Santa
366

Sé !! E' de mais ! Saiba pois o articulista , que os


bispos do Brazil , no fôro externo só estão sujeitos ao
governo e as leis do paiz , e a mais ninguem - e no fo
ro interno só estão sujeitos a Deus , aos capones e ás
suas consciencias.
Sujeitos ao Papa . e em relação com a Santa Sé !
e de que modo ? se elles não podem reconhecer supe
rior fóra do imperio, se não lhe podem prestar obedien
cia ? ( art. 79 do Cod . Crim ..) Como podem os bispos
estar em relação com a Santa Sé , se não podem recorrer
á ella sem legitima licença ? ( art . 81. ) (1 )
Ainda mais, dizei, se os bispos do Brazil estão su
jeitos ao Papa , devem receber e cumprir as suas or
dens. Ora , as ordens do Papa são em forma de bre
ves, de constituições , ou de um rescripto qualquer -- di
zei , póde om bispo dar cumprimento a um rescripto
pontificio sem o beneplacito imperial ? não de certo
logo, se o Imperador negar o beneplacito , de que ser
virá a ordem do Papa, quem a cumprira ?
Se o Papa conceder a um bispo do Brazil o titulo
do prelado domestico, ou de bispo assistente ao solio
pontificio, ou de conde palatino, póde o bispo agracia
do usar desses titulos sem licença do Imperador ? não ;
porque se o fizer, perderá o titulo de cidadão brazileiro,
ficando a Sé vaga ipso facto ; porque só pode ser bispo
do brazil o que for cidadão brazileiro. Ora, se o Im
( 1 ) Na ultima eleição do Vigario Capitular de Pernambuco
deu -se uma questão de facto, isto he, se a eleição tinha sido
feita dentro dos oilo dias canonicos, ou não. O arcebispo da
Bahia, a quem competia decidir, ( opinamos que não ),julgou nul
la dita eleição por ter sido feità fóra do prazo fatal, e appelou
ex - officio para o Papa, contra o art. 81 do nosso Cod. criminal ;
e contra o nosso direito patrio ecclesiastico antiquissimo, que
veda semelhantes appellações.
O governo ( a quem a decisão compettia por ser uma ques
tão puramente de facto ; isto he, se a eleição iinha sido feita, ou
não , no prazo legal) aprovou pelo contrario dita eleição, mas
aceitou a appelação do arcebispo para o papa, e de certo modu a
confirmou .
O papa opinou como o governo, e despresou osmotivos, em
que se fundara o arcebispo para tal appellação. Pergunta-se :
quem violou a nossa legislação, quem hé mais criminoso : oarce
bispo ou o governo ? quem he mais ignorante, mais relaxado, um
ou outro ? Assim são todas as nossas cousas.
367

perador der a licença para acceitar a graça do Papa, que


mais terà essa graça do que se fóra feita pelo Imperador
dos Francezes, ou pelo Rei de Portugal ?
Antes de concluirmos lembraremos o que diz a car
ta regia de 19 de Janeiro de 1759, depois de haver-se
mandado pôr em reclusão os jesuitas.
( Além das exhuberantes provas, em que se fundou
a sentença da junta da inconfidencia, a respeito dos er
ros theologicos, moraes, e politicos, que aquelles religio
sos ( jesuitas) procuravam diffundir com tão perniciosos
e abominaveis effeitos, tinha el - rei certa informação de
que agora pretendiam, com mais anciosas diligencias ,
contaminar as provincias com as mesmas falsas e abo
minaveis doutrinas, a que na corte se lhes cortou o
progresso pela sua reclusão . »
Isto que foi dilo, ha mais de um seculo , parece
que revive entre nós. Hoje é a mesma propaganda,
os mesmos erros lheologicos, moraes e politicos, as mes
mas abominaveis doutrinas ; a calumnia , a intriga , pe
la gente mais depravada , pelos jesuitas de batina e de
casaca ! ainda bem , que é desses mesmos jesuitas dis
9

farçados, que o actual bispo de Pernambuco soffre guer


ra descommunal ! São brancos, e lá se entendem. ( Jor
nal do Recife 30 de Agosto de 1866. )
V

Voltou o articulista , queixando - se da maneira por


que o hemos tratado, sem se lembrar que a grosseria par
tio delle , desde que nos tratou como a um menino de es
cola . Quando se enceta uma discussão sem utilidade , só
pelo gosto de discutir, cumpre guardar a forma da discus
são, principalmente com a benevolencia e respeito devido a
pessoa á quem se contesta ; e esse direito temos nós, senão
pela nossa intelligencia, ao menos pela nossa idade e po
sição social .
Insiste o articulista disendo, que o Concilio de Trento
fóra aceito ,sem reserva , em Portugal , e por consequen
cia no Brazil pelo Dec. de 12 de Setembro de 1564, e
Lei de 8 de Abril de 1569 ; e que estas leis forão homo
868

logailas ná legislação brazileira pela lei de 20 de Outubro


de 1823 .
Ora , foi justamente essa aceitação , que combatemos,
no nosso primeiro artigo com a doutrina de trez Juris
consultos de primeira ordem , como Mello Freire , Joze
de Seabra, e Borges Carneiro ; os quaes concordam
nesse Decreto e lei , mas disem que nunca tiverão execu
ção, e por consequencia como se não existissem .
Tambem provaremos , que o Dec. do Cardeal D.
Henrique de 12 de Setembro nunca foireunido á legisla
ção extravagante do reino . Mandando el-rei D. Sebastião
faser uma compilação das leis extravagantes, que se se
guirão depois da publicação da Ordenação Manuelina, pelo
Licenciado Duarte Nunes do Lião, procurador da casa da
Supplicação ; fôra esta compilação feita e aprovada pelo
Alvará de 14 de Fevereiro de 1569 .
Pois bem , nessa compilação, unica que existe desse
tempo , não se acha o citado Dec. de 12 de Setembro .
Tanto não se contava com tal Dec, que o mesmo
D. Sebastião , pela Carta de lei de 8 de Abril do mesmo
anno de 1569, aceita o Concilio de Trento, sem referen
cia ao Dec. anterior ; isto he, 53 dias depois de haver
approvado a mencionada compilação, que naturalmente
ainda não estaria impressa , e bem podia conter a nova
lei ; e todavia la não existe .
Donde pois surgirão essas datas , ' a que se refere
Mello Freire ? He muito natural que fosse de algum
desses velhos codices depositado na torre do Tombo,
visto que semelhantes Dec. e lei não existem em collec
ção alguma , de que tenhamos noticia .
Diz o articulista , que se estivesse argumentando
comnosco pedir -nos-hia licença para antepôr á nossa
opinião a do distincto Jurisconsulto Dr. Augusto Teixeira
de Freitas, que na sua Obra da Consolidação das leis
( Nota ao art . 100) assim se expressa :
« Os praxistas notão judiciosamente, que essa prova
testemunhal de cohabitação e fama de cazados não po
de ser admittida depois da aceitação do Concilio de
.

Trento . Foi uma inadvertencia dos compiladores da Or


denação Philipina, que taes disposições transcreverão
da Ordenação Manuelina, promulgada antes do Concilio
369

O Sr. Dr. Teixeira de Freitas estaria salvo de qual


quer censura, se não tivesse usado do adverbio judicio
samente, quando trata dos Praxistas, que notarão a in
congruencia entre as Ordenações Manuelina e Filippina ,
depois de aceito o Conc. de Trento ; por quanto os
compiladores Filippinos não podião deixar de faser o que
tiserão ; isto he, reprodusir os Titulos ee Livros da Ordena
ção Manuelina , que tratão da prova testemunhal de coha
bitação e fama de casados ; pois que essa compilação
fez-se por ordem de Filippe 30. de Hespanha (20. de
Portugal), onde nunca se acceitára nem publicara o cita
do Concilio ; e portanto como se não existisse.
Nem mesmo em Portugal era tida a sua aceitação
como lei , nem tivera execução ; tanto que era conside
rada como não existente ; e a prova está na lei de 13 de
Novembro de 1651 ; isto he, 82 annos depois da lei de
D. Sebastião de 8 de Abril de 1569 ; em cuja lei de 13
de Novembro D. João 4º se expressa da seguinte maneira :
« llavendo consideração a que não são bastantes as
penas ecclesiasticas para se evitarem estes damnos de
casamentos clandestinos, e ao que se me pedio nas Cor
tes, que se celebrarão no reino no anno de 1641; e como
>

já no anno de 1615 se havia mandado consultar ao Tri


bunal do Paço esta materia ; conformando -me com o
que outros reis tem disposto em seus reinos, assistindo,
por meio de penas impostas, ao Dec. do Santo Concilio
de 'Trento, que como Principe Catholico devo mandar
fxecutar em meos reinos e Senhorios ( prova de que não
tinha execução até alli) ; Ordeno e Mando que qualquer
pessoa, de qualquer qualidade ou condição que seja , que
da publicação desta em diante contrahirmatrimonio, que
a igreja declare por clandestino, pelo mesmo cazo elles , e
os que nelles concorrerem e intervirem , que de tal matri
monio fôrem testemunhas, incorrão em perdimento de
todos os seus bens ..... & .
Pelo theor desta lei vê-se claramente , que ainda á
meado do seculo 17º , estavão ein uso no reino de
>

Portugal os Casamentos clandestinos , 82 annos depois da


supposta aceitação sem reserva , como diz o articulista ,
do Concilio de Trento ; e lanto não estava o dito Concilio
em observancia , que D. João 49. tomou como um dever
47
370

de Principe Catholico mandar execular o Dec. do citallo


Concilio sobre 0o matrimonio, que he o Cap , 1.º da sessão
24 tão somente , não só no seu reino como Senhorios .
Em vista do exposto não podião os compiladores
Filippinos ter em consideração o Concilio de Trento, que
não regulava então ( principio do seculo 170.) em Hespa-
nha nem em Portugal; como prettende Lobão, Notas a
Mello, Liv . 2. Tit. 6 82. n. 4 ; que he um dos Praxistas,
senão o unico, de que falla o Sr. Teixeira de Frei
tas ; seguindo - se daqui que este Senhor comprehendeo
mala nota do Praxisia , se não ignorava que compilação
Filippina quer diser compilação feita em tempo e por
ordem de Filippe 3º . de Hespanha , onde nunca fòra pu
blicado o Concilio de Trento , nem nas suas dependencias ,
nem onde os reis de Hespanha podião intervir, como na
Flandres, em Napoles, em Veneza , e de 1580 por dianje
em Portugal.
Assim he que a lei de 13 de Novembro de 1651
teve em Portugal o mesmo objecto que a de 3 de No
vembro de 1827 no Brazil ; isto he , mandar executar o
Dec. do mencionado Concilio sobre o matrimonio ; ou
ambos tiverão por fim derogar a Ord . Lív. 4 , Tit. 46 ,
$ 2 , que dispõe a prova do matrimonio pela convivencia
iheuda e manteuda dos conjuges, e pela voz e fama pu
blica de marido e mulher.
Sem embargo, estarão na realidade revogados os
citados livros e titulos da Ordenação ? Somente na parte
relativa ao matrimonio de fama publica ; porque , quanto
á prova testemunhavel , todos os dias estão- se dando justi
ficações de casamento e de baptismo , porque não se
achão os respectivos assentos ; e he tal o abandono da
autoridade publica ( civil e ecclesiastica ) a este respei
to , que todos os dias se dão desses casos ; e parocho
tem havido, que morrendo , deixou mais de seis mil pe
dacinhos de papel ou notas avulsas , contendo cada uma
o respectivo assento de casamento ou de baplizado, que
não fora lançado no livro competente .
Agora só nos resta responder á uma verdadeira mo .
xinifada de - igreja soberana , catholica, independente ,
occulta como nas catacumbas e na China ; tolerada como
na Turquia e nos paizes hereticos , publica comonos paizes
catholicos ; ou de duas legislações ecclesiasticas : uma
371

absoluta e integrante , e outra relativa e accidental ( que


me melem se o entendo ! ) - ou de uma terceira legis
lação ecclesiastica , que se chama direito politico e eccle
siastico ! Emfim , e por este bom goslo vae até dar com
o Estado em pantana ! para o articulista o poder abso
luto da igreja, e nada mais !
Não direi que toda essa algaravia, que ahi fica ex
posta , he filha da ignorancia crassa do nosso direilo pa
irio ecclesiastico ; e muito menos do direito publico ec.
clesiastico , porque não queremos aggravar a situação já
muito precaria do articulista ; mas sempre lhe diremos,
que o Estado desconhece o direito absoluto do papa ou
do concilio para legislar sobre cousas, que digão res
peito á ordem civil , politica , e mesmo disciplinar , sem
accordo ou consenso do soberano ; que toda a Consti
luição, Bulla, Breve ou Rescripto pontificio não tem ,
nem pode ter execuçãn nem valor, nem a menor impor
lancia no paiz sem o Beneplacito Imperial ; e que qual
quer Constituição, Bulla , Breve ou Rescripto pontificio
ou disposição conciliar , he nulla ipso facto, uma vez que
seja contraria ás leis , usos , costumes e estylos do impe
rio . Tal he o nosso direito patrio ecclesiastico , principal
mente desde D. Pedro 1.º de Portugal , penultimo da
primeira raça.
Desconhecemos o que quer dizer direito politico ec
clesiastico , cousa que nunca houve ; salvo o goveruo de
Roma, ou uma Constituição theocratica. Entretanto ,
nem o governo de Roma está secularisado ; nem exis
tio jamais uma Constituição nos Estados pontificias ;
porque não chamaremos Constituição ao lão fallado Motu
proprio de Pio 9.º, de que já não existe nem memoria.
Alguem pensará, pelo que dissemos dos bispos ,
como empregados publicos, que os temos em pouca
conta . Enganar - se - ha de certo ; porque ninguem os col
locará tão acima como nós os collocamos . A nossa opi
njão he que os Bispos do Brazil tenhão a plenitude de
jarisdição , que lhes conferião , antes das reservas , os Ca
nones de Nicéa , de Antiochia, de Laodicéa, de Cartha
go , de Arles , é de outros Concilios citados pelos padres
dos seculos 12 a 16 ; e ainda mesmo pelas Decretaes de
Gregorio 90.
372

Queremos que tenhão a primazia de honra e de jn


risdição espiritgal nas suas respectivas dioceses mas
que tambem só se occupem do seu officio ; isto he, en
sinar e apascentar, reger a sua igreja e doutrinar os fieis ,
cingindo-se ao Evangelho.
E como não admitimos um tribunal ou Juiz es
trangeiro, ( 1 ) dispensador de graças , intervindo por
meio das chamadas dispensas no acto mais importante
da vida social , como he o matrimonio , mandaria pas
sear o tribunal da Nunciatura apostolica , fazendo devol
ver aos Bispos do Brazil a jurisdição para dispensar sem
reser'vas.
Com este fim fariamos desapparecer os impedimen
tos do 3.° e 4. ° gráo de consanguinidade e de affinidade,
os de cognação espiritual , de disparidade de culto entre
christãos, e o de publica honestidade, impedimentos de
cuja dispensa se pedio em nome d'el - Rei D. Sebastião ,
ao Concilio de Trento cm 1562 , libertasse o povo portu
guez ; cujo pedido se fez pelos embaixadores do mesmo
rei juntos aquelle Concilio.
Eis - ahi o que pensamos acerca dos nossos Bispos,
e outras muitas cousas , que não vem agora ao caso .
Detestamos um Bispo espadacbim , como o defunto D.
José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho ; muilo
mais a um Bispo ignorante como os temos lido por nossa
desgraça , deixando correr á revelia o seu rebanho, on
dando por páos e por pedras como um estouvado . Não ,
o Bispo deve ser o luminar da sua igreja ; isto he , deve
ensinar e edificar com a palavra e com o exemplo .
FIM

( 1 ) Para provarmos que Roma le estrangeira para nós,


assim como o papa e seus tribunaes ; além do nosso Codigo eri
minal, veja-se Pegas, tom. 11 ad Ord . Cap. 117 n . 103 à 110 ,
pags. 200 a 202. Em uma causa ecclesiastica houve appellação
para Roma , e vindo para Portugal a sentença da Rota, houve
iambem della recurso para a Coroa, que a considerou nulla, di
zendo -
« O que tudo visto , como se mostra dos autos, as sen
lenças dadas na Curia romana por Juizes estrangeiros, contra os
privilegios concedidos aos Senhores Reis destes reinos, e contra
a Ordenação. etc. )
INDICE

Pag .
Advertencia . 3
Primeira Resposta – Artigo 1 - As biblias de

69B%%%
Londres tambem estão falsificadas .
Art . Il - Não ha erros nas biblias de Londres . 12
Art . III . - Os livros proto e deutero canonicos . 16
Art . ] V -- Qual he a Vulgata authentica ?. 23
Art . V — A leitura das Escripturas he obriga
.

toria 30
Art.VI -- 0 Sacramenio do matrimonio e a pa
lavra Mysterio 35
Art. VII - Oo que foi Luthero ' e a Reforma 're
CC

ligiosa . 40
W &
O .

Art. VIII - O que he a civilisação moderna . .


45
Segunda Resposta - Preambulo
.
49
A Biblia do Padre Almeida 51
M &M

As Biblias de Londres . 62
Ecumenicidade do Concilio de Trento 101
A Catalogia do Sr. Padre Campos 105
A tradição catholica 114
Oslivros apocriphos não estão citados no Novo
Testamento 116
OsNovo
livros proto-canonicos
- estãotodos citados no 126
Testamento
Rvm . Sr.Conego Pinto de Campos perante
O historia 133
A leitura dos livros sagrados . 139
Da interpretação dos livros sagrados . 146
Furiosa remessa contra o Ephraim . 148
O Purgatorio . 150
.

. 168
A Inquisição religiosa. .

A Inquisição na Ilespanha . 218


PAG .
Origem da Inquisição em Portugal . 225
A Inquisição no Brazil 258
Carta de Francisco A. Warnhagen sobre os co
lonos do Brazil na Inquisição . 258
o Brazil
Pedro .
e a Inquisição -- artigo da Barci de si. 263
Invocação dos Santos culto das imagens 274
Epilogo 310
Carta de Ricasoli aos Bispos da Italia . 312
A lei do Padroado - artigo da Barca de S. Pedro 317
A emigração expontanea norte - americana. .
322
A questão da emancipação dos escravos. . 325
Os Jesuitas no Brazil no anno da Graça de 1867. 328
Os Seminarios na Italia . 330
A guerra do Paraguay . 331
0 Beneplacito Imperial . 332
O Bispo de Pernambuco e a sua ausencia 341
Uma resposta sob o mesmo titulo . 345
O Concilio de Trento não he lei no Brazil , senão
o Cap . 1 da sessão 24 . 345
Em que consiste a legitimidade do matrimonio . 351
A ausencia dos Bispos em França , Hespanha e
Portugal . 354
Os Bispos são empregados publicos 357
Os Dizimos nunca forão propriedade da Igreia. 359
A igualdade não he um dom dos Papas ; foi J.
Christo que a fundou , + 364
O orgulho dos Papas , e as maximas de Grego
rio VII. 364
o
O Imperador não he bispo exterior daIgreja,
nem vigario geral do Papa ; he mais quetudo
isto, porque he o representante da soberania
nacional 365
Os Bispos do Brazil não estão sujeitos ao Papa. 366
Os erros theologicos, moraes e politicos dos Je
suitas 367
A Consolidação das leis e o Concilio de Trento . 368
A nossa opinião a respeito dos bispos do Brazil
e das dispensas . 371
ERRATA

PAGINAS . LINHAS. ERROS . EMENDAS .


29 35 thologos theologos
55 34 dadre
{ padre
56 32 ao texto do texto
109 23 S. Ireneu , disci- Santo Ireneu, dis
pulo de S. João, cipulo de S. Pa
pias e de S. Poly
carpo , ambos dis
cipulos de S. João ,
112 19 mandados por mandados por
Eleazara Ptolo . Eleazar á Ptolo
тео meo
120 29 como canonicos como canonico
261 10 donzollas donzellas .
284 3 defferencia differenca
299 24 perscrval-o preserval - o
O DEOS DOS JUDEOS E O DEOS DOS CHRISTÃOS.

TERCEIRA RESPOSTA AO SR . CONEGO PINTO DE CAMPOS


PELO CHRISTÃO VELHO .

Outro couce por meos peccados : outra besta no meo caminho !


Parece que estou condemnado a ser mordido por quanta
alimaria peçonhenta por ahi existe em forma humana, ou
a ser esconceado por quanta bestu por ahi aparece, quér
daqui, quer de fóra, quer do Sertão. Vá tudo isto sem
aplicação, em forma de preambulo.

A minha segunda resposta ao Sr. Padre Campos, lon


ge de oferecer uma discussão luminosa a este Senhor, foi
causa , não de uma replica, mas de uma solemne descom
postura, e tão formal como ainda não se vio igual nas ta
bernas e casas de alcouce , segundo se lê no Diario de Per
nambuco de 4 de Julho do corrente anno .
Declaramos francamente que não aceitamos a discus
são nesse terreno , não só porque tem mil inconvenientes,
como porque o nosso antagonista he um atleta formida
vel nas scenas de escandalo : escandalo inevitavel nas lu
tas pessoaes .
O Sr. Padre Campos com o seo immenso saber, de
uma illustre prosapia , de vida illibada, de honestidade re
conhecida , me esmagaria necessariamente - e eu não sou
tão estupido, como elle suppõe, que me fosse metter de
baixo de suas patas .
Para provar ao Sr. Padre Campos a inconveniencia da
sua resposta , basta comparar o que elle disse de mim com
o que eu poderia diser delle ; comparação de que estou
bem longe de faser a menor aplicação ; e que não servirá
senão para mostrar - lhe todo o horror do abismo, que elle
mesmo cavou diante de si .
O Sr. Padre Campos revellou o meo nome ; estava
em seo direito, e fico -The muito obrigado, posto que nin
2

guem ignorava quem era o Christão velho . Assumo por


tanto toda a responsabilidade legal ou moral, que possa
resultar de tudo quanto tem publicado , e possa publicar
de futuro o Christão Velho.
Vamos pois mostrar simplesmente a boca do abismo,
que o Sr. Padre Campos abrio , e no qual prettende que
nos precipitemos . O que vamos diser he apenas uma sup
posição, he unia hypothese, que não ousariamos afirmar.
Começaremos pelo que elle disse de mim , e á cada these
do Sr. Padre Campos seguir-se -ha a resposta presumivel
- como por exemplo :
Disse o Sr. Padre Campos , que eu era como o sapo,
que quanto mais fustigado incha e se dilata .
Resposta. O Sr. Padre Campos he como o bode, que
berra , e quanto mais fustigado marra .
Disse o Sr. Padre Campos, que sou de uma insolencia
igual á minha ignorancia ; de uma affoutesa só inferior á
minha impostura, em que o sofisma decrepito frisa com
o paralogismo infantil ! (que furioso golpe de eloquencia ! )
Resposta ; 0 Sr. Padre Campos he de uma petulancia
igual á sua humilde e ignobil educação ; de uma affou
tesa só inferior á sua cobardia, de uma ignorancia que
frisa com a inteligencia da topeira , isto hé, não he só
ignorante, he estupido !
Que vos parece, Sr.Padre Campos ! ahi tendes a res
posta pelos mesmos consoantes ; agrada-vos ? Eu seria
ainda mais estupido do que vos, se aceitasse a discussão
neste terreno . Sem embargo , he mister que vos mostre
o fundo do abismo- continuemos :
O Sr. Padre Campos disse , que a minha resposta era
um tremedal de blasphemias e de heresias , acervo im
menso de absurdos e disparates, poco sem fundo da mais
indigesta e arinhavrada erudição ; armazem alfandegado
( valha-te Deos ! ) de alheios fardos carunchosos ; parto
hediondo de um cerebro atrophiado ; finalmente audacio
so grito de impiedade. ( E ia por diante o monstro hor
rendo - Nic . Tol . )
Resposta - Sr. Padre Campos he um tremedal de
escandalos e de torpesas ; acervo inmenso de bestialida
des ; poco sem fundo de estupida algaravia, e de ridiculo
pedantismo ; armasem alfandegado de tudo quanto pilha
3

de orelha , ou lhe impingem por escripto, como o que elle


promette acerca dos livros proto -canonicos, que já fede
a burel; parto hediondo de um cerebro endiabrado, do
qual se desviou para sempre a mais trivial honestidade ;
e finalmente audacioso grito de charlataneria !
E que tal , Sr. Padre ! agrada -vos esse tremedal ,
que posestes diante de mim para que me lance nelle ?
Não, Sr. Padre , não vos imitarei a pezar vosso-o dito
por não dito . Sem embargo, cumpre que continue a
mostrar-vos todo o horror do vosso procedimento, opon
do ao que dissestes aquillo que eu poderia diser, mas
sem afirmar nem negar .
O Sr. Padre Campos aduba sempre a sua crassa igno
rancia com os condimentos da mentira e da maldade.
Diz elle que se a minha Obra fosse publicada em França ,
ou outro qualquer paiz civilisado, que seria embargada
pela policia ; mas aqui, diz elle , a policia só cuida de
eleições ! Nisto tem o Sr. Padre Campos carradas de
rasão ; por que se tivessemos policia, elle não andaria tão
desempeçadamente por estas ruas ; e elle sabe a rasão,
segundo diz toda esta cidade.
A minha resposta sustenta a Divindade de Nosso Se
nhor Jesus Christo, que o Sr. Padre Campos contesta , e
nega de uma maneira, que faz arripiar as carnes ; nega
que Jesus Christo seja o unico mediador entre Deos e os
homens, e prefere o sangue dos homens ao sangue do filho
de Deos ! e assim mesmo a minha Obra , diz elle , seria
embargada em França ; ao passo que a vida de Jesus por
E. Renan se publica e vende em toda a França, em toda a
Italia , onde tem tido quatro traducções diversas ; em toda
a Alemanha , onde tem sido muito apreciada ; e ainda
não foi embargada em parte alguma.
Em Portugal fez- se uma traducção, que se vende
publicamente , e de que tenho um exemplar. Aqui mes
mo , e em todo o Brasil tambem se vende de publico , e a
policia ainda não se lembrou de embarga -la por que não
pode , por que a lei não lh'o permitte, e por que se o fi
sesse cometteria um attentado.
Mas a vida de Jesus não falla do Sr. Padre Campos ,
e elle não se importa com a Divindade de Jesus Christo
senão com a minha resposta que o esmaga, que o afoga,
4

e então guincha, zurra, orneja , como se eu lhe pisara nos


bichos. Que culpa tenho eu de todas as suas mazellas ?
O Sr. Padre Campos he tão ignorante , que nem ao
menos conhece a lei francesa a este respeito ; lei que hoje
regula tambem na Italia ; e tanto que logo que Venesa foi
entregue á Italia , fez-se alli uma nova traducção da vida
de Jesus sem licença do autor, tirada á quatro mil exem
plares. Renan pôs um pleito ao Editor, que foi condem
nado a pagar-lhe um franco por cada volume. Em que
lei se fundaria a policia para embargar a minha Obra ?
Talvez no codigo de Panellas de Miranda ou de Baixa Ver
de, onde o Sr. Padre Campos aprendeo theologia .
Da minha resposta não se deduz o mais imperceptivel
atomo de politica . – Para que politica em uma discussão
litteraria ? E porem o Sr. Padre Campos, esmagado de
baixo das doutrinas da Escriptura, que elle desconhece,
appélla para esse tremedal de insultos e de insolencias cha
mado politica , e sempre explorado por elle, somente
para autorisar -se a passar outra soberana descompostura
á actualidade, que elle detesta, por que lhe não deixa a
liberdade de traficar com ella .
Então diz que as minhas arrieirices e desensabidos
doestos não o podem encomodar nem ferir, como nunca
encomodarão nem ferirão a centenares de familias distin
ctas e a milhares de individuos, que por minha conta , e
por dinheiro, tenho sacrificado ás furias implacaveis da
minha Nemesis beliosa ! (sempre o pedantismopor diante !)
Prescindamos por ora das centenas de familias ee demi
lhares deindividuos, que por minha conta e por dinheiro
tenho ferido ! por que se o Sr. Padre Campos tivesse juizo,
(ou antes um pocachinho de pudôr ) não fallaria de di
nheiro com relação a mim ; visto que, se ha um homem
de quem todo este povo conta as mais escandalosas anec
dotas de dinheiro, he o Sr. Padre Campos , de quem diz
toda esta Cidade que deve a meio mundo !
Se eu quisesse responder -lhe poderia diser, que ain
da homem nenhum mereceo , como elle , o epitheto de
velhaco, de tratante e de caloteiro - mas não serei eu
que o acoime desses vicios ou defeitos pelo contrario para
mim be um homem muito honrado ! está em dia com 10
das as suas dividas .
5

Se ha arrieirices, como elle diz, nos meos escriptos,


eu poderia diser que nos delle , e neste a que agora res
pondo principalmente, ha budum de negro, por que nin
guem ainda se lembrou de chamar a discussão a memoria
de uma pobre mulher, morta ha 37 annos , senão uma es
pecie de hyena , que vive de desenterrar cadaveres - he a
panthera coroada , de que fallou ha tempos o Jornal do
Recife; e vós bem conheceis, Sr. Padre Campos, quem he
7

esta besta fera .


Disei quaes são essas familias distinctas feridas por
mim . Talvez queiraes faser allusão de um facto , que se
deo em 1845 ; não comigo , mas com meo irmão Luiz
Ignacio . Insultado e provocado muitas veses por um in
dividuo em nome de uma familia , meo irmão repelio o in
sulto , e por sua vez reagio em um artigo assignado porelle.
0 aggressor deixou o campo, e retirou-se para sempre
da imprensa-meo irmão tambem não voltou mais .
Pois bem , Sr. Padre , esse incidente em nada pertur
>

Hou as relações de benevolencia com os outros membros


dessa familia - essas relações ainda subsistem . Disei
agora quaes forão as outras familias feridas por mim ? Para
que sois mentiroso, para que sois exagerado, para que
sois calumniador ?
Diz o Sr. Padre Campos, que os meos desenxabidos
doestos não o podem encomodar nem ferir ; encomodar ,
talvez; porem ferir seria impossivel ! Onde ferir ao Sr. Pa
dre Campos , se o seo corpo he uma sò solução de conti
puidade, se já não tem pelle, se todo elle he uma chaga
putrida, onde ninguem pode pôr o dedo impunemente sem
empestar-se ? Bem vê que eu não seria tão tolo, que me
fosse contaminar dessa lepra que o devora . Por esse lado
pode o Sr. Padre Campos estar tranquillo.
Quanto porem à centenas de familias distinctas feri
das por mim, isso não passa de uma graça do Sr. Padre
Campos; posto que uma sua graça importe sempre uma in
fame calumnia ! 0 Sr. Padre Campos sabe como sou aco
lhido no seio dessas familias, e que não poderia feril-as
sem ferir a mim mesmo. O Sr. Padre Campos sabe que
não sou do Sertão , que sou desta cidade , onde sou muito
conhecido .
6

Diseis, Sr. Padre, que sois o ente mais feliz do mun


do, por que fostes encomodado e ferido por mim ; por
mim , Sr. Padre, que vos tratei como não merecieis ; que
vos tratei como a um cavalheiro , quando não sois mais do
que o cão que morde , o porco que enlameia . o bode que
marra, o burro que escoceia, o gato que arranha, e por
fim o tigre que mata e devora a sua preza ! Vós conhecido
em toda esta Cidade pela vossa lingoa viperina, pela vossa
penna molhada em fél, por esses repetidos actos de ca
lumnia e de mordacidade desde o Bispo D. João até a vossa
estupida moxinifada de 4 de Julho ultimo !
O Sr. Padre Campos sabia , que costumo presentear
com um volume do novo testamento, impresso em Lon
dres, algumas meninas das principaes familias desta Ci
dade ; e foi isto causa para elle sair -se com aquelles pri
meiros artigos , disendo que erão falsos, cheios de erros ,
fasendo crer que da minha parte houvera perfidia, intro
duzindo no seio das familias um veneno que as corroia !
Sabe todo o Brazil como eu respondi a essa misera
vel aggressão, como se prova pelo conteudo da minha pri
meira resposta , que agora publiquei de novo . Pois bem ,
quando sahio o primeiro artigo, cheio de respeito e de
consideração pelo Sr. Padre Campos, no outro dia insultou
me elle pelo Diario de Pernambuco, disendo que eu estava
vendido ao ouro dos Protestantes ! ! Sempre o ouro para
esse pedante, sempre o ouro para esse arlequim de nova
especie .
E como eu provasse que o Sr. Padre Campos faltara
a verdade, disendo que o novo testamento impresso em
Londres estava falsificado, quando eratão perfeito como
estava na biblia do Padre Antonio Pereira , veio com a sua
resposta, acervo de desconxavos, de disparates e de luga
res communs , que tão facil me foi desfaser e pulverisar.
Nessa resposta eu fui porcamente agredido , e estupida
mente enlameado pelo Sr. Padre Campos.
Ainda assim contive-me quanto foi possivel, e a mi
nha segunda resposta, se não foi tão amena e agradavel
ao Sr. Padre Campos , por que tinha delle a amostra do
panno na quelle famoso artigo do Diario de Pernambuco
de 3 de Julho do anno proximo passado, não estava com
tudo fóra dos limites permitidos em uma discussão litte
raria .
7

O que fez porem o Sr. PadreCampos ? pôz as mãos


no chão, e atirou -me couces a valer desde a cabeça até
os pés ; sujou -me de lama , emporcalhou -me; e para cu
mulo dos seos negros instinctos, ameaçou -me talvez com
um assassinato ! Este rapto de brutal ferocidade foi re
cebido pelo povo com o riso da mofa ; mas os homens se
rios do lado conservador o tomarão por um parto de lou
cura , que de certo modo comprometia o seo partido -
dahi a retractação do Padre no Diario de Pernambuco de
10 do mesmo mez !
O que mais se deve admirar he que o Sr. Padre Cam
pos não he criança; tanto que perguntando eu a um sujei
to muito seo amigo que idade elle teria, respondeo -me que
ha muitos annos tinha feito a sua terceira muda ! Portanto
essas hravatas lhe assentão muito mal . Deixemos de parte
a minha Nemesis beliosa ! ( que quererá isto diser ?).0 Sr.
Padre Campos he sempreo mesmo pedante incorregivel
-
-que lhe hemos de faser ?
Disse o Sr Padre Campos, que eu beijo curvado e
lumbareirinho as mãos generosas desses que fiserão parte
das hecatombes da minha dicacidade e malevolencia ! (ah !
Fr. Gerundio de Campaças ! ) Para que essa enxurrada de
insultos e de bestialidades ? Quem são esses que insultei ,
e cujas mãos beijo curvado ? Disei um sò , apontae um no
me sequer para desmentir- vos cara a cara .
Curvado nesta vida só á Deos-quem me vio jámais
-

curvado ? ante quem e para que , se nada quero e nada


pretendo ? Não admitto superiores nem inferiores - para
mim todos os homens são iguaes, se tem virtudes . Só um
assassino, um bandido , uni devasso, um adultero, um ca
loteiro , um mentiroso , esse , sim , não se pode assentar di
9 >

ante de mim - vade retro , Satanaz !


