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\IBI\ÈB)IBr\êll\B/iiSl«IB\EI\BI«Wi'Bà'

g MERCADOR DE LIVROS E DE MUSICA,


§ Rua da Quitanda, n° tfetf, y^ >
*§l En«re a rua do Ouvidor e a do Rozario, 0 ^i
§ '. •. .' cFLio De íaiteito. A\r/^. ' §
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A
Bayer. Staatsbibliothek
AS INSTITUIÇÕES
DA L0GICA
ESC R I T A S
PARA O USO DOS PRINCIPIANTEj;
SENDO SEU AÚTHOR
ANTÓNIO GÈNÚENSg
Meflre de Ethica na Real Universidade
de Napoles ,
TRADUZIDAS POR
MIGUEL CARDOSO.
SEGUNDA EMPRESSAÕ.

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L / ^g i ?
NA TYPOGUAFíí^AtERDmA.
I 806.
C»m licença ia Me\a i• Desembargo io Paci.'

Vende-fe na mefnta^ Officwa Ȉ\


rua da Conde}[a aoX&rmffà*.' ty.j
Oá~rjhi
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1 . -

Bayerlsche 5 v.jV
Staatsbibiiothek I
MGnchen J
A PREFAÇÃO DO IMPRESSÕES.
Das Inftituiçóes da Logica de Antonio
Genuenfe.
0 IMPRESSOR AO HUMANÍSSI
MO LEITOR.

D.
AS Inftituições da Logica ,
que vês dadas á Iok , faô*
hum Compendio dos Ele
mentos da Logica de Antonio Ge-
nuense Medre de Ethica na Real
Univerfidade de Napoles. Elle as
cofturnava^^Lajg£ ^j^^*pri»«
cipiantes^^nS|fccoii!0 pwm^o
os levaffe para effa arte com a maior
fuavidade, que podefle fer. Contém
os primeiros , e fímpliciffimos pre-
ceiros de filofofar. Elle os coftuma
illuftrar com copiofos exemplos f
com que exercita os que começam
a filofofar : julga que elles na ver
dade naô pôdem fer uteis fem efte
A l exer-
exercício ; porque toda a Logica ;
como tu meímo podes entender ,
eftá polia no exercício da razaõ.
Tendo eu cuidado dalias á luz pa
ra commodidade dos mefmos prin
cipiantes , para quem foram efcri-
tas , me importava a mim , e igual
mente a ti íaber , que naõ deves
julgar que a força deftes preceitos
eíiá mais nas letras , do que na voz
do mefrro Meftre. Tu entretanto ,
fe dahi podes tirar algum provei
to , elHma.o , e lança á boa parte
efta minha tal e qual dadivazinha.
Deos te guarde.

«MIM*
,/jrvK

.'._.. < . • .':.•.

AS
AS INSTITUIÇÕES

DA LOGIC A.
1 : 1 . .
PREFAÇÕES.
-. - .§, i. ' ',

AL o g i c a he hu ma arte de
cogitar , oujiloj/.far , ifto
he , huma arte , due aug-
menta , for mi , e governa a ra
zão no eflado da Sahedoria. Cha-
ma-le Arte; porque eníina , e dá
os preceitos , eas regras, com que
podemos rectamente filoíofar; pois
que todas asdifciplinas , que eníi-
nam os preceitos , e as regras , com
que fe pôde fazer alguma coufa ,
íe chamam artes. Alfím que a Rhe-
torica , e a Poetica por tila razaõ
íe chamam arces.
§. II.
6 Prefações.

§. II.
Efla mefma arte Logica primei
ramente naíceo de huma certa na-
tural prudencia, einduftria, que
a todos os homens he commua , e
a todos governa em indagar as ver
dades ou necessarias., ou uteis á vi
da. Mas augmentou-fe muito com
o exercício , e experiencias dos Fi-
lofofos. Certamente quando íe ex
perimentai) muitas coufas por mui
tas vezes , acha-íe finalmente o ver
dadeiro caminho. Os mefmos er
ros tambem delcobriram muitas re
gras de filofofar : porque os Filo
sofos, que vieram depois, muito
diligentemente advertiram , o que
nos primeiros foi erro , e dahi ti
raram regras , para que naõ errai-
sem do mefmo modo.
§. III.

Os primeiros porém, que re-


du-
Pbefaç6ks.! 7
duziraô fimilhantes regras a arte ,
foraõ os Filoforbs Eleatenfes , de
quem fe conta terem ajuntado , e
enfinado as primeiras regras de fi-
lofofar. O mais , que pertence á
hiftoria da Logica tens nos Elemen
tos da mefma.

§. IV.
Nam he logo a Logica huma
arte de contender por amor de
pompa, e de viftoria , qual foi a
enfinada pelos Gregos Sofiftas , e
depois delles pelos Filofofos da Ef-
cola ; mas huma arte , que gover
na o homem na indagaçaõ da fa«
bedoria neceltaria , ou util.

§. V.
Oi Antigos definiraõ a fabedo-
ria , Huma [ciencia dascoufas di
vinas , e humanas , e dasfuas cau-
Jas , dos feus fins , relações , e
ufes» Mais accommodadamente ás
nof-
8 Prefações.
noíTas coufas fe definirá a fabedo-
ria. , Huma fciencia dos hens , e dos
tnales , convem a faber , que enfina
fjeguir os bens, efugir dos males.

§. VI.
O vocabulo /ciencia toma-fe po
pular , ou filoíqficarnente. Enten
dido popularmente fignifica todo o
conhecimento certo, e por iíTo tam
bem comprehendea fé certa , aífim
divina, como humana. Filofofica-
mente tomado fignifica bum conhe»
cimento claro, e evidente , adquiri
do com o u/o da nojja razão. Pelo
que aífim entendida a [ciencia dif-
tingue-fe da fé, que todo vem , naõ
da razaõ , mas da authoridade.

§, VII.
A razao humana he a mefma
faculdade de perceber , entender %
cogitar , e raciocinar. No uío po-
%èa\ eftd mais recebido que a ra
zão
PRBPAÇÔES. 9
za6 fe chame huma faculdade de ra
ciocinar. Duas coufas fam necefla-
jias para raciocinar, o% princípiosy
donde raciocinamos , e zarte, com
que daqueiles principios concluí
mos os coníequentes.

§. VIII.
Os principios chamam-fe huns
juízos , ou claras , ou de qualquer
modo certos , em que fe funda to
da a nofía raciocinaçaõ. A arte po
rém de raciocinar he huma reíta ,
e prompta faculdade de tirar dos
principios poflos aquslles coníe
quentes, que nelJes eflam occul-
tos.
§ IX.

A razaõ humana pdde fer ou


reSla, ou depravada Chama-fe re-
dia quando raciocinamos de prin
cipios verdadeiros, ou certos, e com
ordem neceffaria. A ordem de ra
ciocinar he neceffaria , quando dos
prin-
io Prefações.
principios concedidos fe feguem a-
quelles confequentes, que nelies fe
contém. He porém depravada a ra
zaõ , íe ou os princípios forem fal
tos , ou a ordem naô for necefla-
ria.
§. X;
Ainda que a razao nafce como
homem , comtudo a recta razaõ na6
nafce juntamente comnofco , mas
faz-fe : porém faz-fe com o exer
cício, eufo do entendimento. Por
que primeiramente fe adquirem as
ideas das coulss fingulares : depois
diflo pou:o a pouco fe fazem os
principios com a comparaçaõ das
ideas , e com o exercicio fe adqui
re a arte de raciocinar.
§. XI.
Affim que o eftudo das difcípli-
nas he neceffario para fe adquirir ,
e aperfeiçoar o ufo da recta razaõ.
Pelo que a razao he o inftrumento,
com que fe adquirem as feiencias ,
. e
Prefações• »i
e mutuamente as (ciencias faõ huns
inftrumentos , com que a razaõ fe
faz maior , e redb.
§. XÍI.
O officio do Filofofo he inda
gar bem as verdades, principalmen
te as que reípeicam á felicidade do
homem. O fim porém he a meíma
verdade, naõ qualquer, mas a ne-
ceííaria , ou ao menos a util á vida
humana.
§. XIII.

Mas o officio do Logico he for


mar o entendimento para rectamen
te filofofar. O fim porém he a Fí-
lofofia , ifto he , o eftudo , e inda
gaçaõ da íabedoria.
XIV.
Do que evidentemente le fegue
que o objedh) da Logica laõ as o-
perações do entendimento, que a
meíma Logica forma, e dirige pa
ra rectamente fe filofofar.
§. XV.
ít PrepaçSeí.
§. XV.
A Logica he hum habito , que
fe adquire com o exercicio , como
as mais difciplinas. Pelo que nin
guem pôde fer Logico , fe conti
nuamente fenaõ exercita em filofo-
far. Porque naõ baila faber elta arte,
mas cambem he necetíario exerci-
talla qu.tli em iodas as coufas. Por
tanto doutamente julgara alguns Fi-
lofofos da Eicola ferem dois habi
tos a Logica docente , fegundolhe
chamam, e a Logica utente , aífim
como fam dois habitos eníinar Rhe-
torica , e ufar da rlhetorica , ou do
Rhetorico , e do Orador j porque
pôde alguem entinar a arte da Lo
gica, e ignorar ouío. Porém en
tre todos os exercicios do enten
dimento he optimo o da Geome
tria : porque nem em outra algu
ma fciencia tem lugar as demonf-
traçâes rigorofas , nem ha aonde fe
ache igual evidencia de cogitar,
e raciocinar.
Ur
'3

LIVRO PRIMEIRO.
Da natureza da Alma , e das
caufas dos erros em geral.
ANtes que expliquemos as re
gras de fUofofar , havemos de
enfinar algumas poucas coufas á cer
ca da natureza da alma, e fuas o-
perações , e juntamente indigitaras
principaes caufas da noffa ignoran
cia , e erros. Porque fe naõ tirar
mos os impedimentos, neceflaria-
jnente eflaremos fempre impedidos
para indagar a fabedoria.
CAPITULO I.
Da natureza da Alma , e das
fuas operações.
ih L
AMente, o animo, e a alma (os
quaes vocabulos aqui tomamos
pelo meftno) be huma jubftancia
in~
14 Da natureza da alua.
intelligente accommodada para go
vernar o corpo, como define Saneio
Agoftinho. Aflim que ella naô he
corpo, riem qualidade corporea.
Porque a alma percebe , difeerae ,
julga, raciocina, ajunta coaías fe-
paradas, aparta couías juntas , co
nhece os antecedentes, e confe
rentes , e livremente mote o cor*
po, ou o faz parar ; e nada difto
pode fazer o cOipo.
: ii j . i . 'i ... . •

4. II.
Segue-fe logo que a alma na6
tem qualidades algumas corporeas.
Pela qual caufa naõ pôde a alma.
fer extenfa ao comprido , largo ,
e profUndo , nem foíida , divifivel,
corada , figurada , &c; porque tu
do iflo he proprio do.corpo.

§. ÍÍI.
Pois logo quaes fam as pro
priedades da alma ? fam as feguin-
nu tes
Livro mimeiro. . . ' ray
tes , ò entendimento , o defejo , a
liberdade, a vontade , a força , com
que anima , e move o corpo , e os
affectos. Nós as explicaremos em
poucas palavras.

7 §. iv.
O entendimento he h uma po
tencia da alma , com que podemos
diftinctamente perceber os obje
ctos , julgar , raciocinar , abíirabir,
reflectir , imaginar, recordar-nos,
&cv
§, V. ._
A percepçao fimples he hum co
nhecimento de huma idea , fem
que affirmemos , ou neguemos. To
dos os nomes em qualquer lingua,
quando fe tomam cada hum por fí,
íignificam huma fõ fimples perce-
Í>çaõ. Aífim ligni ficam os vocabu»
os Homem, Sol , Planta , Platam,
e os mais.
§.VI.
i6 Da natureza da alma:

§. VI.
A idea he huma certa forma,
ou fomente intelligivel , ou fantaf-
tica de alguma coufa exiftente, ou
puíTivel. Pela qual razaõ humas
ideas fam intelligiveis , em que na
da ha corporeo , como a idea de
Deos , da alma , da cogitaçaõ , dá
vontade, &c. Ourras iam fantafti-
cas, que fam humas imagens de"
corpos , e coftumaõ chamar- kfatf
tajmas , como a idea do Sol , da
Lua , de Monte , de Plantas , &c.
•• §. VII.
O Juizo ou fe confidéra no en
tendimento , ou nas palavras. O
juizo tio entendimento he huma-cla-
ra percepçaõ da conveniencia , ou
da repugnancia de duas ideas. Por
exemplo : quando claramente per
cebo a relaçaõ da conveniencia en
tre a terra , e a redondeza \ ou dis-
«l con«
Livro primeiro. tj
Conveniencia entre a mefma terra t
e a figura quadrada , julgo no mett
entendimento.

§. VIII.
O Juizo nas palavras he humá
enunciaçaõ, com que declaramos o
juizo do entendimento, e com que
affirmamos , ou negamos alguma
coufa ; porque a affirmaçao , e a ne
gaçaõ iam qualidades das enuncia
ções , e naõ das cogitações. Por
exemplo : A terra be redonda : A
terra naõ be quadrada. Em qual
quer deftes dois juizos fe haõ de
díftinguir dois termos, o fujeito ,
e o predicado , ou at tributo- O íu-
jeito he aquillo , de que outra cou
fa feaffirma, ou nega, como Ter
ra nos exemplos acima. E o pre
dicado he aquillo, que do fujeito
fe afirma , ou nega , como Redon
da, e Quadrada nos mefmos exem
plos antecedentes.
B §. IX.
18 Da natureza da alma.