L

0 Sr. Padre Campos bem vê até onde me levaria a


sua torpe e brutal algaravia, só propria das senzalas ; por
tanto , torno a repetir - não aceito discussão nenhuma
-

neste terreno . Nunca agredi pela imprensa a ninguem ,


sempre tive que defender -me; e por isso ninguem mais
ultrajado do que eu. Sabe toda esta cidade , que uma fo
lha me chamou bebado, estupido e devasso ! e o Sr. Padre
Campos põe -me abaixo de estupido, até me chama ladrão !
e foi desenterrar os ossos de minha pobre mãi ; para ati
ral -os aos cães da rua !!
8

Pois bem, cousa singular, nunca chamei á responsa


bilidade nenhum artigo , ou jornal, nunca me queixei de
ninguem ; deixo o campo livre a todo o mundo para que
diga o que quiser de mim , de meos paes , de toda a mi
nha familia; póde estar tranquillo o Sr. Padre Campos,
que o não chamarei a responsabilidade, que não farei re
querimento contra elle . O Sr. Padre Campos pelo con
trario me ameaça com chamar-me a responsabilidade
pois bem, dou -lhe minha palavra que me terá em frente,
a pesar do nojo que elle me causa.
O Sr. Padre Campos , pelo contrario , vive agredindo
1

e chamando á responsabilidade , quando lhe respondem ;


mas sempre infeliz nessa especulação. O Argos chamou -o
assassino em 1853 , o Sr. Padre Campos chamou o Argos
á responsabilidade,-que proveito tirou disso, qual a sa
tisfação que teve ? 0 Śr. Padre Campos insultou o filho
do Sr. Dr. Carolino ; este respondeo -llie pelos mesmos
consoantes ; o Sr. Campos chamou a responsabilidade o
artigo do Dr. Carolino ; por que desistio, qual foi o re
sultado , que satisfação teve ? recuou como um sendeiro !
Se o Sr. Padre Campos insistir , se me ameaçar de
novo , quer com vias de facto, quer com um processo de
responsabilidade , começarei logo por publicar avulsa a
Carta de Nogueira Paz , em que vem a historia daquelle
celebre annel de Nossa Senhora das Dôres ; e mandarei
um exemplar ricamente enquadernado ao Cardeal Anto -
nelli ; para que se algum dia elle fôr a Roma, não lhe
confie os ourinóes de Sua Santidade ,
Para que politica nesta discussão ? para que cha
maes para a politica uma questão toda particular, quan
do sabeis que eu não tenho nem quero ter partido, quan
do sabeis que não sou progressista, no sentido em que
tomaes a palavra ? quando sabeis que tenho amigos in
timos em todos os partidos, e que com elles tenho toda
a liberdade para dizer-lhes o que me desagrada ? Vós
sabeis de tudo isto , mas sempre a má fé por diante , a
intriga para occultar as vossas mazellas , sem vos lem
brardes que os que mais vos atanazam são os vossos pro
prios correligionarios.
9

II

Essa intriga miseravel , essa má fé sempre de alalaia ,


se revelam pelo que fizestes, destacando um periodo da
minha resposta , e dando -lhe uma interpretação sinistra ;
mas com tanto desaso, que me armastes de um azorrague
para zurzir - vos o costado ( tudo isto he figurado - Deos
nos livre das vias de facto com que o Sr. padre Campos
nos ameaçou ) . Até com o proprio Deos me quizestes
intrigar ! Perdestes o tempo, Sr. Padre Campos , por
que he com as Escripturas que vos heide pulverisar.
Eu disse na minha resposta, que abominava o Deos
dos Judeos , o Deos feroz e sanguinario do Pentateuco .
Então expliquei como Jesus Christo havia modificado a
idéa do Deos dos Judeos . Isto servio de cavallo de ba
talha ao Sr. padre Campos para vir com uma verrina
contra mim , tão furiosa, que não me queimou , porque
tinha antes queimado as suas 14 biblias do padre Pe
reira, e 11 do padre Almeida ! Escapei porque já não
tinha combustivel para queimar -me.
Eis ahi o que disse o Sr. padre Campos, depois que
transcreveu 4 paragraphos da minha resposta :
« He até onde pode chegar o desconxavo e a demen
cia de uma cabeça ! ' Em todas estas golfadas de vomitos
negros, não ha um salpico , que não seja uma sundice,
uma heresia e uma impiedade ! E haverá christão, ca
tholico ou prottestante (graças a Deos ! já admite que os
prottestantes são christãos ! ), á quem lhe não tremam
as carnes, e lhe não sangre o coração , ao ler essas blasfe
mias infernaes contra o seu Deos, e contra os seus Apos
tolos e Evangelistas ? (onde está isto, Sr. padre Campos ;
á que vem Apostolos e Evangelistas com o Deos de Moy
sés ? ) . Pondo pois de parte a analise minuciosa de cada
uma destas proposições, ou absurdos asquerosos conti -
dos nos periodos que deixo transcritos, pois que saltam
aus olhos ( ora seb..) de todo o mundo , passarei a occu
>

par -me do essencial. »


Continúa o Sr. padre Campos. - < 0 publico tem
sido testemunha da gritaria, que ha levantaito o Sr. ge
neral Abreu e Lima em favor da canonicidade exclusiva
e unica dos livros do velho Testamento , chamados pro
2
10

to - canonicos ; entretanto veja agora o mesmo publico a


contradição monstruosa deste homem sem fé nem reli
gião , que na sua demencia ou ignoranciu ousa blasfemar
contra o Deos do Pentateuco , cuja canonicidade tem elle
como infalivel, e que effectivamente o he . E quem he esse
Deos feroz e sanguinario , que o Sr. general Abreu e
>

Lima abomina e detesta ? He o Deos trino ( mente , Sr.


padre , o Deos do Pentateuco he uno , não he trino ) ; o
Deos omnipotentissimo, perfeitissimo, sapientissimo, jus
tissimo,, imutabilissimo ! He o Deos que pelo ministerio
do seu legislador Moysés operou as mais estupendas
maravilhas, que o mundo tem visto . »>
« He o Deos que prescreveu ao seu povo as mais
justas e sabias leis ! ( como ada pena de Talião, que
Jesus Christo condemnou ) . Ile
He o Deos que revelou os
preceitos do Decalogo ( que a vossa igreja falsificou e
alterou ) , os grandes principios da lei natural, e os de
veres e obrigações da creatura para com o seu creador !
He o Deos á cuja vóz se abriram as aguas do Eritreo
( Pedante ! erilreo palavra grega , que significa vermelho,
nome com que esse pequeno mar lie conhecido ) , e pas
sarão a pé enchulo mais de 600 mil pessoas. He o
Deos que fez cahir no deserto a chuva de maná , e fez
rebentar da dura rocha ( havia ser da molle ) fontes de
aguas vivas . He emfim o Deos de Abraham , o Deos de
Isaac e o Deos de Jacob, e o Deos de todos os povos e
>

nações ( o que he inteiramente falso , como se prova do


Genesis ). )
Para esmagar , para pulverisar o Sr. padre Campos,
convem repetir as suas palavras, para que elle não re
clame depois, dizendo que as invertemos e adulteramos ;
assim he que vamos ainda copiar a conclusão dos perio
dos, que já ficão trasladados, afim de que os nossos leitores
possão apreciar até onde chega a ignorancia do Sr. pa
dre Campos acerca das Escripturas. Eis ahi como elle
conclue :
« Ora , vinde cá ( do que Deos me hade livrar ) , Sr.
general, onde lestes que Jesus Christo modificou a idéer
do Ente Supremo ? Apresentae , se sois capaz, um só
texto ou passagem do Evangelho, em que esse absurdo
impio possa encontrar a menor sombra de cohonestação !
11

Não sabeis, lingoa de bronze, que Deos, sendo essencial


mente imutavel, não pode soffrer modificação, alguma
na idéa de seus divinos attributos ? E qual supondes
vós ser o Deos de Jesus Christo , o Deos do Evangelho ,
segundo as vossas expressões ? Pois ignoraes que o
Deos de Jesus Christo seja o mesmo que o Deos dos Judeos,
e por conseguinte o Deos do Pentateuco ? Neste ponto vos
mostraes mais ignorante, e mais impio (muito obrigado)
que o mais encouraçado mahometano ! E dizeis com
todo o entono e anchura ( largo será elle , e veja como
falla ! ) que sois seguidor de Jesus Christo e de ser
Evangelho ! Blasfemia , sim blasfemia ; porque se cres
seis em Jesus Christo e no seu Evangelho , não havieis
de romper em guerra impia contra o altissimo Deos dos
Judeos, visto como se prova pelo Cap. 22 de S. Matheos
( que prova justamente o contrario do que dizeis, Sr.
Padre ), que o Deos que Jesus Christo aununciava era o
mesmissimo Deos do Pentateuco a quem abominaes !
Basta por ora o que fica copiado para dar uma
idéa cabal do christianismo do Sr. Padre Campos, ou da
sua crassa ignorancia á cerca das Escripturas - E senão
vejamos.
Suponha o Sr. Padre Campos que fui ( como he elle
sempre ) exagerado na minha proposição ; que dizendo
ex-abrupto, que detestava o Deos dos Judeos, o Deos
feroz e sanguinario do Pentateuco, poderia isto compre
hender aa essencia de Deos , que não pertence a Judeos
nem a Christãos, mas a todo o Universo . Ainda assim ,
Sr. padre, obrastes de muito má fé , porque immediata
mente expliquei o sentido, em que se devia tomar a
minha these , que não teve por fim senão discriminar o
Deos, anunciado por Moysés, do Deos anunciado por
Jesus Christo--Moysés homem , posto que inspirado ;
Jesus Christo Deos, que veio do seio do pae para dal-o a
conhecer .
Confesso que em todo o meu primeiro periodo,
transcriptopelo Sr. padre Campos na sua ultima res
posta, ou no Diario de Pernambuco de 4 de Julho, não
fui claro nem muito exacto ; mas fil - o assim de propo
sito, porque sabia, que como estava , era engodo para os
nescios, e que o Sr. padre Campos cahiria, como cabio,
na minha rede.
12

Não fui claro , porque a minha proposição, por ab


soluta, poderia dar lugar a uma falsa apreciação da idéa
de Deos entre a gente de boa fé ; não fui exacto, porque
dizendo, que Jesus Christo havia modificado a idéa do
Ente Supremo, podia admittir- se , que elle fallava de um
Deos conhecido pelos Judeos ; quando he justamente o
contrario, porque os Judeos nunca tinhão conhecido a
Deos até que Jesus Christo o deu a conhecer ( S. João ,
C. 1 v . 18 ) .
Ninguem ousaria comparar Moysés com Jesus Chris
to , nem o Pentateuco com o Evangelho , a não ser um
Judeo da Synagoga ; porque ( A Lei ( o Pentateuco )
foi dada por Moysés ; a graça e a verdade foi trasida
por Jesus Christo » ( S. João, C. 1 v . 17 ) . Logo, Sr.
padre, o Deos feroz e sanguinario do Pentateuco não he
o mesmo Deos, que só foi conhecido depois que Jesus.
Christo o deu a conhecer ( S. João , C. 1 v. 18 )
Mas em todo o Pentateuco existe um Deos , ou aparece
um Deos , em nome de quem falla Moysés, еe que elle annun
3

cia como o Deos de Abrahão, de Isaac ee de Jacob - e como


não era Deos conhecido ? Acaso não he o Deos de Abra
hão, de Isaac e de Jacob o mesmo Deos , que Jesus Christo
deoa conhecer ? Entre tanto a verdade he que só existe
um Deos, e que este Deos he o Deos do genero humano, e
não o Deos de um homem , ou de uma familia, ou de um
só povo , como era o Deos de Abrahão , de Isaac e de
Jacob .
Todas as religiões costumão revestir os seos Deoses
com as suas roupagens; e cada umao apresenta com todas
as suas paixões , com lodos os seos vicios, porque , o nome
de Deos não tem sido infelizmente, entre todos os povos
da terra , senão o instrumento da politica e dos interesses
daquelles que se tem apoderado ou incumbido do po
der . Eis ahi o que se deu com os Judeos, e que se re
vella a cada passo nos Evangelhos .
Está claro, que em essencia o Deos dos Christãos
devia ser o Deos dos Judeos , dos Gentios , dos Parthos , dos
Scytas, emfim de todos os povos, como diz S , Paulo ; mas
pelos attributos, com que o revestião os Judeos, o Deos
do Pentateuco differe tanto do Deos do Evangelho como
a agua do vinho . " Os Judeos attribuirão a Deos todas as
13

suas ruins paixões , como a ira , a colera , a vingança ; pai


xões que Jesus Christo condemna no homem no seu famo
so sermão , chamado da montanha ( S, Matheus, CC . 5 a 7 ) .
Eis ahi , Sr. Padre Campos, porque eu disse , que de
testava o Deos dos Judeos, fazendo realçar os atributos,
com que Jesus Christo revestio o Deos, de quem elle fallou
com o acatamento de um filho. E se acreditaes na divindade
de Jesus Christo em que de certo não acreditaes ) deveis
confessar, que Elle, Deos como seu Pae , era mais apto
para fallar de Deos do que Moysés ; porque só o filho uni
genito, que está no seio do páe, he quem o podia dar a co
nhecer, como diz S. João .
Logo, Sr. Padre , Deos não era conhecido até que
Jesus Christo veio ao mundo ; logo o Deos do Pentateu
co nio pode ser o Deos dos Christãos , só conhecido de
pois que Jesus Christo o deo a conhecer. Vêde , pois , como
a vossa miseravel intriga cahe por terra, ou como o laço,
que me querieis armar, vos aperta o pescoço , e vos faz
deitar de fora um palmo de lingua negra como a vossa con
ciencia .
Neste caso podereis dizer : então, não existia Deos
até que Jesus Christo veio ao mundo ? Existia , e tanto
que Jesus Christo he seu filho ; e para que haja filho he
mister que houvesse pae ; e se o filho he de toda a eter
nidade , tambem era o pae . O que fez Jesus Christo foi
despir a Deos da roupagem , com que o havião enfaixado
os Judeos, e restituir-lhe os attributos, que sempre teve,
mas que sò Jesus Christo deo аa conhecer. Essa innovação
exasperou os Judeos, e foi causa da perseguição e morte
de Jesus Christo .
Eis ahi , Sr. Padre , a razão porque disse , que não fora
>

muito claro nem muito exacto quando suppuz , que Jesus


Christo havia modificado a idéa do Ente Supremo . Não
he exacto , por que modificar he alterar a forma ou o modo
de qualquer cousa existente ; e se Deos não era conhe
cido pelos Judeos, era como se não existisse para elles ; logo
Jesus Christo não podia modificar o que não existia , senão
depois que o deo a conhecer .
Longe pois de fazer a menor modificação,Jesus Chris
to annunciou o verdadeiro Deos , que a lei de Moyses des
conhecia , porque , segundo diz S. João , ( C 1. v 17 ) :
14

« A lei ( o Pentateuco ) foi dada por Moysés ; a graça e


a verdade foi trasida por Jesus Christo » Onde está pois
a verdade, no Pentateuco ou no Evangelho ?
Isto, porem , que acabamos de diser, he só para a
gente de boa fé, que tenha comprehendido mal a nossa
proposição absoluta sobre o Deos dos Judeos ; por que
para o Sr. Padre Campos a questão he outra : sustenta -
mos o que dissemos ; e ainda mais provaremos que o Deos,
Pae de nosso Senhor Jesus Christo, differe tanto do Deos
do Pentateuco como a agua do vinho , como o Ceo da terra ,
como o Sol do nosso pequeno globo opaco .
Não chamaremos ao Sr. Padre Campos, como elle nos
chamou « Vinde cá Sephor General » não, nessa não ca
hiriamos — sempre de longe com elle por cauza das gar
-

ras ; mas dir-lhe-emos com toda a singeleza do nosso


coração, qne a elle não faremos a minima concessão.
Dissemos que o Deos dos Judeos não era o mesmo que o
Deos dos Christãos, vamos proval- o .
O Deos dos Judeos he uno - o Deos dos Christãos
he trino .
Os Judeos nunca admittirão senão o monotheismopuro;
os christãos não admittem senão a Santissima Trinda
de. ( S Math . Cap . 28 v . 19 – S.João , 1 Epist. C. 5 v . 7 )
O Deos dos Judeos não tem pae nem mãe. O Deos
dos Christãos tem uma e outra cousa . 0 10. Concilio de
Nicéa declarou , no principio do seculo 4º, que o filho era
consubstancial com o páe : 0 10. Concilio de Epheso de
clarou, no principio do seculo 5. ", que Maria era mãede
Deos .
E porem , sabe acaso o Sr. Padre Campos todas es
tas cousas ? Não , elle nunca leo as Escripturas ; e a este
respeito a sua ignorancia he tão grande, que se lhe per
guntarem quem foi o páe dos filhos de Zebedeo , elle não
saberá responder, e se he capaz que o diga .
Entretanto continuemos a exhibir as provas da nossa
propozição .
O Deos dos Judeos he o Deos de Abrahão, de Isaac e
de Jacob ; he o Deos do prepucio , o Deos da circumcisão. O
Deos dos Christãos he o Deos da cabeça , o Deos da in
>

telligencia, o Deos do Baptismo, que lava as manchas do


peccado original.
1
15

O Deos dos Judeos fez concerto com um só homem .


( Gen. C. 17 v . 2 O Deos dos Christãos chamou a um
concerto o Genero humano , mandando batisar todas as
creaturas, e ensinar todas as gentes (S. Math . G. 28 v . 19
S. Marc . C. 16 , v.15 .
A circumcisão he uma marca indelevel, marca de
sangue em signal de escravidão , como se marca um re
banho de carneiros ou de bois ; o baptismo, pelo contra
rio, he a agua lustral, que lava toda a mancha, e liberta o
homem da escravidão do peccado. He por isto que diz S.
Paulo ( Gal . c . 5. v . 6 ) « Por que em Jesus Christo nem a
circumcisão val alguma cousa nem o prepucio, mas a fé
que obra por caridade. »
S. Paulo tinha horror a circumcisão, e tanto que
reprehendeo a S. Pedro por permittil-a aos incircumcisos
( Gal . C. 2 v . 14 ) « Por qne obrigas tu os gentios a judai
sar?. E aos mesmos Galatas ( C. 5. v . 2 ) dizia elle
« Olhae que eu Paulo vos digo , que se vos fazeis circumci
dar, Christo vos não aproveitará nada
E diz o Sr. Padre Campos , que o Deos do Pentateuco
he o Deos do Evangelho, que o Deos dos Judeos he o
mesmo Deos dos Christãos ! oh ! a ignorancia he muito
atrevida .
O Deos de Abrahão , de Isaac e de Jacob he o Deos
de um homem , de uma familia , de um pequeno povo, que
nunca passou de um milhão de almas , apesar das suas
promessas ( Gen. C. 17 v . 5 e 7 )
O Deos dos Christãos he o Deos de todas as creaturas,
de todas as gentes, a quem Elle mandou pregar o Evan
gelho , ensinar e baptisar em nome do pae, do filho e do
Espirito Santo ( Math . C. 28 v . 19-Marc . C. 16 v . 15 )
-

O Deos de Abrahão, de Isaac e de Jacob exigia sacrifi


cios de sangue, não só de animaes como de gente ( Nume
ros , CC. 28 e 29 - Gen . 6. 22 v . 2 )
O Deos dos Christãos não quer nem aceita senão sa
crificios incruentos ; sendo Jesus Christo a ultima victima
do Velho Testamento offerecida em resgate do Genero hu
mano , como se vê da seguinte passagem de S. Paulo aos
Hebreos ( C. 10 vv . 9 e 10 ) « Eis aqui venho para faser,
ó Deos , à tua vontade ; na qual vontade, acrescenta S.
Paulo, somos santificados pela offrenda do Corpo de Jesus
Christo , feita uma vez . »
16

Bem vēdes , Sr. Padre , qne o Deos de Moyses exigia


elle mesmo holocaustos de suavissimo cheiro ! ( para os
seos narises ) como beserros, carneiros, bodes, & c ; o
Deos porem de Jesus Christo , não só não exige, como re
pelle as hostias e holocaustos, que cheirem a sangue, se
gundo a lei; por que não lhes são agradaveis ! Logo o
Deos de Moysés não he nem pode ser o Deos de Jesus
Christo !
E se ainda vos fica , Sr. Padre, a menor duvida á
cerca do nenhum valor, que hoje tem para os Christãos
o Pentateuco, vede o que diz S. Paulo ( Gal . C. 2. v . 16 )►
Mas como sabemos que o homem não se justifica pelas
obras da lei , senão pela fé de Jesus Christo, por isso
cremos em Jesus Christo para sermos justificados pela fé
de Christo , e não pelas obras da lei ; por quanto pelas
obras da lei ( sangue e mais sangue ) não será, justifi
cada toda a carne » Logo todo esse sangue de cheiro sua
vissimo era em pura perda.
Eis ahi, Sr. Padre Campos, por que eu disse que
detestava o Deus dos Judeos, o Deos feroz e sanguinario
do Pentateuco , o Deos dos holocaustos, dos sacrificios de
sangue , da marca de sangue : preferindo antes amar ao
Deos que Jesus Christo pregon , Deos de bondade , de mi.
sericordia , de clemencia , Deos todo amor, Deos pae do
Genero humano ; em fim o unico Deos até hoje annuncia
do pelos homens, que só aceita sacrificios incruentos.
Ora , Sr. Padre, não he de certo a este Deos, a quem
vós amarieis, por que farejaes o sangue , como já fises -
tes com o meo, ameaçando de dar -me umi eterna lição,
isto hé, para sempre. Gostaes do Deos de sangue , dos
holocaustos , das victimas ; porem ahi está o Deos de
Jesus Christo, o verdadeiro e anico Deos, que consente
mas não para sempre ; e algum dia pagareis o novo e o
velho . Ora , quando o mundo civilisado forceja para aca
bar com a pena de morte, he que o Sr. Padre Campos
recomenda o Pentateuco como contendo as mais justas
e sabias leis ! se isto não he um parto de loucura , então
ainda he peior, por que o padre está possesso .
Disse Jesus Christo , fallando no templo aos Judeos
» vós não me conheceis a mim , nem a meo pae ! se
me conhecesseis a mim , conhecericis tambem a meo pae >
17

( S. João C. 8 v . 19 ) . Ora os Judeos nunca conhecerão


a Jesus Christo , isto he, nunca o reconhecerão como filho
de Deos , tanto que o crucificarão entre dous ladrões ; logo
os Judeos nunca conhecerão ao Deos , que Jesus Christo
annunciou . E porem os Judeos conhecião o Deos do Pen
tatenco, o Deos de Abrahão , de Isaac e de Jacob - logo -

o Deos conhecido do Pentateuco não he, nem pode ser o


>

Deos desconhecido de Jesus Christo on do Evangelho . Se


isto não he logico , queimae todos os philosophos, desde
Aristoteles até Victor Cousin .
Vós dizeis que o Deos de Abrahão , de Isaac e de
Jacob era o Deos de Jesus Christo - olie falso - Jesus
Christo disse muitas veses aos Judeos ; vós não me co
pheceis, por que não conheceis a meo pae , que me enviou .
Fallando aos Judeos , dizia -lhes Jesus Christo - Osso
pae Abrahão - ( S . João, C. 8 v . 56 ) ; mas nunca disse
que elle era filho de Abrahão ; pelo contrario disse, que 1

antes que Abrahão fosse feito, elle jà era - pelo que os


Judeos o quiserão apedrejar, e elle encobrio-se , e sabio
do templu . ( S. João , C. 8 vv 58 ee 59 )
Como quereis, Sr. Padre , que o Deos de Jesus Cris
to fosse o Deos dos Judeos, quando lhes repetia muitas ve
zes : vós não tendes conhecido a Deos , mas en o conheço,
( S. João , C. 8 , v . 55 ) . Ainda mais « Eu e o pae somos
>

uma e a mesma cousa » į S. João, C.10 v . 30 ); pelo que


.

os Judeos o quiserão apedrejar. Bem vedes, Sr. Padre,


que o Deos de Jesus Christo está muito distante do Deos
do Pentatenco, e que o Deos da nova lei tem atributos
muitos distinctos do Deos da lei velha.

III

Suponhamos, porem , que o Deos do Pentateuco he o


Deos do Evangelho, que o Deos que Jesus Christo pregou
tem os mesmos atributos do Deos de Moyses , em fim
que o Deos dos Judeos he o mesmissimo Deos dos Chris
lãos , sem uma virgula de mais ou de menos :
Dizei-nos agora, Sr. Padre : E por que a vossa Santa
Inquisição fazia queimar os pobres Judeos, se elles ti
nhão o mesino Deos, se o Deos do Pentateuco era o Deos
du Evangello, se linhão ein lim a mesma crença ? Por
3
18

que a vossa igreja perseguia em nome do Deos do Evan


gelho aos Sectarios do Deos do Pentateuco ? por que lhes fa
zia cargo do seo Deos, se era o mesmo dos Christãos ?
Se asseveraes , que era o mesmo Deos de uns e de
outros, seo Deos dos Judeos era o mesmissimo Deos dos
Christãos, e a vossa igreja queimava aquelles em nome do
Deos destes, ne mister convir em uma de duas cousas :
ou não era o mesmo Deos , nem as mesmas crenças , 011
então , como diz o Sr. Alexandre Herculano, a vossa Igreja
queimava os Judeos , sob pretexto de religião, somente
para ronba -los ! (1 )
Então , Sr. Padre , he mister convir tambem , que
neste caso a vossa igreja não fazia outro papel senão o
dos salteadores de Schiller, dus bandidos de Sierra Mo
rena em tempo de Carlos 3.0 da Hespanha, ou da qua
drilha dos irmãos Moraes, que saqueou e incendiou Pa
nellas de Miranda .
Tanto a vossa igreja não reconhecia a identidade
entre o velho e o Novo Testamento , que quando Paulo
3.° fazia alguma concessão aos infelizes Judeos, não era
de admirar, diz ainda o mesmo Sr. A. Herculano , ver
um bispo subir ao pulpito , e declamar contra a impia lei
do Sinai (2) . Creio que esta questão está esgotada .
Diz , porém , o Sr. Padre Campos , que levantei gran
de gritaria em favor da canonicidade exclusiva dos livros do
Velho Testamento chamados proto -canonicos - be falso .
Que necessidade linha en de provar o que ainda
ninguem negou ? Os livros chamados proto -canonicos
forão sempre tidos como inspirados- mas, porque ? he
porque elles continbão a verdade fundamental do Chris

( 1 ) Agora mesmo na Roumania são us pobres Judeos per


seguidos, roubados e assassinados em nome do Deos dos Chris
taos - dos Christãos ? neyo, Sr. Padre ; em nome do fanatismo ,
da intolerancia , do latrocinio e da hypocrisia ; tudo obra da vossa
igreja ; por que , se o Dpos dos Israelitas os mandava exterminar
algumas vezes, o Deos dos Christãos nunca mandou matar nem
exterminar pessoa alguma. E são Christãos os Valaquios e os
Moldavos ? São o diabo que os carregue, menos Christãos ; ou são
tão Christãos como vós, Sr. Padre !
(2) Não he isto de admirar, por que o Padre Antonio Perei
ra , na sua nota ao verso 5 do Cap . 20 do Exodo, declara que os
preceitos judiciae: da lei de Moyses não obrigão aos christãos .
19

tianismo ; isto he, as Promessas ! não as que vós, Sr.


Padre, admitlis para os vossos Santos , con tanto que
vos paguem , mas as da vinda do Regenerador, do Salva
dor, do Redemplor, do Messias, do Christo emfim .
Eis alii porque dizia Jesus Christo em S. Lucas ,
que era mister que se comprisse o que delle estava es
cripto na lei , nos Profetas e nos Psalmos, não só sobre
a sua vinda, como sobre a sua paixão e morte (1 ), afim de
que resuscitasse ao terceiro dia ; e he por isso que elle
reprehendera a S. Pedro de uma maneira desabrida ,
quando este o quiz dissuadir de ir a Jerusalem para
que se cumprissem as Escripturas, ( S. Math . C. 16
v . 23. )
Fóra das Promessus, que he a parte puramente ins
pirada, tudo mais he historico ou juridico nos livros do
Pentateuco, e por consequencia sujeito a todos os erros, par
tilha da humanidade ; por que esses livros forão escriptos
por um homem ; mas não assim os Evangelhos, que forão
dictados ou proferidos por Jesus Christo, Deos como
seu pae, enviado para revelar aos homens o que elles
desconhecião. Mas a revelação não continha só a mo
ral, ou a sciencia do dever , como tambem um grande
misterio ; esse misterio era o da redempção !
Assim be que o Messias chamco - se depois o Salva
dor do mundo, o Redemptor do genero humano. Veri
ficada a profecia, cumprida a missão de Jesus Christo ,
o Velho Testamento não tem outro valor senão como o
fundamento desse misterio , isto he, da redempção ; ou
então como livros de moral e de historia ; por que com
effeito Moysés foi o primeiro historiador do mundo ;
visto que nenhum outro existe mais antigo, e nem con
temporaneo. Sanchoniathon , de quem restão alguns
fragmentos, não tem epoca certa - uns o fazein contem
poraneo da Semiramis, outros de Moysės ( differença de

( 1 ) Eis ahi o que diz S. Pedro ( 1 Esp . C. 1 vv . 10 e 11 )


« Da qual salvação os Prophetas, que vaticinarão da graça que ha
via de vir á vós outros, inquirirão e indagarão muito. Esqua
drinhando em que tenipo, e em que conjunctura o Espirito de
Christo , que lhes assistia , sinalava esta graça , annunciando an
tes os soffrimentos , que se havião de verificar em Christo, e as
glorias que os seguirido. »
20

3 seculos ) , outros de Gedeão , e ontros ainda em epoca


mais moderna ( 1200 annos antes de Jesus Christo ).
Bem védes , Sr. Padre , que he mister saber mais
alguma cousa do que vós sabeis , para poder fallar so
bre estas materias. Não basta só ler as Escripturas, he
necessario estar habilitado para entendel-as . A vossa
theologia, como ella se ensina hoje, não habilita ninguem ;
pelo contrario , perverte o senso commum . En tam
bem estudei theologia com um dos maiores theologos da
America , de nomeada europea ; mas não foi só a theo
logia , que me habilitou para entender as Escripturas, se
não o estudo profundo da historia antiga , cousa que
ignoraes completamente.
Eu provei, contra o que tinha dito o Sr. Padre
Campos, que todos os livros proto -canonicos- tinhão si
do citados ou referidos no Novo Testamento ; e he isto
talvez , ao que attribue a minha gritaria - mas o Sr. Pa .
dre Campos deve saber, que não se citão só os livros
canonicos pela parte , que contém as profecias , mas
tambem
Pentateuco
pela parte historica e juridica, que conlem o
.
Não se cita sò a doutrina como tambem os factos,
por que nem Jesus Christo , nem S. Paulo, nem os Apos
tolos e Evangelistas tinhão diante de si outra historia,
nem outra fonte de doutrina e de acontecimentos senão
O Canon judaico , pelo menos até Esdras; e foi justa
mente esse Canon que Jesus Christo alteron, revogou,
modificou de tal modo, que foi quasi substituido pela no
va lei , como provaremos de uma maneira incontes
tavel .
Quando Jesus Christo não tivesse feito mais do que
quebrar o sello do pacto entre Deos ee Abrahão, fazendo
desaparecer a circumcisão, bastava este sò facto para
provar una alteração notavel no Velho Testamento ; so
bre tudo , por que á esse pacto de sangue seguio-se o
pacto da nova lei pelo baptismo incruento .
Mas não , a lei antiga foi toda alterada, o cullo in
teiramente mudado ; estando entregue à uma só familia ,
na lei antiga , foi devolvido pela lei nova á todo aquelle
que cresse em Jesus Christo . A propriedade e a rique
za forão convertidas em dons expontaneos, e pobreza vo
21

luntaria . Emfim do Velho Testamento só ficarão as


Profecias, que servirão para dar depois testemunhu da
divindade de Jesus Christo , e nada mais.
0 Sr. Padre Campos diz, que Jesus Christo não
veio destruir a lei, mas aperfeiçoal-a. Não, Jesus Chris
to disse ainda mais do que isto : não vim verogar a lei ,
mas fazel-a cumprir -que he o que significa adimple
re . E porém , de que lei fallou Jesus Christo, da ve
lha ou da nova ? se da velha, elle alterou- a portal
modo, subrogou-a , que apenas ficarão as profecias
elle sabia que as cousas, qne se offerecião à Deos se
gundo a lei ( o Pentateuco) não lhe erão agradaveis ;
que as hostias, oblações é holocaustos pelo peccado
erão repelidos por Deos ; e por isso diz , que viera tirar
o primeiro para estabelecer 0o segundo ! ( S. Paulo, Hebr.
C. 10 vv . 8 e 9 ) . Onde fica pois a lei antiga ?
Se Jesus Christo tivesse dito aos Judeos, qne vi
nha alterar , modificar ou derogar a lei , teria sido ape
drejado , como muitas vezes o quizerão fazer, quando
excedia um pouco os limites da sua habitual prudencia.
Era pois necessaria essa aparencia de respeito pela ve
Jha lei ; afim de substituil- a pela nova sem escandalo
ou sem grande resistencia de parte dos fanaticos,
Diz ainda o Sr. Padre Campos o seguinte : « E no
te - se que a passagem que extrahi de S. Matheus, acha
se reproduzida nos outros Evangelhos, que estão cheios
de frequentes citações dos livros de Moyses, cuja leitu
ra Jesus Christo aconselhava aos Judeos, e consequente
mente a todo o povo christão , como se lê no Cap . 16
do Evangelho de s . Lucas, nas seguintes palavras do
mesmo Senhor Jesus : ) Elles lá tem Moyses e os Pro
fetas : oução -nos- « Ora , será crivel , Senhor General ,
que Jesus Christo aconselhasse a lição do Pentateuco ,
se nelle não dominasse plena e magestosa a idéa do ver
dadeiro Deos ? »
Esta tirada do Sr. Padre Campos he um tecido de
falsidades, de disparates, de mentiras e de contradi
ções, que não sei como se responda. Em primeiro lu
gar he falso que Jesus Christo aconselhasse aos Judeos,
e consequentemente a todo o povo christão a leitura
dos livros de Meysés : em segundo he falso e falsissi
92

mo, que fosse Jesus Christo quem dissesse o que o Sr.


Padre Campos lhe attribue no Cap 16 do Evangelho
de S. Lucas ; por que foi Abrahão, e não Jesus Christo ,
que disse o que alli se lê : ( E Abrahão lhe disse :
Elles lá tem a Moyses e os Profetas: Oução -nos » ( Luc .
C. 16 v 29 ) . Por tanto , todo o argumento do Sr. Pa
dre Campos, fundado nesta falsidade, he tão falso co
mo a citação .
Este Sr. Padre Campos está decididamente louco ,
ou então a verdade para elle he a mentira muitas ve
zes repetida, como costumava dizer o defunto Senador
Bernardo Pereira de Vasconcellos .
Vejão agora os leitores o contrario de tudo isto
que disse o Sr. Padre Campos , no mesmo Cap . 16 de S.
Lucas : « E Jesus lhes disse...... A lei e os Profetas
durarão até a vinda de João ( S. João Baptista , o
Precursor ) ; desde esse tempo he o reino de Deos anun
ciado ( a boa nova ou o Evangelho ), e cada um faz for
ça para entrar nelle ) Por tanto , Sr. Pailre Campos,
está verificado o que disse o proprio Jesus Christo Eis
aqui venho para fazer, ó Deos , a tua vontade : tirar
o primeiro para estabelecer o segundo "» ( S. Paulo . Heb ..
C. 10 v.9 ) . Logo be deincontestavel verdade, que a lei
antiga foi subrogada pela lºi nova , o Pentateuco pelo
Evangelho, ou melhor, o Velho pelo novo Testamento .
Sr. Padre, se nào tendes a cabeça mais dura que
aquella pedra , donde Moyses tirou agoa , então deveis
ser um impostor mais atrevido que Mafoma. He o pro
prio Jesus Christo quem diz , que a lei só durára até a
vinda de João ; entretanto o Sr. Padre Campos tem a au .
dacia de dizer, que Jesus Christo aconselhava aos chris
tãos a leitura do Pentateuco ! Quem lhe comesse osmio
los podia commungar sem escrupulo . Um honem , que
tein a semceremonia de cilar o nome de Jesus Christo
em lugar do de Abrahão , vão tem pudor algum nem me
rece o menor credito como escriptor.
Emfim Jesus Christo alterou de tal maneira a lei
antiga, que S. Paulo fez entre uma e outra lei a
differença, que ha entre o escravo e o livre. E porém
para mostrar -vos de uma vez por todas, que a lei fôra al
ierada com a vinda de Jesus Christo , basta a seguinte
23

passagem (Gal. C. 2 v . 16. ) « Mas como sabemos ,


que o homem não se justifica pelas obras da lei (1 ) , se
não pela fé de Jesus Christo : por isso tambem cremos
em Jesus Christo para sermos justificados pela sua fé,
e não pelas obras da lei ; porque se a justiça he pela lei,
segue -se que morreo Chrislo em vão ) ( Ibd . v . 21 ) .
Vós porém , Sr. Padre, sois uma besta , e é impos
sivel argumentar com quem só sabe atirar couces .
Se quizerdes, Sr. Padre, ainda mais provas ,
de que a lei antiga differe inteiramente da nova ,
basta dizer - vos com S. João ( C. 1v . 17 ) < Porque a
lei foi dada por Moysés ; a graça e a verdade foi trazi
da por Jesus Christo > Logo na lei antiga não havia
graça nem verdade ; o que se confirma pelo que disse
S. Paulo - o homem não se justifica pelas obras da lei ,
mas pela fé em Jesus Chrisio .
S. Paulo ainda vae mais adiante ; porque conside
ra a lei como obra da Carne, e o Evangelho como obra
Jo Espirilo . « Se vós porém sois guiados pelo Espirito ,
não estaes debaixo da lei ( Gal . C. 5 , v . 18 ) .
Vêde tambem , Sr. Padre,, a grande differença
entre os sacrificios da lei antiga e os da lei da
graça . Jesus Christo reprora os sacrificios de sangue,
como diz S. Paulo ( Heb . C. 10 v . 4 ) u Porque he
impossivel que com sangue de louros e de bodes se tirem
os peccados !
Ainda mais disse Jesus Christo « Os holocaustos
pelo peccado não le agradarão ! eis ahi venho, ó Deos ,
para fazer a lua vontade ; porque tu não quizestes as
hostias e oblações e os holocaustos pelo peccado; nem te
são agradaveis as cousas segundo a lei ( vede bem , Sr.
l'adre ) ! Então disse eu, eis aqui venho, ó Deos ,
para fazer a lua vontade: tirar o primeiro para estabe
lecer o segundo » ( Heb. C. 10, v . 9 ) . O que quer di
zer , que não sendo agradaveis a Deos os sacrificios de
sangue, vinha Jesus Christo subrogar a lei velha pela no
va ; sendo elle a ultima victima offerecida em expiação
dos nossos pecados ( IIeb . C. 10, v . 10 )
( 1 ) Escusamos repettir, que sempre que nos Evangelhos vem
a palavra lei, entende se o Pentateuco , ou os iivros chamados
de Moyses .
24

E para mostrar ros, que todos os sacrificios da lei


antiga erão inuteis , accresceola S. Paulo , que embora os
sacerdotes se appresenten todos os dias a exercer o
seu ministerio , e a offerecer muitas vezes as mesmas hos
tias , estas não podiāv tirar o peccado; mas Jesus Christo
bavendo offerecido uma só hostia pelos pecados, está
assentado para sempre a destra de Deos ( Heb. C. 10
vv . 11 e 12 ) . Achaes, Sr. Padre , que he pequena al
teração substituir os sacrificios de sangue pelos sa
crificios incruenlos ? Oh ! Sr. Padre Campos , nem tanio
instincto de sangue !
Os Judeusdizião, que erão filhos de Abrahão , e que o
Christo era filho de David . Jesus Christo não consen
tio que o chamassem filho de Abrahão , porque disse
elle , que ja existia antes que Abrahão fosse feito ; disse
mais que o Christo não podia ser filho de David , por que
o proprio David chamava ao Christo seu Senhor ! ( Maih .
C. 22 v . 45 ) . Entretanto, contra o que disse o pro
prio Jesus Christo , a vossa igreja persiste em chamual- o
filho de David !!
Até aqui vos tenho mostrado o quanto vae do Pen
tateuco ao Evangelho ; a grande differença que existe
entre o Deos annunciado por Jesus Christo , e o Deos
pregado por Moyses ; o quanto era abominavel om Deos
coberto de sangue, e sangue inutil, por que não remia
os peccados, em presença de um Deos, que proscrevia o
sange, que repellia os holocaustos, e que só acceitava
Os sacrificios incruentos:
Mas ainda não basta ludo isto , Sr. Padre, por que
tendes a cabeça mais dura que una rocha ; agora cuin
pre provar -vos, que a lei antiga foi alteracia , modificada,
senão completamente subrogada por Jesus Christo ; e he
por isto que elle disse, que tinha vindo tirar o primeiro
e estabelecer o segundo ; isto be, tirar o velho e estabe
lecer o novo testamento .
He pois com as Escripturas que vos hei de esmagar ,
Sr. Padre , embora chameis em vosso auxilio os salteado
res de Schiller, os bandidos de Sierra Morena, ou a qua
drillia dos Moraes ; emfim todos os protestantes do Dia
rio de Pernambuco, que não são melhores do que vós .
He com os Evangélhos que provarei a missão de
95

Jesus Christo , que vós desconheceis , por que sois tão


christão como eu sou turco . E sabei , Sr. Padre , que se
vós fosseis capaz de dar-me um quináo nas Escriptoras ;
se podesseis provar, que ama só das minhas citações era
falsa, dou - vos minba palavra de honra que mudaria de
nome , por que me julgaria aviltado.
Vamos pois provar não só as alterações e modifi
cações , que Jesus Christo fez na lei antiga , como a par
le da mesma lei completamente abrogada por Elle .
Diz a lei antiga : Não motarás, e quem matar será
reo no Juizo. Jesus Christo porem foi muito alem desse
preceilo , e disse : Todo aquelle que se ira contra sev ir
Inão será reo no Juizo ; e o que o chama tôlo será réo
do fogo do inferno . ( Math. C. 5, v . 22 )
Não adulteraràs, diz a lei antiga . Jesus Christo am .
pliou o preceito , disendo : todo o que olhar para uma mu .
Ther cubicando- a, já no seo coração adulterou com ella .
( Ibid . v . 28 )
A lei antiga permitte repudiar a esposa , com tanto
que lhe dê carta de repudio. Jesus Christo disse, que o
homem não podia separar o que Deos, ajuntou ( Math.C.
19 v . 6 ) A lei antiga foi por tanto derogada.
.

O que dava Carta de repudio à sua mulher podia


casar com outra ; assim como a mulher repudiada podia
passar á segundas nupcias. Jesus Christo porem disse :
Todo o que larga sua mulher, e casa com outra , comette
adullerio ; e o que casa com a que foi repudiada de seo
marido, commeite adulterio . ( Luc . G. 16, v . 18) . Jesus
>

Christo abolio o repudio, e só consente na separação


quoail torum por motivo de fornicação. [ Math . C. 5 v.
32 ]
Diz a lei antiga : não jurarás falso, mas cumprirás
ao Senhor os teos juramentos. Jesus Christo porem dis
se : não jureis absolutamente, nem pelo Céo nem pela
terra ( Math . C. 5 vy 33 a 35 )
Diz a lei antiga : olho por olho , dente por dente .
Jesus Christo disse pelo contrario : não resistaes ao que
vos fiser mal . Se alguem ferir na tua face direita , offe
rece-lhe tambem a outra . ( Math . C. 5, v 38 e 39) . Eis
ahi revogada toda a legislação do Levitico e do Deutero
nomio, na parte que trata da lei de talião.
26

Diz tambem a lei antiga : amarás ao teo proximo, e


aborrecerás a teo inimigo. Jesus Christo disse : amae a
vossos inimigos, fasei bem aos que vos lem odio , e orao
pelos que vos perseguem e calumnião ! (Math . C. 5 vv
43 e 44). Jesus Christo ia sempre muito alem da lei an
tiga ; quando não a abolía ou subrogava , então tratava de
melhoral- a, ou de aperfeiçoai-a.
A lei antiga era inbexoravel com os devedores . Je
sus Christo manda perdoar -lhes, para que Deos nos per
doe tambem os nossos peccados. ( Math . C. 6 , v . 12 )
A lei antiga inanda guardar impreterivelmente os sa
bados . Jesus Christo defende seos discipulos por have
rem colhido e comido espigas no Sabado ( Math. C. 12
vv . 1 a 6 ) . Jesus Christo modificou a lei , por que elle
mesmo diz que he Senhor dos Sabados , e da sua obser
vancia , como nota o Padre Antonio Pereira no lugar cita
do .
O sangue era para o Deos de Moysés de suavissi
mo cheiro ! Saffa ! e por isso mandava que lhe offereces
sem em holocausto beserros, cordeiros , carneiros , &c .
( Num . C. 29 v . 2 ) . O Deos do Evangélho não quer sa
crificios senão misericordia, por que não lhes são agra
>

daveis as cousas segundo a lei. ( Heb . C. 10 v . 8. )


Lêde, Sr. Padre Campos, o Cap . 7 dos Numeros e
vereis o que por ahi vae de bodes sacrificados pelo pecca
do , de bois , de carneiros e cordeiros de um anno ; eu
tretanto o proprio Jesus Christo , dirigindo- se a Deos, he
quem diz : « Por que lu não quisestes as hostias e os ho
locautos pelo peccado , nem le são agradaveis as cousas
segundo a lei , aqui venho , ó Deos ! faser a tua vontade
( Heb . C. 10 v.9 ). De um jacto Jesus Christo abolio todo
.

o livro dos Numeros, por que o Deos, que elle anunciava,


não aceitava o que era exigido pelo Deos do Pentateuco .
Bem védes, Sr. Padre, que o Deos de Moysès exi
gia elle mesmo holocaustos de suavissimo cheiro , como
beserros , carneiros , bodes, &c : o Deos porem de Jesus
Christo , não só não exige como repelle as hostiase holocaus
tos segundo a lei, por que não lhe são agradaveis ! Lo
go o Deos de Moyses não hé , nem pode ser o Deos de
Jesus Christo .
A lei antiga mauda deitar fóra do campo os leprosos
7

( Lev. C. 5 v.2) . Jesus Christo acolhe -os e cura -os (Math .


C. 8 , v . 2 e 3) . Ainda faz mais : manda -os curar e alim
par ( Math . C. 10 v . 8 ) . Que tal era o Deos dos Judeos !
Eis ahi o Deos justissimo do Sr. Padre Campos !
A lei antiga era inhoxeravel com o peccado ; mas erão
os bodes que pagavão as favas ( Nam . C. 29 vv . 5 , 11 ,
16 , 19, 22 , 25, 28, 31 , 34, 38 , ) . A lei nova pelo con
trario declara , que le impossivel , que com sangue de
touros e de bodes se lirem os peccados . ( Heb . C. 10 v . 4 )
Toda a lei antiga respira sangue - para tudo a pe
na de morte. Jesus Christo pelo contrario disia ; «mise
ricordia quero e não sacrificios ; não condempeis os in
nocentes ( Math. C. 12 v . 7 )
IV

Continuemos com a nossa tarefa para provar a igno


rancia crassissima do Sr. Padre Campos .
O Deos dos Judeos mandou sagrar Arão, vestindo-o
com as suas vestidoras, isto he , da camisa estreita , da
tanica , do efod e do racional, que devia ser apertado com
1

o cingulo ; e mandou por -lhe a tiara na cabeça , e sobre a


tiara a lamina santa ; e derramar sobre sua cabeça o
oleo sagrado . ( Exodo , C. 29 , v . 5 a 7 ) . Vêde agora ,
Sr. Padre Campos , o reverso desta medalha :
Jesus Christo manda os Apostolos a pregar o Evan
gelho, e dizer que estava proximo o reino dos Céos . Man
da igualmente curar os enfermos, resuscitar os mortos,
alimpar os leprosos, expellir os demonios, e dar de graça
o que de graça receberão . Então ibes recomenda, que não
possuão ouro nem prata , nem levem dinheiro das cintas.
Ainda mais lhes diz, que não levem alforge para o
caminho, nem duas tunicas, nem calçado, nem bordão,
por que digno he o trabalhador do seo alimento ! ( Math .
C. 10. v . 7 a 10) . Lá se forão pelos ares todas as vesti
duras de Arão ! uma tonica e nada mais !
E porem he mister, que nossos leitores saibão até
que ponto chegava a riquesa dessas vestiduras . O efod
era feito de ouro, de jacintho, de purpura , de escarlata
tinta duas veses , e de linho fino retorcido : obra hora
dada de differentes cores , com folhetas de ouro, e duas
28

ourelas ligadas entre si em um e outro lado das sum


midades .
O cingulo era das mesmas cores ; e aos dous lados
do Efod estavão duas pedras cornelinas engastadas em
ouro, onde estavão gravados os nomes dos flbos d'Israel .
O racional era obra de varias cores , de ouro , de jacin
tho e de purpura como o efod ; e em cima qualro ordens
de pedras preciosas, que vém descriptas cada uma pelo
Seo nome . Havia mais duas cadeias de ouro para ligar
o efod e o racional, de maneira que estas duas peças fi
cassem Iravadas entre si , uma por diante e a outra por
detraz .
A tunica era riquissima , e ornada com obras de
>

ouro purissimo . A lamina Santa era de ouro , ajustada


á mitra , com uma fita de cûr de jacintho, como o Senhor
tinha mandado a Moysés . ( Exod . C. 39) .
A' toda essa immensa riqueza opponde a tonica in
consutil de Jesus Christo , seus divinos pés descalços , sem
um obolo nem para pagar a drachma do tributo ; oppon
de a tunica dos Apostolos tambem descalços e sem bor
dảo ; e dizei-me, Sr. Padre Campos , o que sois vós e o que
he a vossa igreja ? O que são essas vestimentas de lhama
de ouro , essas milras bordadas e cravejadas, essa tiára
pontificia cheia de pedras preciosas , senão o Sacerdocio
judaico como no tempo de Arão ?
Dizeis que o papa be o Vigario de Jesus Christo ;
mentis ! he Vigario de Anás ou deCaifás ; porque se ves
te como elles se vestião ; porque Deos não he estupido
nem absurdo . Jesus Christo perseguido, prezo, julgado ,
condemnado e morto ignominiosamente pelo Pontificado
judaico , não seria tão louco que creasse ontro pontifica
do igual : elle que combateu esse pontificado, elle o Sum
mo Sacerdote da lei nova , não continuaria o Sacerdocio da
Jei antiga , que elle acabava de abrogar substituindo-a pelo
Evangelho, e pelo apostolado, symbolo da pobreza e da
humildade .
Esse clero, que ahi ba, não he christão ; essas vesti
mentas são puramentejudaicas ; esse culto externo he todo
judaico ; essas ceremonias são judaicas ; não ha nada de
christão em tudo isto que por abi se faz á titulo de culto ; e
para maior infamia ajuntarão ás praticas judaicas o culto
pagão com a adoração das imagens. E Deos, e Jesus Chris
29

lo ? que se importa o Clero romano com JesusChristo ! não


tem elle o papa ? não tem elle os Santos , que na opinião
do Sr. Padre Campos, são os unicos medianeiros entre
Deos e os homens, os unicos intercessores para com Deos,
e aos quaes attende como a seos amigos ?
Sr. Padre Campos , se Jesus Christo tivesse voltado
ao mundo no seculo proximo passado, o Clero romano
The haveria applicado outros cinco mil e tantos açoutes ;
e como o suplicio da Cruz estava fòra da moda , o terião
queimado vivo na vossa santa inquisição . Vos outros , Sr.
Padre , não sois mais do que Judeos , e o vosso papa o
anti -Christo . Felismente tudo isto està acabando - 0
mundo marcha .
Continuemos pois com a comparação entre o Velho
e o Novo Testamento .
As leis do Deos de Moyses forão escriptas sobre a
pedra ; as leis do Deos de Jesus Christo forão escriptas
sobre os corações : « Este he pois o Testamento, que
eu farei com elles , depois daquelles dias , diz o Senhor,
itando as minhas leis, as escreverei sobre os corações delles,
e sobre os seos entendimentos » ( Heb . C. 10 , v. 16 )
Diz o Deos de Moysés : « Eu sou o Senhor teo Deos,
o Deos forte e Zeloso, que vinga a iniquidade dos paes nos
filhos até a terceira é quarta geração daquelles que
me aborrecem » . ( Exodo, C. 20, v. 5 ) . Vêde agora o
reverso nas palavras do Deos de Jesus Christo : « Nunca
jamais me lembrarei dos peccados delles nem das suas ini
quidades » ( Heb . C. 10, v . 17. ) Vêde bem , Sr. Padre;
o Deos do Pentateuco he inexhoravel, e vinga a iniqui
dade dos paes nos filbos ( que justiça ! ) ; o Deos do
Evangelho não só perdôa os peccados dos homens, como
não se lembra mais das suas iniquidades !
O Deos do Pentateuco manda exterminar os Judeos ,
que na ausencia de Movsés adorarão o beserro de ouro ; e
forão mortos em um só dia 23 mil ! O Deos de Jesus
Christo nunca mandou exterminar a pessoa alguma ; pelo
contrario mandou remir todos os peccados, e perdoar to
das as iniquidades .
Moysés faz dizer ao proprio Deos : « E aquella noi
le passarei eu pela terra do Egypto, e matarei todos os
primogenitos des dos homens até os animaes ) ( Exodo,
30 )

C. 12 v . 12 ) . E permittio queHerodes mandasse ma


tar todas as crianças até dous annos em todo o distric
to de Belém . ( Math . C. 2 v . 16 ) ; e tudo isto para que
se cumprisse uma profecia de Jeremias !
Jesus Christo pelo contrario tinha tal affeição as cri
anças , que sempre andava cercado dellas . Um dia vin
do a elle varios meninos para que lhes imposesse as
mãos , os discipulos repelirão os meninos com máo modo ;
pelo que os advertio Jesus Christo , dizendo : « deixai os
meninos, e não embaraçeis que elles venhão a mim , por
que destes taes he o reino dos Céos ( Math . C. 19 v. 14 )
.

Ainda disse mais ( S. Marcos , C. 9 v . 36 ) » Todo


o que receber um desses meninos em meu nome , a mim
me recebe ; e todo o que recebe a mim , recebe aquelle
que me enviou »
O Pentateuco está cheio de sangue humano , de sa
crificios e holocaustos ; Moysés derramando o sangue so
bre o povo , disse : eis abi o sangue do concerto , que o
Senhor celebrou comvosco ! ( Exodo, Cap . 24, v . 8 ) .
O Evangelho não conta senão uma hostia immolada , que
foi a do corpo de Jesus Christo.
E o que se torna ainda mais admiravel he que todo
O sangue do Pentateuco, vertido em torrentes, nunca foi
aceito pelo Deos de Jesus Christo , como elle mesmo dis
se ( Heb . C. 10 , v v . 5 a 12 )
O Deos do Pentateuco está sempre prompto a irar-se,
cheio de colera e de vinganças: ; não ha justiça para elle
porque he o Deos forte e zeloso. O Deos do Evangelho
pelo contrario, disse : « Tomae sobre vós o meo jugo ,
e aprendei de mim , que sou manso e humilde de coração,
Aachareis descanço para as vossas almas, porque o meo
jugo he suave e o meo peso he leve'( Math . 6. 11 vv 29
e 30 ).
0 Deos forte e zeloso ; diz o Exodo mentira ,
Sr. Padre ! Deos não pode ter inveja do homem , e mui
to menos temel- o, como diz o Genesis ( C. 3 v. 22 ). 0
atomo não pode lutar com a immensidade ; o cábos não
pode lutar com o Fiat ; as trevas não podem lutar com
a luz . Que idéa tendes de Deos ? A luta de Satanaz com
Deos pertence a mytologia : entre os Christãos è blasfemia
dizel- o .
SI

O Deos dos Christãos não se importa com que o bo


mem conheça a sua essencia ; pelo contrario esse conheci
mento perfeito será o complemento da civilisação . O ho
mem marcha para a perfeição conduzido pela mão de Deos;
para isso dá Elle a sciencia ao homem , para que pers
crote, indague , e exainine as leis, que Elle impoz a na
tureza, e se governe por ellas , como outras tantas sendas,
que o levem á perfeição , com que sabira das mãos do
Creador .
Não foi , Sr. Padre , o conhecimento do bem o do
mal , que nos lançou fóra do paraizo : deixae isto para os
Jadeos ; foi pelo contrario a ignorancia : e por isso dis
se o Cardeal Wisemann, em uma de suas obras, que o
maior inimigo da religião era a ignorancia . Eis ahi, Sr.
Padre, porque dizeis os maiores disparales do mundo com
a singelesa de uma criança ; porque sois muito ignoran
te, quasi idiota, se não fosseis perverso , como geralmen
te se diz
Estudae, Sr. Padre , se quizerdes saber alguma cousa ,
ainda que diz o adagio : cavallo velho não aprende a an
dar. Todavia , estudae, aprendei, porque não tivestes
uma educação litteraria ; mas não he alizando as calça
das dia e noute, como fazeis , que haveis de estudar nem
aprender ; do contrario não passareis nunca de um bur
ro aos couces , até que acheis quem vos corte as patas .
>

Prosigamos :
Dos livros do Pentateuco , somente do Genesis se po
de inferir alguma coosa de prophetico acerca de Jesus
Christo, isto he , no C. 28 , em que Jacob vio em sonhos
>

uma escada misteriosa ; que alguns explicão dizendo :


que esta vizão representa a escada por onde Jesus Christo
desceo para vir ao mundo, servindo- lhe de degráos os
patriarchas ; e no G. 49 v . 10 , em que diz Jacob , que
não se tirará o Sceptro de Judá , nem general que proceda
da sua coxa, menos que não venha aquelle que deve ser
enviado, donde deduzem os interpretes a vinda do Messias .
Eis ahi em todo o Pentateuco o que ha de prophetico
acerca do Salvador ; mas nada diz da sua morte e pai
xão, nem da sua resurreição, condições sem as quaes,
segundo S. Pedro ( 1 Epist. C. I v. 11 ) não estava com
pleta a profecia, a qual não se realisaria sem a resurrei
32

ção . Eis ahi o que fez Jesus Christo ( Malh . C. 20 vv.