§. IX.
A Raciocinaçaõ , ou argumenta
çao he numa percepçaõ das rela
ções de muitos juizos, hum dos
quaes neceíTanamente depende de
outro, inftituida para íe manifeflar
o que fe naõ entende com o pri-.
meiro intuito. Em toda a raciocina,
çaõ , como fica dito, fe hao de dif-
tinguir os principiai , e os eonjem
quentes. Os princípios fao nuns
juízos, ou certos , ou evidentes,
que primeiro fe poem , com o fun
damento da Raciocinaçaõ.' Os Con-
fequentes faô os que fe deduzem
dos princípios poflos. Exemplo. Se
queremos demonfbar que o ar he
pezado, afaremos da feguinte ra-
cmqnaçaô. Ep4meiramehte pore
mos dois. principios:
Tudo o.que carrega para o centra
da terra be pe&adv:
O ar carrega para. & centra da.
terra iComo confia das experiencias.
7. » Deftes
Livro primeiro, 19
Deftes dois princípios concluo
aflui):
Logo o ar be pez a do.
Outro exempio. Demonftremos
que a virtude faz a felicidade , e o
vicio a miferia do homem :
A felicidade do homem ejid pofla
na tranquil idade da alma , e a mi•
feria na afflicfao da me/ma :
Só a virtude faz a tranquilUda~
de da alma, e o vicio a afjlicçaõ"
Logo a virtude faz a felicidade,
e o vicio a miaria do homem.

§, X.
O Methodo he huma connexaS
de muitos juizos , ou raciocinações
inftituida paradefcubrir a verdade,
ou para a communicar a outros de
pois de defcuberta. O methodo,
com que fedefcobrem as verdades ,
fubindo-fe para univerfaes com in-
ducçaõ dos Angulares; chama-fe
Ana lytico , ifto he , de Refolufaõ;
porque ie refolvem os particulares ,
Bi ' e
ao Da natureza da alma.
e deites fe tiram as verdades unifer*
faes. Mas o methodo , com que en-
íinamos as verdades defcubertasdef-
cendo dos univerfaes para os parti
culares , chama-fe Synthetico , ifto
he, de Compo/içaÕ.

§. XI.
Aquelle fyllogifmo acima, Tudo
o que carrega , èrc. heSynthefe;
porque deíço do univerfal para o
íingular. Mas he Analyfe a feguin-
te raciocinaçaõ , com que demonf-.
tro , que ninguem he totalmente
fel iz : Adam em quanto viveo naô
foi totalmentefeliz, nem Noéy nem
Cyro, nem Plataõ^nemCicero^c. :
Ninguem logo he totalmentefeliz.

§. XII.
O Syftema (cientifico he huma
connexaõ de muitas verdades defcu-
beitas por juizos , raciocinações , e
methodos, como a Geometria , a
Fyfica , e a Meta fy fica.
§. XIII.
Livro primeiro. 11
'. ' . .
§. XIII.
A Reflexaõ he huma confidencia
de cogitaçaõ , ou numa cogitaçaõ
de cogitaçaõ , ido he , quando ad>
virtimos que nós cogitamos.

<j. XIV.
O Abftrahir he o perceber como
feparadasascoufas , que por Aia na
tureza faó juntas. Por exemplo. A
Figura , e b Corpo faõ juntos por
natureza. Quando pois cogito da
figura, como íeparada do corpo,
efla cogitaçaõ chama«fe abftracta»
Mas o compor he o perceber como
juntas as coufas feparadas , como
quando cogito fobre hum Monte
de Ouro.

§. XV.
A Memoria he hum habito, com
que mais facilmente podemos per
ceber
li Da watureza ea alma.
ceber as couías , que em outro tem
po percebemos. Mas a reminifeen-
cia he aquella acçaõ , com que nos
recordamos de alguma idea em ou
tro tempo percebida.
§. XVI.
A Senfaçaõ he huma percepçaõ
de algum corpo prelente pelos or
gãos dos íentidos. Aflim quando ve
mos , ouvimos , cheiramos , gofta-
irios , ou tocamos alguma coufa ,
coftuma-fe dizer que a fentimos, e
o ver, o ouvir , o cheirar, &c.
chamam-íe len facões. Duas coufas
porém íe ha6 de d'ítingu'r nas fen-
Çaç6es? asimpreflões feitas nonof-
f0,' corpo pelos objectos externos;
e as percepções deflas impreílões.
As primeiras faõ paixões do corpo;
as legundas acções da alma.

§. XVII.
' A Fantafía he aquella potencia
da alma , com que nós reprefenta-
mos
LlVHO PRIMEIRO. 73
tnos os corpos aufentes nas fuas ima-
gdns: E com que livremente aug-
tnentamos , diminuimos , ou de di-
rerfos modos ajuntamos eftas ima
gens corporeas: E com que final
mente repreièntamos as mefmascou-
las incorporeas em imagens corpo
reas, como asvirtudbs.*Bv forma
humana- ..„.'•: :.'.. i . •
.....«„£. XVJLL' i.<1 .

.A Intellecçaõ pura he htuna per


cepçaõ de ideas incorporeas , ou
intelligiveis^ Logo o entender he
differente do imaginar. Ntaverdade
entendemos muitas couías, que naõ
podemos imaginar. Aflim entende
mos a eternidade , fem que a pol
íamos Imaginar ; entendemos que
qualquer linha he infinitamente di-
vifivel; mas naõ podemos imagi
nar efta divi/ibilidade. Do melmo
modfc entendemos, eiíaõ imagi
namos- Deos, os maii eípi ritos ,
as verdades Geometricas, e Meia-
fy ficas. E tfto íe deve ad.vemr di-
:\}'i ligen-
$4 Da natureza dA alma:
ligentemente ; porque os Filofòfos
principiantes feperfuadem que fe
na6 podem entenderas coufas , que
files naõ podem imaginar.

$. XIX.
O Engenho he huma viveza do
entendimento em efcogitar, ou ima
ginar. Por tanto chamam-íè enge-
nhofos todos osqueefcogitam , ou
imaginam bem. A ífim como fe cha
mam judicioíos os que rcctamente
cogitaõ , e rectamente ulam das fuas
cogitações.

§. XX.
E iflo he o que pertence ao en
tendimento. Mas tambem á alma
pertencem o deíejo, a liberdade,
a vontade , a força animante , e os
affcctos. O Defejo he huma inclina
çao da noffa alma para o bem , ou
apparente, ou verdadeiro. Elle tam
bem fe coftuma chamar appetite.
Divi-
Livro primeiro. iç
Dividem-no os Filolofos em racio
nal , e corpóreo. O appetite racio
nal he hum defejo nafcido do ufo
da recta razaõ : mas o corporeo he
o que naíce da natureza animal , ou
do* atfectos , e pela maior parte
contra toda a razaõ.

§, XXI.
A Liberdade he huma faculdade
da alma para obrar, e deixar de
obrar como quizer. A Vonude po
rém he huma livre determinaçãõ da
alma , com que jeguimos alguma
couía, ou fugimos delia. Peloque
a vontade he huma acçao da li
berdade. Mas muitas vezes fe to
mam pelo mefmo a liberdade , e a
vontade.
§. XXII.
A força animal he aquella , com
que o corpo vegéta , e com que
perfentimos a dor , ou o gofto, na
qual fomog fimilhantes aos mais a-
"..-5 nimacs.
i6 Da natureza da alma.
nimaes. Efta força parece eftar ef pa
lhada por todo o corpo. Ha Filoío-
fos que julgam , que ellanaõheda
alma, mas de numa fubftancia que
nada entre a alma - e o corpo. Efta
quetlaõ porém naõ pôde ter aqui
lugar. j,

§. XXIII.
Os Affe&os faó huns movimen
tos muito vehementes do fangue r
e dosefptritos, qus na fcem da opi
niao do bem , ou do mal , como o
amor, a ira, o medo, a efperan-
ça , &c.
§. XXIV.

Diícordaõ entre fi os Filofofbs


á cerca do lugar da alma. Enfinaõ.
os Peripateticos , que a alma eftá
toda em todo o corpo , e toda em
qaalqaer parte de todo o corpo.
Gs' Gartefianos a collocam na pe
quena glandula pioeal , íituada no
meio do terceiro vcntiiculo do ee*
«w, u:.i rebio.
Livro primeiro. yjr
rebro. Newton parece que julgou
eftar a alma preiente a todo o ce
rebro , ifto he, ao ieu lenlbrio con>
ni um. Hccerto que o principal lu
gar da alma he no cerebro, aonde
eftaõ as fuas mais nobres operações
de entender , e querer. Polto que fe
naõ pôde duvidar que ella tambem
obra em todoocorpo.

§. XXV.
Do que fica dito fe manifefla . que
o homem conlta de duas lubftancias
entre fi diftinctas t e diverias , que
iaõ a alma , e o corpo. Tambem he
manifefio que iaõ duas as principaes
faculdades da alma , convem a fa-
ber , a força de entender , e de li-
. Tremente obrar. A primeira nos foi
dada para conhecer-mos os verda
deiros bens , e a legenda para os fe-
guirmos. Por ramo devemos ufar
bem , e rectamente deltas duas fa
culdades. . bt.il- jri . (,.'\ '.»•"- ,v;.'!o- .t
•• .." í iUl|.B'l'Í L : C3nifUÍ3-£.a
..-..:;;*; GA?
28 Da natureza da alma.
CAPITULO II.
Das caufas da ignorância, e erros
em gera/•
§. I.
PRimeiro de tudo deve o Filofo-
fo cuidar em conhecer bem as
doenças , e as caufas dos erros da
fua alma , para que tiradas dias , ou
reprimidas , mais defembaraçada ,
e facilmente poda inveftigar , e a-
char a verdade ; porque he muito
difficultoío conhecer bem , e feguir
a verdade , quando aquellas coufas
embaraçao.
§. II.
As doenças, ou imperfeições da
nofla alma faõ a ignorancia de to
das as coufas , em que nafcemos :
a brevidade , ou pequena capacida
de da mefma alma a reípeito das
coufas , que faõ objecto do noílo co
nhecimento : a fraqueza do enten
dimea-
Livro primeiro. ao
dimento em perceber , entender , e
raciocinar : a fraqueza da memoria
em reter ideas , ou em as aproou
prar , quando he conveniente , ou
ceceflario : a inconftancia , e diftrac-
çaõ da vontade. Deftas doenças naf-
ce que ou perfeveremos na igno
rancia , em que nafcemos , ou que
quando fazemos diligencia por ía-
ber ajguma coufa , cahamos em va
rios , e torpiíTimos erros.

§. III.
A ignorancia de alguma coufa
he quando delia na6 temos noçaõ
alguma. Por exemplo: Dizemos que
ignoramos as couías , que eflam no
globo da Lua, porque delias nenhu
mas ideas temos. Como em tatí
grande extenfam do Uni verfo, eem
tanta variedade de couías , delias
ha infinitas, de que naõ temos no
çao alguma , he infinita a ignoran
cia , e pouca a lciencia dos homens.

§. IV.
$0 Da NATUREZA DA ALlSA.

§. IV.
Pela qual razad devemos adver
tir primeiramente que na6 nos en-
foberbeçamos depois de aprender-
mos humas poucas coufas ; porque
fempre reftam infinitas , que igno
ramos. Em fegundo lugar, que qual
quer homem na Republica Literaria
fempre pôde defcobrir coufas no
vas , pelas quaes tenha incrível gof-
to , e configa gloria immortal ; por
que naõ íe deve entender que os
noflbs antepaflados nada nos deixa
ram que nos tambem inveftigàfle-
mos, edefcubriffemos. Finalmente
quejá que n3õ podemos faber tudo,
primeiro procuremos faber o necef-
íario, depois o que he util, e ulti
mamente coufas curiolas , fendo
baftante o tempo , e a vida ; para
que naõ aconteça o que confiderada-
ttiente efcreve Seneca ; ignoramos
as coufas nece^rias , porque
aprendemos as fuperfluas,
§• V.
Livro primeiro. 31
•• • « • '

§. V.
O erro he hum conhecimento
falfo , que íe tem por verdadeiro.
Em todo o erro fempre ha hum co•
mo tacito juizo , com que íe jul
ga que he verdadeiro aquelle conhe
cimento que he falfo , ou que he
falfo aquelle que he verdadeiro. Pe
la qual razaõ tanto érro, fe julgo
que o Sol he da grandeza de dois
pés , como fe julgo que elle naõ he
maior que a terra.

§. VI.
A idea falfa he aquella , que
naõ corre fponde ao leu objecto, e
todavia cuida-fe que lhe correfpon-
dev Defte modo he a idea da torre
quadrada vifta de longe , que pare
ce redonda; ou do remo direito,
que , quando eftá em parte mergu
lhado na agua , parece curvo. Mui
tas ideas defte modo falias ha na
alma
32 DA NATUREZA DA ALMA.
alma humana , as quaes , porque fe
na5 advertem , inficionam com exe
crandos en os todos os noffos conhe
cimentos.
§. VII.
O juizo falfo da-fe, ou quando
affirmamos o que havíamos de ne
gar , ou quando negamos o que ha
víamos de affirmar : ou quando ne
gamos a conveniencia das ideas, e
affirmamos a fua d i íconveniencia.
Aífim julgo falfamente , fe julgo
que a Lua he maior que a terra ,
quando na verdade he menor; ou
que a virtude naõ he verdadeiro
bem , quando fem virtude nenhuma
coufaheboa.

§. VIII.
A raciocinaçaõ he falfa de dois
modos , ou porque pecca na mate.
ria, ou porque pecca na forma, co
mo dizem os Efcolafticos. Pecca
na materia, quando faõ falfosos
princi-
Livro primeiro 33
princípios, em que le funda. Pec-
ca porém na forma, quando naò
he neceflaria a ordem de racioci
nar. Exemplo da raciocinacsõ , que
pecca na materia , feja efte feguin-
te : As coutas difíceis naójao dê
homens nobres: As virtude\r/aõdif*
ficeis: Logo naofaÕ de nobres. Hum
e outro principio he falfo: porque
dos nobres he proprio emprehender
coufas grandes \ e os vicios fe exer
citam maisdifficil, e labotioíamen*
te que as virtudes. Da raciocinaçaá
que pecca na fornia faõ exemplos
todos aquelles, em que as confe-
quencias nao tem connexaã com os
princípios.