18 e 19 ) , confirmando o que disserão Isaias e David
acerca dos seos soffrimentos, morte igrominiosa e ressur
reição ( Isaias , C. 7. v . 14 , C. 9 v . 6 , C. 50 vo . 6 e 7,
C 53 w . 4 a 12 ) ( Psalmos 2 , 8, 21 , 39 w 7 a 10 ( Heb .
C. 10 v 6 a 9 ). Heporem o Psalmo 109 a mais es
pressiva das profecias, porque a elle se refere o proprio
Jesus Christo ( Math , C. 22 v . 42 a 45) .
Bem vêdes , Sr. Padre , que o Pentateuco , encarado
como livro profetico, não he a mais completa das pro
fecias, e que acima delle estão os quatro Profetas maiores
9

e os doze menores , alem dos Psalınos . Todaria JesusChris


to falla da lei, assim como dos Profetas e dos Psalmos ,
como dando testemunho delle : e por isso figura o Pen
taleuco no catalogo dos livros profeticos. Fora dessas
profecias, o que resta do Pentateuco ? Vejamos .
O Deos dos Judeos manda fazer para si um altar ,
cobril- o de ouro purissimo, fazer uma cornija tambem de
ouro , e com argolas de ouro para se meterem nellas va
raes de páo setim. Manda igualmente buscar aromas da
melhor e da mais escolhida myrra de valor de 500 ciclos ,
cinamomo de 250 ciclos ; canna cheirosa de igual pre
ço, &c. ( Exodo , C. 30 , v 1 a 5 , 23 e 24 ). Jesus Chris
to, porem, disse, para esprimir a sua pobreza sobre a
terra : « as rapôzas tem covas, e as aves do céo ninhos ;
porem o filho do homem não tem onde reclinar a cabe
ca ( Math . C. 8 v . 20 ) ( Luc . C. 9 v . 58) .
O Deos dos Judeos disse a Adam :: tú és pó e em pó
tehasde tornar. ( Gen. C. 3 v 19 ) . Para semelhante Deos
não havia inferno dem Céo , porque não havia alma ; o ho
mem era somente pó ! Pelo contrario disse o Deos do
Evangelho : E não temaes aos que matão o corpo , e não
podem matar a alma ; temei antes porem ao que pode lan
carno inferno tanto a alma como o corpo » Maih. C. 10
v. 28 ).
A lei antiga prohibia que os Judeos se assentassem
á mesma mesa com os Publicanos e peccadores ; mas
em caza de Matheus succedeo , que estanto Jesus Chris
to á meza viessem assentar-se a ella alguns Publicanos ;
e. entãoos Farizeos se escandalizarão, pelo que lhes disse
Jesus Christo : « misericordia quero e não sacrificios ; por
quanto não vim chamar os justos mas os peccadores »
(Math . C. 9 v. 13) .
A tradição judaica obrigava os Judeos a lavar as
mãos quando comião - Jesus Christo porem disse , que
o comer com as mãos por lavar não faz immundo o ho
mein ( Math . C. 15 v 20 )
Para provar- vos , Sr. Padre Campos, que a missão de
Jesus Christo não era só remir do peccado o genero hu
mano ; mas sobre todo annunciar o Verdadeiro Deos , que
os Judeos não conhecião, como diz S. João ,substituindo o
Velho pelo Novo Testamento , basta o seguinte facto :
A lei antiga mandava apredejar as mulheres adulte
ras , Os Fariseos , para tentarem a Jesus Christo, trou
xerão uma mulher , e lhe disserão , que tinha sido apa
nhada em flagrante adulterio ; então disse Jesus Christo
« O que de vos outros está sem peccado, atire a primei
>

ra pelra » . A vista do que se retirarão os Fariseos , e


deixarão só a mulher, que se conservou em pé á visla
de Jesus .
Entretanto Jesus, que se tinha abaixado e escre .
via na terra , ergueo -se e disse para a mulber : onde es
ião os que te accusavào ? ninguem te condemnou ? Res
pondeo ella : ninguem , Senhor ! Então disse Jesus : Nem
eu tam pouco le condemnarei : vae e não peques mais
( João , C. 8 vv . 3 a 11 ) .
Ahi tendes, Sr. Padre, uma prova evidente de que
Jesus Christo derogou a lei antiga . Como homem vio
lou a lei , porque não a podia derogar, mas como Deos
derogou - a, perdoando a colpada. Eis ahi porque mui
tas vezes , quando se tratava da lei antiga , elle dizia :
misericordia quero, e não sacrificio . Se todo o Evange
lho não fosse um monumento perene, que allesta a di
vindade de Jesus Christo, bastaria esta passagem para
firmal- a de uma maneira incontestavel.
Finalmente todo o Cap. 23 de S. Matheos he a con
demnação mais formal da pratica dos Judeos em moral e
em religião. Jesus Christo os condemna pela sua hypo
crizia e iniquidade ; no Cap . 24 prediz a destruição do
templo, que se verificou no anno 70 da era christãa, com
O que devia desaparecer o ultimo vestigio da religião
5
34

judaica : « E será pregado o Evangelho por todo o mundo,


em testemunho a todas as gentes » .
Ainda mais , Sr. Padre, deveis saber , que no anno
50 da nossa éra se reunio em Jerusalém o primeiro Con
cilio ecumennico , que houve na Christandade, onde os
Apostolos fizerão o seo symboio , e abolirão todas as prali .
cas da religião judaica, desde a circumcisão até os sa
crificios cruentos , desde o tabernaculo até a consagração
dos Sacerdotes .
Comparae o Cap . 29 do Esodo , sobre a consagra
ção dos Sacerdotes , com os Actos apostolicos , e vereis
como Jesus Christo mandou por Ananias consagrar a
Paulo, impondo- lhe somente as mãos, ( Actos , C. 9 vv .
12 e 17 ) ; e os Apostolos consagrarão os sette primeiros
Diaconos , impondo tambem as mãos sobre elles ( Actos
C. 6 v . 6 ) . Jesus Christo pois abolio de um jacto todo o
Cap . 29 do Exodo.
Finalmente , Sr. Padre , Salomão fez uma Casa para
o Deos de Israel ! O Deos dos Christãos não habita em
feituras de mãos, como diz o Profeta ( A clos, G. 7 v . 48 )
a
Até aqui temos provado as duas proposições : 1 que
o Deos dos Judeos não be o Deos dos Christãos , que só
.
Jesus Christo deo a conhecer ( João , C. 1 v . 18 ) - 2 a
que a lei nova veio substituir a velha ; isto he , que o
Evangelho subrogou o Pentateuco, não só no dogma co
mo no colto, e em toda a discipli.a judaica .
Sem embargo, não nos contentamos só com essas
provas que ahi ficão patentes, queremos tambem off-re
cer ao Sr. Padre Campos o contraste mais tocante entre 1
um e outro Deos ; isto he, entre o Deos de Moyses e o
de Jesus Christo . Ainda hoje pinguem notou na bocca
de Jesus uma incoveniencia , uma expressão menos digna
do Ente Supremo , a quem nunca chama senão meo pae ,
vosso pae , ou nosso pae . 0 Deos do Evangélho era sem
pre a fonte de misericordia , de perdão , de esquecimen
to .
Vêde agora o reverso da medalha . Não he possivel
fazer - se idéa de um Deos tão ignorante, tão barbaro e
mesquinho, e até desconfiado , como em muitos lugares
do Pentateuco o pinta Moysés. Vamos pois adduzir al
guns exemplos :
35

Deos, depois de applicar um castigo a Adam por ler


dado ouvidos a voz de sua mulher, fez para ambos umas
tunicas de pelles , e disse : Eis ahi está feito Adam como
um de nós , conhecendo o bem e o mal ! '( Gen. C. 3 v .
22 ). Como um de nós, disse Deos ! Então, quantos Deo
ses havia ?
Se fosse um só Deos, diria -igual á nós-mas disse ,
>

como um de nós ; o que quer diser que havia mais de


um Deos : absurdo que se desmente no mesmo Genesis.
O conhecimento do bem e do mal he para o Deos de Moy
sés um attributo somente delle , e leme que Adam che
gue a possui-lo ; e se elle lançasse mão da arvore davida
e comesse, então seria peior, porque viviria eternamen
te ! e he por isso que o manda lansar fóra do Paraizo,
e pôr diante um Querubim com uma espada de fogo e
versatil , para guardar o caminho da arvore da vida .
0 Deos de Moyses não só teme que Adam conheça
o bem e o mal, mas ainda que comesse da arvore davida ,
que o mesmo Deos havia colocado no centro do Paraizo ,
e viesse a viver eternamente ! De sorte que o tal Deos não
tinha o poder de destruir a vil creatura, que elle formára
do pó ! por que se Adam comesse da arvore da vida
( obra tambem perecível como tudo quanto foi feito da .

terra ) viviria eternamente contra a vontade de Deos !


Se tudo isto não he uma prova de que o Genesis
foi escripto por um homem sujeito ao erro , seria o cu
malo do absurdo. Diz o Padre Antonio Pereira , que tudo
isto fôra dito ironicamente. Alem de que a ironia seria
impropria na bocca de Deos ; seria tambem ironia man
dar lançar fóra do Paraizo a Adam , e mandar guardar o
mesmo Paraizo por um Querubim com espada de fogo
para que Adam não voltasse , e comesse da arvore da vi
da contra a vontade de Deos ?
Dizei -me , Sr. Padre , he esse o Deus que Jesus
Christo annunciou ? he esse o Deos do Evangelho ? he
esse o Deos pae do genero humano ? Deveis convir , Sr.
Padre , que de todos os Deoses de todas as religiões , o
mais absurdo seria o Deos de Moysés, se tudo isto não
fosse uma fabula ridicula e miseravel. Que houve uma
grande falta primitiva, que houve um grande peccado de
36

nossos primeiros paes , não resta a menor duvida, por


que do conlrario seria inutil a remissão .
Mas qual foi essa falla, qual foi esse peccado ? Je
sus Christo não o disse ; e era elle o unico , que poderia
dizel-o , pois que foi a victima propiciatoria para obter de
Deos o seo perdão. Basta para a nossa fé acreditar, que
houve uma culpa tão grande como a expiação ; e que
Jesus Christo nos libertou della , offerecendo o seo corpo
em sacrificio . ( Heb . C. 10 v . 10 )
V

Outro facio , que depõe contra o Deos de Moyses , he


o sacrificio de Isaac (Gen C. 22 ) . Deos dáum filho a
Abrahão aos cein apnos de idade, e a Sára sua mulher
aos noventa , e promelle que desse filho seria prodigiosa
a sua descendencia . Entretanto chama a Abrahão , e lhe
diz , que tome seo filho Isaac , a quem ama , eo offereça
em holocausto . Abrahão, obedecendo , levou seo filho
vinte legoas distante, atou - o sobre o altar, e ia decepar
lhe a cabeça, quando um anjo o deteve, dizendo-lhe que
agora conhecia, que elle lemia a Deos ! vēde agora o con
traste , Sr. Padre .
O Deos de Jesus Christo vê o que se passa em se
gredo , e lê nos corações ( Math . C. 6 ) ; o Deos de Moy
sés ignorava que Abrahão o temia, e era preciso para pro
val-o a abnegação completa de todos os deveres da na
tureza , obrigando -o á matar seo filho ndico , a quem a
mava ! Ainda hoje o nome de Gessler he detestado por
haver obrigado Guilberme Tell a derribar uma maçãa co
locada sobre a cabeça de seo filho com uma flecha ! 0
que era pois o Deos do Pentateuco ? peior que Gessler !
Outros muitos factos horriveis se appresentão a ca
da passo no Pentateuco para provar o que dissemos ; e
um delles é o seguinte :
Os Israelitas, na ausencia de Moyses, linhão pedido
a Arão , que lhes desse Deoses, que os condusissem ;
Arão pedio as arrecadas de ouro de suas mulheres, der
reten - as, e . fundio um beserro de ouro , que os Israelitas
adorarão ( Exodo, C. 32 ) . Moyses manda pela tribu de
Levi assassinar a scos proprios irmãos, amigos e visi
37

nhos, e morrerào n'um dia 23 mil, ; e então disse Moy


sés aos assassinos : « Consagrastes hoje vossas mãos ao
Senhor, cada um em seo filho, e em seo irmão , para vos
ser dada a benção ) Que benção, meo Deos , e que con
sagração maldita !
Pois bem, Sr. Padre Campos , quereis saber toda a
iniquidade deste procedimento infernal? ahi a lendes no
mesmo C. 32 do Exodo, v . 35- « Ferio pois o Senhor
o povo pelo peccado do beserro que Arão tinha feito » Mas
Arão era irmão de Moyses, e Moyses foi quem excreveo
.

todas estas cousas , nas quaes não ha verdade , por que a


verdade só foi trazida por Jesus Christo, como disse S.
João ( C. 1 v . 17 )
Arão não aplaca o povo , nem lhe abre os olhos so
bre o peccado que ia cometter , e elle proprio faz o be
zerro de ouro, e o entrega ao povo ignorante ; entretan
to he o povo assassinado, e Arão não teve uma Ave Ma
ria de penitencia ! Sr. Padre Campos, adorae ao Deos do
Pentateuco, mas deixae -me adorar ao Deos de Jesus Chris
10 : o qual nunca mandou matar ninguem , nem ferir ,
nem fez correr sangue senão o seo ; emfim o Deos do
sacrificio incruento !
E sois christão ? Sois um dardo que vos atravesse !
alem de Judeo sois idolatra , sois completamente atheo !
Parece impossivel que seja tanta a ignorancia Jo Sr. Pa
dre Campos ; agni ha mais algumacousa , grande panca
da na bola !
fla factos tão irritantes no Pentateuco , tão barba
ros , atrozes e immoraes, que não se repetirião hoje em ne
nhum povo moderno ; entre elles figura a maldição de
Noé sobre seu neto Canaan . ( Gen. C. 9 v. 25 )
Noé tomou uma bebedeira e apareceu nú na sua
tenda . Cam , sen filho , vio-o assim , e veio dizel- o a seus
dous irmãos ; os quaes , andando de costas, lançarão sobre
o pae uma capa. Logo que Noé despertou , Sem e Ja >

feth lhe disserão o que se havia passado ; e foi tal a co


lera do velho, e talvez os restos da bebedeira, que em
lugar de amaldiçoar a Cam , que o vira nú , amaldiçoou
Canaan, filho de Cam , innocente , que nenhuma parte ti
vera na indiscrição de seu pae !
O Pentateuco deu causa a que alguns povos da ida
38

de media imitassem essa legislação barbara e atroz , que


condemnava os filhos pelos crimes dos paes até a 4.a gera
cão. Essa legislação está banida entre os povos civili
sados . O Deos de Moysés a decretou , o Deos de Jesus
Christo a abolio por meio da civilisação moderna, que
be obra sua.
A colera de Noé não teve limite - Canaan foi cou
demnado a ser escravo dos escravos de seus irmãos.
Dahui data o principio da escravidão, que os theologos
elevão á cathegoria de instituição divina . Infarnes !
para desmentil -os basta o que acaba de dizer Victor
Hugo na introducção da Obra- Guia de Pariz !
« Jerusalem produz a verdade . Foi abi que o martir
supremo pronunciou a suprema palavra : Liberdade,
Iguuldade, e Frater nidade. » O escandalo dessa mal
dição he tal que os commentadores para atennial -o di
zem , que Noé amaldiçoara a Canaan , porque não
. podia amaldiçoar a Cam , visto que fora abençoado
por Deos ao sair da arca l estupida defeza , que ainda
emporcalha mais ao Deos do Pentateuco.
O Deos de Moysés abençôa Abrahão), abençoa Isaac ,
abençoa Jacob , e promette -lhes uma descendencia tão
. vasta como as estrellas do Céo, e como a areia, que ha
.

nas praias do mar. Entretanto essa descendencia nunca


passou de um milhão de almas no tempo da melhor for
luna, até que amaldiçoada foi entregue aos anjos infer
naes, e atirada aos 4 ventos cardeaes.
Véile agora o contraste , Sr. Padre ; essa raça as
sim maldita , espatriada, perseguida, lem crescido como
nunca cresceu ; tem prosperado, como nunca prospe ..
rou , entre as provações inais dolorosas, entre os sacrifi
cios mais penosos, entre lagrimas e sangue ! Quem
pois a tem salvado ? he o Deos de Jesus Christo , que
disse :: « Nanca jarnais me lembrarei dos peccados (lel
les, nem das suas iniqnidades » ( lleb . C. 10 v. 17 ) .
Então, Sr. Pailre, será o mesmo o Deos de Moysés que
o Deos de Jesus Christo ? 0 Deos de Moyses creou a
inquisição na pessoa do Clero romano, o Deos dos Chris
tãos abolio -a em nome da civilisação !
Para que o contraste seja ainda mais saliente , vos
apontarei por ultimo uma passagem doDeuleronomio ( C.
39

19 v. 21 ) « Não terás misericordia com elle ; mas


far-lhe -has pagar vida por vida, olho por olho, dente por
dente , mão por mão , pé por pé. »
Vede agora o inverso no Evangelho ( S. Math. C.
5 v . 39 « Se alguem ferir na tua face direita, offerece
The lambem a outra . )
O Deos de Moysés não quer que se tenha misericor
dia , o do Evangelho diz « Misericordiu quero e não sa
crificios ( Math . C12, v. 7 ).
E ainda lereis o atrevimento de dizer, que o Pentateu
co val tanto como o Evangelho , ou que o Deos de Moy
sés he o mesmo Deos de Jesus Christo ? Conhecerão
nunca os Judeos ao verdadeiro Deos , até que Jesus Chris
10 o deu a conhecer ? Bem vedes , Sr. Padre, que até
agora só tendes feito gala da vossa crassa ignorancia, e
nada mais .
Remontemo-nos um pouco até a origem desse povo
privilegiado , e vejamos qual foi a sua inarcha por espaço
de 23 seculos alé Jesus Christo , começando em Abra
>

hão , a quem Deos chamou a um concerlo , e com quem


fez alliança , até o nascimento de Isaac .
Isaac teve dous filhos, Esaù e Jacob. Posto que ge
meos, Esaú nasceu primeiro : – foi perito caçador, e .
Jacob , varão simples, habitava em tendas . Varão sim
ples, diz o Fadre Antonio Pereira, quer dizer sincero, li
so, perfeitamenle bom . Veremos depois, se Jacob era
homem sincero e bom , ou um grandissimo tratante .
Jacob tinha feito um cosinhado de lentilhas, quando
chegou seu irmão Esaú do campo morto de fome, e lhe
pedio que lhe desse daquelle cosinhado, porque estava
muito cançado. O que deveria fazer Jacob , o homem
sincero e bom , a seu irmão ? Pois bem , a res
posta de Jacob foi : vende -me o tem direito de primo
genitura !! Ha nada mais vil , mais ignobil do que o pro
cedimento de Jacob ? llaveria hoje homem honesto ,
que praticasse semelhante infamia com seu irmão ?
A resposta de Eszú foi curta , e lão nobre , que de
veria envergonhar a qualquer estranho, quanto mais a
um irmão : Eu me sinto morrer de fome , disse Esaú ,
de que me aproveitará o direito da primogenitura ? Dis
se então jacob - Jura -m'o logo - Jurou-lb'o Esaú . E as
40

sim recebido o pão e o cosinhado, comeu e bebeu , e foi


se , dando - se -lhe pouco de ter vendido o seu direito de
primogenitura ! ( Gen.C. 25 ) .
Ainda hoje he muito vulgar a calumnia contra Esaú ,
dizendo - se que vendera o seu direito de primogenitura
por um prato de lentilhas, quando a vileza está da par
ie de seu irmão Jacob , que só a este preço lhe dera
o sustento, que Esaú morto a fome lhe pedira ! Ainda
ha outra infamia maior do mesmo Jacob contra seu ir
mão Esaú .
Isaac amava Esaú , seu filho mais velho, e Rebeca ,
sua mulher, preferia Jacob , fiho mais moço de ambos.
Um dia Isaac, já velho e cego , chamou Esaú , e lhe pedio
que fosse caçar, e lhe fizesse um guisado de que elle
inuito gostava , promettendo abençoal - o antes de mor
rer . Rebeca tendo ouvido esta conversa , disse a Jacob ,
que lhe trouxesse dous cabritos , e que ella faria o gui
sado para que elle Jacob fosse abençoado por engano
em lugar de Esaú .
Assim o fez, e por que Esaú era muito cabelludo,
e Isaac podia conhecer o engano pelas mãos , cobrio- as
Jacob com as pelles dos Cabritos; e vestindo as melhu
. res roupas de Esaù, foi levar o guisado ao Pae . Per
guntando-lhe porém Isaac: tù és meu filho Esaú ? res
pondeu Jacob : eu sou ! Pois bem , para desfarçar esta
mentira odiosa tem - se occupado muitos theologos e
Santos Padres ; os quaes preitendem que Jacob podia
mentir sem pecar! Entretanto que qualquer homem
honesto dirà, que Jacob foi duas vezes infame !
Voltando Esaú da caça , conheceu Isaac a fraude, e
disse : leu irmão veio frau.lulentamente, e recebeu a
benção destinada para ti ! Então disse Esaú : Ile a se .
gunda vez qne elle me arma engano ; pela primeira le
von -me o direito de primogenitura, e pela segunda me
robou a benção , que me fôra destinada.
Não pára nisto só a esperteza de Jacob -- ainda en
gana o scgro , quando este poz a sua disposição lodo o
gado malhado, reservando para si o gado de una sò
Côr (Gen. C. 30 ) . Além de que tinha um serralho
composto de duas mulheres e duas concubinas, escravas
de suas proprias mulheres ; das quaes teve 12 filhos
pramiscuamente.
41

Agora veremos o que forão os laes filhos , ou patriar


chas, como são chamados. Prescindamos da iraição,
que dous delles praticarão com os Siguemitas , e do
roubo dos seus gados, por que isto era commum entre
todos elles , e vamos an que entre si praticarão. Alguns
dos filhos de Jacob prettenderão assassinar a seu Irinão
José ; ao que oppondo-se Ruben , convierão em Jançal-o
centro de uma cisterna que estava secca ; porém afinal
resolverão vendel- o a uns negociantes madianitas, que
passavão para o Egypto , e receberão por elle vinte di
nheiros. Judas por tanto teve bons mestres.
Depois desta infamia , mandarão a seu pae Jacoba
tunica de José, dla qual o havião despojado , e que tiverão
a maldade de tingir com ( sangue de um cabrito ; e di
zendo que assim a havião encontrado, e visse se era a
de seu filho José. Eis ahi os patriarchas, donde sahio
o povo de Deos, que fugindo do Egypto, roubou os
Egypcios, aos quaes pediu emprestados vasos de ouro e .

de prata, e vestilos , e os levou comsigo na sua fuga.


Vejão -se pois as iniquidades, que este mesmo povo
praticou durante 40 annos no dezerto , as depredações ,
roubos, morticinios em nome de um Deos , que só res
>
.
pirava sangue , até que chegou ás margens do Jordão ,
onde assentou suas barracas aquem e além , matando
e roubando aos possuidores de todos aquelles logares,
expellindo -os ou escravisando -os, para que se realisasse
a maldição de Noé sobre Canaan e a sua descendencia .
Porque pois vos admirarieis de ver esse mesmo po
vo joguete desse Deos , que mandaya roubar e matar, co
mo por divertimento, que castigava como por distracção ;
que dividia e dispersava esse mesmo povo, a quem cha
mava seu ; eo perseguia como a bandidos ou como ani
inaes ferozes ; que não admitlia que viessem nunca á sua
presença com as mãos vazias ; e mandava que lhe offere
cessem todos os primogenitos dos homens e dos ani
maes, as primicias e os dizimos !! e ludo isto , Sr. Pa
dre . em nome de um Deos sem nome ( Exodo , C. 3
v . 14 ).
Lêde, Sr. Padre, os Evangelhos, os Actos apostoli
cos e as Cartas dos Apostolos, e vede se achaes nesses
primorosos documentos nada dessas abominações ; se
6
42

achaes um só preceito , que não seja fundado na lei na


Tural , se achaes uma proposição contraria á triplice for
ma do direito humano : liberdade, igualdade e frater
nidade!
Calculae agora toda a injustiça da vossa lingoagem
desabrida, das vossas descomposturas, dos vossos desa
tinos ; vêde como pelas vossas provocações fui obrigado
a ir muito mais longe do que queria ; vede a conse
quencia do vosso estupido procedimento, e dizei agora :
o que lucrastes com as vossas insolencias ? uma com
pleta derrota e nada mais.
Emfim , Sr. Padre Campos, he mister cortar o fio
da minha defeza , porque do contrario não sei onde iria
parar ; tanta foi a impertinencia da vossa aggressão ; e
de mais , de toda a parte me assaltão , todos querem ver
a minha resposta , que já tarda Ha uma ansiedade ge
ral , e não podemos demorar mais a satisfação deste de
sejo ; quanto mais que já temos provado de sobejo
as duas unicas proposições , que merecião resposta ;
isto he : 1.a que o Deos dos Judeos não era o mes
mo Deos dos Christãos, que só Jesus Christo deu a
conhecer : 2.a que a nova lei subrogou a velha ; ou por
outra , que o Evangelho substituio o Pentateuco , até
mesmo nas promessas, visto que Jesus Christo foi o
complemento de todas as profecias.
Ora o Achiles do Sr. Padre Campos foi agora o Deos
do Pentateuco , cuja urdidura elle traçou , como sempre ,
de má fé ; era mister desfazel- a trama por trama, até que
não lhe ficasse um fio inteiro . Agora não temos outro
remedio senão resumir-nos o mais que nos fôr possivel ,
dando porém a cada proposição do nosso antagonista uma
reposta simples e rapida, quando não cabal .
O Sr. Padre Campos nos chamou lingoa de bronze !
he levar a melaphora muito além dos seus limites . Sa
beis que a lingoa he um orgão , que serve á deglutição e
à palavra ; que sem lingoa , não pode haver som perfei
tamente articulado ; mas para produzir esse effeito he
mister que a lingoa seja molle, flexivel . Nós porém
não levaremos tão longe a hyperbole, e apenas diremos,
>

que a lingoa do Sr. Padre Campos he de uma cousa molle ,


que tanto the serve ao paladar como ao olphato.
43

O Sr. Padre Campos volta ao Purgatorio, ainda que


rapidamente, e diz que de um texto do Evangelho de s.S.
Math. ( C. 12 v. 32 ) se deduz que Jesus Christo fallou
do Purgatorio , quando disse : o que fallar do filho do
homem perdoar -se-lhe -ha; o que porém fallar do Espi
rito Santo não se lhe perdoará nem neste nem no outro
mundo ! Ora por oulro mundo entende o Sr. Padre
Campos , que he somente o Purgatorio , por que elle não
crê nem no Céo nem no inferno , nem na eternidade !
Ainda mais diz, que de outro texto de S. Marcos a
prova da existencia do Purgatorio he mais frisante; por
que , referindo -se Jesus Christo á eternidade das penas
dos condemnados ao inferno, disse que o bicho que lá os
róe nunca morre, e o fogo nunca se apaga ! De sorte
que Jesus Christo refere -se positivamente aos condemna
dos ao inferno, como diz S Marcos ; mas o Sr. Padre
Campos infere outra cousa ; e como não lhe faz conta o
inferno, que nada lhe rende, dedusio qoe a intenção de
Jesus Christo foi fallar do Purgutorio ! Quem argumen
ta assim merece resposta seria ? os anjos que lh'a dêem .
Já tardava que não viesse uma citação falsa do Sr.
Padre Campos ; elle cita S. Agostinho, na cidade de
Deos, para provar a existencia do Purgatorio, que só
vio a luz do dia em tempo de Gregorio 1.º, isto he,
dous seculos depois . Aonde, Sr. Padre , fallou S. Agos
tinho de Purgatorio, nem ao menos de fogo purificante ?
Para que mentis lão despejadamente ! Pois seriamente
acreditaes que todo o mundo he mais besta do que vós ?
Citae o lugar onde S. Agostinho disse semelhante in
venção .
Quando S. Agostinho falla da sentença de Jesus
Christo referida por S.Marcos, e diz : quanto não nos deve
aterrar esta sentença , repetida tres vezes ! não podia mu
dar o lugar das penas , por que Jesus Christo fallou dos
condemnados ao inferno. Marcos ( C. 9 v . 42 ) « E se
a tua mão te escandalisar corta -a ; melhor he entrar na
vida eternu manco, do que tendo duas mãos ir para o
>

inferno, para o fogo que nunca jamais se apaga » Onde,


em que paragem fallou S. Agostinho do Purgatorio ?
Oh ! sois mais impudente que Nafoma !
S. Gregorio foi citado por mim na minha segunda res .
44

posta ; e então referi circumsta :: ciadamente ludo quan


io elle disse a respeito do Purgatorio, por que foi elle
quem introduzio entre os Cristãos essa pratica ou essa
crença pagā , que vós mesmo vos encarregastes do pro
var , citando o Santo paire Virgilio em vosso apoio .
Quem se quizer desenganar , leia de novo o que escre
vemos a este respeito na já citada resposta .
Prescindamos da nova descompostura , que nos passa
o Sr. Padre Campos por causa do Purgatorio , por que
todo este artigo , que elle intitula resposta, não he mais
do que uma solemne descompostura , além de algumas
banalidades , que não tem senso commum . O que admira
e pasma he acreditar o Sr. Padre Campos que todo o
mundo he mais besta do que elle -e que lhe havemos de
fazer ?
Diz o Sr. Padre Campos, que tenho o arrojo de di
zer no meo usqueroso livro ( muito obrigado, ) que a
igreja catholica he que tem falsificado as Escripturas!
Então exclama : oh, justo Deos , que catholico sincero
( he elle ) póde ouvir, sem horrorisar-se , esta blasfemia !
Perdôe , Sr. Padre Campos , não fui eu que o disse , não
Senhor; apenas repelí o que diz todo aquelle que co
nhece um pouco a historia ecclesiastica , aquelle que tem
9

a menor noção das Escripturas ; tanto que para proval-o


bastará cilar-vos a Prefação geral do Padre Antonio Pe
reira ( 3 a parte ) .
Mas quero confundir - vos de uma vez , quero apertar
vos o pescoço para fazer - vos sair um palmo de lingua de
fóra , posto que me cause nojo semelhante lingua ! para
o que vos citarei o mesmo Padre Antonio Pereira ( Tent .
theol . pags . 131 a 136) sobre falsificações da igreja, não
só nos Evangelhos, coino nos Missaes, Rituaes ee Brevia
rios, e nos Concilios, dizendo que « he maxima notoria na
Côrte de oma suprimir todos os monumentos antigos e
modernos, que possão encommodar de algum modo as
suas novas preitenções » . Seguem-se depois as supressões
feitas no Concilio de Trento , no Riļual romano, &c. (Tent.
p . 136 ).
Pois bem , Sr. Padre , hei de levar - vos à parede ou
hei de emparedar- vos : vēde e que a este respeito diz o
Sr. Alexandre Herculano ( Est . sobre o Cas . civil, pags.,
45

74 a 76 , e 94 ) . Depois de provar uma falsificação feila


pela Curia romana no texto do Concilio de Trento sobre a
questão do matrimonio , exclama : Castello de S. Angelo ,
castello de S. Angelo, o que dirias tu se fallasses ! Em
uma nota diz : sobre estas falsificações , em que são uzei
ros e vezeiros os curiaes, veja- se Richer. Hist. Concil . Gen.
L. 4, P. 2 , pag. 132 .
VI

E para não ficar a menor duvida ao Sr. Padre Cam


pos, para confundil-o de uma vez , aqui copiamos um tre
cho do mesmo Sr. A. Herculano ( Estudos , &c . p . 94 )
« Os máos catholicos são os que seguem as doutri
nas de Fr. Bartholomeo dos Martires e de Bergier, dos
precursores daquella alcateia de hereges, que constituião
a maioria da comissão revizora do codigo civil . Os bons
catholicos são os que renovào no meio do seculo 19 as
opiniões absurdas dos escholasticos da idade media , e >

dos miseraveis, que no seculo 16 falsificavão Concilios,


Riludes, Missaes , tudo . Estes he que vão direitos ao Céo ,
onde os espera o seo patrono, o seo Christo, S. Gregorio
7 D
Vêde pois como o Sr. Alexandre Herculano, carac
ter tão nobre que o não podeis comprehender, esmaga a
vossa igreja com o tacão das suas botas . Sois tão impu
dente, Sr. Padre, que estaria de mais provar - vos toda a
hediondez e má fé da tal igreja ! para que servirião mais
provas ?
Sem embargo , ainda um exemplo para acabar de
confundir opatrono das falsificações com as proprias Es
cripturas. Diz o Sr. Padre Campos, « Então a igreja
catholica he falsificadora ? E como conciliaes esta propo
sição temeraria e insensala com aquelle texto do Evange
lho , em que Jesus Christo diz , que aquelle que não oul
vir a igreja ( e o Sr. Padre Campos acrescenta por sua
conta : e que não obelecer as suas decisões ; sempre fal
cificando ! ), será tido na conta de pagão e de gentio ? E
como desacataes a sua igreja, taxando-a de falsificadora
da biblia sagrada ? »
Em primeiro lugar : o que entende o Sr. Padre Cam
pos por igreja ? Diz elle que heo papa, o que he huma men
46

tira ; e muito menos a Curia romana ; e se nem um nem


outro he igreja , eu não desacato a igreja quando digo ,
que a Curia romana he a falsificadora ! Igreja, Sr. Pa
dre, dil -o o vosso cathecismo, he a reunião dos fieis .
Onde existe uma pessoa, que acredita na divindade de Je
siis Christo , ahi ha igreja ! e Igreja, tanto nos Evange
lhos, como nos Actos apostolicos , não he outra cousa se
não a comunhão dos fiéis, isto he , dos que crêm ..
Mas vós dizeis que a igreja he o papa, por que o pa
pa he o successor de S. Pedro, sobre o qual fundou Je
sus Christo a sua igreja ! ( Tu és Petrus, et super lianc pe
tram edificabo eclesiam meam ! ) ; logo igreja , dizeis
>

vós , he Pedro , e Pedro he o papa ! Tudo isto he falso,


Sr. Padre, por que Jesus Christo não fundou a sua igreja
sobre a pessoa de Pedro, mas sobre a confissão da sua
divindade, que elle acabava de fazer (Math. C. 16. v .
16 ) ; e isto mesmo dizem todos os Santos padres, co
meçando por Santo Agostinho, S. Jeronimo e S. João
Chrisostomo , como afirma o Padre Antonio Pereira no
Appendice da sua Tentativa,
Suponhamos, porem, que a igreja he Pedro, e Pedro
o papa seo successor, ou a Curia romana ; vamos ver a
applicação, que tem o que citastes do Evangelho de S.
Matheus ( C. 18 vv. 15 a 17 ) acerca da igreja. Com
quem fallava Jesus Christo quando disse : se teo irmão
peccar contra ti ? fallava com S. Pedro ! Ora , se fallava
com S. Pedro, e disse que, se seo irmão peccasse contra
elle, e não o ouvisse, o dicesse a igreja ; está claro que
a igreja era cousa distincta de Pedro ; por que se fosse
a inesma , equivaleria a dizer : se teo irmão peccar
contra ti , e não te ouvir, dil-o a timesmo lo que he
absurdo, e Deos não diz absurdos.
Logo, quando Jesus Christo fallava a Pedro , e man
dava que se seo irmão peccasse contra elle , e não o ou
visse, o dicesse a igreja, referia -se á reunião dos fieis !
E tanto he isto verdade, que para S. Pedro poder com
parecer diante dos fieis, e justificar a sua queixa , manda
Jesus Christo , que o dicesse antes á duas ou tres pessoas
para que servissem de testemunhas, e ficasse tudo con
firmado ( Math . C 18 v . 16 )
Entretanto o Sr. Padre Campos gritará contra o es
47

candalo da minha interpretação cerebrina ! Quem vos


disse, repetirá elle , que Jesus Christo fallava a S. Pedro
>

quando dizia ; se teo irmão peccar contra ti , &c ? Ab !


Senhor Padre, nem todas as falsificações da vossa igreja
podem ficar occultas ; e a falsificação do v . 15 do Cap .
18 de S. Math . he uma das mais escandalosas como va
mos a ver .
Em todos os Missaes e Breviarios antigos , no officio
divino da Terça feira depois da 3a Dominga da Quares
ma , acha - se o citado v . 15 do C. 18 de S. Matheus da ma
neira seguinte : « In illo tempore, respiciens Jesus in
discipulos suos, dixit Simoni Petro : si peccaverit in te
frater tuus , vade et corripe eum inter te , & c ) .
O que fez porem a vossa igreja ? mutilou o versiculo
de modo a suprimir o nome de S. Pedro , afim de poder
então identificar com elle a palavra igreja ! ! 0 proprio
Padre Antonio Pereira não se atreveo a dizer isto como
nota ao v . 15 do Cap . 18 , e quazi a furto disse-o em ap
pendice no fim do Evangelho de S. Matheus !
Dizei , Sr. Padre , que credito merece a curia romana ,
que conceito quereis que eu faça da vossa igreja , que
comette semelhantes falsificações ? Chamo -a vossa igre
ja , por que a minha he a de Jesus Christo ; isto he, a co
munhão dos fieis, ou dos que creem na sua divindade ;
e da qual estaes tão separado , quanto dista o Céo do in
ferno . Mas, e por que nos havemos de admirar destas e
de outras falsificações entre gente u :eira e vezeira, como
diz o Sr. A. Herculano ?
Agora mesmo acaba Roma de reviver o velho habito
de tudo falsificar ! O bispo de Viseo Alves Martins não
quiz assignar o prottesto dos bispos sobre o poder tempo
ral do papa, por que não era materia dogmatica; mas no
prottesto impresso apareceo o seo nome - quem assignou
por elle ? Pois bem , o corajoso bispo , apezar das ex
hortações e das admoestações, e mesmo do furor do pa
pa , declarou que aquella assignatura não era sua ! Que
tal a vossa igreja, Sr. Padre ?
Já julgastes mal uma vez ao Sr. A. Herculano ,
quando dissestes, que esperaveis que a idea do casamen
io civil estivesse morta em Portugal apezar do seo pa
trocinio ! Pois bem , Sr. Padre Campos, enganastes -Vos
48

completamente : a idéa não morreo , e o Sr. A. Hercu


lano triur.fou completamente - lá está encarnada no Co
digo civil, já sancionado , a idea que tanto vos afligio ! Es
tupida hypocrizia! O Sr. A. Herculano importa -se tanto ,
como eu , do vosso criterio como do vosso juizo .
O mais galante de tudo isto he que o Sr. Padre Cam
pos diz que eu trunquei as Escripturas, invertendo - as
contra o Dec. do Conc. de Trento, pelo que elle me con
siderava incurso nas penas fulminadas no mesmo Conci
lio ; e declara que estou excomungado! Deos de miseri
cordia ! excomunhão do Padre Campos ! quem se atre
veria absolver -me ? Elle só espera pelo novo bispo para
que me declare vilando ! por que a autoridade dos Pre
lados domesticos só alcança a excomunhão simples ! 0
Sr Padre Campos será assim tão mentecapto , ou estaria
bebado ? Diz todo este povo que elle tem todos os vicios ;
mas nunca ouvimos fallar de bebedeira ! Mas emfim , da
qui nào ha fugir ( isto he frase delle )-ou louco ou be
• bado - escolha.
Excomunga -me tambem o Sr. Padre Campos, por que
diz elle , desacatei o Concilio de Trento ! he cousa nova
para mim ! só se foi por que disse, que do tal Concilio não
era lei do paiz senão o Cap. 1 da Sessão 24, e isto em
.

virtude da lei de 3 de Novembro de 1827 - Ora , se por


isso mereço ser excomungado, o que merecerão aqulles
que disserão , que o Conc. de Trento nunca passou de
uma verdadeira orgía, de uma bachanal, ou como diz o
Sr. A. llerculano ( Est. sobre o Cas. civil , p . 60 ) de um
pugilalo aggressivo, e de una veriladeira anarchia ? Em
outro lugar diz mais o seguinte :
« A anarchiu , que reinava nas opiniões acerca da
questão do matrimonio, sobre ludo quanto a disciplina
que se devia adoptar, obrigou a substituir muitas vezes
redação á redação, sem nunca chegar á conclusões de
linitivas. O Espirito Santo parece que se esquecia um
pouco dos padres de Trento. Havia razão para isso .
Fallava -se alli , ás vezes , de um modo altamente impro
prio do lugar e do assumpto. »
Em outro lugar dos mesmos Estudos, diz o Sr. A.
TIerculano o seguinte : « Da narrativa de Palavicino ,
interessado em occultar os escanıtalos, que se passavào em
49

Trento , pode inferir-se quaes fürão os que se derão na


quelle debate , em que por fim entrarão os proprios Pre
lados, esquecidos do papel de Juizes, que alli tinhão
vindo representar . )
O que mais ha de admirar porém he a emphase, com
que o Sr. Padre Campos me considera excommungado! e
logo que chegue o novo bispo, tambem vitando ! Mas,
Sr. Padre, não reparastes no abismo profundo, que abris
tes entre nós ? Ora, pois , se vós me excommungaes
por vossa propria conta , não me restaria o direito de
condemnar -vos tambem ás penas eternas do inferno ?
Pois bem , ouvi agora o que diz toda essa Cidade :
isto he , que a vossa alma ha muito está no inferno , que
a alma , que actualmente acompanha o vosso corpo , he
a do defunto Cabelleira , que anda fazendo penitencia ;
e para prova de que esta crença do povo he real e ver
dadeira , dizem que se vôs passasseis á meia noite pelo
largo das Cinco Pontas , essa alma vos fallaria no mesmo
lugar onde esteve a antiga forca , e confirmaria tudo
quanto diz o povo . Fazei pois a experiencia , se tendes
valor para lanto .
Agora perguntarei ao Sr. Padre Campos : como e
porque me excomungaria o novo bispo ? Em primeiro
lugar era mister, que houvesse no Brazil censura eccle
siuslica a respeito da imprensa , o que não ha , por ser
contraria ao § 4 do art. 179 da Constituição : em 2.9
lugar, a excomunhão he uma pena, que só pode recahir
sobre um crime , que não commeiti ; por que não são cri
minosos os que fazem analises rasoaveis dos principios
e usos religiosos ; isto he, dos dogmas e da disciplina da
igreja ( Cod. crim . art. 9 & 2 ) . Pois sinceramente cre
des, que o bispo he mais tolo do que vós ? Pois bem,
se elle fosse tão estupido que me excomungasse, mandaria
á tabua o bispo e a vós , Sr. Padre .
O Sr. Padre Campos falla muitas vezes da religião
do Estado ; não he só por ignorancia, como por malda
de ; elle cré chamar assim o odioso sobre mim- Pois
bem , o que he a religião do Estado ? Sois tão nescio
que ignoraes, que o art . 5.º da Constituição he apenas
uma these, desenvolvida depois nas leis regulamenta
res ; e que estas leis só consagrão dous dogmas, que
7
50

obrigão aos brazileiros, e são : a existencia de Deos , e


a immortalidade d'alma ? Tudo o mais quanto a vossa
igreja admitte está sujeito á discussão da conformidade
do art. 9 § 2 do nosso codigo criminal .
Ora , vós não só sois atheo como materialista ; por
que além de negardes a divindade de Jesus Christo , só
admittis como objecto de adoração um pedaço de pào ,
de pedra, ou de bronze ; como os touros que Salomão
mandou colocar no mar de bronze ; e que vos invocaes
para provar o cullo de Maria Santissimo, porque no vos
80 desgraçado bestunto tanto vale a imagem da Mãe de
Deos como a estatua de um louro ! Isso não he so igno
rancia , he parto de estupenda loucura ; e se não estaes
doudo, estaes possesso, que ainda he peiur .
He verdade que até certo ponto tendes desculpa ,
pois para um sertanejo o touro he mais que Deos, por
que representa a riqueza do paiz . e vòs na vossa infan
cia nunca tivestes outro Deos senão o touro . Assim
he que para vós tanto vale uma estatua de touro como
a imagem de Jesus Christo ou de sua Mãe Santissima !
Sr. Padre Campos , pode -se ser mais honesto, e mesmo
mais sabio do que vós, porém não mais sacrilego e blas
femo ! isso não .
0 Sr. Padre Campos he de uma ingenuidade infan
til . Elle ja levou a um irmão do novo bispo a sua rap
sodia , ou libello famoso contra mim , dizendo : man
de este papel lá para Roma para que saiba o bispo
com quem deve contar em Pernambuco - mas derão-lhe
outro destino ; ja servio de guardanapo .
Ninguem faz tanto garbo de ser ignorante como o Sr.
Padre Campos ; elle não só diz mil disparates , como fal- o
com um desplante , que mette medo . He ou não he, diz
elle , o Concilio de Trento a Constituição fundamental da
igreja catholica ? He, responde elle mesmo ; logo he pre
ciso que se fação effectivas as suas penas contra os in
fractores de suas leis .
Em primeiro lugar , se o Concilio de Trento he a
constituição fundamental da igreja catholica , então a
igreja viveu 16 seculos sem fundamento nem lei cons
tilutiva ; ou por outra , a igreja só teve autoridade e dis
ciplina do seculo 16 por diante , o que he o maior absur
51

do, e o disparate mais estupendo, que poderia dizer um


theolego do sertão . E se se soubesse , que o Concilio de
Trento nunca foi encorporado aos Canones da igreja ; is
to he, que não faz parte do direito publico ecclesias
tico, 09 não pertence ao Corpo do direito canonico,
que rege a igreja universal, ainda mais sorprehenderia
a audacia do theologo de Baixa -Verde.
Haviamos dito que o Concilio de Trento não era
lei do paiz ; o Sr. Padre Campos contesta isto , repetindo
pela decima vez os mesmos disparates , outras tantas ve
zes refutados por nós . Ahi vem os mesmos Decretos de
D. Henrique e D. Sebastião em minoridade , revogados
pelo mesmo D. Sebastião em maioridade ; e mais duas
citações falsas, como a lei de 16 de Junho de 1668 , que
prova justamente o contrario do que prettende o Sr. Pa
dre Campos, e a de 3 de Novembro de 1766, que não
existe em nenhuma das collecções das Estravagantes, nem
nos seos dous appendices. Quem o fez agora cahir nes
ta segunda corriola ? talvez um destes que se divertem
á custa da sua presumpçosa toleima. ( 1 )
Tanto não estava em pratica o Concilio de Trento
em Portugal , nem regulava como lei , que ainda 82 an
nos depois da supposta acceitação d'el Rei D. Sebastião , >

estavão em uso os casamentos clandestinos ; e foi D.


João 4. ", pela Carta de lei de 13 de Novembro de 1651 ,
quem mandou executar o Cap. 1 da Sessão 24 do referi
do Concilio , que até então nunca fora executado . E po
rém , o que sabe dessas cousas o Sr. Padre Campos ?
Elle só entende da gema boliviana, e de outras delica
desas desta especie .
Emfim o que havemos de dizer mais sobre o Con
cilio de Trento como lei do Brazil ? Este ponto foi tra
tado por tal maneira na nossa segunda resposta, e sobre
( 1 ) No Concilio de Trento só comparecerão 287 prelados ita
lianos, 32 hespanhões, 26 francezes, é 2 allemães , por todos 60
de fóra da Italia . ( Greio támbem que 5 portuguezes ; isto be,
nem sempre, mas com interrupções ). Vendo-se sós os Italia
nos, condemnarão o voto por nação, como era costume, e estabe
lecerão o volo individual Assiin he que o Concilio de Trento
foi apenas um synodo italiano e nada mais , e por issu se nega
rão grasi todos os paizes catholicos a recebel-o como Concilio ecu
menico . (Llorente , Deff.da Consi, civil do Clero ).
52

tudo nos artigos sobre a ausencia dos bispos, que para


elles remeltemos os leitores . Nestas questões de direito
patrio ecclesiastico não envolvemos o Sr. Padre Campos ;
porque, se muita gente illustrada as ignora, qnanto mais
o Sr. Padre Campos que é quasi idiota .
Já sabe o leitor, que a questão sobre o Concilio de
Trento foi sempre acompanhada com a competente des
compostura : hierege, sandeo, perverso, devasso, e outros
arrebiques de estilo , que só elle sabe usar, por que tem
á sua disposição muitas lingoas de que se serve ao mes
mo tempo contra mim , que só posso dispôr de uma . De
tudo isto porem só me senti de duas cousas : hereje e san
deo.-- então peguei na penna e escrevi o seguinte paragra
pho, de que estou arrependido, e peço delle perdão a Deos
e ao Sr. Padre Campos ; eil-o :
« Um Padre que diz, que os que vão para o Céo ou
para o Inferno de lá não sahem mais-um padre que não
acredita na ressurreição da carne nem no Juizo final
• um padre que diz, que os Santos são os unicos medianei
ros entre Deos e os homens - um padre que antepõe o
.

sangue dos martires ao sangue de Jesus Christo ;-um


padre que não sabe o nome dos Apostolos , e que tem a
soberana tolice de citar o Apostolo S. Jacques — um padre
tão ignorante que nem a sua propria lingoa sabe-uma
especie de Fr. Gerundio de Campaças, tão ridiculo como
nauseabundo ; não me pode chamar herege nem sandeo
- isso não, estupida alimaria-vade retro, Satanaz ! )
Se o Sr. Padre Campos soubesse como estou arrepen
dido disso que ahi fica dito, perdoar-me-hia bona volun
late ! Mas elle he rancorozo , e assim nada ha que esperar
delle ; e senão veja -se a estupenda acusação que elle me
faz : 0 Sr. Padre Campos notou uma cacofonia nas minhas
palavras unica fé ! o que lhe causou tanto horror que
bradou --café ! vade retro !
Elle assentou que cafè era uma palavra tão feia , tão
mal soante , tão indecente, tão obscena ( que isto he o
que quer dizer cucofonia ) que me mandou para tras co
mo a Satanaz ! Mas este achado he mesmo de mestre de
rethorica, se o Sr. Padre Campos podesse ser mestre de
alguma cousa senão de escandalos, como aquelle do Dia
rio de Pernambuco de 3 de Julho do anno proximo pas
sado .
53

Na lingoagem commum e vulgar, e mesmo entre os


escriptores de primeira nota, ha tantas dessas combina
ções , que ninguem , a não ser um estudante de prepara
torios, repara nellas; como por exemplo :
Larga mão ( gamão ). Creio que o disse o Sr. A. Her
culano, e eu não teria duvida de o reproduzir.
Sob pena ila Cabeç! ( penada) Pena de morte.
Cabeça da Cunha ( cabeçada )
Tanto por cabeça ( porcii )
Por cada legoa ( porcada )
Vēde todas estas frases e outras muitas na legisla
ção e nos diccionarios portuguezes. E porem que sabio
não he o Sr. Padre Campos, dirá algum dos seos admi
radores ! Deos os faz , e o diabo os ajunta !
O Sr. Padre Campos , escrevendo, tem uma grande
vantagem sobre mim : eu só escrevo a lingoa portugueza
simples e pura como ella he,, ao passo que o Sr. Padre
Campos não só falla como escreve uma porção de lingoas ,
que elle possue ( par droit de conquête, et par droit de
naissance ) como a lingoa nago, cassange, cabinda , a lin.
goa geral do Congo , e até a de Tombuctů na Nigricia . Elle
confunde todas essas lingoas , e atira -as sobre mim como
perdigotos, em quanto eu só tenho para oppor -lhe a po
bre lingoa de Camões. Eis ahi por que o Sr. Padre Cam
pos me responde com tanta arrogancia, confiado na su
perioridade das suas armas–e que lhe hei de eu fazer ?
He por isso que o Sr. Padre Campos diz que o meo
livro , que elle chama monstro, está cheio de necedades ,
incoherencias e disparates ; o que todavia não o im
pede de prottestar , perante Deos e o mundo , que ha de
responder ; mas somente sobre dous pontos, ( que não
tem a menor importancia , nem offerecem o menor inte
resse ) a saber : 1 º que os livros deutero - canonicos fo
rão sempre considerados por todos os Santos padres co
mo inspirados : 2 ° que a igreja de Roma fóra fundada
por S. Pedro , bebendo as provas nos monumentos da
inais alta antiguidade! como por exemplo nas Cartas apo
crifas de S. Clemente, forjadas pelo impostor Isidoro
Mercator ! de que a propria Curia romana não se atreve
ria a fazer uso .
Pois bem , Sr. Padre , venha mais essa estupida ra
54

psodia, que será outra victoria , não contra vós , que ape
nas sois ahi um verdadeiro páo de cabeleira , mas contra
o burel, que a está confeccionando ha muito tempo . Di
zei - lhe , porem , que tenha cuidado com os Actos apostoli
cos, e não se vá espetar nelles ; assim como que veja
como salva a chronologia, por que os actos da vida de S.
Pedro são favas contadas, e hei de provar -vos que S. Pe
dro só foi a Roma ( se he que foi ) depois de S. Paulo ,
que foi o unico fundador dessa igreja , ou mentem os AC
tos apostolicos.
VII

O Sr. Padre Campos aceita a surra , que levou sobre


a inquisição, e desiste de qualquer resposta, por que elle
não defendeo nem justificou os horrores do Santo Offi
cio ; e só tratou de provar, que a igreja não fora cumplice
nas atrocidades de Torquemada ! Se o Santo Officio he
obra da igreja , se só ella interveio ; se Torquemada, e
o infame l'edro de Arbues , que a vossa igreja acaba de ca
nonisar, erão seos instrumentos nessa obra Satanica ;
como a igreja não era cumplice ? ah ! tendes rasão , Sr.
Padre Campos, a igreja não era cumplice por uma rasão
muito simples, e he por que era autora !
Vós levastes muito alem o vosso programa sobre a
inquisição , por que prettendestes provar que a inquisição
religiosa , como a creára a igreja, fóra um progresso para
o espirito humano : fôra u verdaileira liberdade de consci
encia ; e sobre tudo que nunca fisera derramar uma só
gota de sangue ! eis abi o que prettendestes provar . Mas
como provarieis as trevas ao pino do meio dia ? Assim
he que a vossa erudição, ou a de Lacordaire, naufragoi
completamente diante da historia, ficando - vos gravado
na frente o stigma do embuste e da mentira .
O Sr. Padre Campos me aciisa de trazer impruden
temente para a discussão o Ephraim do Sr. Dr. Ignacio
de Barros, somente para lançar a sizania entre elle e este
Sr. -diz mais que eu assim praticara para fasel - o esque .
cer as defamações e doestos, que noutros tempos dirigi
á familia Barros Barretto ! 1 Será crivel ? Ainda mais diz,
que fora elle Padre Campos quem rebatera as minhas in
justas aggressões contra aquella familia !
55

Pode - se ser impudente, mentiroso, falsario , e mes


mo ler a cara estanhada a ponto de não sentir a minima
emoção de pejo ou de vergonha ; mas para ser tudo isto
he mister pedir licença ao Sr. Padre Campos . Mentir com
tanto descaro só o mais humilde dos sevandijas , como
elle , segundo diz toda esta provincia.
Com que, Sr. Padre Campos, fui eu que trouce á
discussão o Ephraim , ou fostes vós na vossa resposta so
bre as biblias falsificadas ? Para que me dirigistes os in
sultos , que atiraveis ao Sr. Ignacio de Barros ? Que ti
nheis vós, em uma questão comigo , de traser o Ephraim
à scena ? Fiz eu acaso outra cousa senão repellir o insul
to, que sob o meo sobrescripto dirigistes ao Sr. Ignacio
de Barros ? Por que o fizestes tão grosseira e estupida
mente em uma polemica comigo ? A que vinha semelhan
te provocação, se não soubesseis as minhas relações com
o Sr. Ignacio de Barros, e com toda a sua familia ?
Quando , Sr. Padre , em que tempo , em que epoca lan
sei as deffamações e doestos, que dizeis, contra a familia .
dos Barros Barrettos ? Disei -o miseravel em busteiro, a
não serdes mais negro que os vossos sapatos; dizei igual
mente quando deffendestes a familia Barros Barretto , não
digo das minhas aggressões ( estupida mentira ! ) mas de
outros ou de alguem ? Se ha familia , que tenha estado
até agora fóra das lutas porcas de partido, he justamente
essa ; por tanto nunca necessitou da vossa penna, que
só estava aparada para atirar á cara do homem mais
inoffensivo do mundo ( o Dr. Ignacio de Barros ) uma
serie de insultos tão grosseiros como a vossa educação ,
tão negros como a vossa consciencia , lão estupidos como
o vosso bestunto !
Diz igualmente o Sr. Padre Campos, que está firme
mente disposto a acompanhar -me até as portas do in
ferno , além das quaes não irá ! apesar de saber que es
tou acostumarlo a enforcar os outros ( não havia de ser a
mim , de certo ) nuas tripas da gente ! mas que me não
teme, nem aos meos protectores, por que eu o não hei de
enforcar !
Se essa tirada não fosse tão estupida como ignobil ,
mereceria resposta mais seria ; mas que l'esposta se pode
dar a um possesso , se não tenho o poder de exorcizal- o ?
56

Elle promélte acompanhar -me até as portas do inferno ;


pois bem , não farei tanto por que elle já lá está dentro e
bem dentro em alma ; mas em corpo o cazo he outro .
Eu disse uma vez ao Conego Januario , que me teria
nas ancas de botas e esporas até o dia do requiem in æter
num de um dos dous . Pois bem , o Conego Januario
já la se foi; agora mutatis mutandis o negocio he com
o Sr. Padre Campos - não faço mais que mudar de caval
gadura. Quanto a mim declaro, Sr. Padre , que estou
montado ; e não serão os couces e os pinotes , que me fa
rão perder a sella .
Este scelerado com as suas repetidas aineaças tem
me feito violar todas as regras de urbanidade, e sair fó
Ta do serio , mas que hei de faser, se o homem está pos
sesso ? Deos lhe perdôe , e lhe volte o juizo, que lhe ti
rou , se he que o teve alguma vez .
Dizeis , Sr. Padre, que costumo enforcar os outros
( lonje vá o seo agouro ) com as tripas da gente . O dito
não he meo ; repetti ha muitos annos uma parodia de
Voltaire. Não tenho o poder de enforcar a ninguem ; e
quando o tivesse , declaro-vos , Sr. Padre, que o renunci
aria , por que dettesto a pena de morte ; isto he bom para
os assassinos de profissão !
Declaro-vos igualmente, que o dito de Voltaire não
tem para vós a menor applicação ; por que, se chegasse
este caso , não seria tão estupido, que vos enforcasse com
una tripa; antes seria com uma bôa corda de canhamo
de uma polegada de diametro . Sr. Padre, tendes grandes
peccados, que devem pesar mais que um touro do Piauhy.
Vou entrar na phaze mais difficil desta resposta,
porque ainda estou muito magoado com a injustiça do Sr.
Padre Campos, chamando para a arena da discussão mi
nha pobre mãe, e ameaçando-me com uma lição eterna de
amor filial , isto he, com um assassinato !
Em primeiro lugar sabe toda esta cidade, ou sabem
perfeitamente todos os lugares onde tenho vivido , o res
peito profundo que eu consagro ás mulheres em geral ,
de qualquer cendição que sejào. De telhas abaixo ellas
são o objecto da minha adoração ; nem creio neste mundo.
senão em duas cousas : nos Santos Evangelhos e nas mu
Theres, por que são as duas unicas entidades, que nun
57

ca me enganarão, nem me offenderão . Esta crença gerou


na minha alma um sentimento tal de respeito e de conside
ração para com o sexo feminino, que não ousaria viola
lo de maneira alguma.
Eis a razão porque não me lembro de ter dito nun
ca diante de uma mulher uma expressão , que a fisesse
corar diante de mim ; nunca cominetti escandalo na so
ciedade - apello para todas essas familias, com quem , ha
muitos annos, tenho mantido intimas relações de amiza
de ; ellas que digão se falto a verdade neste protesto .
O que acabo de dizer servirá para provar, que não
tinha o menor motivo de faltar á esses respeitos para com
á exm.a mãe ( perdóe a cacofonia ! ) do Sr. Padre Cam
pos, quando citei uma passagem de S. Paulo ( Gal. G.
4 ) para provar-lhe, que o velho testamento era compara
do á Agar escrava , e o novo á Sara livre ; e isto por
que o Sr. Padre Campos quiz por força assemelhar o
Apocalipse com os livros deutero - canonicos do velho tes
tamento. E porém, como quem anda aos porcos em .
toda a parte lhe roncão , o Sr. Padre Campos chamou
para si uma citação , que estava bem longe de uma cara
puça . E porque ?
Se o Sr. Padre Campos entende que S. Paulo, es
crevendo ha 1800 annos aos Galatas, cogitou de sua exm.a
mãe, quando disse que o velho testamento representa
va os filhos de Agar escrava , e o novo os filhos de Sara
9

livre ; então, Sr. Padre , para serdes consequente, deveis


tambem acreditar , que S. Paulo cogitara igualmente de
vós, quando na mesma Carta aos Galatas disse o que se
lê no Cap. 5, v . 19 a 21! Se adimittis uma hypothe
se , deveis tambem admittir a outra , porque ambas tem
o mesmo fundamento - e porque me ameaçastes ?
Depois de apropriar -se de uma carapuça , que não
foi talhada para elle, disse o Sr. Padre Campos, que
contesla a minha procedencia, no tocante a ser filho de
Sára , e então falla de Isaac, de coitos damnados, e diz
que abominando eu o Deos de Abrahão , não posso per
tencer á sua linhagem, e me manda procurar a minha
procedencia do tronco de Agar !
Parece incrivel a ignorancia do Sr. Padre Campos em
materia das Escripturas! porque ao passo que me priva da
8
58

linhagem de Abrahão , me manda para a de Agar, cujo


filho Ismael era igualmente filho de Abrahão ; assim he
que, quer filho de Sara livre, quer filho deAgar escrava ,
todos perlencem á linhagem de Abrahão ! Mas assim
não o entende o Sr. Padre Campos, que he theologo
consumado em materia de bestiologia; e he por isso que
elle me atira para Agar escrava ! /

Muito bem, Sr. Padre Campos ; mas ahiha unsembar


gos a oppör á minha procedencia de Agar escrava, e vou
reduzil-os á poucas palavras: Fomos quatro irmãos cadeles,
dous em tempo do reivelho (quandoerão senhores cadetes),
e dous primeiros cadetes depois da lei de1820, que alte
rou o Alvará de 1757- Ora , não sendo nosso pae major
de linha e dahi para cima , está claro que para serem
cadetes era mister que tivessem quatro avós nobres, e
quem tem avós nobres tem paes conhecidos; por tanto
ahi tendes quatro processos e quatro julgamentos, pro
>

vando não só a legitimidade do nosso nascimento, como


•• aa nobresa da nossa familia . Bem vedes pois que não
posso ser filho de Agar escrava , porque nasci nobre.
O que acabo de dizer-vos, Sr. Padre , he de tal no
toriedade, que não nescessito proval-o ; mas sempre he
bom um documento vivo de maior excepção, que vos tire
toda a duvida ; e para isto vos offereço o testemunho irre
cusavel do Sr. Conde da Boa-Vista , que servio com os dous
primeiros ; e era tão amigo de um delles, que sempre pro
curavão montar guarda juntos ; e se por acaso um delles
estava de folga, e o outro entrava de serviço, o de folga
hia passar o dia com o companheiro na mesma guarda.
Deveis, Sr. Padre, comprehender, que não pode
dar- se um testemonho mais valioso do que este ; o pa
ra ainda mais corroborar este testemunho , foi por uma
rara coincidencia o mesmo Sr. Conde da Boa -Vista,
quando Presidente desta provincia, quem mandou assen
tar praça ao quarto, ou ao ullimo de meos irmãos, que
foi primeiro cadete de Cavallaria na companhia que en
tão mandava o Sr Tenente -Coronel Sebastião Lopes,
que o reconheceo como tal depois da competente jus
tificação .
Eisahi,, Sr.Padre , porque vos disse, que tinha embar
gos a oppôr a procedencia , que me destes de Agar escrava .
59

Não he pois dessa procedencia que me resinto , senão de


uma injuria premeditada que lançastes sobre minha pobre
mãe, e logo em seguida fostes buscar a vossa origem ca
tholica para lançar -me em rosto , com a addição de
ameaçaa ! Valha -me Deos ! E porque
uma tremenda ameaç
me ameaçastes com uma lição eterna , isto he , para to
do o sempre ? Por que me ameaçaes com a morte ?
Bem védes , Sr. Padre , que fostes vós quem provocou
uma discussão odiosa sem motivo nem razão plausivel ;
fostes vós que cuspistes sobre as cinzas de minha pobre
mãe ; fostes vós que me injuriastes duas vezes , uma na
memoria veneranda de uma pobre mulher, a quem devo
a vida ; e outra ameaçandu a um velho soldado com
vias de facto ! Tomastes todo o peso dessa injuria ? Sa
beis quão pungente ella he ? Pois bem , Sr. Padre, ve
de agora todo o fundo do abismo , que cavastes entre
ambos, e vêde como vos precipitastes nelle sem pen
sal-o . O que vou dizer não he meo, nem de minha la .
vra ; não afirmo nem nego - está escripto . Se ha nis
so falsidade ou injuria , lavo minhas mãos , e queixe -se
5

de si .
O Sr. Padre Campos lança sobre mim o labeo da
escravidão , ameaçando-me se eu lhe devolvesse a pelle.
Se me não tivesse ameaçado tão grosseira e estupida
mente, declaro-lhe que me calaria ; mas com uma amea
ça flagrante ! um dardo que o atravesse . Oica pois :
O defunto Nogueira Paz, em uma carta com data
de 26 de Março de 1846 , e publicada no Diario Novo
do mesmo mez e anno , disse que a exm.a mãe do Sr.
Padre Campos era escrava , e que nunca fora liberta , o
que constituia o Sr. Padre Campos tambem escravo on
liberlo, porque o filho segue a condição do ventre ! Ora ,
o Sr. Padre Campos não contestou aquella carta , não
chamou a responsabilidade o Diario novo , não protes
tou contra semelhante publicação, nem ameaçon a No
gueira Paz , por que ainda não tinha amor filial - por
tanto be réo convicto e confesso do labeo de escravi .
dão-quem cala , consente .
A mesmaCarta foi transcripta no Echo pernambucano
de 18 de Fevereiro de 1853 ; e ainda na Ordem de 1862, e o
Sr. Padre Campos não respondeo , nem chamou o Echo e a
60

Ordem a responsabilidade , nem protestou contra um ta ?


documento ; e muito menos ameaçon ao Sr. Loyola
nem a pessoa , que fez transcrever a citada Carta ; pes
soa alias que o Sr. Padre Campos conhece como as pal
mas de suas mãos ; até então ainda não lhe havia su
bido á cabeça o seu amor filial; por tanto he reo con
victo e confesso pela segunda e terceira vez do labeo
de escravidão.
Ainda mais-a Ordem publicou lambem o processo
feito contra os bandidos , que saquearão e incendiario
Panellas de Miranda , cujas testemunhas , fallando do Sr.
Padre Campos , o chamão semi-branco, talvez con refe
rencia aquellas Cartas ; e o Sr. Padre Campos não res
pondeo , dem prottestou, nem ameaçou a ninguem ! E
porque agora me ameaça ? E porque só agora he que
The subio a cabeça o amor filial ? Ah ! he porque le
nho 73 annos de idade ! não he assim ? be porque vos
não posso corlar a Cara com um chicotel não he as
• sim ? he porque vos pareço quasi invalido para uma
desafronta pessoal , e sabeis que sou incapaz de man
dal-a fazer por outrem ! não he assim ?
Quando li o artigo do Sr. Padre Campos no Diario
de Pernambuco de 4 de Julho ultimo , ri - me da sua amea
ça como um desabafo impertinente do mais estulto orgu
lho ; ri-me da sua impotente raiva ; ri-me da sua fatuidade
-mas successivamente varias pessoas me vjerão dizer :
umas que tipbão ouvido ao mesmo Sr. Padre Campos,
outras á pessoa de sua amizade, que elle me ameaçava
por toda a parte, já com um sobrinho , que me havia de
cortar a cara no ineio da rua , já com um assassinato,
se eu tivesse o atrevimento de responder- lhe ! un ami
go do Sr. Padre Campos veio a minha caza trazer- me
uma ameaça directa ,depoisde haver tentado todos os meios
de feichar-me a typographia, onde supunhão que eu im
>

primisse a minha resposta ; ultimamente o Sr. Padre


Campos disse a um fasendeiro da Escada , que por si
nada me faria, mas que tinha dous sobrinhos, que erão
dous leões ( quer dizer assassinos ) a quem elle não po
deria conter , no caso que eu lhe respondesse ! infame
bandido !