§. IX.
As cautas da nofla ignorancia,
e erros íaõ quaíl infinitas , aflim na
alma , como no corpo , como tam
bem fora de no?. As principies na
alma faõ a pouca capacidade di
mefma alma, a fraqueza da memo.*
C ria .
34 Da natureza da alma.
.ria , o exceffivo deíejo de íaber TU-
ào , o amor proprio, a foberba,
a inconftancia , e diftracçaõ da von
tade , e os affectos dominantes.

§. X.
No corpo faõ huma fua certa
preguiça natural , os temperamen
tos , os habitos viciofos , 36 doen
ças , e o amor , pequeno numero ,
e imperfeicaõ dos íentidos.

§. XI.
Fora, de nos as principaes Ía6
os noflos pais , e todos os noflos
educadores , os meftres ignorantes ,
e inhabeis , os livros , e o povo.

§. XII.
De todas eftas caufas nafce , que
pu vivamos na ignorancia , em que
naicemos , ou erremos em muita•
couías. Mas de todas em particu
lar
' ÉlVftd MRltóRÍ*0. $Ç"
lar havemos de tractar ; porque nos
importa muito conhecer , e evitar ,
quanto podemos , as caufas dos er
ros , donde naíce a nofla miieria.
CAPITULO III
Das princtpaes canjas dos efrts
exijisutes na alma.

: §. i. .
A Primeira, e a maior, e incura'-
vel caufa dá noíía ignorancia,
e erros he a finita , ou para melhor
dizer, a pequena capacidade da no{-
fa alma. Efta faz qué de infinitas
coufas , que ha na natureza , ape
nas poucas percebamos , e ainda
effas imperfeitamente Junto com
efta pequena capacidade o deforde-
nado defejo de faber tudo , faz qutf
ou inveftiguemos o que excede k
nofla compreherifám , e áífim erre-
mos em muita? coutas \ oti qtfe in
daguemos coufas inuteis , de qtfc
naice que ignoremos as neceflarias*
Cz §.ii.
jó Da natureza da alma.

§. II.
A fegunth caufa he a fraqueza
do entendimento. Efta faz que naô
entendamos todas aquellas coufas ,
para cuja percepçaõ he neceflaria
raciocinarao mais extenfa , e que
quando tentamos entendellas, pela
maior parte comprehendamoshuma
nuvem por Juno , como fe coltuma
dizer.
§. III.
A terceira he a fraqueza da me
moria. Por ella muitas vezes acon
tece que em quanto íempre muito
curioiamente indagamos cou Ias no
vas , nos efqueçamos das já fabi-
das , e nos embaracemos nos noflos
conhecimentos. Por elta razaõ ex
celentemente advertia Seneca a Lu-
cilio : St fiaõ podes ler quanto tens,
bajlante he ttr quanto /es.

$. IV.
Livro TPiMEiPfo.1 37

§. IV.
A quarta he o amor proprio »
que nos perfuade que fabemos , o
que ignoramos. A'lem ditto repre-
íenta como verdadeiros , bons , e
bellos todos os noftos juizos , e ac
ções , e por muitos modos , e mui
to torpemente nos engana.

. ."' §. v. :.'"'; _
A quinta he a foberba , que faz
que nos confiemos fomente no noffo
parecer , e defprezcmos os juizos
de rodos os mais. E como para con-
feguir a fabedoria nada mais apro
veita doqueò commum fentido dos
homens íabios , defprezado efte ,
naõ podemos deixar de ignorar mui
tas , e excellentes couias , e de errat
em muitas.
§. VI.

A fexta caufa he a inconftancia ,


e diftracçaõ da vontade. Efta faz
<. j que
|,E Da H4TURE3A DA ALMA.
que a nenhuma coufa nos applique»
trios leriamcntei Mas como as ver
dades fe na5 adquirem fem atten-
çaõ , e eftudo i a vontade inconítan-
fe , e dií^rahida faz que , ou nada
Totalmente aprendamos , ou mal,
Contra fimilhantes caufas da nofla,
ignorância , e enos fe haôdeajp*
plicar as feguintes regras.

Regra Primeira.
I. Naõinveftigues coufas, que
çoníba ferem iobíe a capacidade hu-,
tnana. Se. naõ coníta , naô percas,
o animo: mas ieellas faõ inuteis ,.
ou pouco uteis , naõ.as inveftigues.
por muito ttirnpo , e naó te dil|ra»v
has das cnuíss necefl afias.
II. Na6 indagues aquellas.coUn
fas, para cuja fcicncia naf> adquh
rifle os meios , e pata cuj* intelli-,
f.encia naõ eft,4c pnmei.o bem inf-
truido
III Na4inveftiguescouías,que
«gceclem, , naô á capacidade á? (P*'
dos
LlVKO ÍRÍNTEIllO 39
dos mas fômente á tua , antes que
cora eftudos convenientes lenhas
adquirido a capacidade, e agudez»
nectfffaria.
IV, NacVdrvidas-aattençaõ par»
muitas coufas ; porque dividida íe
faí m&is pequena , e para coufa ne
nhuma' capaz.
V. Ordena os eftudos. Prece
dam aquelles, que dam luz aos ou-
tsroe.
VI* Nao medites de pafTagenr*
e por demais á eerea de coufas dif«
ficultofas: na6 creas que a alma
ia faz baftantemente profunda, poc
compendios das tuíciplinas. Lê li
vros em qualquer materia , poucoa
íira , mas optimos , ifto he , perfei
tos . e profundos.
VII. J* qiie a vida he breve ,
adquire tu a (ciencia neceíFaria , e
Ut-il p&ra ti, e para a Sociedade.
Ou nunca , ou lo luperficialmente
eftuda as coufas curiofas , e vans \
naõ paraque imagines que nellas ha
alguma bondade ,. mas paraque co-
nhe-
4o Da NATUREZA DA ALM Ai
nheças quanto nada tem de bem.
VIII, Naõ lejas nada nem mui•
to amante de novidade. Porque o
primeiro faz o homem hum pouco
mais eftupido ,eo íegundo mais ar
rogante,
IX. Era toda a materia eonfulta
o fentido commum , optimo mef-
tre de faber. Naõ te fies fo em ti.
X. Applica-te devéras ao eftudo
da verdade; porque nada excellente
fe pôde fazer na Republica Literá
ria fem exceflivo trabalho.
XI. O Filofofo naõ figa os gof-
tos fenfuaes ; porque he difficulto-
ío achar hum homem verdadeira
mente douto, e juntamente fenfual.
XII. Nada emprehendas contra
o teu natural : ellege os eftudos ac-
commodados á tua propenlaõ , e ás
forçss do teu corpo.
XIII. NaÕ jurarás em palavras
de alguem : filofofarás com a liber-
dade dos Ecledlicos.
XIV. Elege Meftres excellentií-
fimos; porque muito difficultofa-
» meti-
Livro primeiro.' 41
mente fe (iraõ os vicios, que huma
yez romaraO afíento.
CAPITULO IV.
Dos erros que nafcem dos offeftoti

Uitos íad os erros , que naf-


M cem dascaufas, que acima re
ferimos: mas muito mais nalcem dos
afteftos , iflo he , das perturbações
da alma. Porque os affectos tiraõ
a attençaõ conciliadora da íciencia ,
e viciaô as ideas , e juizos , e daõ
a conhecer as coufas diverfas doque.
ellas na realidade faõ. PJutarcho
compara as perturbações da alma
com os vidros corados, que com-
inunicaõ & fua mefma côr a todos os
objeótos por elles viftos.
: \,''\'.i. §- 1L • v.. T. !
He egregio aquelle lugarde Ce-
far em Salluftio na conjuradas de
..^ Ca-
4& Da natureza, da alma.
ÇatiliaAfòe que atten ta mente fe de
ve fazer memoria. Q? Senadores de
Roma, convem que todos os homens\
que deliberam acerca de coufas du
vido/as efiejam livres de ódio , dfi,
amizade, ira , emifericordia: a"
alma naõconhce facilmente a ver*
dade, quando efid embaraçada com
a. perturbaçao dos affeãos. Nem
algum bomem até agora fatkfes» ai
fua de[ordenada patxam , e junta-
mente 4[fitaobrigação. A alma aff~
plteadzcom attençaõ pôde muit> i
ma* nada pôde Je efid pojjuida , *
dominada* pelotaffettos de.furdena-
4Wf• .', ,'«lL' , . ',v":: 3
.....\.:'{ §. nu /, ;-.i , ' ,

MouVajemps agora; com hun*


poucos exemplos quam torpemea—;
re feja enganada & nofT$ alma pe
los afFeítos. Primeiramente a ale-
gríj excedida , evaa, depois que
tem dominado a alma , faz que na
da mais conheçamos perfeitamen
te, e que de todas as.. cpufas nos
- def-
. Livro himeim. 49
àefcuidemos. Affim dominada a al«
ma naõ pôde evitar os erros: ma»
antes os iecebe como verdades.

§. IV.

Em íegundo lugar : O amor , o


o odio corrompem as no ti as ideas ,
etpervertem os noffos juizos. O a-,
mor propõem como: virtudes , e
coufas honeílas , e gloriofas as qua
lidades do objecto amado , ainda-
qua feja6 vicios. O odio porém faz
o contrario., convem a: íaber , que
lancemos á peor pane todas a? cou
fas áos que aborrecemos. Daqui
vem que os que ie amam exctífi-
vamente, nam fomente naõconhe»,
çamos (eus vicios , mas ainda os
defendam pertinazmente. Dahi tam
bem- procede , que quali nenhuma
Hfloràa- fej a. fincerau porque diffiV
cultofamente fe acha hiftoriador tam
incorrupto , que eicrcva fem.amor.^
efem odio de parcialidades. He e-.
gregio*, e-infigne: aquece- diâio de,
44 Da NATlfREZA Dl ALMA.
P. Comico: Amar , ejaber apertas
a Deosje concede-

§• V.
Em terceiro lugar : O defejo ,
e a efperança fazem que fejamos
muito credulos á cerca do que de-
fejamos , ou efperamos. Porque he
verdade antiga: Facilmente cremosy
o que âefejamos. Da exceífiva cre
dulidade certamente vem que coí-
tumemos receber por verdades as
fabulaxinhas populares. Nafce alem
difto que avaliemos por veidadei-
ras , e boas todas aquellas couías ,
que faõ conformes aos noflos defe-
jos. •'/ ": ..: •
§. VI.
Em quarto lugar : Tambem
pela ambiçaõ , e avareza fecorrom-"
pem os noflos juizos á cerca das
coufas , que nos rodeam , como á
cerca das honras , da gloria , das
dignidades, e dos mais bens da for
ni-
Livro primeiro. 45.
tuna. Daqui le augmenta a noiía
credulidade á cerca deftas , e fimi-
Ihanres coufas. E a credulidade aug-
mentada faz que tenhamos por ver
dadeiros os juizos falfos , e por íe-
veras hiftoriasas relações fabulo las.
He na verdade para ver o quam fa
cilmente os ambiciofos daò credito
aos Aftrologoi judiciarios; e os ava
rentos , aos que promettem thelou-
ros.
§. VII.

O temor tira o juizo , rebate


a perfpicacia , e augmenta a credu
lidade. Quando ha temores na repu
blica , entao reinaõ os impoftores ,
porque a cada palTo fe vendem as
luas mercadorias.

§. VIII.
A ira faz que a alma na6 ad-
mitta razaõ, nem confelhos, e a in-
habilita para examinar attentamen-
%e o verdadeiro , e o bom. Por
tan-
46 Da katuresa da alma.
tanto o* irado&4>recipitam òs juizos
de noções cunfuías , e perturbada^

§. IX.
A fufpeita faz que tenhamos at
noffas opiniões anticipadas , e ima
ginações por qualidades das mefmas
coufas. Quando a alma eftá agitada
com alguma imaginaçam anticipa-
da , vemos fora de nos as coufas ,
que naõ exiftem fenstó na noffa fan-
taíia.
§. X.
Por tanto , paraque o Filofofo 4
ifto be , o indagador da verdade fá
naõ engane com eftas caufas dos er
ros , primeiramente ponha toda a
diligencia, paraque a fua alma fe
naõ occupe com affectos , ou fe naõ
faça propenfa para os conceber ;
porque julga mal todo-ojtfifc cor
rupta Lembre- íe daregra deOVi*
dio : Reftfte aã prifteipro : fora M
tethpofeprepara o remédio, quando1
as
' Livro primeiro. 47
as doenças tomarao forças por
grandes demoras.
A*lem difto torne a examinar com
a alma íbcegada o que julgou quan
do eftava agitado com algum affe-
ôo : Demore ao menos por nove
annos o que efereveo , torne-o a ler,
e confidere o muitas vezes antes de
o dar á luz publica.

CAPITULO V.
Dos erros , que na/cem do eorfo.

§. I.
ONoíío corpo he huma grande
caula da nofla ignorancia, e
dos noflos erros- lfto acontece de
muitos modos Primeiramente pot
Caufa de hum certo pezo natural
do mefmo corpo. Em fegundo lu
gar por caufa do temperamento, e
fantafia. E em terceiro lugar por
caufa do pequeno numero , e itn-
perfei jam dos íentidos.
§. IL
48 DA NATUREZA DA ALMA.

§. II.
O pezo do corpo retarda os rioí*
fos eftudos. Defta caufa na icem cin
co effeitos. Primeiro , que poucas
coufas indaguemos , e muito pou
cas faibamos. Segundo, que rece
ando o trabalho, deixemos como
incomprehenfiveis as coufas, que
fa6 hum pouco mais difficultofas
de fe íaberem. Terceiro, que nos
fatisfaçamos com huma fciencia fu-
perficial. Quarto , que nos fatisfa»
çamos com ideas efcuras , confufas ,
e inadequadas. Quinto , que nós
mefmos naõ advirtamos os nofíbs
falfos prejuízos , ou falfas anticipa-
ções , e erros, nem permittamo3
que outros nos enfinem o contrario.
E daqui vem que ou fe confirme a
ignorancia , em que nafcemos , ou
íempre fe nos introduzam novos er
ros. .

... §. HL
Livro primeiro. 45»

§. III.

O temperamento do corpo tam*


bem he numa caufa da ignorancia ,
e das opiniões falias. Porque a noffa
alma de tal ibrte ettá accommodada
ao corpo , que nas iuas cogitações
depende do cerebro , e do tempe
ramento do corpo. Por experien
cia fabemos, que os de tempera
mento fleumatico, efrio faõ inha-
beis para fciencias muito fublimes.
Pelo contrario porém , que os de
temperamento quente , e fogofo fa
zem grandes progreflbs nas fcien
cias , fe elles tem attençaõ , e von
tade de faber.

§. IV.
Os temperamentos do corpo nu.
mano dependem de muiras caufas.
Primeiramente da compofiçaõ in
terna do corpo y o qual tempera
mento he immudavel. Depois difc
O to
fO Da NATtfKFZA DA ALMA.
to das comidas , e bebidas , de que
ufa mos na infancia. E daqui vem ,
que os temperamentos das Mais,
e Amas facilmente paíTam para os
Meninos. Finalmente do clima. Da*
qui procede que os que nafcem , e
fe criam em lugares groíTeiros , e
humidos , tambem faô pela maior
parte de temperamento grofleiro >
e tardo.
§. V.
Dos temperamentos depende ò
genio. Daqui vem o fer o genio
fogofo, alegre, ou tardo, ou me
lancolico, ifto he, conforme a natu*
reza do temperamento» Daqui mef-
mo nafcem erros , e opiniões fal
fas. Convem a faber , a alma he
arrebatada pelo temperamento , e
julga das coutas poftes fôra de nõs ,
na6 conforme a verdade , mas fe»
gundo o temperamento. Por tanto
acontece que os alegres a nenhuma
couía fe appliquem íetiamente, c
nada julguem ferio, e grave: e
os
IflVRO PRIMEIRO. çi
os melancolicos pelo contrario fem-
pre julguem de todas as coufas pela
peor parte , e augmentem infinita
mente os minimos inales.

§. Vli
A fantafia , ou potencia imagi
nativa depende muito do têmpera-
mento. Pela qual razaõ as imagina
ções das coufas externas veftem-fe
da natureza do temperamento, e
tomam a fua appdrencia ; de que
nafce induzir-nos a fantafia em tor-
piífimos erros.

§. VII.
Mas a fantafia tambem nos pô
de enganar de outros modos. Pri
meiramente as imaginações muito
facilmente podem fer tidas por fen-
íações , fe forem hum pouco mais
Vivas , o que muitas vezes acontece
aos idiotas , e meninos, os quaes
por caufa da eftupidez da alma faô*'
D 2 menos
yi Da natureza da alma.
menos habeis para d i (cernir entre
imaginações , e fen facões. Em fe-
gundo lugar a fantalia , como fe
miiiura em todas as nofTas cogita
ções , faz que cu naõ poflamos en
tender as coufas abftradlas , e in
corporeas , ou que quando fazemos
diligencia pelas entender, as co
nheçamos como corpos. . '-: i :
. ' ; .« ,.e n
§. VIII.
Agora os fentidos , como faõ
poucos em numero , íe fe compa
ram com a variedade , e multipli-.
cidade das couías , primeiramente
nos induzem em ta! erro , que fa
cilmente crearrsos , que nenhuns ou
tros obje^os exiftem fora de nos ,
fenaõ os que percebemos com aquel-
lçs finco lentidos. Mas hetorpiffi-
mo efte erro ; porque no univeito
ha muitas coufas „ ou iniudiífimas,
ou diflantiífimas , ou incorporeas,
que fe naõ podem perceber com os
noffos fentidos. «.:.,' ► • *v
§. IX.
.*.• Livro primeiro. 73

§. IX.
Depois diftò, como os fent idos
/aõ imperfeitos , fuppoflo que naõ
fíõ accommodados ás eífenciasdas
coufas , mas á nolía utilidade , naô*
podem reprefentar as coufas aflim ,
como ellas faõ, mas as reprelentam
como nos (ao uteis , ou nocivas. Pe
lo que quando julgunos da nature
za das coufas pelas ídeas dos lenti-
dos, cahimos emfgravifltmos erros. ,

§. X.
Isto moftraremos com eviden
cia em huns poucos exemplos. Pri
meiramente os olhos faõ accommo
dados á nofla natureza , paraque
com elles conheçamos que coufas
externas nos íaõ uteis , ou nocivas ;
mas naõ para nos reptelentarem a
natureza das coufas , qual ella he.
Aífim que nos podem enganar , e
na realidade muitas vezes nos en
ganam
f4 Da NA1HIREZA DA ALMAi
ganam á çerça da grandeza dos cor
pos esternos , a qual naõ. reprefen-:
iam verdadeira , mas lomente ap=
parente : á cerca do íeu movimen
to , porque algumas vezes parecem
moverle os que eftao fixos , e eftar
fixos os que le movem : á cerca das
{liliancias , as quaes naõ podem
exactamente reprefentar : á cerca da
cor ,, e luz , que reprefentam como
verdadeiras qualidades exiftentes
fora de nos , quando naõ faõ fenaõ
feníações noffas , que procedem das
forças dos corpos externos.

§.XL
Por fimilhante modo nos enga-
ca o tadlo aíTim intrinfeco , como
extrinfeco. Porque o tacto intrin
feco attribue as dores , e os geftos
ao corpo , e naõ áalma, de quem
«lies faõ. Porém o tacto extrinfeco
reprefenta a folidez * a dureza , a
fluidade , o frio , e calor como qua
lidades abfolutas; ereaes, quan-
'"''..., do
Livro primeiro. çy
donaõ faõ outra coufa ferinõ ien-
fações noflas , que procedem das
forças dos corpos externos.

§. XII.
Do tnefmo modo nos enganara
o olfato á cerca dos cheiros , o gof-
to á cerca dos fabores , e os ouvi
dos á cerca dos fon?. Porque os chei
ros , íabores , e lons faõ fer.iaçfies
da alma , nem nos corpos externos
Jia outra coufa fysndõ forças , pelas
quaes faõ produzidas aquellas fen-
fações.

§. XIII.
Agora paraque nos acautelemos
daquelles erros, que procedem do
corpo, devemos lembrar-nos das
feguintes regras.
Regra primeira.
I. Faze diligencia por contra-
Jiir [habito de eftudar , pouco a pou
i,. co
$6 Da natureza da alma.'
co , e com huma continuada atten»
çaõ , e meditaçaõ. Ainda que no
principio advirtas que lutas com o
pezo do corpo , com tedio , e faf-
tio, naõçeíTes; porque eftes im
pedimentos fe fazem menores com
continuado exercido. Nada ha, diz
Seneca, tam âtfficultojo , e arduo ,
que naS vença a alma humana , e
naõfaça facil 4 continua medita~
çaõ ..., a alma confeguio qualquer
couja , que deveras quiz.
II. Ufa de eltilo ; porque nada
pôde mais para excitar o gofto de
filotofar , e adquirir habito de ef-
tudo. Porém fe tu ainda naõ es ha
bil para comentar , ao menos efco-
lhe hum optimo livro , e o trasla
da. Aífím formarás juizo no de hum
optimo author ,e te veftirásdo gof
to do optimo.
III. Communíca-te com os ho
mens doutos; porque naô pode a
alma deixar de (e excitar com as
fuas imagens. Lê attentamente as
vidas dos fabios > porque delias paf
i fa
. T.IVRO PRIMEIRO. 5*7
fa para a alma o delejo da fabedo-
ria , e fe augmcnta o vigor de filo-
fofar.
IV. Foge daquellascouías, que
fazem o corpo mais pezado , e a
alma mais perguiçoia : Taes íaõos
brincos , os qujes tirafi a applicaçaõ'
aos eíludos ; o demafiado lomno ,
com que fe debilitam as forças da
alma , e do corpo ; os eípeclaculos \
a demaíiada comida , e bebida ; os
godos do tacto , e outros muito ex-
ceffivos.
V. Na6 deixes perder com o
defcoftume o habito adquirido de
eftudar,. porque mais facilmente ie
perde, do que íe adquire. Affim que
fegue hum genero de vida do mef-
mo teor.
VI. Conferva diligentemente a
faude do corpo ; e iíio com a ex
cedente mediania do alimento, com
algum exercício do corpo , e com
te livrares de cuidados, quanto he
poffivel.
§. XIV.
5-8 Da natureza da alM a.

, ' -.. §. XIV.

A' cerca do temperamento do


corpo , e fantaíia ie podem adver
tir eftas feguintes regras.
Primeira regra.
I. Qualquer attentamente pon-.
dére o temperamento do íeu cor
po. Se entende que he de fantaíia
muito viva , e inconftante , acaute-
Je-fe que naõ julgue por ella das
naturezas das coutas ; paraque lhes
naõ attribua as fuas meímas afrec*
ções , e naõ as avalie quaes ellas
faõ, mas quaes lhe parecem.
II. Açautele-fe de todas aquel-
las coufas , que coftumam fazer a
força da fantaíia maior , e mais in
conftante, como dos efpeítaculos ,
e pompas , da liçaõ dos Poetas , e
fabulas eftrangeiras , dos lugares
muito aprazíveis , que quaíi desfa
zem a alma, e de todas aquellas
coufas , com que ella fe alegra ex*
celtiva-
Livro primeiro. çç
. ceflivamente, e , o que he confe-
quente , íe augmentaõ as forças da
fama/ia.
III. Coflume-fe í liçaõ , e me
ditaçaõ continuada , e á igual or«
dem de vida : Ha mil exemplos, diz
Seneca no lugar citado , em que a
ferfeverança vence todo o impedi*
mento , e moftra que nada he diffi*
cultofo d alma , querendo feffne/ê
com confiando.
IV. Acaotele.fe de juízos pre
cipitados ; porque os fanguineos ,
os quaes tem mais engenho que juí
zo , íaõ inclinados para deipropo-
litos pueris.
§. XV.

Aquelles porém que faô* de tem


peramento máo , e melancolico te»
raõ cuidado.
I. Que efte temperamento fe a-
brande: Principalmente teram elei
çaõ dos alimentos; porque deli et
íe gera o fangue , que influe muito
no temperamento, e de que depen
de a alma. **,
ÓO D/V NATURBZA BA ALMA.
- II. Fugiram de efpeíliculos tra
gicos, ou da liçaõ de efcritores de
tragedias , e de todas aquellas cou-
fas , com que a alma toma calor, ou
fe entriltece muito.
Iíl. Nenhuma coufa he taé util
a elte tempera mento , como qual
quer purga i porque com ella quaíi
fe alimpa o cerebro da ferrugem ,
e nevoa. Daqui vem que as lagrimas
faõ uteis aos melancolicos.
IV. Os melancolicos fa6 de en
tendi mento confufo: Pela qual ra
zão te acoltumem á liçaõ de livros
claros, e mer hodicos, principal men
te Geometricos ; paraque aprendam
a evitar tdeas confufas, e eícuras.
V. Acautelem-fe de juízos pre
cipitados; porque faõ inclinados
para Fanatifmo , e nenhuns ha que
mais julguem das coufas externas
pela razao apparente da íua pai-
xam. Portanto excellentemente ad
vertem os Políticos que naÕ quei
xam elles o governo da Republica ,
paraque naõ perturbem tudo.
..:i §. XVI.
Livrq primeiro; 6t

§. XVI.

Os que ía6 de temperamento


tardo , farám diligencia por fe exer
citarem,
I. Com a emulaçaõ dos feus
iguaes , com o amor da labedoria ,
com a liçam de livios críticos , 6
com a converfaçaõ de homens perí-
picazes , críticos , e eloquentes.
II. Fujaõ de lugares humidos ,
e craflos , e de alimentos muito
grofleiros. i .: .»
III. Fujam da commvnicaçaõ
com os tardos, e de máo engenho;
porque os coflumes paliam com a
convivencia , e a fantaíia pela maior
parte fe fôrma do genio daquelles,
com quem muitas vezes , e familiar
mente nos coirmunicamos- ,',a
-IV. Ha quem a eftes aconfelha
a ira , e o amor Platonico. Mas
eu julgo que todos fe devem lem
brar daquelle prudente dito de Se
neca : Nemporiffojebade ujar dos '
vícios ,
6a Da natureza da alma.
vícios , porque algumas vezes fize
ram alguma coufa boa ....He abo
minavel genero de remedio dever a
jaude á doença.
.•„ :.•.... .v. . . . . ' '.' ..' ' .. ••»
§. XVII.
Quanto ao que pertence aos feri-
tidos poucas coufas reftam para fe
advertirem. ' " .
I. Acaurela-te que naõ julgue*
das cou fas exteriores fo com o mi-
nifterio dos femidos. Lembra-te que
os fentidos foram feitos , naõ para
que reprefentaflem as eííencias, mas
a exiftencia , e as relações das cou-
fas : e que naõ fad accommodados
á natureza das coufas, mas ás uti
lidades da vida humana.
II. Acauteia-te que naõ julgues
que fomente ha aquellas coufas,
que fe podem perceber com os fen
tidos. Porque a atmofphera dos fen
tidos he mui pequena.
III. Confulta a razaõ , e o fen-
tidocommum, optimo Meftre de
,.:.•. p * fabec
LlVllO PRIMEIRO. 6j
faber em toda a materia.
IV. Cuida em ter os fentidos
quanto mais perfeitos pôde íer : ar*
ma-os com os melhores inflrumen-
tos.
CAPITULO VI.

Das caufas externas dos erros.