1
01

VIII

Tudo isto veio a meos ouvidos, e eu apenas respon


dia , que a cidade do Recife não era o Brejo da Madre
de Deos , nem en me chamava Antonio Francisco Cor
deiro : mas emfim um amigo me disse : tenha cuidado
e veja, que se os assassinos são cobardes , são tambem
traiçoeiros ; e esse padre be capaz de tudo , de mil infa
mias, se assim for preciso para obter um fim qual
quer . Então foi forçozo tomar as minhas medidas.
0 Sr. Padre Campos não cessa de ameaçar-me
com os seos famigerados sobrinhos ! Pois bem, Sr.
Padre, tambem tenho sobrinhos ( que não sou filho das
hervas ); tres dos quaes estão no Paraguay desde o prio
cipio da guerra ; e tão valentes, tão bravos e tão dis
tinctos , que já forão condecorados . Ouvi pois , Sr. Pa
dre : se algum delles estando aqui tivesse a ousadia de
tomar parte na nossa discussão, ou de fazer-vos um de
sacato , declara -vos, Sr. Padre Campos, que ainda as- •
sim velho o desancaria com um páo ; porque devia
respeitar a vossa idade, e porque tendes, bem que
mal, uma posição social . Eis ahi o que eu faria, vós
fareis o que quizerdes ; mas ponde à bom recado as
costellas, por que ba de ser tanto o páo : que vos bão de
fazer passar por baixo de uma abobada de aço . (1 )
Emfim , Sr. Padre Campos , derramastes sobre mim
toda a especie de insultos, por que não tendes medo de
que vos quebre , ou vos mande quebrar os ossos ; por
que o fazeis impunemente, pois sabeis que sou incapaz
de uma vingança torpe, e pelo contrario entendeis que
eu vos devo temer, porque sois om assassino geralmen
te temido ! porque lendes não sei quantos sobrinhos,
tambem assassinos como vós, e os andaes apregoando
de casa em casa como valentões do pico, para me apalea
rem , ou desacatarem no meio da rua, ou para me cor
tarem a cara , como tendes diio a diversas pessoas, que
estão promptas para declaral-o em juizo . Se não sois
muito estupido , Sr. Padre, deveis ser o mais insolente
scelerado, que o Ceo cobre .
Agora, Sr. Padre , ouvi a resposta de tudo isto :
(1 ) Perguntae a um maçon o que isto quer dizer .
62

Sois muilo cobarde para me fazerdes um insulto cara á


cara ; mas se o fizerdes, tende a certeza de que vos ficará
impressa nessas faces azinhavradas a minha desafronta .
Se porém qualquer dos pardavascos de vossos sobri
nhos tentar fazer -me um insulto , ou uma affronta qual
quer , sois vós, Sr. Padre, que a haveis de pagar. No
inferno que vos melaes, de lá vos hão de arrancar pe
las orelhas para vos quebrarem os ossos com um páo ;
porque um padre, que se diz ministro de Jesus Christo ,
e tem a imprudencia de ameaçar , debaixo da sua assig
natura, a um velho inerme e alquebrado com um assas
sinato , he o mais infame assassino entre todos os assas
sinos ; salvo se perdestes o juizo, em cujo caso o vosso
lugar seria no hospicio de Pedro 2.º, onde existe mui
gente com mais juizo do que vós .
Sabeis quem tem a culpa de ludo isto ? a policia,
onde me fostes ameaçar, se ella não me privasse do di
7

reito de propria defeza . Estaes em vosso juizo ? não,


ou então sois o maior bandido , que jamais pisou na
terra, porque tudo affrontaes, moral, leis, autoridade
e religião Bem dizeis que não temos policia , porque
se a tivessemos, dalli terieis marchado para a cadeia.
E quem falla em assassinato , em vinganças, em sobri
nhos assassinos ? he um padre antes de tudo, e depois
um bomem sobre quem pesa o labeo de um horrivel
assassinato ! Eis ahi quem he o famigerado Padre Cam
pos , eis ahi quem me ameaça com um assassinato ! ban
dido !
Pensaes acaso enxovalbar, aviltar a Cidade do Re
cife ? pensaes que esta Cidade val tanto como o Brejo da
Madre de Deos? pensaes ficar impune como ficastes em
1850 ? E quem então vos tirou o pudbal do peito ?
Ohl sois o ente mais abjecto , que o Sol cobre.
Pois não vos lembrastes que permaneceis debaixo de
uma accusação tremenda ? Ainda, ha bem poncos dias ,
um sujeito do Rio Formoso contou diante de muita gen
te um facto vosso bem horrivel no Engenho Cachoeira
em annos passados.
Eu não tenho um só inimigo senão vós ! pequenas
desavenças, que existião, tem desaparecido, porque não
guardo rancor a ninguem, nem odio , nem desejo de
63

vingança ; pessoas, com quem tive em algum tempo mo


tivo de queixa passageira , hoje vivem em perfeita rela
ção comigo ; nem mesmo ás testemunhas, que jurarão
contra mim no processo politico de 1849, neguei nunca
o meo chapeo nem a minha mão, quando me procura
vão. Nunca offendi a familia alguma (apesar da vossa
mentira ) nem feri a honra de ninguem ; nunca dei es
candalo na sociedade ; não tenho desafectos senão de
idéas e principios ; por tanto nada tenho a lemer de
pessoa alguma.
Tende pois a certeza , Sr. Padre , que ao menor in
sulto, ao menor contacto , seja de quem fôr, grito im
mediatamente contra o Padre Campos no meio da
rua ; e serão tantos os vingadores, que não escapareis,
ainda no inferno que vos metaes. Vêde o numero e a
força dos vossos inimigos, vede as familias em cujo seio
lançastes uma nodoa de sangue, outras que cobristes
de oprobrio por uma infamia ; todas ellas extensas, e
que ainda não ajustarão suas contas comvosco ; outras
a quem tendes insultado de uma maneira atroz pela im
prensa , como em Julho do anno proximo passado . Em
.

im vêde quantos inimigos, que só desejão um ensejo


favoravel ou uma capa para se acobertarem . Já uma
vez vos tirei o punhal de cima do peito; ainda agora fa
ria o mesmo, se se tratasse de punhal ; mas de páo,
Sr. Padre , Deos vol- o dê tanto que possaes mandar
muitas amostras para a exposição de Pariz .
Ainda não vi um ente mais abjecto nem mais re
pugnante para todo o mundo ; e ao mesmo tempo mais
filaucioso e mais insolente ! Em que vos fiaes pois, Sr.
Padre ? Talvez no vosso protector, que sendo alias ho
mem honesto , assentou de tirar do nada a mais nojenta
creatura para eleval-a até a sua pessoa : mas elle tam
bem corre o risco da responsabilidade moral-não se
protege impunemente um assassino !
Pois vós, Sr. Padre, o mais abjecto de todos os en
les , sem familia conhecida , sem riqueza, sem saber de
nenhuma especie, tirado da mais baixa extracção, sem a
menor educação, sem uma só virtude, terieis o atrevi
mento de ameaçar pela imprensa , e de viva voz a um ho
mem da minha qualidade com um assassinato, senão jul
64

gasseis que linheis as costas quentes ? Creio porém que


vos enganaes, Sr. Padre--se praticardes uma infamia,
-

como a promettida , haveis de ficar só . Vêde bem que


não tereis outros fiadores senão as vossas proprias cos
téllas ! quem vos aviza vosso amigo he, diz o adagio.
A vossa estupida ameaça tem -me levado mais longe
do que eu queria. Cumpre pois voltar á questão da mi
nha e da vossa procedencia. Ficamos pois na escravidão
atribuida porNogueira Paz á vossa ex.ma mãe ( o que de
certo he uma falsidade ) ; mas em fim he facto historico.
por que está consignado em lettra redonda . Neste cazo
poderieis dizer -me : onde está , Sr. Christão Velho , o
O

vosso tão gabado respeito pelas mulheres , se reproduzis


o labeo de Nogueira Paz contra minha mãe ? A respos
ta não se faría esperar, eil-a :
Para mim vossa ex.ma mãe, avó ou bizavó são tão li
vres como pode sel-o o imperador do Brazil ! Pelo meo
livro , a que chamaes monstro, vereis no final, que não re
conheço o direito de escravidão, e que abomino o direi
to da força, unico que legitima a escravidão ; por tanto
não admitto tam pouco o labeo , que possa rezultar de
um direito que não existe. Venha para o meo ban
.
quete o negro virtuoso , a quem a força tenha feito es
cravo : elle ne livre para mim como christão , e quan
do o não fosse , como filho de Deos , por que este não
he só pae dos Christãos , mas do Genero humano.
Não admitto um direito fundado na injustiça, na for
ça e na violencia ; e senão dizei -me, Sr. Padre : com
que direito forão os Portuguezes arrancar vossa ex.ma
bizavó ( se he verdade o que diz Nogueira Paz. ) do seio
-

da sua ex.ma familia na Costa d'Africa para a trazerem


para o Brazil , escravizal-a, azorragal-a, e maltratal-a ,
fora da sua terra natal, de seos paes , dos seos penates ?
Isto faz cortar corações ; e não me posso lembrar dos
gemidos pungentes da ex.ma pretinha sem verter copiosas
lagrimas ! E sem embargo, vos sois escravistu como
bom conservador ; e até dizem que vos tornaes um ener
gumeno quando se trata da emancipação ja e já ! Detes
to , Sr. Padre , a escravidão tanto quanto o Deos forjado
por Moysés !
65

Quanto a vossa origem catholica permittí que vos


pro
ponha o mesmo impedimento , que prozestes á minha pro
cedencia de Sara . Ha quem reclame contra a vossa
cedencia catholica, segundo o que geralmente se diz ; e
até me troucerão uma biographia vossa , em que se diz
que vosso ex.mo pae era um cigano portuguez, não sei se
do continente, se das ilhas. (1 ) Ora, se he isto verdade ( o
que eu não creio ) , então Sr. Padre, deveis convir que
9

por esse lado não sois catholico ; por que os Ciganos,


como sabeis , são Koptos ou Hussitas bohemios ; por con
>

sequencia não são de origem catholica .


Agóra por vossa ex.ma mãe decididamente não sois
de origem catholica ; por que , se vossa ex.ma bizavó era
da Costa da mina, isto he, ao norte da linha equinocial,
era naturalmente Nagô ( e vós tendes um pouco o typo
nagô ) , e então deveis saber que esses pretos, pelas suas
relações com os Arabes, são geralmente musulmanos .
E porém os Nagôs são muito inteligentes, e vós sois
um pouco estupido, o que induz a crer, que vossa ex.ma
bizavó era do Sul da linha, isto he, Congo, Cassange, Ca
binda ou Benguella ; e vós sabeis igualmente, que esses
pretos são todos feiliceiros, isto he, adorão idolos e amu
letos , uma especie das vossas reliquias ; por tanto por
ahi tambem não sois de origem catholica. Procurae pois
a vossa origem talvez na rainha Ginga.
O Sr. Padre Campos he de uma condição fatal-he
tão grande a sua culpa , tão graves os seos peccados , que
tudo quanto elle toca , olha, fareja ou agrada , tudo defi
nha, tudo morre, tudo se inficciona, tudo apodrece , e
senão haja vista do que aconteceo com o Papa a este
respeito .
Vivia Pio 9.º tranquillo em Roma, e nos seos Esta
dos como soberano Pontifice e Rei, governando tudo á
sua vontade, respeitado pelo Orbe catholico, e obedeci
do pelos seos fiéis subditos, sem que ninguem ouzasse
tocar -lhe nem mexer - lhe.
( 1 ) Veja - se o que diz a este respeito Fr. Ignacio de Santo Anto .
nio no 2.º numero do Thug. Esse frade, tilho de Pajeú, está es
crevendo a biographia do Sr. Padre Campos, de que já nos leo
algumas paginas, entreellas um episodio muito galante, que tem
por litulo - a tia Tatú--Creio que desta vez o heróe de Panellas
será canlado em prosa e versa .
9
66

Eis senão quando lembra -se um dia ( dia nefasto


e de mảo agouro ) de nomear ao muito sabio Sr. Padre
Joaquim Pinto de Campos seo Prelado domestico (1 ) .
Oh ! desgraça das desgraças ! oh ! infortunio ! oh ! mal
dição ! É o que aconteceo ? oução :
Desde aquelle nefasto dia por diante foi-se o reino
pontificio desmoronando e cabindo a pedaços ! Foi -se a
Romanha, forão - se as Marcas ; foi-se a Emilia , foi-se a
Umbria , e ultimamente parte do chamado patrimonio de
S. Pedro ; ficando ao Padre Santo tão somente a cidade
de Roma e o seo municipio ; e isto mesmo tão incerto e
movedico como as areias do dezerto.
Bastou o contacto do nome do Sr. Padre Campos
para crestar e matar o poder temporal do Papa, que re
zistio por mil annos ao embate das ondas populares, e ao
furacão das revoluções, por que a maldição do Sr. Pa
dre Campos he superior a tudo isto ! Eis ahi por que fo
gem delle como o diabo da Cruz- he como as arpias ,
tudo suja , tudo pollue , basta locar-lhe. Sou eu que o digo ?
não ha tal- he todo este povo sem excepção -- pelo coo S

trario, eu sou o unico deffensor que hoje tem o Sr. Pa


dre Campos, por que tal he a minha indole indulgente e
bem fazeja .
O Sr. Padre Campos tem uma tactica , de que sempre
tira proveito, ainda que conhecida e muito sediça . Lo
go que elle insulta qualquer pessoa pela imprensa, e te
me que lhe responda, trata de empenhar - se com os do
nos dos Jornaes para não admittirem a resposta ; e então
não ha baixeza que não pratique para obter esse rezulta
do-haja vista do que aconteceo com o Sr. Dr. Tavora ,
e o que acaba de passar comnosco ; ou chama logo a
responsabilidade, embora fique mal . como tem succedi
do todas as vezes que elle lança mão desse recurso .
A vantagem está sempre em atrapalhar o contrario ;
e quando não pode chamar a responsabilidade, provoca um
>

escandalo para arredar da imprensa o contendor honesto ,


que não quer emporcalhar- se , como aconteceo com aquel
le celebre artigo do Diario de Pernambuco de 3 de Ju
lho do anno proximo passado, insultando atrozmente a
uma porção de familias respeitaveis por muitos titulos .
( 1 ) Especie de Creado de galão branco do nosso paço .
67

E quem não tem medo de ser emporcalhado, se deixào


andar os porcos pelo meio das ruas ?
O Sr. Padre Campos diz que tem a Deos por si ! que
tem todos os homens de bem ( naturalmente os Protes
tantes do Diario de 7 de Agosto ) , e o sentimento geral
da população brazileira ,; e que ha de quebrar as pontas
das minhas setas como S. Cyrillo quebrou as de Nesto
rio ; que lhe consta que o meo livro ia ser remettido ao
Imperador, e a um ministro por quem eu alardeava ser
a obra protegida ! Mentir assim nunca se vio, á excep
ção de que o meo livro fosse ( por um costume muito
antigo ) remettido ao Imperador. Quem me ouvio nun
ca alardear de que a minha obra fosse protegida por um
ministro ? para que semelhante protecção, de que servi
ria ella ? dizei-o , estupido mentiroso !
Quaes são os homens que tendes por vós ? os vossos
proprios correligionarios vos atapazão, e vos chamão im
postor ! A população brazileira vos detesta , e he a mes
ma que tem consumido quazi a edição do meo livro . Ten
do -se -me pedido grande numero de exemplares do Rio
de Janeiro, não pude mandar senão muito poucos . Eis
ahi o que he a vossa decantada popularidade; e posso
asseverar- vos que o que ha de mais honesto e inteli
gente no paiz tem apreciado a tal ponto o meo trabalho,
que só tem para elle elogios ; e isto desde a mais eleva
da sociedade até o povo sempre sincero, e avido de ins
trucção.
He impossivel calcular o effeito, que o meo livro
tem produzido em todas as classes , a não ser que tam
bem concorra para isto a execração em que ellas tem o
VOSSO nome . Em tim ahi vem o furto , ahi vem o despu -
dor com um verso de Bocage, que o Sr. Padre Campos
repettio depois no mesmo Diario de Pernambuco como
seo !
Finalmente conclue o aranzél do art. de 4 de Julho,
promettendo a deffeza ( que ninguem lhe encomendou )
de Camillo Castello Branco ; que se soubesse de uma tal
calamidade, empenhar -se -hia com os anjos do Céo para
libertar-se das unhas do Sr. Padre Campos ! O que sairá
de semelhantes mãos ! O mais he tão trivial e ordinario,
quc não merece resposta . Vamos agora ao art . de 10 de
68

Julho, onde o Sr. Padre Campos esgotou toda a sua sa


piencia .
IX
Prescindirei do meo sarapalėl de herezias, dos meos
improper ios contra o culto das imagens, do meo pes -
tilente livro , e da protecção , ajuda, é favor dos domina
dores da situação , como adubos, com que o Sr. Padre
Campos costuma condimentar todas as suas producções.
Elle volta á carga com a invocação dos Santos, e com
o culto das imagens, apezar de haver promeltido no
seo artigo anterior, na prezença de Deos e do mundo, de
só responder a dous pontos controvertidos e atacados
por mim .
O Sr. Padre Campos be sempre inhexoravel comi
go ; não me dá quartel; pelo que vae transcrever do
meo livro, diz elle : « se conhecerá quanta razão tive
de proromper em durus inveclivas ( bem he que o con
O
fesse ! ) contra o dezalmado ( pobre de mim ! ) , que sa
• cudio ao seio da nossa população a bomba inflamada,
prenhe dos mais agudos projectis ! » Veja -se o engri
manço que por ahi vae, e diga quem quizer se be possi
vel ser- se pedante ou charlatão sem licença do Sr. Pa
dre Campos ?
Disse que o Sr. Padre Campos voltára á carga com
o culto das imagens ; mas não foi tanto assim ; a lição
que levou ficou-lhe impressa. Agora escapando -se por
uma tangente , foi dar com os ossos na veneração das re
liquias ! Como provára antes o cullo das imagens com
a vara de Jessé e de Arão , procura provar agora a ve
neração das reliquias com a capa de Elias , e com os
ossos de Elizeo ! lle sempre por inducção que elle ar
gumenta para provar uma ou outra couza ; mas sem
pre com tal desazo , com tal • infelicidade, que longe de
provar o que prettende, prova o contrario .
Sobre o cullo das imagens, uma das couzas que
mais revoltou a bilis do Sr. Padre Campos foi que, ci ..
tando eu o Cap . 20 do Exodo , em que Deos prohibe fa
7

zer imagens de esculptura e adoral -as, deixei de fazer


menção de uma nota do Padre Antonio Pereira, dizeudo
que alguns theologos, para cazarem a doutrina do Exo
do com a da igreja catholica, inferião que a probibição
do Exodo não era absoluta, pois que Deos ordenara a
69

Moyses , que pozesse sobre a arca dous Querubins; e


Salomão mandara guarnecer o mar de bronze com mui
tas estatuas de touros do mesmo metal ; e que esta opi
nião a tinhão seguido os padres do 7.º synodo geral .
O Sr. Padre Campos não só falta a verdade, como il
lude aos seos leitores, por que não só citei a nota do Pa
dre Pereira, como a refutei quanto aos Querubins, dizen
do que apenas erão ornalos, como os que ainda hoje se
veem nas tribunas das nossas igrejas , chamados até pelo
POVO - anginhos de tribuna - mas que ninguem lhes ha
via prestado culto até hoje. Ora , o negocio dos louros
era tão calvo , que tive vergonha de fallar d'elles , por
que he tão expresso o Cap . 7.º do 3.º Liv . dos Reis a
este respeito , que até no verso 29 se declara , que o mar
de bronze era guarnecido por touros, leões e querubins !
Ora , cilar esses ornatos architectonicos para justificar o
culto actual das imagens, seria o mesmo que citar o al
corão para provar a Trindade Santissima !
Tanto era assim , que a grande bacia , que reprezen- .
tava o mar, estava colocada sobre 12 louros de bronze ,
com columnas guarnecidas com leões e querubins ! E por
que não fallou o Padre Pereira nos leões , e só nos tou
ros ? Achou talvez mais apropriados os touros para jus
tificar o culto das imagens ! e por que não ? Era ainda
a lembrança do Egipto, onde era adorado o Boi Apis !
-

Todavia não façamos essa injuria a Salomão – os seos


touros não erão objecto de adoração ; mas tão somente
como uma especie de cariatides para sustentar sobre os
dorsos o seo famozo mar de bronze.
Esses ornatos se achão por toda a parte, na antiga
como na nova esculptura - quadrigas, como a do arco do
Carrussel em Pariz ; bigas como em muitos outros mo
numentos - leões, como até grosseiramente feitos , ainda
se observão sobre os muros lateraes da nossa igreja de S.
Francisco ! E porem que analogia achou o Padre Perei
ra entre a estatua de um touro e a imagem da Mãi San
tissima ? Custa a crer até que ponto chega o absurdo des
sa gente quando quer justificar um culto , que não tem ,
nem pode ter o menor apoio no Velho como no Novo
Testamento .
Mas emfim depunhão contra o Padre Pereira o Exo
70

do , o Levitico, os Numeros e o Deuteronomio ! como


sahir do embaraço ? bellamente : esses 4 livros consti
tuem os judicines de Moyses , diz Pereira , e os judiciaes
não podem obrigar aos christãos ! He isto crivel ? Sim ,
e tanto que lá está na referida nota copiada pelo Sr.
Padre Campos ! Não façaes imagens de esculptura nem
as adorarás ! e o que tem isto ? Os catholicos fizerão dos
dez mandamentos outros tantos preceitos juuliciaes de
Moyses, e declararão que não obrigavão aos Christãos ! Is
to, Sr. Padre, não merece resposta , porque revolta a cons
ciencia de todo verdadeiro christão.
Bem vê o Sr. Padre Campos, que não omitti a nota do
Padre Antonio Pereira ; tanto que fallei dos Querubins ;
mas confesso que tive pejo de arrastar pela lama a me
moria do Padre Antonio Pereira, quando cita os touros
do mar de bronze para justificar o culto da imagem de
Maria Santissima . O Sr. Padre Campos não tem o me
nor escrupulo dessas cousas, mas eu confesso que tenho
mais um pouco de pudor.
Quereis saber agora a consequencia de tudo quanto
disse o Padre Antonio Pereira ? Ouvi 1.0 elle incluio
os dez mandamentos da lei de Deos entre os Judiciaes de
Moysés : 2.0 disse que os Juiliciaes de Moysés não obri
gavão aos christãos į Logo, Sr. Padre, os dez manda
mentos não obrigão aos christãos, o que é um solemne
absurdo !
E onde fica então o Deus de Moysés ? O que he do
Pentateuco ? onde ficão o Exodo , o Levitico , os Nume
1

ros eo Deuteronomiu ? Direis lá estão os manda


mentos na lei nova então devereis confessar quanta
rasão tinha eu para dizer , que a lei nova tinha subro -
gado a lei antiga, e que do Pentateuco só restavão para
os christãos as profecias ea parte puramente historica .
Bem vêem os nossos leitores, que o Padre Antonio
Pereira , e os theologos escripturarios Calmet, Sacy e Car
rieres, assim como os padres do 2.0 Concilio de Nicea,
não acharão um só texto no Velho nem no Novo Testa
mento para justificar o culto das imagens, e forão apa
drinhar-se com os louros do mar de bronze , e com os
Querubins da arca ; mas o Sr. l'adre Campos , que he
muito superior a todos esses theologos e padres do Con
71

cilio , deparou com muitos textos no Novo Testamento,


não para provar o culto das imagens, de que se escapou
por uma tangente muito engraçada, mas para justificar a
veneração das suntas reliquius!
Começa pois elle disendo, que os corpos dos bema
venturados são membros misticos de Jesus Christo , e
templos do Espirito Santo, segundo a doutrina de S. Pau
lo ( 1 Cor. C. 6, v. 15 e 19) . He falso, Sr. Padre, o
que diseis , porque S. Paulo não podia fallar em corpos de
bemaventurados, expressão de que usa a vossa igreja
para discriminar uns de outros fieis ; quando pelo con
irario S. Paulo nessa passagem referia-se ao que disse
Jesus Christo em S. João (C. 17, vv . 20 a 24 ) -a E eu
não rogo somente por elles , mas tambem por aquelles
que hão de crer em mim ; para que elles sejão lodos um ,
como tu , Pae ! o hes em mim , e eu em ti. Eu estou nelles,
9

e tu em mim , para que sejão consummalos na unidade). .

Eis ahi, Sr. Padre, o que entendia S. Paulo por corpo


mistico de Jesus Christo : são todos os que crêem nelle ,
porque nesses está o proprio Christo, e assim são todos
umi .

Não sei para que citastes a cura da mulher , que pa


decia fluxo de sangue , cura que se verificou tocando ella
a fimbria da tunica de Jesus Christo ! Não serei eu , Sr.
Padre Campos, que negue osmilagres de Jesus Christo ;
mas á que vem isto para o culto das irnagens , ou para
a veneração das reliquias ? E ainda muito menos pode
servir de prova para uma ou outra cousa a estatua de
bronze de Jesus Christo , que essa mulher agradecida
mandara levantar em Cesarea em memoria desse facto ou
dessa cura .
Da estatua só falla Euzebio, e ninguem mais ; e del
la não haveria memoria , se o 7.º synodo geral não lan
çasse mão dessa historia, em falta de outra prova , para
justificar com ella o respeito ás imagens, que ia decretar
pela primeira vez . Sabeis, Sr. Padre, o que era o 7.º
synodo geral ? não sabeis de certo , porque sois muito
ignorante e incapaz de consultar os documentos antigos ,
sobre os quaes não podeis exercer a menor critica, por
que não estaes habilitado. 07. ° synodo geral he o 2.0
Concilio de Nicea no anno de 787 , quasi no fim do seculo
72

8.0. Foi elle reunido para oppor- se ao Concilio de Cons.


tantinopla convocado pelo Imperador Constantino, filho
de Leão 3.0
Ora , foi justamente esse Concilio de Constantino
pla, convocado por Constantino , que condemnou como
idolatria toda a honra, que se tributasse ás imagens ; e
não só condemnou o culto , como forão condemnadas a es
culptura e a pintura como artes abominaveis . A lula se
havia travado entre Roma e Constantinopla, ou entre os
papas e os imperadores : 02.• Concilio de Nicea foi por
tanto convocado para destruir os máos effeitos do Con
cilio de Constantinopla ; assim como o Concilio de Fran
cfort, prezidido pelo proprio Carlos Magno , para neutra
lizar e desfazer o que fisera o 2.º de Nicea .
E o que prova tudo isió , Sr. Padre ? he que não ha
via o menor fundamento nas Escripturas para semelhante
culto ; e que le tudo se lançava mão, até de falsidades
e de factos izolados , de que não havia mais de um les
• temunho, como o da estatua de bronze de Cesarea . Não
sei se sabeis , Sr. Padre, que Euzebio , posto fosse o pae
da historia eccleziastica , foi tido em cheiro de arianismo ;
e por isso a vossa igreja nunca o colocou no Canon dos
seos Santos. O que he certo he que nenhum outro histo
riador refere semelhante facto ; e fallando S. Lucas e S.
João ( muitos annos depois ) lo milagre feito por Jesus
Chisto, parece que deverião fallar igualmente da estatua ;
o que não fizerão.
E o que significa a estatua de bronze de Cezaréa ?
O mesmo que as treze estatuas patricias, que decoravão
o vestibulo do palacio de Cezar ; ou a estatua de Pompeo
no Senado romano, á cujos pés cahio Cezar apunhalado ;
as estatuas dos Imperadores , que decoravão o Circo ; a
estatua colossal de Alexandre Magno em Delphos, que
lanto susto causou ao filho de Antipatro pela sua seme
lhança ; as estatuas colocadas no Pantheon de Westmins
ter, ou a de Napoleão 1 • sobre a columaa Vandôme, ou
a de D. Pedro 1.0 na praça da Constituição do Rio de Ja
Deiro Entretanto podemos asseverar, que nenhum dos
que figurarão , ou figurão nesses monumentos, teve a pre
tenção de conquistar um lugar no Kalendario romano.
73