§. I.
AS caufas exrernas dos erros po
dem fer os Pais , o Povo , e oa
Medres. Os Pais de muitos modos
podem fer caufa da ignorancia , e
dos erros de seus filhos. Primeira-
mente naá tendo cuidado delles :
Em fegundo lugar com a demalia-
da indulgencia : Em terceiro lugar
com a exceffiva feveridade : Em
quarto lugar com a fua authorida*
de , e doutrina.
. . . . . . ; t ,
§. II.
Quando os Pais na<5 tem cuida
do dos filhos , elles como plantas
fera
64 Da natureza ha alma.
fem agricultor , ou cavallos defen*
friados fem meftre fe precipitam em
todo o genero de vicios: naõ tem
cuidado dos efludos : e certamente
por iíío mefmo ou vivem na natu
ral ignorancia , ou adquirem (cien
cia falfa, principalmente em quan
to aos coflu mes. Na verdade excel-
lentemente diceram giavissimos fi-
lofofos , que fe deve à educação o
ferem os homens quam grandes quer
que faõ. O que ie confirma com a
experiencia. i - , . -
.. , .bv..., ':.§. Vki .i...*.
AMem diôo a demafiada indul
gencia faz os meninos deíobedien-
tes,, e foberbos. Por tanto coflu-
ma fucceder, que affim como, quan
do faõ meninos , fe agaltam gran-
demente , fenaõ coníeguem o que
deíejam, tambem chegando a maior
idade fe agaftam contra os mais ho
mens , que. naõeftam promptos pa
ra lhes fazerem a mefma vontade.
Affim que contrahem huma nature
za
Livro primeiro. 6ç
za inquieta, impaciente, foberba,
e cruel. Sendo aíTun educados Al
cibíades em Athenas , Calígula, c
Nero em Roma , depois de exal
tados ao principado• arruinaram-fe
a ii , e á Republica.

§. IV.
A exceífiva íeveridade extingue
a fogofa forca de engenho dos me
ninos , e pouco a pouco os faz ef-
tupidos , e inhabeis. Por cuja cau-
fa ie hade feguir aquelle genero dé
educaçam, que he meio entre aquel-
les dous extremos. Bem a propolí-
to dice o velho Terenciano: Creia
que be melhor educar os filhos com
pejo. e liberalidade , doque com me-1
do.
§. V.
AMém difto os noflos Pais com
a fua authoridade nos podem per-
fuadir a crer as fuas opiniões , ain
da falfas, eabfurdas. Aífim fe fa-
E zcm
66 Da natureza t>a alíS a.
zem hereditarios nas famílias huns
«ertos erros. Porque os meninos
depois que crelceraõ em idade ,
muito difficultofamente deixam as
opiniões aprendidas na puerícia , e
os ve Ihos cenfejjam que muito dif-
ficultofamente fe efqueceráS das
coufas y que aprenderão quando
meninos , como diz Horacio.

§. VI. "
Agora o Povo , que he como
huma certa enxurrada de todos os
erros, admitte , e paffa para os vin
douros todas as opiniões falfas , é
todas as fabulazinhas de velhas ,
que divulgaram authores; incertos ,
ou eirfinaram alguns Filofofosin-
habeis : Porém cala as coufas meÍ9
difficultofas de fe perceberem , co
mo faÕ humas certas verdades mais
foblimes. O povo, diz Vefulamio,
he como o rio , que mette em fi <
e mergulha as coufas graves , e paf
fa para diante as leves. Como lo
go
. Livro primeiro. 6j
go nos na icemos , e fomos educa*
dos no Povo, difficultofamente po
demos evitar os erros , e prejuizos ,
que de todas as partes nos allaltam.
*....:.,& :.;i . §. Vlfr r
•H;y4 ••) .-; . ,."',. ..;.. , . ,f
Os Meftres certamente com a
fua authorídade , e gravidade naõ
fomente períaadém aos difcipulos
as toas opiniões, que nem fempre
Ía6 verdadeiras^ ,4nas tambem lhes
communicam os feuíkoftumes , aá
quaes coufas iodas òs; difcipulo*
muito tenazmente «b.fervam ,pelo
refpeito aos Meftres. Por tanto al
gumas vezes nos Cauta m grande de-
fordem,eperturbaçam. Dahinaíce-
ram as feitas , e os odios delias.

I•i Wv >'. p •?

'O mefmo nafce dos livros , que


lemos com grande veneraçao" , e
que muito eftimamos por opinjaõ
anticipada j porqae aqudla aptici*
É 2 pa-
68 Da natureza da alma.
pada efti maçam faz que naõ advir
tamos os feus erros. E por iífo os
recebemos por verdades , e perti
nazmente os defendemos. Certa*
mente muitas vezes tanto pode hu-
ma opiniam anticipada , que ainda
fem razaõ fe defende. Os Pytha-
goricos tinhaô tal coftume ,8* que
quando lhes perguntavam alguma
couta , nenhuma outra razaõ davam
do feu dito, doque.aquillo: Omef»
mo o eliee : mas aquellé mefmo era
Pythagoras. Ifto porém he ir áma»
neira de gado por onde fe vass, o
nap por ondefe deve ir. ..: c.úvm
■ i. yic. ..'\i. .-.- ;'.;:♦'. .. - . '.':..>'it
.;,: v ...,..... §. IX, ^.^^^
..'''. .:i '.....;'.'. .". ''.'.': ': '.'.''. aí;3tnrjhioí
Por tanto o noíTo FiloíofbíJe
lembre das feguintes regras.
Htv h
Regra primeira.
I. .Sr conheces que ria6 èflás
bemlnftruido, faze diligencia. por
te purificar com cu idadofo eiradoi
de ti ,v e affini começa de novo a vi*
í.q t c. da
Livro primeiro; , fi^
da ou morai , ou litteraria , como
fe flalcèfíesf honrem] ou " àntêTTon-
tem. Ufa de; amigos perfpicazes K e
íinceros, edellês recebe as repre-
henfões com animo alegre.
,11. Naõ te communiques ordi
nariamente com o povo ignorante.
Diligentemente examina os prejuí
zos do povo: examina muitas ve
zes rodas as tuas opiniões: de to
das duvida , em quanto naõ eflás
certo que te naõ podes mais en
ganar•
III. Naõ defprezes o engenho
de homem algum : naõ julgues das
cogitacões das almas humanas por
algum prejuizo , mas pela razaõ.
IV. Terás liberdade na Filofo-
fia : a ninguem darás mais credito
do que he judo : a ninguem te fu-
jeitarás totalmente: filofofarás á
maneira dos Eccleticos.

LI-
yO .' " * 1">T <\4 '." :

LIVRO SEGUNDO.
Das Idear , e àos feus objcRos ,
e Jinaes.
DEpois que explicamos as cali
fas dos erros , he neceflario.
que agora declaremos os mefmos
meios de indagar a verdade. Mas
como nos conhecemos , ou indaga
mos com as ideas todas as couias ,
que pertendemos conhecer , e to
dos os noflos juÍ2os , e raciocina-;
ções tem primeiramente por obje
cto naõ as mefmas coufas, mas as
ideas ; primeiro havemos de tratai
das mefmas ideas.

CA-
LlVAO SEGUNDO. Jt

CAPITULO I.
Da natureza , origem , e generos
" -'. das ideas.

§: i.
Aldea he tudo o que fe faz pre-
fente á alma quando percebe ,
ou cogita, ou he numa forma in-
telligivel , ou fantaftica de coufa ,
ouexiflente , ou poflivel , como aci
ma fe dice. . i
§.II.
Duas queftóes fe podem aqui
mover. A primeira he, fe as ideas,
e as percepções faõ huma , e a mef-
ma coufa ? A fcgunda he , donde
nafcem as ideas ?

§. IH.
Em quanto á primeira diftin-
guem os Filofofos entre as ideas ,
materiaeSf e intelleEiuaes. As ideas
ma-
j% Das Ideas Scel
materiaes faõ aquellas impreíTóes^
que no cerebro fazem os objectos
externos , que vemos , ouvimos ,
tocamos , &c. As intelledhuaes laõ
humas formas incorpóreas, que exif-
tem na mefma alma, e repreíen-
tam os objectos externos. As pri
meiras ideas iem duvida faõ diftin-
elas, e diverfas das percepções ;
porque ellas faõ huns movimentos
do cerebro , e as percepções faÔ
humas acções da alma , que conhe-'
ce. Se as fegundas porém faõ as
mefmas percepções ; he muito con-
troverfo entre os Metafyíicos. No
vulgar ufode fallar as percepções ,
eas ideas intellectuaes entendem-
íe pela mefma coufa,

§. IV.
A' cerca da fegunda queftain faõ
quafi tantas as fentenças dos Filo-
fofos, quantas faôas cabeças. Nos
nefle lugar julgamos alheio da nofla
obrigaçaõometeimo-nos nefta gran*
de
Livro segundo.' 73
de difEcu Idade. Mas he mais prova
vel a opiniam commua no prefente
tempo , de que todas as noflas ideas
nafcem parte dos íentidos , e par
te dameditaçam , e conjectura da
alma. £ na verdade as noflas pri
meiras ideas nafcem dos fentidos.
Mas em quanto a alma fobre ellas
medita , e as cbniidéra de toda a
parte , indaga os antecedentes, con-
íequentes, e as coufas connexas ,
forma outras muitas ideas.

§V. ' .''

Pelo que pertence ao Filoíofo t


fe efle quer adquirir grande nume
ro de ideas , que faõ como mate-
ria do noflo conhecimento , he ne-
ceffario que ufe dos fentidos , que
converfé com a natureza das cou
fas, que confulte os mais, e que
o meimo medite muito comligo.
For eftes caminhos fe faz a alma
grande , e fe augmenta a razaõ.
* . §. VL
y^ Das Ipbas &c. .

-i\-.n - .§. Vi.

De quatro modos podemos con


templar as ideas. Primeiramente em
quanto á fua origem : depois difto
em quanto á fua natureza , e conf-
tituiçaõ: além difto fegundo a re-
laçam para osobje&os: e finalmen
te pela relaçam para a alma.

§.VIL
As ideas coniideradas do pri
meiro modo faõ ou adventícias, ou
faélicias , ou innatas. Do fegundo
modo faõ ou fantafticas , ou intel-
ligiveis , oufimplices , oucompof-
tas. Do terceiro modo fa6 ou ade
quadas, ou inadequadas, ouabfo-
lutas , ou relativas , ou abftrattas ,
ou concretas , ou reaes , ou quime
ricas. Finalmente do quarto modo
faô ou claras , ou efcuras , ou dif
undias , ou confufas. Aflim fe con-
clue que todos os generos das ideas
•• íe
Livro segundo. pf
fe podem reduzir a vinte « hum»
Agora em poucas palavras have
mos de definir eftes vocabulos.

$. VIII.
r> ...: i :-r w .:.:...'.'.. .. : ..: rv /"
As ideas adventícias faõ aquel-
las , que temos por meio dos fen«
tidos , quaes faõ as ideas das cou
tes corporeas, e das luas proprie
dades, e qualidades. As ideas fa
ctícias faõ" as que a me (ma alma
faz ou poríiíBilhanea, ou propor
ção, ou por affociaçaõ , ou abftfac-
çam. Por fimilhança , como , quan
do pela idea de hum elefante ima*
gino muitos elefantes. Proporçaõ,
como quando pela idea de hum ho
mem de jufta eflatura imaginamos
hum Gigante , ©u hum Pigmeo. Por
aflociaçaõ, como quando pela idea
de monte , e pela idea de ouro fa-
ço huma ideá de monte de ouro.
Por abftracçam finalmente , quando
cogitamos íeparadamente as cou-'
ias, que faõ juntas, eunidas, co-
..; % mo
yfi Das Ideas &ct
mo quando concebemos a figura
feparada do corpo.
;"
§. IX.
f
Nem todos entendem as ideas
innatas do mefmo modo. Confor
me Socrates , e Platao faô as ideas
innatas aquellas , que as almas tra
zem comfigo da vida paffada , quan
do cahem nos corpos. Epicuro cha
mava ideas innatas aquellas, que
pela mefma vifta do mundo pri
meiramente íe nos imprimem , fen
do ainda meninos , por via dos
fentidos. Nefte fentido fe podem
chamar naturaes huns certos pri
meiros juizos das fciencias como
o todo he maior que a Jua parte ,
# mefmo na§ pode juntamente fer ,
e naõ fer , e outros fimilhantes:
ifto he, porque naõ fa6 deduzidos
de outros , mas percebidas as ideas,
logo os entendemos. Carteíio chama
ideas innatas as que fe deávam da
natural faculdade de .cogitar fera.
. ai-
Livro segundo; fj
algum trabalho , e arte. As taes
ideas melhor fe podem chamar »«-»
turaes , doque innatas.

'" ."'" §, X; .".

A ideâ chama-fe fantaftica de


dois modos , de hum fe entende
pela idea da iinaginaçam , quaes
íao todas as ideas dos corpos : e
de outro pela idea arbitraria , e fin
gida. As ideas fantaflicas deite fe-
gundo genero chamam-se entes da
razão ; porque fõ exiftem na alma ,
como a idea de monte de ouro ,
eadomonltro de Hotacio,.

§. xl
A idea fimples he aquella , em
que nem ainda com o entendimen
to podemos diftinguir partes. A
idea compofla he a que confia de
muitas ideas íimpl ices unidas em
hum vocabulo. Por exemplo. A idea
de exteufam he fimples ', porém a
7$ Daí foíA* &&
ídea do corpo he compofta ; por
que nefte vocabulo Corpo cftaõ uni
das as ideasfimplices deexcenfam ,
íolidez, divifibilidade, e gravidade.

§. XII.
t,j ,v,[i.;;i :1 it i :".;;. c :,£ f:
As ideas flmpiices ou provém
dos fentidos , ou fe faxera com 3
. abftracçam. As ideasfimplices, que
provém dos fentidos , como todas
as ideas das íeníações , em todos
os homens Ía6 fimilhantes. Mas as
compoftas iaõ muito diver ias , fe-
gundo a . diverfídade dos lugares,
dos tempos , e das capacidades da»
almas , dos efludos , e dos medres.

§. XIII.
:/i A .",
Alguns diftinguem as ideas com-
poftas das affoçiadas. As compof
tas íaõ aquellas, que fe unem em
hum vocabulo. As affoçiadas faõ
as que íe ajuriram em muitos vo
cabulos em longa ferie. Pelo pri-
ici meiro
Litro segunda. rfy
meiro modo faõ unidas as ideas
de corpo, de homem , da terra , de
alma, de Deos , &c. que fe cha
mam compoftas: e pelo íegundo
modo ia 6 as ideas das raciociní-
ç6es , dos methodos , e fyftemas fci-
entificos.
§. XIV.

Mas as cauías efficientes das af-


fociacdes das ideas faõ quatro, os
fentidos, a inftrucçaõ , a racioci
na çaõ , e a fantafia livre. As ideas >
que faô percebidas com hum , ou
muitos fentidos ou junta, ou luc-
ce/fiva mente, péla maior parte fi
cam aflociadas de tal forte , que
quando nos lembramos de hurra,
juntamente nos lembremos também
das" outras. 'As ideas, que junta*
mente le aprendem ou dos noflos
Meftres, e Educadores , òu dos li
vros , coftumam ficar aífociadas , de
tal modo, que quando humâ fe ex
cita , logo a feguem as outras. Já
quando de hum principio deduzi
mos
8o Das Ideas &c.
mos huma cerca ferie de ideas , pe
la maior parte ficam aílociadas. Fi
nalmente a fantafía, faz muitas , e
novas affociações de ideas , como
podemos obfervar nos Poetas.,..»
•Pintores.
XV. .i. !

Confideremos agora as ideas pe


ia relaçam para os objedtos. Elias
primeiramente la 6 ou adequadas ,
ou inadequadas. As adequadas faõ
aqueílas , que reprefentam clara , e
diílínctamente tu das as partes, e
propriedades do objefto , nenhuma
abfolutame.nte deixada. Saõ porém
inadequadas , fe naõ reprefentam
todas as partes , «propriedades do
obje&o. por exemplo. A idea de
fogo ferá adequada , fe reprefentar,
todas, as propriedades do fogo : fe
ra porém inadequada , fe reprefen
tar fomente parte delias. As. ideas
abítraílas fempre faõ. adequadas i
tambem as ideas arbitrarias , e qui
mericas. Cuja razaõ he \ porque os
iuas ob-
Livro segundo. 8i
objettos das taes ideas íaô as mef-
mas ideas. Por exemplo. O obje
cto da idea abftradta de homem he
a mefma idea : o objecto da idea
de monte de ouro he a mefma
idea. Más as ideas adventícias , ou
as que fe referem aos objectos ex^
ternos , fempre íaô inadequadas ;
porque nunca repreíentam os Teus
objedlos inteira , e adequadamente.

$. xvi,
A*lem difto as ideas referidas
para os objectos fafj ou Angulares t
ou univerfaes. A idea fingular he
aquella , que reprefenta huma cou-
fa fingular , como a idea de mini
mefmo , a idea de Platafi , a de Cí
cero , &c. A idea univerfal he a-
quella, que reprefenta muitas cou-
fas angulares , mas confusamente f
ifto he , fem os fignaes diftincTti-
vos , e individuaes , como a idea
de homem , que reprefenta muitos»
homens, mas confuíamenie , « a
.- i F idea
8} Das Idhas&c.
jdea de triangulo, que também
confuíamente reprelema raui tos tri
angulos. ; .' j

Em terceiro lugar as ideas re


feridas para os objedos faõ ou ab-
folutas , ou relativas. A idea rela-*
tiva he aquella, que fe refere pa
ra outra , como a idea de Pai , que
fe refere para o filho , e a idea de
Meftre, que fe refefe para osdif-
cipulos. A idea abfoluta he aquel
la , que fe naõ refere para outra,
como a idea de Sol , de homem &c.

§. XVIII.
Aqui fe. hade advertir, que ha
muitas relações menos manífefta»
de ideas, as quaes fe ha6 de def*
cubrir cem huma indagaçaõ dili
gente da razaõ, paraque (e enten
dam as ideae. For exemplo. Eíles
vocabulos grande , pequeno , dou
to , ignorante , formofo , feio, ri*
CO,
Livro segundo. f$
co, pobre, e os mais do mefmo
genero contém relações occultas.
Porque grande fe diz pela relaçam
para pequeno: douto para ignoran
te: formofo para feio: rico para
pobre : e mutuamente pequeno pa
ra grande &c.

$. XIX.
Em quarto lug^r as ideas refe
ridas para os objeéros fa6 ou abf-
tradlas , ou concretas. Abftractas ,
como as ideas de linha , de fuper-
ficie . de prudencia geralmente en
tendida , e da meíma forte de juf-
tiça em commum. Concretas , as
que naõ faõ abitradtas , como a
idea de Pedro, do Ar, da Agua,
e todas as ideas de fenfaçóes , ou
coiupoftas de ideas de foníacfjes.

$. XX.
Finalmente as ideas referidas
para os obje&os faô ou quimeri-
F a cas ,
$4 Das Ideas &c.
cas , ou reaes. As quimericas faò
de dous modos : porque fe chama
quimerica a idea , a que nenhum
objecto fimiihante correíponde na
natureza, como a idea de Monte
de ouro: E tambem aquella, a que
correíponde objecto impoflivel, co
mo o Circulo quadrado, o Hirco-
cervo &c. A idea real he aquella ,
a que correíponde algum objecto
íimilhante na natureza , como a idea
de homem , de monte, e de mar.

§. XXL
Mas fe as ideas fe referem pa
ra a alma , faõ" claras , ou efcuras ,
diftinclss , ou confufas. A idea cia»
ra he aquella , que de tal forte re-
prefenta o feu objecte , que , le ou*
tra vez occorre , logo fe conhece.
Tal he a idea da Lua , do Sol &c.
A eicura he aquella que de tal
forte reptefenta o leu objecto, que
fe outra vez occorre, nem logo,
nem facilmente fe conhece , qual
t srt, M '
Livro 6equn do; 8;
he a idea de Marte, e de Jupiter
naquelles , que naô íaõ acoftuma-
dos a contemplar eftcs Planetas.

§. XXII.
A idea diftincta he a que na6
fômente reprefenta claramente o ob-
jeílo , mas tambem os principaes
íignaes do mefmo objecto , com que
elle ie ditfingue de todu outro qual
quer. Pelo contrario porém , fe re»
prefenta claramente o objecto, mas
de nenhum modo os flgnaes, he con-
fufa. As ideas das cores , dos far
bores, das mais Tentações (aô cla
ras , mas confufas. A idea de tri
angulo , e de circulo faõ claras , e
diftinctas.
§. XXIII.
As noflas ideas po^em-nos en
ganar de muitos modos. Por tanto
paraque naõ erremos por occaífiam
delias , havemos de uíar das fe-
guintes regras.
Re»
86 Das Ideas &c.
Regra primeira. I

I. Na6 fe definam as ideas fim*


plices; porque leefcurecem. Mas
definam-fe muito deligentemente as
compoftas.
II. Diligentemente examina as
ideas fantaiticas , e diftingue-asdas
íimpKces , e adventícias.
III. Naõ cuides que femprecor-
refpondem ás ideas fantafticas ob
jectos íimílhantec.
IV. Acauiela-te das ideas abf-
tracias, euniveriaes: na6 julgues
por ellas das melmas coutas.
V. Obfenra fe as aííociaçôes das
ideas iaõ fantafticas , ou naturaes ,
e agudamente diflingue entre hu>
mas e outras.
VI. Naõ filofdFes por fyftemas
fantafticos : antes filofofa por con
tinuas experiencias, e pelo com-
«num fentido dos optimos. Na6
finjas ounivcrfo de lyflemas , mas
«iluda paraque os fyttemas nafjaS
do univerfo.
VIL
VII. Nenhumas ideas julgues a-
dequadas, fenaÕ quando eftas cer-
to que nada refta no objeílo i que
ignores : e naõ julgue» cemeraria-
mente por ideas inadequadas das
eífencias das fubftancias , das for
ças activas, dascaufas, e fins das
coufas.
VIU. Cuida em fazer clara? ,
diílinctas e adequadas as ideas ef-
curas, confufas , e inadequadas com
o eftudo , experieneia , e medita-
çam. Por efta razaõ faze deligen-
cia pot augmentar , e formcr iaioa>
pacidade , perípictcia, e juizo.
IX. Naõ cuides que t« podes
fazer douto fo peito comercio com
o mundo inteligívél ; mas antes
com o mundo yla natureza , e dos
homens , fe tu naõ queres ir pot
camiBho idk^ito; para o fanatifmo.
Defpreiaaquella Logica , com que
bum certo honrem douro fe jacta
que todas as couías fe podem faber ,
e 4 de todas fe pôde julgar no mun
do íntelligivel tem experiencia , e
liçaau C A-
$1 Das Ideas &c.
CAPITULO II.
Primeira , e generica divifaS d$s
ebjeflos das noffas idear, e da
. '~: fahedoria humana*
§, I. .'•

OS objedtos das noff as ideas faô


aquellas coutas , que as mef-
mas exprimem , ou reprefentam.
Por exemplo. O objecto da idca do
Sol he o mefmo Sol. Nas ideas
quimericas laõ objectos as mefmas
ideas , como acima dicemos.
í:,1. .• .!. ... ;. • . t • «:• ",.. /. '

'.'•.~.r•.:rl : . §. IV '«;'^
8í.};i*. •• « ; '. \\y..J'~.: :.: :. ;.. :.»
As ideas algumas Vezes repre
fentam huns objedtos exiftentes , e
cutras fomente poífiveis. Por exem
plo. A idea do Sol reprefenta hum
objecto exiftente : a idea de mon
te de ouro reprefenta bum objefto
pofllvel. Quando as ideas reprefen
tam os objectos pofliveis, entaõ os
obje-
Livro segundo. 8«
objedtos das ideas faõ as mefmas
idcas. Daqui nafce , que as ideas
defte mundo fempre íaõ adequadas ,
ifto he , que tanto reprefentam ,
quanto nellas íe contém. Quando
porém as ideas reprefentam os ob-
je&os externos , os reprefentam ,
ou affim como fafi percebidos pe
los noflos fentidos , como o Sol ,
a Lua , os homens &c. ; ou affim
como faó concebidos pelo enten
dimento, eomoDeos, a alma, e
as cauías dos efteitos naturaes.

$. in.
Por tanto a primeira, e gene
rica divifa6 dosobjectos das nof-
fas idearhe , que hunsfaô exiften-
tes , e outros fômente poffiveis. Á
fegunda tambem generica he ,: que
huns objectos faõ fubftancias , ou
tros atributos fubltanciaes , e ou
tros modificações de fubftancias.
Por exemplo. O vocabulo corpo fi-
gnifica huraa idea , cujo objecto he
Â, .l huma
po Das Idkas &c
hutna fubftancia corporea. O voca
bulo gravidade fignifica hutna idea ,
cujo obje&o he hum attributo do
corpo. O vocabulo figura fignifica
hama idea, cujoobjeélo he huma
modificaçao do corpo. .' - •
. .. . . . ,. , í- *:
§.IV.
Expliquemos eftes vocabulos em
poucas palavras. A fubftancia he tu
do aquillo , que na natureza por íi
exifte , e he fubfiílente , como o ho
mem , a planta , o Sol. O attribu
to fubftancial he aquillo , que per
tence para a eúencia de fubflancia ,
como a folidez , e exteníam no cor
po , o entendimento , e liberdade
na alma. O modo , ou accidente
he o que pode eftar na fubftancia ,
Ou faltar-lhe femcorrupçam delia,
como a figura cubica , a cor , o fa-
bor , a fluidade , a dureza no corpo.
Lmô SEGUNDO. ff

fc- .
§. V.
...!':.«. ;..,..••
Dividem-fe as fuMtancias cm
corpóreas , e incorporeas. As cor*
poreis laõ extenfas, lolidas, divi-
iiveis , egrjves. As incorpóreas laô
nem extenías , nem lolidas, nem
divifiveis, nem graves, como Deos,
a alma. AMem difto toda a fubflan*
cia he OU eterna , como Deos ;'" ou
feita, como as cou ias do Mundo:
ou poffivei , como as coufas de ou-
iro Mundo.
>$; VU

" Tambem 03 objectos das nof-


ias ideas ou faõ caufas , ou errei*
tos. A caufiheaquillo, porque he
gerada , ou feita alguma couia. Os
e/Feitos faõ as coufas , que faO pro*
duzidas pelas caufas. Todo o Mun
do cehfta de ferias muito bem or
denadas de caufas , e envitos. He
õfficio do Filolofo indagar eflas
coufas. £ a meíma indagaçao » e
Mh"v -) ef-
9* Das Ideai &c.
efíudo chama íe Filofofi *. Pefa qual
razaô he Filoiofo aquelle , que in-
veftiga com modo , e razaõ quaes
fart as coufas exiftentes , quaes pof-
fivejs: quaes eternas , quaes feitas:
quaes íubltancias . quaes attributos ,
quaes modos: quaes tambem faâ
corporeas, quaes incorporeas : alem
diflo quaes faõ caulas quaes effei-
tos : finalmente quaes lafi as rela
ções das coufas , e quaes os ufos.
§. VII.
Mas tres partes defta Filofofia
fe podem confthuir, Racional, Na
tural e Moral. A Racional enfina
a arte de filolofar , e de diftinguir a
verdade da falfídade. Efta he a Lo
gica. A fegunáa inveítiga as natu
rezas , as propriedades , as cautas,
os effeitos , os fins, e os ufos de
todas as coufas , que ha na na tu-
reza. A terceira indaga a natureza
moral do homem , e enfina regras ,
com que os homens podem viver
honefta. e fabiaraente. ,
«.VIII.
Livro segundo. 93
♦* .
§ VIII.
A Filofofia Natural comprehen-
de a Metafyfica , Fyfica , e Mathe»
roatica. A Metafyfica comtempla as
primeiras , e fublimes caufas , e ra
zões de todas as coufas exiflentes,
e poífiveis , e alem difto traâa de
Deos , e dos efpiíitos.