Vamos agora ao culto das reliquias . O que he a re


fiquia ! he a parte do corpo de um Santo, ou do seo
sangue ou do seo vestido , ou de couza que lhe perten
cesse. Ora , se eu regeito o lodo como aceitaria a par
te ? se não admitto o culto das imagens como idolatria ,
muito menos o culto de um farrapo , de um dente, de
um pedaço de sangue coagulado, ou outra qualquer ni
vharia , que começa por ser falsa senão por ser incrivel ?
Não nos lembra agora o nome do papa, que man
dou recolher na Italia os dentes de Santa Apolonia, que
servião de reliquias ; e levarão -lhe carradas de dentes,
que mandou deitar no Tibre . Pois bem , como os den
tes de Santa Apolonia , são todos os Santos Lenhos, que
por ahi ha, e com que especulão certos espertalhões,
que forão a Roma .
Podeis vós justificar o cullo das imagens com as
Escripturas ? não ; pois bem , muito menos justificareis
o culio das reliquias, ainda quando verdadeiras, quanto
mais que são todas falsas. Eis ahi o sangue de S. Ja
nuario, e o milagre da liquificação todos os annos , o
hoje em completo ridiculo , e objecto de escarneo nas
exhibições publicas e nos theatros de Napoles .
Véde quantas cabeças de S. João Baptista por ahi
se venerão , quantas corôas de espinhos, quantos cravos
da Cruz de Jesus Christo , quantas santas veronicas, e
até corpos de santos em duplicata ! E o que tem isto ? 0
Sr. Padre Campos prova com ambos os testamentos, e
com os dous Talmudes , e até com todos os falsos Evan
gelhos, que a veneração das reliquias he muito anterior
ao diluvio universal ; e elle o prova por este bom gosto:
O propheta Elizeo fez abrir as agoas do Jordão ao
tocar-lhes com a capa de Elias ; logo devemos adorar
as santas reliquias ! Um morto foi resuscitado ao loque
dos ossos de Elizeo : logo devemos adorar as santas re
liquias ! Uma mulher foi curada de um fluxo de sangue ,
locando no vestido de Jesus Christo ; logo devemos ado
rar as santas reliquias! Então exclama o Sr. Padre Cam
pos : vêde quantos textos da Escriptura por ahi vão para
provar não só o culto das imagens como igualmente a
adoração das santas reliquias !
De sorte que todos os theologos escripturarios , to
10
74

dos os padres de Nicéa , todos os Papas desde Constan


lino no seculo 8.º até hoje , nunca poderão achar um só
texto para provar , quer o culto das imagens , e ainda
muito menos o das reliquias ; e o Sr. Padre Campos
achou carradas de textos para pulverizar toda essa gente.
Serão todas essas baforadas de faluidade effeito SÓ
de crassa ignorancia , ou tambem pancada na bóla ? Esse
padre , digão o que disserem , não tem os miolos em seo
lugar.
O Sr. Padre Campos , depois de esgotar os textos,
vem reforçar as suas concluzões com a historia ecclezi
astica ; então falla da trasladação dos ossos de Santo Ig
nacio de Roma para Antiochia ; outra dos ossos de S.
Babylas, não sei de onde nem para onde , por que elle
não o diz ; outra dos corpos dos Sautos martires Gerva
zio e Protazio ; outra das reliquias dos Santos martires
Vital e Agricola, em cuja procissão Deos operou os maio
res milagres, e os demonios uivavão em altas vozes, ao
• sairem dos Corpos dos possessos !
Ora, ninguem uiva mais Jo que o Sr. Padre Cam
pos ; eu o tenho feito uivar muitas vezes ; e todavia não
faço milagres, nem me tenho em conta de Santo ; nem o
Sr. Padre Campos quererá ter-se em conta de demonio ,
(1) salvo se Deos, tirando a voz aquelles diabretes , os
substituio por gente viva ; por que hoje, se não temos de
monios que uivem, temos gente , que não só uiva como
berra !
Sr. Padre , tudo isto he tão ridiculo no terceiro
quartel do seculo 19 , que repetil -o, ou prettender refu
tal:0, seria a mesma couza . O que mais admira he que
traigaes para uma discussão litteraria o que ha de mais
ridiculo e nauzeabundo em materia de fanatismo . Os
rugidos e os uivos dos demonios em altas vozes ! Quem
vos não conhecer que vos compre-tão simples não sois
vós !
Estas fabulas já não são para o nosso seculo, e re
( 1 ) O Sr. Padre Cãmpos he tão desmiolado , que mandando
fazer uma caricatura contra mim , fez - se elle mesmo retratar na
figura do diabo , dizendo - Venci. General ! e mostrava esse pai
nél a todos, que se rião delle à bandeiras despregadas ! Deos te
de juizo, alma dan nada !
75

petil-as he prova , não só de ignorancia como de idio


tismo . Ouví pois o que a este respeito diz Chateaubri
and nas suas Miscellanias litterarias— « Aquelles que se
assustão ao ouvir pronunciar o nome de religião, não
conhecem absolutamente o espirito humano . Elles vêem
sempre esta religião tal qual era nas idades do fanatis
mo e la barbaria , sem pensar que ella toma , como outra
qualquer instituição, o caracter dos seculos por que pas
sa ) ( Mel . litt. )
Quanto a trasladação dos restos mortaes de alguns
Santos ou martires, he isto tão antigo no mundo , que
já Anibal , fugindo de Carthago , dizia : patria ingrata, não
>

possuirás os meos ossos ! como uma ameaça de prival-a


das reliquias de um grande homem ! Napoleão 1.º veio
de Santa Elena para Pariz em grande aparato , e agora
mesmo reclama a familia de Habsburgo os restos mor
taes do ex-Imperador Maximiliano . As urnas funerarias
são de grande antiguidade - que mais fazia a vossa igreja
do que praticavão os barbaros do norte, ou os selvagens
da America, onde era uzo conservar as reliquias dos seos
mortos com uma especie de culto religioso ?
Sr. Padre Campos , o culto das reliquias não tem
outra fonte senão a do culto das imagens; e o culto das ,
imagens he uma especulação de lucro como os nichos de
Diana em Ephezo ! Angmentar pois todos os objectos de
crença sempre esteve no interesse do Clero : dahi a pro
digalidade da igreja na canonização dos Santos ; dabi a
profusão das reliquias e dos milagres; por que sem o
condimento dos milagres, seria muito difficil tragar as re
liquias-tirae os milagres e as reliquias cahirão por ter
ra. Eis ahi toda a historia do vosso miseravel culto ex
terno, que tanto depõe contra a moralidade dos povos
chamados catholicos .
He mais facil esperar um milagre, por meio de uma
oração ou de uma missa, do que trabalhar para ser ho
nesto e viver com honra ; he mais facil encobrir um cri
me , ou uma falta do que ser virtuozo , suffocando as pai
xões ruins , e dando provas de moralidade . Do que he
que não se pode obter perdão do Céo, segundo a vossa
alicantina ! mas para obter o perdão da sociedade, ou
para obter um lugar na comunhão da gente honesta , he
76

mister ser honesto como ella . Eis ahi por que he mais
facil acreditar nas reliquias do que ser homem de bem ,
on mulher honrada !
Em lugar dessas patranhas, por que não ensinaes ao
povo a amar a Deos sobre todas as couzas, e ao pro
ximo como a nós mesmos ? por que não pregaes o amor
ao trabalbo , para que não seja caloteiro ou velhaco ? por
que não aconselhaes o respeito aos mais velhos, e aos
constituidos em autoridade como manda Jesus Christo ?
por que não condemnaes a vingança , a ira , a colera, em
fim todas as paixões ruins , como contrarias a lei evan
gelica ? por que não fulminaes o adulterio , a prostituição ,
a lascivia e a desvergonha ? Por que antes não aconse
lhaes a probidade no homem , e o pudor na mulher, duas
virtudes que formão a baze da sociedade humana ?
Oh ! nada disto vos convem , e as reliquias deixão
dinheiro ! Que vos importa a sociedade , se viveis em luta
.
com ella , se tiraes partido de todos os vicios e de todas
as miserias humanas ? Sr. Padre , dezafio ao demonio
mais atrevido , ao proprio Satanaz , para que venha uivar
agora ou rugir ou berrar ; e a não ser algum diabo de
sctaina, que uiva e berra por que o fustigão ; que ve
nha outro uivar ! E porem para os diabos de sotaina ou
de cazaca temos um acamo para tapar-lhes a boca : he à
imprensa ; e assim he que vos hei de fazer callar ; em
bora chameis em vosso auxilio a escoria do nosso clero ,
que não val mais do que vós .
X

O Sr. Padre Campos cita uma porção de Santos pa


dres para provar que devemos venerar as reliquias dos
Santos ! ainda mais que devemos honrar as santas re
liquias ! Quid inde ? Mas , e o que tem venerar ou
honrar as reliquias com o cullo e adoração que lhes pres
taes ? venerar, honrar, Sr. Padre, não he prestar cul
to nem adoração , porque isto só se faz a Deos, e a mais
ninguem . Honramos, Sr. Padre , e veneramós a possos
paes ; devemos fazel- o aos nossos superiores, assim co
mo aos homens sabios e virtuosos, porque elles for
mão o grande nucleo da sociedade,
77

Para os homens constituidos em dignidade essa hon


ra e veneração he de lei positiva ; a que devemos á nos -
sos paes he de lei divina, e aos outros homens he pre
ceito de moral . Assim he que honramos e veneramos
aos restos mortaes de nossos progenitores ; ou de uma
mulher idolatrada ou de uma mãe carinhosa, de um pae,
>

que nos educou , ou de um filho querido-Ide no dia


2 de Novembro ao Cemiterio publico, e alli vereis os
rasgos mais pungentes de amor maternal ou filial, de
uma mulher por seo esposo , ou vice -versa - ide pre
-

senciar o verdadeiro culto de honra nessas corôas de


perpetuas e de saudades sobre a louza, que cobre os
restos preciosos de um ente querido ! Eis ahi , Sr.
Padre , as verdadeiras reliquias ; e as que apontaes não
tiverão em seo começo outro objecto senão o galardão
de grandes virtudes, ou de graudes beneficios a seos
semelhantes.
Isto moralisa ao povo, mas não rende dinheiro,
que he o objecto da vossa igreja ; então o que fez ella ?
inventou os milagres naquelles bellos tempos, em que
duvidar delles era o mesmo que cair dentro de uma fo
gueira impellido pela mão de Satanaz ! Ora , quem faz
milagres parece-se com Deos pelas costas ; por tanto às .
costas de Deos começou o culto das imagens, e depois
das reliquias ; e a igreja deo as costas à Deos, com
quem ella não se importa senão para tirar partido por
meio dos Santos ou das reliquias .
Para provar o culto das reliquias citasles, como
sempre de falso , S. João Chrisostomo , Euzebio de Ce
sarea , Socrates, Theodorelo e S. Ambrozio ; pois bem ,
Sr. Padre , eu vos provoco a que cileis nas obras desses
Padres , o lugar onde elles aconselbem o culto ás reli
quias , ou ás imagens ! Esse culto , Sr. Padre , só foi
decretado no fim do seculo 8.º ; como quereis que já delle
fallassem Euzebio , Cbrisostomo, Theodorelo e S. Ambro
sio , alguns seculos antes ? Para falsear, viciar, emen
dar, on inverter doutrinas conhecidas por todo aquelle
que tem mediana instrucção , ou para inventar e mentir com
descaro inaudito em materia que não podeis sofismar,
he necessario ter a cara forrada de bronze .
Finalmente o Sr. Padre Campos, abandonando a in
78

vocação dos Santos e o culto das imagens, porque não


as pôde sustentar, travou da sua durindana, recordando
se do tempo das suas façanhas de Panellas, e toca a in
vocar as reliquias em vez de Santos ; e fez um aranzel
ainda mais impertinente que a rapsodia passada . A is
to he que elle deveria chamar sarapálel ; as reliquias , os
milagres , os demonios uivando e rugindo , os mortos a
resuscitarem ; emfim uma tal anarchia na ordem da pa
tureza , que Deos vio - se abarbado para chamar a ordem
todas essas reliquias insubordinadas, que ſão dando com
o mundo em pantanas ! Sr. Padre Campos , outro of
ficio !
E de que servem os Santos ou as reliquias para
a nossa salvação ? Bastará citar S. Lucas ( Act . apost.
C. 4, v . 12 ) para vos confundir ! ( E não ha salva
ção em nenhum outro, porque do Ceo abaixo nenhum
oulro nome ( o de J. Christo ) foi dado aos homens, pelo
qual nós devemos ser salvos » Vēde pois, Sr. Padre,
se além de Jesus Christo ha outro nome pelo qual pos
samos ser salvos ! Vêde como o cullo das vossas imagens
he em pora perda , salvo para a vossa igreja , que vive
de semelbante culto .
Para que se veja quão desmiolada he a cabeça do
Sr. Padre Campos, citaremos as suas proprias palavras,
para concluirmos, como elle concluio o seo aranzel so
bre o culto das reliquias . « Omittindo, diz elle , a re
ferencia de muitos outros padres, como S. Cyrillo de Je
rusalem , S. Gregorio de Nysse , e tantos outros, que en
sinarão unanimemente o culto dos Santos, não podemos
deixar de addusir em favor da possa these o testemunho
do grande S. Jeronimo , no seo livro contra Vigilancio ;
no qual , depois de responder as objecções daquelle im
pio contra a veneração das reliquias dos martires, que
taxava de idolatria , como faz agora o Sr. Abreu e Lima,
prorompe : Oh ! cabeça desmiolada ! haverá entre os
catholicos quem tenha jamais adorado os martires !
De sorte que o Sr. Padre Campos cita Sr. Jeroni
mo para provar o culto das imagens ou das reliquias , e
S. Jeronimo diz justamente o contrario : Qual o catho
lico , que tenha adorado os martires ? pergunta elle , 80
passo que chama cabeça desmiolada aquella, que conce
79

he semelbante absurdo ! Como esta são todas as cita


ções do Sr. Padre Canspos , falsas ou contraproducentes .
Culto de imagens ou adoração de reliquias no seculo 4.° !
he mister levar o despudor á quinta essencia para dizer
semelhante desconxavo .
0 Sr. Padre Campos , concluindo o seo aranzel cha
ma-lhe luxo de erudição ! beatus venter ! e diz yne bas
ta o que fica dito para confundir eternamente o moder
no inimigo do culto dos santos ( muito obrigado pela
parte que me toca ) , que já não tendo que aborrecer
os homens , pelo muito que os aborrece, volta- se con
Ira Deos e os seos santos ! Ora bem , quem será o con
fundido nesta luta ? Do Rio de Janeiro são unanimes
as Cartas cheias de elogios pela minha obra . O que ba
de mais intelligente e de mais grado na alta sociedade
da Corte a eleva ás nuvens , e diz que o livro do Chris
tão velho he uma pagina brilhante da nossa littera
tura .
A propria imprensa do Rio lhe tece mil encomios ;
aqui mesmo nesta Cidade o que ha de mais notavel em
leltras , em costumes , em religiosidade verdadeira, e em
posição social, todos á uma tecem os maiores elogios ;
e o Sr. Padre Campos os tem ouvido com bem pesar
seu . Mesmo entre a parte illustrada do nosso clero tem
merecido muitos aplausos . Um padre velho e respei
tavel disse, fallando da obra : embora vá de encontro aos
nossos interesses , com tudo não posso deixar de confes
sar, que a doutrina he verdadeira !
0 Sr. Padre Campos me acusa de sedento de lucro,
porque vendi o meo livro a tres mil reis cada exemplar
com perto de 400 paginas : e que olho com olhos vesgos
e famulentos para os pingos de cêra , que se gastão nas
festas religiosas &c. A inveja matou Caim , diz o povo .
0 Sr. Padre Campos queria impingir a sua descompos
tura contra mim , com 30 pagivas , a dez tustões cada
folbeto ; e como não poude conseguil -o, apezar de an
dar tirando esmola de porta em porta , grita porque se
vende o meo livro sem que eu dê um só passo para is
so . Que culpa tenho eu que prefirão o meo livro á sua
rapsodia ?
O Sr. Padre Campos olha sempre com olhos vesgos
80

e famulentos para ludo quanto cheira a dinheiro ; e por


isso está continuamente a lançar - me em rosto essas
vilesas de que só elle he capaz.. Todavia SOU
obrigado a dizer- lhe , que quando o meo livro sahio do
prólo estava paga a impressão ao dono da typographia .
Desejamos saber se o Sr. Padre Campos costuma fazer
outro tanto com as suas impressões . Este padre he
uin mentecapto, ou não tem vergonba, quando lança em
rosto a um homem da minha qualidade cousas que o
deverião envergonhar, se tivesse um pouquinho de
pejo !
O Sr. Padre Campos procurou deffender a nossamoci
dade do labeo de pouco religiosa , e então pergunta onde ja
vi uma academia mais orthodoxa que a de Pernambu
co ! Felizmente esses moços, que começão sua vida lit
teraria , caminhão com o seculo ; e não he o Sr. Padre
Campos, que os ha de tornar hypocritas . Alguns ha de
ruim condição , que beijão as reliquias do Sr. Padre Cam
pos ; mas esses são tão poucos, que apenas servem pa
ra exaltar aquelles que não se curvão ante as beroardi
ces do novo Malagrida. O Sr. Padre Campos obrigou
um desses moços a commetter uma acção indigna contra
seos collegas ; cujo resultado foi a suspensão de um
periodico que todos redigião . Foi isto bonito, Sr.
Padre ?
O que he ainda mais galante , e digno de eternas
luminarias he que o Sr. Padre Campos se constituio o
campeão da moralidade das nossas familias , que nin
guem atacou . Achei muita graça em um sujeito, que
lendo essa parte do artigo do Sr. Padre Campos , excla
mou : Quis tulerit Grachos de sedilione quærentes ?
Com effeito , o Sr. Padre Campos, deffendendo a mora
lidade das familias, parece-se um tanto com - El dia
blo predicador-do padre Islas , isto he , quasi o anti
go adagio portuguez : bem prega Frei Thomaz, &c ,
A mania do Sr. Padre Campos he passar por um
grande sabio , e sobre tudo grande theologo - theologo ?
-

sim , porque não se pode ser bispo sem saber theologia.


Mas , onde aprendeo elle theologia ? salvo se provar que
a faculdade de theologia de Pageù de Flores he a Sorbona
do Brazil ! Pois bem, eu faria um contracto com o Sr.
>
81

Padre Campos ; isto he, obrigo -me a dizer por escripto


e de viva voz a quem quizer ler e ouvir, que o Sr. Pa
dre Campos he aim sabio perfeito , e que está habilitado
a deffender Ibeses de omni re scibili , como o celebre
Franciscano Macedo ; e de mais a mais, que he um gran
Je philosopho, mathematico , astronomo, chimico, phy
sico, naturalista, jurisconsulto abalisado , e até theolo
>

go , com tanto que me deixe tranquillo, senão


não .
Bem vê o Sr. Padre Campos, que seria mais facil
provar que elle he isliola , porque o provaria com as suas
proprias palavras, do que provar que he um sabio, pa
ra coja provanca seria mister de um esforço sobrehu
mano. Sem embargo, obrigo -me assim a carregar o
Allas sobre as costas, com tanto que me veja livre das
suas garras aguçadas. Seria grande trabalho , mas ha
via de conseguil- o. Não ha um burro santo ? o santo
burro de Verona ! e porque não ha de haver um burro
sabio ?
Finalmente o Sr. Padre Campos, depois de haver
me ameaçado com uma lição eterna no Diario de Per
nambuco de 4 de Julho ultimo, comutou a pena de mor
te em prisão e multa no Diario de 10 do mesmo mez. Já .
não me mata , por que não quer sair dos procedimen
tos legaes , unicos que se conformizão com o seo caracter e sen
timentos ! como já provou exuberantemente, quando foi
Delegado de Policia no Brejo da Madre de Deos, ou quan
do commandon ..... em Panellas de Miranda ! mas em
particular, e á cada um vae dizendo , que tem dous sobri
nhos , que são dous leões I quem quizer entender que
entenda !
0 Sr. Padre Campos protesta levar- me perante os
tribunaes, e previne aos impressores para que não in
primão a minha resposta sem exigir formal responsa
bilidade! e nesse mesmo artigo, em que me ameaça com
responsabilidade, elle me encha de injurias, e me en
lamea , me enxovalha, e me arrasta pelo po ; de sorte
que o Sr. Padre Campos pode insultar-me, injuriar-me ,
ameaçar-me impunemente, e eu não lhe posso respon
der, nem deffender -me, nem rettribuir -lhe sequer in
juria por injuria ! Ubinam yentium sumus ?
11
82

Onde iria parar a Sociedade brazileira com seme


Ihante principio ? Pois um assassino , um bandido po .
de ameaçar-me por escripto e de viva voz com um as
sassinato, injuriar-me, enxovalhar a memoria de meos
paes , e eu não lhe poderia se quer responder ? Se hou
vesse um juiz tão miseravel, que aceitasse uma queixa
do Sr. Padre Campos contra mim nesse sentido , esse Juiz
seria ainda mais infame que o Sr. Campos .
Donde vem essa immunidade, que se arroga o Sr.
Padre Campos ? Quem o elevou sobre mim , quem O
tirou do pó para cuspir-me injurias sobre a face, e eu
não lb'as possa devolver ? Por que esse Nolli me tan
gere, essa immunidade, esse privilegio ? quem lh'o deo ?
O Sr : Padre Campos está ao menos na Sociedade ao nivel da
minha pessoa ? pode comparar-se comigo ? não , meo
Deos, eu não soffreria semelhante comparação um instan
te ! não , por que estou muito acima desse calunga de
papellão , objeto do riso e da mofa deste povo , que o des
.
presa pela sua vida muito conhecida, e pelos seos ins
linctos revelados em uma serie de factos, que provão a
perversidade da sua indole ; e isto dil-o todo este povo ,
sem excepluar os seos proprios correligionarios.
Pois bem , Sr. Padre , chame-me a responsabilidade ,
está isso no seo caracter e dos seos sentimentos ! mas
lembre -se que, quando era aggredido, azorragado e fus
tigado desapiedadamente pela imprensa em fins de 1850;
quando os seos proprios amigos o abandonarão, fugindo
da lepra que o corroia; quando de todas as partes The
gritavão : assassino ! qnem vos defendeo, Sr. Padre ,
quem vos tirou de cima dos lombos esse labeo ; quem
fez calar a imprensa que vos desmacarava ?
Não vos lembraes, Sr. Padre, que por vossa causa
briguei com o defunto Estevão Montenegro , que redigia
então o Diario novo, e com o Dr. Luiz Duarte, que redi
gia a Imprensa ? Não viestes a minha casa agradecer
me ? Quantas testemunhas quereis que vos aponte ?
Se eu guardasse cartas de pessoas da vossa laia , pode
ria confundir- vos com ellas. Negae , Sr. Padre , se sois
capaz de tanta infamia, o grande serviço, que vos pres
tei naquella epoca , fazendo callar a imprensa á vosso
respeilo .
83

Para que , Sr. Padre , entrincheirar -vos no campo


da intolerancia religiosa ? A nossa discussão começou
por uma questão de facto ; isto he, se as biblias de
Londres estavão ou não falsificadas : provei que não .
Depois chamou-me o Sr. Padre Campos para uma dis
cussão puramente litteraria ; isto he , se taes livros dizião
ou não isto ou aquillo - provei que os livros não di
zião o que o Sr. Campos affirmava, ou dizião o que elle
negava .
Ora, o Sr. Padre Campos batido , vencido , esmaga
do no campo do facto e da lilleratura , chamou a ques
tão para o lado da fé, e fez de uma questão philosophi
ca uma questão religiosa ; e para abundar no espirito de
seita foi chamando em seo apoio alguns padres da ipfi
ma classe , e levando a intolerancia até a excomunhão
isto he, a ignorancia batida e vencida refugiou - se sob o
tecto da igreja !
Mas com isto nada gaubou o Sr. Padre Campos ;
indo revolver a poeira das sacristias , só achou o que
havia de mais ignobil entre o clero ; tudo mais lhe vol
tou as costas. Esse meio empregado pelo Sr. Padre
Campos não lhe pode aproveitar ; e para convencel- o
basta que apontemos o que lem ultimamente feito o cle
ro da Italia com a sua intolerancia, com as suas men
tiras e com os seos estupidos milagres : eis ahi o resul
tado Jessa luta contra a civilisação :
Dous bispos ( de Treviso e de Udine ) forão ape
drejados, e seos paços destruidos pelo povo - um delles
desceo do pulpito debaixo de uma apupada. O arcebispo
de Turim foi dezacatado no meio da rua . A procissão
do Corpo de Deos foi apedrejada e dispersa em Verona .
As igrejas estão dezertas, os padres espancados , como
succedeo depois do morticinio dos protestantes em Bar
leta .
As cadeias estão cheias de padres e frades. Um Ca
puchinho, por nome Manoel Setii , acaba de ser condem
nado pelo Jury de Brescia a trabalhos forçados , por ha
ver tentado assassinar uma moça , creada do Cura Ti
raboschi, que não quiz ceder aos ternos e amorosos de
sejos do padre . Em fim , a não ser a pertinacia de Luiz
Napoleão que lhe ha de sair tão cara como a do Me
84

xico ) , já Pio 9.º não existiria em Roma desde o tratado


de Villa Franca ; ou estaria nella ás ordens de Victor
Manoel, que he o mais certo ; e pouco vivirá quem não
vir ainda um no Vaticano e o outro no Quirinal. O
mundo marcha , ou em melhor portuguez : o mundo ca
minha !
EPILOGO .

Estão esgotados os dous artigos do Sr. Padre Cam .


pos ; e temos respondido cabalmente, tanto a questão
religiosa, como aos insultos, injurias e calumnias, que
o Sr. Padre Campos vomilou sobre nós de uma maneira
asquerosa e enjoativa . Quanto a questão religiosa pro
vamos :
1. ° Que o Deos dos Judeos não era o mesmo Deos
dos Christãos ; que o Deos de Moysés dista tanto do
Deos de Jesus Christo como a agoa do vinho ; que os
.
Judeos nunca conhecerão ao verdadeiro Deos, que só
Jesus Christo deo a conhecer.
2. ° Que uma couza era veneração das reliquias, e
outra o culto ou adoração, que só se deve prestar a Deos !
que a veneração das reliquias era a recompensa de
.
grandes virtudes, ou de grandes serviços prestados á hu
manidade pela pessoa , cujos restos mortaes erão honra
dos, como ainda hoje se pratica com os heroes ou ho
mens notaveis (1 ) por qualquer titulo . Mas culto, ado
ração, altar para reliquias só depois do seculo X por di
ante, como se praticou com as imagens .
Agora só nos resta, ao concluir a nossa enfadonha
tarefa, dar uma satisfação ao Publico , e um conselho ao
Sr. Padre Campos , unico fautor de toda essa tramoia .
Foi elle que pela sua habitual grosseria e petulancia ex
asperou - nos a ponto de cairmos no mesmo vicio que re
(1 ) O Sr. Padre Campos sabe que ha essa veneração pelas
reliquias dos grandes homens ou de mulheres celebres ; de sorte
que constatemente se anuncia a venda dessas reliquias, algumas
das quaes chegão a preços fabulozos, como por exemplo : a
caixa de rapé do grande Frederico, uma bengala de Voltaire;
um manuscripto em grego de Joana Gray: o Chapéo de Napo
leão , uma Carta de Buffon, as Horas de Maria Antoinette, & c, &c.
Nada disso tem culto. Sr. Padre, mas veneração como recorda
ções gloriozas, ou de grandes infortunios.
85

provamos . Quem não sabe que os velhos tornão - se iras


civeis por melhor coração que tenhão ? Não he pois de
estranhar, que impelido por umaforça maior fosse de en
9

contro á todas as regras da polidez, da urbanidade , e


mesmo do decoro , visto que fui ferido , não só no amor
proprio , como no intimo da honra .
Ao Sr. Padre Campos direi , que estou bem longe de
aceitar tudo quanto se diz delle , e muito menos o que
disse Nogueira Paz ; que repetil-o foi só para mostrar
lhe o abismo, que elle cavou entre ambos ; que chaman
do meos paes a terreiro, devia lembrar-se que tinha te
lhado de vidro ; que se não respeitava em mim a inte
ligencia , a pozição social, ou uma vida sem mancha , res
peitasse pelo menos a idade ; que provocando -me deza
.

bridamente por mais de uma vez, devia contar com a


repulsa ; assim he que aconselho ao Sr. Padre Campos,
que procure evitar ou cortar essa luta pessoal tão indi
gna de ambos .
O que tem de ver em uma questão litteraria a con
dição dos meos ou de seos paes ? Para que em uma
questão de facto , como se as biblias estão ou não fal
sificadas, veio um aranzél do dogma ou da disciplina da
igreja ? Para que transformar em luta religiosa o que
não deveria passar nunca de uma questão de litteratura ?
0 Sr. Padre Campos he pois o unico culpado de tudo
isto, pela sua mania de querer passar por grande theo
logo ! Seja -o muito embora, porém não á ininha custa .
Declaro ao Sr. Padre Campos, que não lhe tenho
odio nem rancor ; que he para mim pessoa lão indiffe
rente , como pode sel-o o mais desconbecido ; que lhe
perdôo as suas injurias, e as suas ameaças ; mas , pelo
amor de Deos , não me torne a ameaçar , por que não o
soffrerei - isto seria cazo requentado . Faça o que qui
zer, mas não ameace ; apelle para seos sobrinhos, para
um assassino qualquer, mas não faça em seo nome uma
ameaça por escripto nem de viva voz, que chegne a meos
ouvidos --he um conselho , tome- o se quizer.
Em quanto o Sr. Padre Campos não cumpre a pala
vra , que empenhou perante Deos e o mundo de dar-me
uma resposta por todo o mez de Setembro, vamos dizer
alguma couza sobre o estado politico do paiz .
86

O que mais peza hoje sobre a actualidade; o qře


mais preocupa o espirito publico he a guerra do Para
guay, que se prolonga além de toda a suspeita, além de
toda a credibilidade. As nossas ultimas esperanças fin
darão-se em Maio com a palavra honrada do nobre Mar
quez de Caxias. Hoje esperança só em Deos, e na bôa
estrella do Brazil. Está-se verificando o que tanto re
ceiavamos ; isto he, a influencia pernicioza dos nossos
alliados ! Deos arrede de nós o futuro , que se nos an
tolha !
Não somos suspeitos : temas na Campanha do Pa
raguay muitos penhores, que nos são bem caros ; mui
tos parentes e amigos , e nós mesmo lá estariamos ha
muito tempo, se a isso se não opusesse a nossa avançada
idade -vinte annos menos, e teriamos sido um dos pri
meiros voluntarios ! Houve tempo em que manejamos
uma lansa em proveito de estranhos ; mas hoje só con
selhos poderiamos dar, se nol-os pedissem á vista do
' terreno . E porém ha tanta gente que sabe mais !
A situação parece-nos insustentavel por muito tem
po ; he mister acabar com isso, mas acabar com honra,
e para nós não ha salvação fora de uma completa victo
ria ! Emfim levante-se o paiz como um só hornem --gen
te e dinheiro ! façamol-o com toda a nobreza e bizarria .
Cada um dê o que poder, mas dêew todos ; e os válidos
corrão a salvar a honra nacional e a integridade do Im
perio .
A questão religiosa , de que já nos ocupamos na
nossa segunda resposta , he tão complexa , que para tra
lar só d'ella seria mister um volume . Poderiamos 10
davia diser mais alguma couza , fallar da necessidade
de uma Constituição civil para o nosso clero, do ca
samento civil , do registro civil dos nacimentos e obitos
como base de uma Estatistica futura, das Ordens re
ligiosas, das nossas relações actuaes com a Corte de Ro
ma, & c, &c ; mas o que se poderia dizer na actualidade,
quando o Governo faz inquirição religiosa na tribuna
das Camaras ? Já be muito que nos não mande quei
mar em vida sem forma de processo .
E a emigração espontanea ? Oh ! lemol- a de sobra
nessa importação quotidiana de Jesuitas , Lazaritas e Ca
87

puchinhos, que afluem com uma abundancia espantosa ;


e ha muita gente , sem exceptuar alguns ministros , que
preferem esta emigração á norte-americana ; e com
effeito, os americanos trasem machinas ( quid inde ?) ,
aquelles padres, porém , trazem rozarios, benlinhos , ve
ronicas e reliquias, que na opinião do Sr. Padre Campos
valem muito mais que todas as machinas do mundo !
E dizem que o mundo marcha ! Pode ser , mas nós fi
camos como a mãe de S. Pedro !
Quanto a questão da emancipação diremos que , se o
9

Governo não tinha intenção de fazer alguma couza este


anno , para que aventou a idea ? He mister começar, e
não temos outro começo senão pela emancipação do
ventre escravo ! Para que lançar antes o facho no meio
da seara ? Parece-nos isto com as 300 raposas de San
são , que levarão o incendio as seáras e vinhas dos Fi
listeos ! Não he bom brincar com o fogo !

Agm fomos obrigados a suspender as nossas refle


xões politicas, assaltados por uma nova invasão de bar
baros. No Diario de Pernambuco de 28 de Setembro
começou uma serie de pequenos artigos, sob o titulo de -
.

Recordações historicas – em que se trata das- llerezias


dos iconoclastas ou quebradores das imagens— Não se
rá mister de grande esforço para provar, que nesses arti .
gos se atropellão os factos, se confundem as datas , trans
formando - se assim a verdade bistorica em prejuisos de
seita .
O Sr. Padre Campos insiste na maxima do Senador
Vasconcellos ; isto he, que a verdade he a mentira
muitas vezes repettida. Elle volta á carga sobre o cul
to sacrilego das imagens, em que já foi batido, e diz que
este culto data dos tempos apostolicos ; embora o con
tradigão todo o velho testamento, como o novo , de uma
maneira tão positiva , que não he possivel pol-o em du
vida ; todavia elle o repelle incensantemente á proporção
que he desmentido !
Seculos apostolicos são chamados unicamente o 1.º
e o 2. ° seculo da nossa éra , porque no primeiro viverão
88

os apostolos , e no segundo os discipulos dos aposto


los, e os discipulos destes . Pois bem , dezafiamos a
quem quer que seja para que appresente um só docu
mento , não diremos para provar o culto das imagens,
porem mesmo para significar qualquer veneração ( in
dependente de adoração ) á imagem de Jesus Christo,
antes do 1.º Concilio de Nicea, que o declarou consubs
tancial com o pae ! Para que mentir assim ?
Ainda mais : desafiamos ao Sr. Padre Campos, ou a
quem quer queseja , para que cite on appresente um Decre
10 pontificio, anterior ao do papa Constantino ( 708 ) , ou
de Gregorio 2.° ( 715 ) ; ou uma qualquer decisão con
ciliar antes de 2.° Concilio de Nicea ( 787 ), que falle on
0

autorize o culto das imagens ! Se não existe um só do


cumento anterior, segue -se que a veneração das imagens
9

só fui permitida, mas não autorizada, pelos Decretos de


Constantino e de Gregorio 2.º, pela primeira vez, lendo
aliás a igreja catholica vivido até alli ( o seculo 8.° ) ,
crescido e prosperado sem semelhante culto !
Ora, se apenas do principio do seculo 8.º data o pri
meiro documento , não de um collo , mas de simples
saudação e reverencia, como he expresso naquelle docu
mento , confirmado 80 annos depois pelo 2.º Concilio de
Nicéa , onde está o scisma do Imperador Leão Izauro ,
oppondo - se á essa inovação na Igreja ? E porem com
que antoridade o fez elle ? Como bispo exterior, digni
dade inherente ao solio imperial desde Constantino Magno.
Desde então travou - se a luta entre Roma e Constantino
pla ; luta que no fim do seculo chamou a si tambem Car
Jos Magno , corôado Imperador do Occidente, inimigo
declarado de todo culto as imagens , como já provamos
>

na nossa segunda reposta .