§. IX.
A Metafyfica tambem fe diftri-
bue em tres partes , que íaõaOn-
to!ogia,a Pneumatologia,eaTheo-
logia. A Ontologia ajunta noções
abftractas do ente , e das íuas pro
priedades genericas , das quaes de
pois difto tira principios univer-
faes , que fervem para as mais fci-
encias. Noeftudo da Ontologia nos
devemos acautelar , cye naõ julgue-
mos muito confiadamente das meí-
mas coufas por ideas univerfaes , e
abftractas , no qual erro muitas ve
zes
£4 "Oàs Ideas&c.
zes cahem os Metafyficos Na ver
dade a narufeza dascoufas naõ fe
pode comprehender adequadamen
te com as noflas ideas , nem fe e*a-
piina diligentemente com as noções
abítraclas , mas com a matn, e çoi»
inltrumentos.
Sr. &:- - y .

A Pneumatologia urafla da M»
tureza das almas , e dos Anjos. Em
inveltigar a natureza das almas ha
vemos de ufar dofentido intimo,
e de raciocinaçam. Nefta fciencia
deve fe acautelar affim o fanatifruo,
como o materialilmo. Saõ Materia-
Jiltas os que nenhuma alma conhe
cem diltin&a do corpo. E Fanatif-
tas aquelles , que negam todo o
commercio entre a alma , e o cor
po , e publicam muitas e admira*
veis comas do lume intetior da al
ma. Tambem fe chsmam Fanati
cos os muito imaginativos , e que
tem as fuas imaginações por cou-
ias reaes, e que por iflo meímo
,-- i fe-
Limo SECUMDO. $f
íeguetn mais o feu temperamento
do que a razaõ incorrupta.

§. xi.
A Theologia he huma fciencia ,
em que fe tra&a de Deos , e das
couías divinas. Ella nafce de tres
fontes , ifto he , da razaõ da natu
reza, das Efcrituras divinas, cdas
antigas tradições.

§.XII.
No ufo da razaõ na Theologia
fobre tudo fe hade acautelar a te
meridade : ifto he , naõ he licito
levar a razaõ natural alem dos feus
limites. Porque a rasaõ natural he
breviífíma. Afíim que , como ella
naõ pode fer a medida das couías
creadas , menos pode comprehen-
der a Deos , o qual he totalmen
te infinito. Peloque poucas couías ,
e rnodeftamente fe haõ de difputar
de Deos pelar razaõ natural.
§. XIII.
oé Das Ideas&c.

. '; . $. XIIL
No ufo das antigas Tradições
íe ha de ajuntar a critica; paraque
naõ adoptemos tambem por dou-
trinas divinas as fabulazinhas vul
gares. Deve.fe entender que mui
tas coufas faõ divulgadas muitas
vezes por homens , ou idiotas, ou
xnalicioíbs , e aftutos, como divi
nas , as quaes faõ humanas , e mui
tas vezes tambem indignas de Deos.
Que coufas fe devem ajuntar no
ufo das divinas Efcrituras , copio
samente demonftramos na Logica :
para ella enviamos os mais adian
tados.
§. XIV.
A Fyfica he huma fciencia , em
que fe ajuntam os fenomenos das
coufas corporeas , e pelos fenome
nos fe inveftigam as caufas. Cha
mam -fe fenomenos todas as appa-
rencias de coufas corporeas , que
,... ,'.X .'.:. íe
Livro segundo. $f
ít percebem com os lentidos, ou
fejam formas, e figuras exteriores
dos corpos , ou gerações , ou cor
rupções , ou alterações , ou com-
mutações, ou movimentos, ou quie
tações , ou lituações &c.

§. XV.
Por tanto duas faõ as partes da
F/fica , Hiftorica, e Dogmatica. A.
primeira he Hittorica Convem a fa-
ber , primeiro de tudo deve o Fy-
fico ajuntar os fenomenos , as ob-
fervações, e asexpeiienciasdascou-
fas corporeas : depois difto deve jul
gar com as mais folidas razões quan
to lhe he poilivel , quaes íaõ as fuas
eauías genuínas.

§. XVL
A Filofofia Moral he huma íci-
encia , que fe applica a iníhuir , e
dirigir a vida humana para a virtu
de, epor i(To meímo para a betn-
G ' aven-
98 Das Ideas &ci;
aventurança , pelas leis ou da «atuí
reza , ou divinas reveladas , ou hu
manas. Efta fciencia he a mais ne-
ceflaria de todas ao homem , e co
mo fim das mai6 ; porque fe devem
reputar inuteis todas aquellas fci-
encias , que de nenhum modo in
fluem para a felicidade humana y
porque por amor delia nos foi da
do o entendimento , e paria ella fe
devem dirigir todas as noffas co
gitações.
§. XVII.
Efta fciencia fe hadé deriv ar de
duas fontes , convem a faber , da
contemplaçaõ da natureza humana,
e da hiftoria naõ fomente divina,
mas tambem humana. Porém o prin
cipal officio doFilofofo moral he
explicar , e confirmar as leis ou na-
turaes, ou divinas: depois difto
derivar delias as obrigações dos ho
mens , e demoftrar em particular,
que coufas podem fazer a vida hu
mana feliz , ou miferavel.
CA-
Livro segumdo. 99
CAPITULO IH.
Da natureza dos vocabulos em
geral»

$ * .
ENtreosprincipaes íignaes, com
que com os mais communica*
mos os nofibs penca mentos, íaôos
yocabulos. Saõ pois os vocabulos
huns Tons articulados , ou expref-
fos pela mefma natureza , ou inven
tados pelos homens, paraque ma-
nifeftaflemos aos mais as nolTas co
gitações. A/fim que os vocabulos
peia maior parte faõ arbitrarios , if-
to he , tem a íua força, e íignifi.
caçaõ do uío dos homens. Peio que
iignificam aquellas noções, que com
elles ajunta o que falia , ou efcreve,
ou aquelle em cujo nome falia , ou
efcreve. Por tanto os vocabulos naõ
fe haõ de interpretar de forte , que
lignifiquem as noções do que ouve ,
ou lê , no que muitos torpiífima*
G 3 men*
ioo Das Ideas &c
mente fe enganam. E daqui fe po
de bem conhecer muito facilmen
te , que entam entendemos os livros
dos outros , quando' damos aos vo-
cabulosas melmas fignificações, que
lhes deram os meimos authores.
£ como ido he muito difficil de fe
fazer , por efta razaõ he evidente
que quafí nunca podemos comple
tamente entender os livios de ou
tros. Do que fe fegue que em in
terpretar os livros de outros deve
mos naõ ler muito temerarios , nem
muito teimofos.

Huns vocabulos fa6 fignaes de


ideas fimplices , e outros de noções
compoflas. Os vocabulos, Brancu
ra, Negrura, Redondeza, eExten-
faõ lignificaõ ideas fimplices. E ef-
tes , corpo, homem, planta, Deos,
alma, &c. fignificam noções com-
poftas de fubflancias.
§. III.
Livro segundo. ior
§. III.
As noções podem fer mais , ou
menos compoftas. Daqui nafce que
os vocabulos de noções compoftas
quafí nunca fe entendem adequada
mente ; porque he difficultofo fa-
ber quanto compofta feja a noçao ,
que e author deo a tal vocabulo.

'" : . §. iv. .. ::

Todos os vocabulos de fubftan-


cias faõ de noções compoftas, co
mo já dice. Por tanto faõ os mais
efcuros de todos. Porque em quan
to alguem pronuncia Deos , o ho
mem , a planta , o ouro , e os mais,
naõ entendo com baftante diftinçaõ
quantas ideas fimplices fe compre-
hendem naquelles vocabulos.

§. V.
|das tambem íaõ efcuros os vo>
i,.'. '' ca-
rtft? v Das ídeas &cv T
çabulos de modos cotnpoftos; por»
que nem fempre entendemos ade
quadamente quanta íeja aextenfam
das ideas, que le comprehendern
naquelles taes vocabulos. Por exem
plo. Os vocabulos amor , odio, pru
dencia, juftiça, e fimilhantes de mo
dos moraes naõ exprimem adequa
damente que , e quanto o author
quer com elles fignificar. Daqui
vem que Os vocabulos das ícienci
as , artes , e virtudes , dos vícios ,
dos coAumes , e ufos de diverfa*
Nações pela maior parte laõ efcu-
ros , e confulos.

§. VI.
Em todas as línguas ha quafi
infinitos vocabulos de relações oc-
cultas , os quaes tambem fe devem
interpretar pela relaçaõ para O tem
po , ou lugar , ou pefloas , ou cof-
tumes , ou outras coufas do mef-
mo , ou de diverfo genero. Simi-
jhantes faõ os nomes das qualida
des
Livro segundo. 103
des doe corpos , as quaes fe podem
intender, ou remittir , como calor,
frio , amargofo , doce , duro , mol-
le, &c. Além difto os nomes de
virtudes , e vícios : demais difto os
nomes de artes , e ("ciências : e fi
nalmente os nomes de acções , a
de verbos. Todos eftes vocabulos
Contém relações occulias, e naõ fe
podem entender bem , ie fe naô
entendem as relações. Porque ha
quente para hum , o que he frio
para outro: para hum he amargo
fo , o que para outro he doce ; em
Italia he vicio , o que na Afia he
virtude: em hum lugar he douto,
o que em outro he ignorante. Em
Colchide reputa-fe charidade o ma
tar os meninos, que naõ podem
criar , o que he verdadeira cruel
dade.
§. VII,
AMem disto em todas as linguas
ha huns certos nomes abftractos ,
que íignificam ideas abftractas , ou
./'. > for-
io4 Oas Ideas &c.
formas femjujettos , como dizem
os Escolasticos. Linha , e fuperfi-
cie íigntficam ideas abftractas de
longitude , e de largura : juftíça ,
prudencia , amor , e ira exprimem
ideas genericas das taes virtudes ,
ou affectos. Humanidade, Divinda
de , &c. íignificam aquillo, com que
o homem he homem , ou Deos he
Deos , mas com abflrdcçaõ. Do
n-efmo modo brancuia íignifica a-
quillo, com que a coula he bran
ca, e negrura aquillo, com que 9
couía he negra , &c.

§. VIII.
Ordenamos , o que muitas ve
zes temos dito, que oFilolofo fe
hade acautelar , que naõ entenda
as ideas abftractas pelas meimas
couias , e fe naõ engane por occa-
íiam dos vocabulos ablh actos.

CA-
Livro segundo. 105*'

CAPITULO IV.
Dofim , imperfeição ,ufo,e atufo
dos vocábulos.
;..,; . *.$.'•*• ."..:".',
OS vocabulos faô* hnns fignaes
das noil.fS ideas, aflim como
as ideas laô huns llgnaes das coulas. >
Pela qual razaõ o íim dos vocabu
los he, qye hun.« entendamos os ou
tros. Mas dois ufos dos vocabu
los íe podem constituir, hum ci
vil , e outro filofofico Aquelle tem
lugar nas converlações familiares ,
e negocios cíveis Este poiém nas
Eícolas , e efcritos dos filoiofos.
Ou aquelle na Republica civil > e
efte na literaria.

No ufo civil das palavras fem-


pre ellas fe haÕ de tomar com as
nocões recebidas ; porque de outra
ma-
lof Das Idbas &c.
maneira fe impede o commercio en
tre os homens. Mas no ufofilofo-
fico podem-fe entender com outras
noçáes , com tanto que todavia íe
definam bem , ido he , fe explique
anticipadamente , com que ideas fe
entendem aquelles vocabulos. Po
rém ifto íe nade fazer , quando as
noções vulgares dadas aquelles vo
cábulos iaõ menos perfeitas.

'. §. HL .
Havemos de confeflar com tu
do , que os vocabulos a nenhuns
deftesu fos correfpondem plenamen
te i porque por mais cuidado que
fe tenha em efcolher vocabulos . e
em os definir , delles fe naó pôde
totalmente tirar a efcuridade, e con-
fufaõ. Porque já que nem todas as
almas humanas cogitam igualmen
te , tambem os vocabulos , que fa6
fignaes das noíTas cogitações , naó
podem igualmente fignificar a to-
dos. Mas ifto fuincipajaiente acon*
LlVKO SEGUNDO. IÔ7"
tece nos vocabulos de tubílancias ,
e ideas genericas.