Pois acreditaes, Sr. Padre Campos , que os padres
do 2.º Concilio de Nicéa, e os theologos como o Padre
Antonio Pereira, andarião aproveitando os touros de bron
ze de Salomão , e os Querubins da arca , para provar o cul
to das imagens , se houvesse alguma outra prova nas
Escripturas, ou nos santos padres e doutores até o se
colo 8 0 ?
O caracter dos Gregos sempre foi a disputa , a dis
)

cussão ; da philosophia passarão para a religião ; mas não


89

forão elles os inovadores, foi Roma ; e sem o scisma de


Roma, ou dos Papas Constantino, e Gregorio 2.° seo suc
cessor, posso afiançar -vos pela historia , que Constantino
pla se conservaria tranquila ; e não terião apparecido es
sas scenas de escandalo, que afeiarão todo o seculo 8. ° ,
e ainda o 9.0 ! Dizer o contrario he ignorar comple
tamente a historia do Baixo - Imperio . Para que pois
fallar dessas cousas, Sr Padre ? Para que provocar dis
cassões, que não estaes habilitado a sustentar pela vossa
crassa ignorancia ? he mania !
Sabe-se entre tanto a razão por que a igreja latina
inventara esse culto , que começou por um simples acto de
cortezia e de reverencia ; mas que hoje forma só por si
a unica religião de Roma , e dos paizes que a reconhe
cem como cabeça da igreja catholica. E como desde
Gregorio 7.º toda a Europa foi privada do direito de
pensar, começou a mentira a substituir a verdade do
Evangelho, e singuem mais ousou desmentir a intitula
da igreja sob pena da fogueira .
O scisma ( pois que fòra um verdadeiro scisma ) nio
foi creado pelo Imperador Leão Izauro ; mas pelos Pa
pas Constantino e Gregorio , que decretarão, senão clara
mente o culto , ao menos a veneração das imagens , dando
lugar aos excessos do povo, sempre ávido de novidade,
até a adoração. Longe pois de ser scismatico , Leão
oppoz -se ao scisma dos dous papas ; scisma que, ape
zar da protecção da Imperatriz Irene, e da decisão do 2.0
Concilio de Nicéa;( tó veio a vigorar depois de muito mais
de um seculo de luta, ou depois da morte de Carlos
Magno ( 814 ) ; pois em quanto elle viveo, e ainda muito
depois até o seculo 10.º, não foi admitido em França
o culto das imagens, nem na Alemanha, nem nos paizes
do Occidende onde chegava a influencia do Imperador.
Diz o Sr. Padre Campos, ou alguem por elle , que
Leão Izauro mandara branquear as paredes das igrejas,
que erão decoradas de pinturas. Não foi Leão , Sr. Pa
dre , mas Constatino seo filho, depois que o Concilio de
Constantinopla , convocado por elle, declarou abominaveis
a pintura e a esculptura . Tambem diz que o mesmo
Imperador Leão mandara deitar abaixo um grande Cruci
12
90

fico, que Constantino Magno, depois da sua vicloria ,


mandára colocar sobre a porta do palacio imperial.
Tudo isto está adulterado ; não havia tal crucifixo, he
falso ; porque crucifixo he a imagem de Christo cru
cificado ; mas havia um cruzeiro ; isto he, simples
mente uma Cruz ! E porem a cruz, Sr. Padre Cam
pos , he o labaro , com que Constatino vencêo o Maxen
cio ás portas de Roma ! Logo não foi posto o Cruzeiro
em Constantinopla depois da batalha em Roma ; mas mui
tos annos depois ; e vós sabeis, que o labaro foio pendão
ou bandeira , com que Constantino venceo ao seo compe
tidor .
No Diario de 30 de Setembro continúa o Sr. Padre
Campos a sua ladainha a favor do culto das imagens ;
ahi vem uma serie de atrocidades commettidas pelo Impe
rador Constantino contra os adoradores das mesmas ima
gens . Então não ha crueza , ou perversidade, inventada
depois pela igreja na sua perseguição contra o genero
humano, que não seja atribuida a Constantino . Feliz
' mente não ha entre essas atrocidades uma só dessas
mil infamias, que se derão nas inquizições de Hespanha,
de Portugal e da Italia ; nem mesmo das que praticou o
celebre Domingos de Gusmão , até empoçar a grande
dama Giralda !
Segue-se depois outra serie de falsidades horripilan
tes , quasi todas inventadas, como costumão invental-as os
intitulados catholicos, que só vivem de falsidades : narizes
cortados , carnes dilaceradas com açoutes , barbas untadas
de pez e queimadas ; imagens quebradas sobre as cabeças
dos adoradores , &c &c, ! e outras feridades, que não lem
brão ao diabo ! Tudo isto não passa dos milagres das
reliquias do Sr. Padre Campos, e dos uivos dos demo
nios, e da abertura das aguas do Eritreo, e da capa de
Elias , e dos ossos de Eliseo !
A gora disei-nos, Sr. Padre, o que fez a vossa igreja,
o que fez a vossa Santa inquizição ? Alem das crue
sas e feridades, a devassidão, a lascivia, a prostituição,
a torpeza, o assasinato , o morticinio, o estupro, o latroci
nio , a infamia, o roubo qualificado, o cumulo emfim do
>

todos os vicios ; o non plus ullra de todos os crimes.


Sabeis o que fazião aquelle bispo e seos collegas da in
91

quisição de Coimbra, de que falla o Sr. A. Hercula


no ? Pois bem , era apenas um passatempo, um pospas
to para depois do janiar : era o café daquelles bons pa
dres !
Vêde aquelle celebre arcebispo, que tendo violado
no proprio tribunal do Santo Officio de Sevilha, uma in
feliz menina , apunhalou-a com as suas proprias mãos .
logo que ella se sentio pejada ! Vêde aquelle carcerei
ro da inquisição do Porto, que tendo violado uma infe
liz donzella christã nova , condemnada com sua mãe a
carcere perpetuo , servia depois ella para dar tralos as
outras, fazendo alardo do seu ventre crescido entre
as paredes do tribunal ( A. H. Or. da Ing . i . 3
p. 159. )
Vede as meninas , que forão do Brazil , entre 13
e 20 annos de idade, que fim levarão , porque nun
ca mais se soobe dellas-para que , Sr. Padre ? Que fo
rão fazer essas infelizes crianças á inquizição? Ao me
nos Constantino só perséguia aos homens, mas a vossa
igreja era inbexoravel com as mulberes ! Constanti
no era cruel , e a vossa igreja além de cruel devassa !
>

Haja vista do processo de Margarida de Oliveira aos 74


annos de idade , e toda chagada ( A. H. t. 3 p . 111 no
ta ) . Ainda mais : « Velhos , mulheres honestas, don
zelas pudibundas marchavão em levas ( de Lamego pa
ra Lisboa ) e esse largo transito convertia - se em dilatado
tormento > ( Id . t. 3 p . 126 )
Em Aveiro , Viseo , Guarda e Trancoso o tribunal da
fé era a anarchia ; neste ultimo lugar, depois das alro
cidades commertidas pelo povo em nome da religião con
tra os infelizes christãos novos , 300 crianças vagueavão
pelas visinhanças sem abrigo, chamando por seus paes ,
presos e arrastados até Evora, e alli lançados nas covas da
1

inquisição . ( Id . t. 3 p . 143 )
A's vossas barbas de pez incendiadas opporei o se
guinte : « Se , culpado ou nio , continuava à affirmar
à sua innocencia, retalhavão-lhe as plantas dos pés , un
lavão-lhas com manteiga, e aproximavão- lhas do fogo >
( 10. 1. 3. pag . 167 ) . Quanto a ferocidade dos inquisi
dores pouco basta para proval - a : « Nem a belleza e o
pudor dos annos floridos , nem a velhice, tão digna de
92

compaixão na mulher, eximião o sexo mais debii da ferom


cidade brutal dos suppostos deffensores da religião .
Havia dias em que sete ou oito erão meltidas a tor
mento ) ( Id . t. 3. p . 172 )
Vêde pois , Sr. Padre, como o feilico se virou con
tra o feiticeiro, como os idolatras forão muito melhor
tratados do que os proprios christãos , só pelo crime
de terem alguma fortuna , ou uma mulher ou uma filha
bonita . Por tanto ficão muito aquem as perseguições
dos iconoclastas ; se taes perseguições não fossem con
sequencia immediata da intolerancia commum a todas as
religiões , e a todas as seitas ; entre as quaes figura em
primeiro lugar a seita romana .
Finalmente no D. de Pernambuco de 2 de Outubro apa
receo a conclusão das Recordações historicas, fallando
do 2 • Concilio de Nicea , como para confirmar o suppos
to culto das imagens, oitenta annos depois do Decreto
do papa Constantino, a que resistio toda a Christandade,
desde o Oriente até o Occidente, desde o Meio dia até o Sep
tentrião , apesar da tendencia dos conversos de origem
pagãa para o politheismo, ou para o culto das ima
gens .
Havia alguma cousa, que animava entre o povo a
crença ou a fé nas imagens. Em Ingar porémn de il
lustrar a gente ignorante , de mostrar -lhe, que a sua ten
>

dencia para o culto material era contra o primeiro pre


ceito do Decalogo , quabravā0 -se as estatuas, objecto da
sua veneração , e prohibia -se que fossem honradas e ve
neradas . A violencia estimula mas não convence ; e os
padres, principalmente os monges, interessados nesse
culto, tirarão partido dessas perseguições, animando o
vulgo, e fazendo consistir a religião nesses objectos sen
civeis, suppondo-lhes sempre alguma virtude milagro
sa . ( Bred . Hist. univ . )
Todavia, só depois da morte de Leão 4.º, e duran -
te a menoridade de seo filho Constantino 5.º , poude
restabelecer -se, não o culo, que nunca houve até en
tão, mas uma especie de exposição, collocando - se as
imagens nos templos, nas casas, nas ruas , e até nas es
tradas. Fôra a imperatriz Irene , como Regente na
minoridade de seu filho, quem concorrera para esse de
1

9 :3

senlace ; e pondo - se de accordo com o papa Adriano,


convocou ella mesma um Concilio para Constantinopla .
Entretanto a opinião geral no Oriente e no Occi
dente era contra o culto das imagens ; e o Concilio só
poude reunir-se em Nicea no anno de 787 ( foi o 2.0
deste nome). O resultado foi que o Concilio , depois de
graves e acaloradas discussões, declarou que as ima
ens podião ser expostos nas Igrejas , nas casas e nas es
tradas ; restabeleceo a pintura nas paredes ; mas decla
rou igualmente que á essas imagens não se devia dar
culto , e tão somente saudação e reverencia !
Diz o final do artigo do D. de Pernambuco de 2 de
Outubro , que assim foi extincta por então a heresia
sanguinaria dos Iconoclastas , contra quem o Concilio
fulminou anathema . Sentimos que o Sr. Padre Cam
pos ande sempre atrazado na historia ecclesiastica, e >

que creia no primeiro alfarrabio, que encontra ; e isto


por não querer, ou por não ter tempo para estudar .
O Concilio de Nicéa devia dar v fructo, que a sua
convocação trouce no ventre : a fanatica Irene não po
dia contentar-se com tão pouco . Seo filho , chegando a
maioridade , assumio a autoridade que arrancou das mãos
de Irene : esta vingou -se , tirando -lhe os olhos, e cha-
mando a si novamente o poder, que conservou até 802,
em que Nicephoro a apeou do throno, desterrando - a
para Lesbos , onde morreu no apno seguinte .
Entretanto o papa Adriano mandou as Actas do 2. *
Concilio de Nicéa a Carlos Magno, á cuja missiva res
pondeo, convocando e presidindo elle mesmo o Concilio
de Franckforl, que condemnou a doutrina do de Nicéa,
e fulminou o culto das imagens ; em consequencia do
que mandou Carlos Magno compôr por uma junta de
bispos, e publicar em seo nome os celebres livros cha
mados carolinos, contra o Concilio , que se teve oculta
e arrogantemente na Grecia para fazer adorar as ima
gens , (Gaillard, 2.0 vol . )
Foi tal o effeito do Concilio de Nicea em toda a
França e em toda a Alemanha ; foi tal o escandalo, que
>

causou, que o papa Leão 3. ", successor de Adriano, para


acalmar o Imperador Carlos Magno , lhe mandou logo
o estandarte de Roma , pedindo - lhe que enviasse alguem
>
1

94

para receber em seo nome o juramento de fidelidade


do povo romano .
Foi de curta duração o triumpho de Irene em Ni
céa. Deposta e desterrada , Nicephoro protegeo de novo
os Iconoclastas; e assim progredirão as cousas ate fios
do seculo 10, em que o papa João 16 se lembrou de
canonisar os santos; isto he, de introduzir na igreja a
apotheose dos pagãos . Foi depois do seculo 10, Sr.9

Padre, que se estabeleceo o culto das imagens , o qual


.

se distinguia do verdadeiro culto, ou do culto de Deos


dando - se a este o nome de latria , e aquelle o de dro
lia ; isto he , a Deos o culto de adoração , e aos santos
e reliquias o culto de honra tão somente .
Abi tendes pois o que diz a historia : o Concilio de
Constantinopla , convocado pelo Imperador Constantino
Copronymo contra os primeiros decretos dos papas Cons:
tantino e Gregorio 2.0-depois o 2.º Concilio de Nicéa
convocado contra o de Constantinopla , e mandando ex
pôr as imagens nos templos, nas casas, e nos cami
nhos-o de Franckfort convocado e presidido pop Car
los Magno , fulminando o de Nicéa , e declarando idola
tria o cullo ou veneração das imagens . Por tanto ahi
tendes dous Concitios contra o culto, e um a favor da
veneração : ahi tendes toda a igreja grega , quasi todo o
Occidente contra Roma idolatra . E a não ser a deca
dencia da dynastia carlovingiána , ficae certo que o culto
das imagens nunca haveria vingado .
Eis abi respondidos os tres pequenos artigos do Sr.
Padre Campos , ou de quem quer que seja , sobre o cul
to das imagens. Bem vê que o não deixo pôr pé em ra
mo verde .
P. S. -Acaba de publicar-se no D. de Pernambuco
de 4 e 5 de Outubro uma Pastoral do Sr Arcebispo da
Bahia contra os erros perniciosos do Espiritismo, com
data de 16 de Junho do corrente anno . E qual não foi
o nosso assombro , lendo na dita pastoral quasi todo o
artigo do Sr. Padre Campos publicado no mesmo D. de
Pernambuco de 10 de Jolho, sem declarar donde havia
tirado aquella doutrina , que teve apenas o descòco de
mutilar e alterar , pondo na bocca de Jesus Christo as
95

palavras de Abrahão , e invertendo o argumento do Sr.


Arcebispo em favor do purgatorio .
Causa nojo tanta audacia ! Alguem disse logo que
o artigo não era delle ; mas vendo eu a falsificação do
Evangelho , não pude altriboil- o a outrem . Agora vê-se
que , citando o Sr. Arcebispo o Evangelho , e copiando
exactamente a parle em que S. Lucas falla do rico ava
rento , o Sr. Padre Campos, furtando esse pedaço da
Pastoral , falsificou a citação do Sr. Arcebispo, o que
Delle he manha velha, porque ou cita de falso, ou mu
tila e inverle o que cita -tão certo he que o Sr. Padre
Campos tem negação absoluta para litterato .
Se podessemos adevinbar que o artigo do Sr. Padre
Campos era um roubo feito ao Sr. Arcebispo, teriamos
apenas notado a falsificação daquelle Padre, mas nada
diriamos em resposta ; não só por que a nossa luta he
exclusivamente com o Sr. Padre Campos ; como por
que temos pelo Sr. Arcebispo toda a veneração e respei
to que nos merece, assim pelo seo elevado cargo como
por suas virtudes exemplares .
O CHRISTÃO VELHO .
O PROTTESTO DO DIARIO DE PERNAMBUCO
DE 7 DE AGOSTO .

Lemos o prottesto , publicado no Diario de Pernam


buco de 7 de Agosto ultimo , escripto pelo Sr. Padre
Campos, e assignado por 30 padres, dos quaes, tirando
dous ou tres respeitaveis pela sua idade e bons costu .

mes, tudo o mais he da escola do Sr. Padre Campos.


Todos são perfeitamente conhecidos, até um mize
ravel portuguez, que chegando ha pouco tempo com a
compelente caixa de pinho e tamancos , já se julga ha
bilitado para intrometer -se nas lutas do paiz. Nessas
assignaturas, cujos nomes bastão para uma resposta so
lemne , por que não se sabe o que mais prevaleça, se a
vida devassa e corrompida, se os crimes por que alguns
já tem sido punidos, ou as infamias com que polluem
todos os dias as vestes sacerdotaes , devem notar - se al
.
guns dignos das galés , outros de asquerosa presença ,
. outros de repugnante contacto .
Sabemos que a propaganda foi geral ; que se abal
roou a muitos outros padres ; mas os honestos e vir
tuosos, os padres que merecem este titulo, recusarão
peremptoriamente ; elles não quiserão assossiar -se ao
que havia de mais nojento e asqueroso na sua classe .
Entre as assignaturas do prottesto ha uma, que sem
pre nos mereceo respeito , e até della já fisemos menção
hoorosa n'outra ocasião, ainda que não denominada
mente . Mas, o que podia fazer esse pobre velho , hon
rado e simples como uma pomba, quando apertado insi
diosamente pela serpente, foi enganado como a Eva do
Paraizo ?

Meo Deos ! não me deis a salvação , se eu fosse tão


religioso como esses bonzos, como esses padres que assi
gnarão um libello tão infame como esse protlesto. Im
pios são elles , sacrilegos nefandos, anti-christãos , e mui
tos delles completamente atheos - ha uns dez ou doze
verdadeiros réos de policia ; e cuja vida dissoluta he
geralmente conhecida .
lojustiça seria se eu contasse entre o Clero de Per
nambuco essa cafila maldita ! 0 Clero de Pernambuco ,
que já foi o primeiro clero do Brazil he hoje taxado de
97

ignorante , mas não de perverso ; e se ha excepção, como


sempre se dá , achar -se -ha entre os assignantes do pro
ttesto ; de quem se pode dizer, como dizia S. Paulo aos
Filippenses ( C. 3, v . 19 ) « cujo fim he a perdição , cujo
Deos he o ventre »
O Ventre , disse S Paulo ! pois bem , eis ahi toda a
questão . Essa horda de Beduinos não se importa com
Deos , nem com Jesus Christo, em cuja divindade não
acredita ; mas não lhes toquem no Purgatorio de que vi
vem , nem nos Santos porquem lucrão, visto que o Deos
dessa canalha he o ventre, como diz S. Paulo .
Então todos são Demetrios, todos são como o Ouri
ves de Ephezo , que convocou o povo , e arengou contra
S. Paulo , por que pregava contra os idolos de prata, que
tal Demetrio fasia ; isto he , os nichos de Diana . Então
disse o tal ourives Demetrio ao povo ( Act . C. 19 , vv . 24
a 30 ) :
< Varões , vós bem sabeis , que o nosso ganho nos
resulta deste artificio , e estaes vendo e ouvindo, que não
Sò em Ephezo, mas em quasi toda a Azia , este Paulo
com as suas persuasões aparta do nosso culto muita
gente ; dizendo que não são Deoses os que são feitos por
mãos dos homens ! Pelo que não somente correrá pe-.
rigo de que esta nossa profissão venha a ficar em descre
dito ; senão que tambem o templo da grande Diana será
lido em nada ; e até começará a cahir por terra a ma
gestade daquella , a quem toda a Azia e o Mundo adora !
.

Ouvindo isto, se encherão de ira , e levantarão um grito,


dizendo : Viva a granıle Diana dos Ephezios
Querendo S. Paulo appresentar- se ao povo enfure
cido, os discipulos não consentirão ; pelo que, logo que
apasigou o tumulto, o Apostolo retirou-se para a Mace
dunia.
O que são pois os assignantes do prottesto, ou os
Protleslantes do Diario de Pernambuco de 7 de Agosto
senão outros tantos Demetrios , cujo ganho lhes rezulta
desses artificios, que elles julgão feridos pelo Christão
Velho ? se elles podessem faser uma assuada, como fez
o Demetrio de Ephezo ; se não tivessem medo da poli
cia , ou do trộco que levarião ; elles terião convocado
o povo , e gritado :
13
98

.« Varões ! vos bem sabeis, que o nosso ganho nos re


sulta destes artificios ; e esse Christão Velho com as suas
persuasões aparta do nosso cullo muilas gentes , dizendo
que não são Deoses os que são feitos por mãos dos ho
mens D
Se a religião de Jesus Christo não tivesse outros de
ffensores que o Sr. Padre Campos , e esses que o acom
panharão , devia ter - se vergonha de ser christão em Per
nambuco . Esses Demetrios tem tanta religião como um
Cavallo ; e ainda menos, por que o Cavallo tem a religião
do instincto ; e elles nem essa lem , por que os instinctos
Jessas bestas estão inteiramente pervertidos e estragados.
De alguns delles basta procurar - lhes as chronicas
nos estabelecimentos publicos, de outros nas casas de
alcouce ; um Jelles he tão estupido que não acredita
em cousa alguma . Eis ahi os confrades do Sr. Padre
Campos, que não he melhor que todos elles, segundo
diz toda esta provincia , sem excepção dos seos proprios
correligionarios.
Quereis saber o que são os protlestantes do Diario ?
Pois bem , no dia em que sahio o tal protesto, eu não
podia dar um passo na rua, que não fosse retido por al
guem para contar -me a vida e milagres de algum des
: ses padres , cujas chronicas escandalosas andão na boca
de todo este povo . Eu só conhecia uns tres ou quatro
desses bandidos, todos os mais erão novos para mim ,
mas muito conhecidos nesta Cidade .
E porém , o que mais me teria irado, se eu fosse
capaz de ter odio a ninguem , he esse aventureiro por
tuguez , que veio da sua terra com as cuecas do pae, e
já hoje tem o atrevimento de chamar-me espirilo Sata -
nico ! esse canalha não passa de um réo de policia ; e
eu o recomendo à sua vigilancia : cuidado com as notas
falsas !
Fallaes, Senhores padres, em nome do Clero Per
nambucano : mentis , por que sois a escoria desse Clero ,
e não podeis fallar em seo nome ; e a prova he que nesse
aranzéi de estupida algaravia , não aparece o nome de ne
nhum desses padres respeitaveis pelas suas pozições e
inteligencia ; nenhum desses padres de vida verdadei
ramente christāa - os que assignarão são pouco mais ou
menos como o bandido que os arrebanhou .
99

Por que me chamaes impio, por que me chamaes


espirilo Satanico ! quando vos sois dirigidos pelo mais
infame , mais impuro, mais impio de todos os perversos,
que existem ou possão existir em Pernambuco ? Dizei ,
Senhores padres, lestes por ventura o meo livro ? Citae
um só lugar, onde a doutrina do Evangelho fosse deza
catada , deturpada , falseada, ou invertida por mim ? Apon
tae um só lugar, onde os nomes de Jesus , e de sua mãe
Santissima fossem citados com irreverencia ; em que eu
puzesse em duvida um só dos misterios da religião chris
taa , ou que duvidasse um momento da doutrina dos Apos
tolos, doutrina que o Sr. Padre Campos falsea, dogmas
que elle nega , como o da intercessão de Jesus Christo ,
como o da primasía do seo divino sangue ?
O que sois vós , bonzos miseraveis, muito abaixo do
ourives de Ephezo , cheios de vicios e deffeitos; e alguns
até criminosos , e que devião estar nas galės ; disei: que
mal vos fiz eu ? qual a queixa que tendes de mim ? quando
vos offendí ? onde está a minha impiedade ? Espirito sa
lanico me chamaes vós , e porque ?
Se pode ser impio ou espirito satanico um homem ,
que nunca deo escandalo na Sociedade ; que em sua vida
intima ou publica não ha uma nodoa ou mancha que a
desfei; conhecido pela austeridade dos seos costumes
exemplares, pela sua probidade imaculada , pela hones
>

tidade emfim com que vive no seio das mais importantes


familias desta provincia ; então , Senhores padres, o que
sereis vós , pela maior parte verdadeiros bandidos ou réos
de policia ; devassos, e alguns até ladrões, sacrilegos ,
adulteros, quasi todos estupidos, e o que não he estupido ,
he ignorante e velhaco ? Emfim sois a escoria do clero
pernambucano, onde ainda se encontrão padres dignos
desse nome .
Se eu fosse capaz de ter odio a alguem , como ji
disse, esses padres terião excitado inuito mais a minha
colera, do que o proprio bandido que os aculou ; por
que este estava no potro, e devia berrar, por que o fus
tigavào ; mas vós, senhores padres ! quem vos chamou
para uma discussão litteraria ; para que intrometer - vos
em uma questão, que nada linha comvosco ? Oh ! sois
a corja mais desprezivel, que conheço, por que apenas
100

sois vil justrumento em mãos de um perverso , que joga


comvosco como se joga com uma pella; fostes apenas
uma arma de arremesso nas mãos de um scelerado.
Qual he o vosso papel nesta luta ? Sois uma mati
Iba de Cães damnados , que um malvado atirou sobre
mim ; mas que só a elle morderão, por que o matarão
no conceito publico ; crendo ferir -me, suicidou -se com
as suas proprias armas. Se não estaes abaixo delle, em
parelhaes perfeitamente em costumes e em saber; mas
vós, Senhores padres , não me podeis attingir - estou
muito, muito , muito alto colocado !
Se a minba inteligencia estivesse ao vosso alcance ,
vós verdadeiras bestas de tiro ; que teria eu de agrade
cer a Deos ? Está claro que o vosso bestunto fica muito
abaixo das solas dos meos sapatos .
Entretanto tendes uma virtude: não usaes de mas
cara -- aprezentaes-vos sempre na Sociedade como sois ,
isto he, com todas as vossas mazellas a vista de Deos e
• do mundo. O que se enganar com vosco será por sua
propria culpa . Eu não me enganarei , mas perdo-Vos
de todo o meo coração ; eu vos perdôo, Senhores padres,
pcr amor de Jesus Christo, para que elle inlerceda por
mim afim de que me sejão lambem perdoados os meos
peccados.
Agora duas palavras ao Sr. Padre Campos . Antes
do prottesto do Diario de Pernambuco de 7 de Agosto ,
veio um Soneto e depois outro, encomendas do Sr. Pa
9

dre Campos . Os taes sonetos, pela sua frase nauseabun


da e immoral, causarão geral iedio, que foi reflectir so
bre as vestes prelaticias do Sr. Padre Campos ; então
começou elle a dar satisfações e a dizer, que aquillo ti
nha sido feito sem o seo consentimento ; e a um amigo
meu pedio encarecidamente qne me dissuadisse de se
melhante crença .
Ora , para que os Sonetos fossem impressos, com in
tervallo de dous dias um do outro, no Diario de Pernam
buco, era mister toda a interferencia do Sr. Padre Cam
pos , por que ainda não julgamos tão gangrenado o Co
ração desses mocos, donos e administradores do Diario ,
que imprimissem semelhantes versos por sua conta , di
rigidos contra um velho respeitavel por muitos titulos ,
101

e um litterato ; elles moços de leltras , e que começão


sua carreira no mundo .
Se o fizerão por sua propria conta , então devem
estar abaixo de qualquer scelerado , por que começão
sua vida publica por um acto de inqualificavel torpeza,
o que não he de crer ; logo o fizerão somente acocha
dos pelo Sr. Padre Campos ; por que só elle seria capaz
de perverter a indole desses moços a ponto de tornal-os
indignos da minima consideração .
Pois bem , apezar das satisfações do Sr. Padre Cam
pos , os Sonetos contingarão a sahir no Diario de Per
nambuco - isto servirá de mais uma lição ao nosso
velho amigo P. B.
O Sr. Padre Campos pode dar as satisfações que
quizer, que ninguem lh'as leva em conta ; nem elle po
derá já borrar do animo da gente sensata de todos os
partidos a impressão desagradavel, que em todos elles
cauzou a publicação de semelhante torpeza , filha legi
tima daquelle famoso artigo, publicado no Diario de 3 de
Julho do anno proximo passado . Oh ! o Sr. Padre Cam
pos he sò igual a si mesmo ! não lem parelha .

Entre varios artigos, publicados no Jornal do Com


mercio e Diario do Rio sobre nossa obra, escolhemos o
que menos offende a delicadesa do Sr. Padre Campos ,
ou talvez o que o trata com mais benevolencia , para que
veja que não lhe temos essa má vontade, que elle sup
põe . Eis ahi o artigo extrahido do supplemento do Jor
nal do Commercio de 7 de Setembro do corrente anno .

UM LIVRO IMPORTANTISSIMO .

Travou-se , ha algum tempo em Pernambuco , e pro


mette continuar , uma discussão a proposito de biblias fal
>

sificadas. Tratava -se de saber se havia ou não altera


ções nas biblias impressas em Londres e pas impressas
em New - York . O'Sr. arcebispo da Bahia em uma pas
toral declarou que estas erão falsificadas , e monsenhor
Pinto de Campos accrescentou que , não só essas , mas
102

tambem as biblias de Londres, continhão notaveis alte


rações.
Contra a asseveração dos dous membros da igreja,
sahio a campo um escriptor que, com o pseudonymo de
Christão Velho, dizem ser o Sr. general Abreu e Lima .
Se a discussão tivesse ficado no terreno das biblias
falsificadas, reduzia-se a uma simples contestação de facto
e interpretação de texto . Mas a discussão foi além , e o
Christão Velho entrou em larga controversia sobre mui
los pontos de doutrina religiosa e historia ecclesiastica .
0 Christão Velho reunio depois alguns artigos e com
pletou o volume de 372 paginas que temos á vista.
Tratão -se ahi muitas questões de magna gravidade.
De um simples cotejo de traducções passa o adversario
de monsenhor Pinto de Campos á discussão da tradição
catholica , da ecumenicidade do concilio de Trento , da in
terpretação dos livros sagrados, da inquisição, da doutri -
9

na do purgatorio e das imagens, das relações entre o tem


poral e o espiritual, finalmente com outras questões que
se derivão destas , e que pedem animo detido еe esclareci
da intelligencia .
Para apreciar como convém este livro, pesando,
comparando e meditando todos os seus argumentos, se
ria preciso possuir condição igual á do autor. Não te
mos essa base . Dizemo -lo com franqueza ; nem o nosso
tim é dar um juizo definitivo acerca da obra. Sem duvi
da , estamos acostumados a ler estudos sobre a historia
dos primeiros tempos da igreja ; aureos tempos que ser
virão de portico ao eterno ediflicio do christianismo. Co
nhecemos igualmente alguns dos grandes padres jasta
mente venerados no orbe catholico .
Emfim , tanto quanto pode fazê-lo um homem que
não tem estudos especiaes, temos pensado e meditado
nos assumptos religiosos. Mas não basta instrucção in
completa e falha para apreciar livros como este , que o
general Abreu e Lima acaba de apresentar ao publico.
Para discutir com elle é preciso suber u materia lanto co
mo elle .
O nosso fim , pois , é somente reconhecer que o au
lor do livro em questão possue a fundo a materia em que
falla. Toda a parte da comparação entre os livros proto
103

canonicos e deutero - canonicos indica, só por si , longo e


1 aprofundado estudo da parte do autor. Não se escrevem
taes livros com instrucção recente, é preciso tê-la de lon
ga data, accumulada com os tempos, completada e con
firmada por costante leitura ., O adversario do Christão
Velho é pessoa conhecida : para julgar, cumpre ouvi -los
ambos em todos os pontos.
O que é de lamentar é a forma do debate : não é pec
cado esse exclusivo dos contendores de Pernambuco ;
vem de longe; as questões religiosas forão sempre tra
tadas com desusado calor e azedume. Nos escriptores
seculares é reparavel o facto ; nos ecclesiasticos é con
demnavel, porque os sacerdotes de Christo nunca devião
perder de vista a mansidão de que é typo o fundador da
igreja . Tant de fiel entre- l - il dans l'ame d'un levot ?
Quanto á doutrina do Christão Velho , não hesitamos
em dizer que elle ataca de frente muitas ideas que a nos
sa educação transmittio á nossa razão .
E' sem duvida legitimo o desejo do autor quando re- •
clama uma reforma na igreja, uma religião primitiva,
nos termos do Evangelho ! Mas o Evangelho de que fal
la o autor é o Evangelho interpretado livremente ; o Evan
gelho de que falla monsenhor Campos é o Evangelho in- .
terpretado pela igreja catholica; o accordo é in,possivel.
A autoridade da igreja não pode conciliar - se com
a liberdade de interpetração , consequentemente o deba
te entre monsenhor Pinto de Campos eo general Abreu
e Lima não chegará a resultado nenhum . Só um resul
tado haverá, e esse temo -lo aqui á vista : é a competen
cia litteraria do Sr. general Abreu e Lima , para a inves
tigação de taes assumptos, a sua iostrucção variada e po
lida , o vigor da sua intelligencia , a lucidez da sua lin
goagem , ás vezes acerba e pouco respeitosa para o nosso
>

Gulto, mas emtim convencida.


Nazianzeno.

FIM .
800,
ERRATA

Paginas. Linhas. Erros . Emendas .


4 8 pôs poz
32 38 estanto estando
37 10 excreveo escreveo
59 23 pelle pella

Pern . - Typographia Commercial 1867 .

Você também pode gostar