$. IV.
Efta imperfeiçaõ póde-fe cha
mar dos vocabulos. Mas o abuíb
dos mefmos vocabulos muitas ve
zes augmenta efta imperfeiçaô. El-
le he de muitos modos. O primei
ro commette- le quando os vocabu
los fe tomam íem algumas deter
minadas , e definidas noções , ou
ainda ( o que tambem he maior vi
cio) fem ideas algumas totalmente.
Muitas vezes os Filolofos , quan
do nada tem que refpondam a pro-
pofito ao que lhes perguntam , fo
gem para fimilhantes vocabulos ar-:
tificiofos , para encobrirem a 'Aia
ignorancia. Affim os Peripateticos
antigos pertendiam explicar todos
Os fenomenos da Natureza por qua
lidades occulias. O mefmo abufo
commettem alguns Newtonianos ,
recorrendo em cada numa das ques-
v f C tões
roS Das Ideas &c.
tões para a at tracçaõ , como para
refugio fagrado , e fua ultima efpe-
rança. Efu alguns, queentam mais
osadmíraõ. Belliífínamente Lucre
cio. Na verdade os efiupidor mais
admiram, e amam todas as cou/ax,
que percebem e[condidas debaixo de
palavras tiradas da juapropriaJi-
gnificacanu
§. V.
+ * * * .* "
O fegundo abufo dos vocabu
los be quando as palavras fe na<$
tomam fempre com ai mefmas no
ções , mas com muitas , e varias ;
o que por admirável modo pertur.
ba a.intelligencia do Leitor. Pro
cede ilTo pela maior parte da po
breza dai linguas ; porque nenhu*
ma língua he tam copiofa que pof-
fa fer igual a todas as humanas co
gitações : mas algumas vezes ido
acontece , ou por caufa da ignoran
cia da lingua , ou pela negligencia
do que falia , ou efcrevé. ,
Livro segundo* 109

§. VI.
O terceiro abufo he a efcurida-
de affectada. Efte fe commette , ou
quando aos vocabulos recebidos da
mos novas noções , fem que antes
admoeftemos os Leitores ; ou intro
duzimos hovos nomes fem defini
çaõ alguma ; ou ajuntamos os vo
cabulos de tal forte , que imitam
enigmas.
§. VII.
O quarto abufo he quando o
que falia , ou ouve , fe períuade que
com os vocabulos naõ fe exprimem
as noções do que falia , ma? as ef-
fencias reaes dascouías. Porque co
mo iffo he falfo , principalmente
nos vocabulos das fubflancias , naõ
fe pôde dizer , em quantos , e quaõ
grandes erros introduz os que lem ,
ou ouvem. Por tanto para que naõ
cahamos em tal erro muitas vezes
nos havemos de lembrar , que os
; i VO-
xco Das Ioeas &c.
vocabulos naõ íignificam as natu
rezas das couias , mas as noções
do que falia , ou efcreve , ou as ef-
fencias nocionaes , e naô as reaes.

§. VIII.
O quinto abufo he quando com
o continuado ufo de alguns voca
bulos nos petluadimos da opiniao"
de que numas certas noções le na6
podem exprimir com outros voca
bulos, de ral forte que nos parece
termos confundido em huma mef-
ma couta os vocabulos , e as fuas
ideas, Dahi procede , que todas as
vezes que a mefma noçam fe expri
me com outros vocabulos nos mo
va menos , como fe naõ fora a mef
ma.
$. IX.
O fexto, € ultimo abufo eftá pof-
to nos tropos, e figuras. Ha alguns
eícritores , que cuidam que emam
í. muito bem expl içaram alguma cou-
-C7 fa >
Livro segundo. iii
fa , quando a explicaram com no
mes mudados da lua propria ligni-
15caçafi para a alhea , e com figuras
oratórias, Eflas coufas perturbam a
intelligencia do Leitor. Dahi nafce
que muitas vezes attribuimos aos
eícritores íentenjas abiurdas.

§. X;
Eftes íàô os abufos dos voca
bulos. Deve-os acautelar, o que
quer plenamentecommunicar as fuas
ideas aos mais» A'lem difto , quan
do lê os escritores , deve-os obier-
var diligentemente , paraque ou fe
na6 engane , ou na6 caiu ninfa os ou
tros.
CAPITULO V.
Das Enunciações.
§. I.
A Enunciaçãõ,ou a propofiçaÔ he
xVtoda aoraça6,com que aífirma-
Mos, ou negamos alguma coufa : «u
com
ih Das Tdeas &c
com a qual exprimimos a fentençi
inteira da alma , ou o juizo do en
tendimento , como i /i virtude be
amavel ; O homem he mortal.

§ II.
Toda a propofiçaâ confta dètres
coulas , fujeito , attributo, ou pre
dicado , e veibo , ou uniam. O fu
jeito , e o attributo chamam-fe ter
mos , e materia da propofiçaõ; o
verbo porém , ifto he , a uniam , e
conjuncçaõ do fujeito com o pre
dicado , chama*fe fotma da ptopo-
ficaõ.
§. III.
O fujeito he aquillo , de que fe
affirma , ou nega : o.predicado po
rém he aquillo , que fe affirma - ou
nega -lo fujeito : mas a mefma ne-
gayaõ,ou affirmaç^m chama le for
ma, e uniam. Por exemplo. Nefta
propofiçaõ v d virtude be amável,
a virtude he o fujeito, e o amavel o
predicado , e o be a forma. ;
o §• *"'
Livro segundo. 113

§. IV.
' + .'... li 7
. Nas propofiçóes fe ha6 de.coni
liderar qualidade, quantidade,,e af-
fec^ões. As propouçoes em quanto;
à qualidade faõ afirmativas , ou ne*
gativas , fimplices , ou complexas ,
«(u com polias. A propofiçaõ affirma•
tiva he aquella , em que fe affirroa,'
que o predicado convem ao fujeirp,
como, o corpo be grave. A pVopo-
liçaõ negiriva he aquella , em qué
fe nega queopredicadocnnvem ao
fuj eito, como , o homem naõbe eief*

»* »• ';•• J.Jff .

A propofíçaõ ftmples he aquel


la, que exprime hum fojuiço, ti
confta de termos fimplices , como f
0 corpo be grave , Deos be eterno.
Porém fe os termos da propofiçaS
forem complexos, de tal forte que
jio fujeito, ou. predicado fe con
tenha outra propofigaõdivefia da
.ií ">'.;. H' prio-
n* DasIdeas&c.
principal , entam toda a propofí-
çaõ fe chamará complexa, e le di-
vidará em principal,e indicente.Vot
exemplo Alexandre Magno, o qual
feintftiá no pequem reifto tie Matei
doura * àpodérou-fe de toda à ãfiãi.
Efta propollçáé eoníte de daas , *dè
principal^ que he, Alexandre Mb-
gVò kpèã*ròÚ'{i'deÍodit!à Affitt,'b
incidente , que he , o qual reinai»
ntffèqkeno 'reino de Macedtinfiti
-oqoxq &. .-i''s.-r) ";è '. ;w ;. , ...{mo
-i.V
1.3 a --. ..'..'
1. VI.' |- .' .'. . *i
A ptopofi$íaôVcòi**óítahe&q%èí*
la , que tem ou muitos íujeitos'^
ou muitos predicados, ouhnma,
e outra coufa juntamente por exem-
pfô. X'Mrofi)i a0h vigilaritijimo
Conjulda Republica R(h>tafíàticomd
grande Fitòfifb, lcWtò tàtnfyérifèló*-
àúenlijpnto Orador -J ria quálfcròpb*
jfiçáõ há íres ' pftf&éatàos, Dà ír.tfi*
hia ftfrte , a nobrèfa jàsrtyitefail
afcienci* àõftufntítrifèrvtitífatie ffa
berba , na 'qual ha tifcsíuteítds.
§.VII.
Livro segundo. «5:

§. VIL
A compofiçaõ das propoGções
he ou clara, ou occuiia. As pro-
pofíções que tem a compoíiçaõ cla
ra , coftumam reduzir-fe para íeis
clalTes , que faõ copulativas, dif•
jumivas , condictonae9 , caufaes ,
relativas , « dií cretas.
, i !

f VIU. ••'.•{'""

A propofiçaõ compofta «opiíla-


tiva he aquella , que confta de mui
tos fujeitos, pu predicados juntos
por partículas copularia? , ou ex-
preflas , ou fubentendiJas. Tens ex
emplos no §. VI. Se as partes da
propofiçaõ compofla fe afirmarem,
Oj negarem drsjundti vamente , a
ipfopoííçaõ fe chamará disjunctiva.
Por exemplo. O bem be ou hontjlo ,
w utih. A avareza nem be bone/ia,
nem utiU
<•. H* §. IX.
n6 Das Ideas &c.

§. IX.
A propofiçaõ condiciona! éon»
tém duas partes, numa das quaeé
depende da condiçaõ pofta antesr
JPor exemplo. Se he honeji&i hebam :
Se he torpe, he máo. Se o triangulo
he ifojceles) tem os ângulos iguaes
junto á bafe.: A primeira patte da
propoíiçaõ condicional 4 convem a
íaber aquelia^ a que eflá junta a
condiçao , chama-íe antecedente :
mas a fegunda , que depende da pri
meira jchama-fe confequente; iAmax
no precedente exemplo : Seyhe-ho-
neftohe antecedente : He bount*,h!Ç
confequentir. ::í -..:.' oi- , ?. ^-.q
- V :. ^V. §. X»r '}: r ,.í.'c ,..t.
f. Í"í.-. '! £.' C"I . . r... .!Ú(.!)'.'J
A propofirçaõ çaufal contém da
mefma forte duas partes^ húma das
quaesexprime o fim da outra. Pôr
exemplo Leio paraqitq{àibtt\P.arar
"què Jaiba he o fim porqije. kÍQi»v*
por iffo caufa porque leio. Pois que
* íl os
LíWÍo áÊGlWDO. 117
os Filofofos numeram o fim entre
as cauías. Aquella parte , que ex
prime o fim , chama-ls caufal da
propofiçaõ.'!'? , '. •'v,r* ' - :"
'..;.•• §i XI.:

As propoíições Telativas faõ" a-


quellas , huma das quaes. contém
relaçaõ para a outra. Por exemplo.
Qual be a arvore , tal be o frufto ,
Daqui fe entende aquillo do Evan
gelho: Pelos fruã«f deMeros conbe
cereis* Do mefmo genero he aquel
la propofiçaõ : Qual be a vida, a/-
fim be ofim*\ :,.••..
§. XII.
A propofiçaõ difcreta he aquel
la , que contém dois juizos á cer
ca do mefmo fujeito, hum dos
quaes he afirmativo , e outro ne-
gactivo. Por exemplo. He Çretenfe,
mais naÕ be mentiroso. He Grego ,
tyas naobe fallador. Tal he aquel-
le epitaphio:M/7<zgrd Ejle homem,
e mulher naÕ litigam.
::;: .4 §. xni.
*i& DasIdeas&c

f. XIII,
As propnfiçfies, que teto com»
pofiçaõ occulla ,. coflumam reduzir
fa a quatro claffes. Porque laõ ou
«xclufivas , ou exceptivas , ou com.
paiatjvas , ou inceptivas , e defui-
vas.
§ XIV.

A propo/íçaõ" exduíiva heaquel-


la , em que ou o lujeito exclue to
do outro attributo , ou o attributo
exclue todo o outro lujeito. A pri
meira chama-fe de predicado exclu
jo : e a fegunda de lujeito exclujo.
Por exemplo. Sò Deos be Omnipo
tente ; chama-fe ptopofiçaõ de fu-
jeito exclujo \ porque o attributo
Omnipotente exclue todo outro lu
jeito. A linha ht- taôjomente longa,
chama-fe propoíiçaõ de predicado
exclujo ; porque o lujeito tinha ex
clue todo outro predicado.
XV.''
4 propofiçaô çxçeptiva he a-
quella t em que o ai tributo de ta}
&rfe fe afôrma. 4fi fujeíto, que e*-
cjge parte 4fjle, IV exemplo, ff-
éHfmférWm Âfaõ, exçeptuan-
éo a StMijTWA Virgetfi iVfifria: To
dos podem Ialvar./e> exceptuando çf
impenitentes*
tf. XVI.
A propofijaõ comparativa he a-
qiiella , em que fe faz comparaçao
entre duas coufas, e que por efla
caufa íempre cqntém muitos juízos-
por exemplo, Achilles foi maisfor
te que Heitor. Nsfla propofíçaõ ha
dois juizos , com hum dos quaes fe
affirma que Achilles , e Heitor fo-
raõfort.es: com outro porém que
Achilles foi mais forte que Heitor.

$. XVII.
Finai we/ue a propofiçao" incar
fáw itgnifica o prãnçipjp de aJgu-
ma
Ièò Das TdÍbas Sèel
macoufa: a deíitiva porém o fim:
Por exemplo. A arte typographica
foi inventoda junta ao meio ao f'e~
culoXP. : A língua Latina deixou
de /er vulgar junto ao X. jeculo.
Toda a piopofiçaô inceptiva con
tém huma deíitiva, ea difuiva hu-
ma inceptiva. Por tanto ambas laô
compoftas.
f XVIII.
A* cerca das coufas precedentes
podem-fe obfervar eftas feguintes,;
I Paraque a propoíiçaô conjunSla
íeja verdadeira , todas as luas par
tes devem fer verdadeiras : íè hu
ma for falfa, toda hc falia. Por
que a affirtnaçaÕ , ou negaçãõ , que
he huma fó , e indivifivel , com*
prehende todas as partes: logo fe
huma delias he falia , toda a ffir-
maçaõ , ou negaçaô ferá falfa.
II. Na difjunSla devemaspar-
tes fer repugnantes , porque de ou
tra maneira he inepta; e por iflb
'huma parte taõ fomente deve fer
; r ver-
Lrv*o' smhtttft tu
Verdadeira. ' Por exemplo, õjtrtftofi
to fenjualbe coúfa má ,' liuboa , ou
nem boa nem má. Em o qujl exem
plo naõ poide ler vèrdadèiíà Oiáis.
que hum membro. fí i
; III- '.A verdade da hyp*thtma ,
ou condicional naõ depende da ver*
dade das partes , rrias da' refila con-
juncçaõ ; porque nefta propoíiçaò
nem o antecedente , nem o conle-
_ quente fe affirtna , otrríèga ', mas
lomente a connexaõ; •'•,q -f. o. :: -I
IV. Na caufal ha duas parrer ;
huma das quaes deve coirter à'.'ra-
zaô iufficiente da outva. Se falta
efta razafj ou he falia, ou inepta
a propoíiçàõ. Exemplo. O Império
Romano acabou , porque admittio-a,
Religiam Cbriftã : Certamente he
falfa a câufa daqueHe effeito; por
que a Religiam Chriftã hff6 deflroe*
mas maravilhofamenfe conferva as
fociedades, ;e imperioè..' " . .'. *
V. A vefdade das propqfiçrjes
exclufivas mtfito difficuholamemefe
conhece. Primeiramente paraquefe
• ».j ma-
manifefle a verdade das proponde»
de fujcin exettify , de?em-fe labcr
todos os outros fujeitos exiftentes f
qu poíBveis , (e para eftes tambem,
fe refere a propofiçaò : Em fegunt
do lugar paraque fe conheça a ver
dade das propofíyões de predicad*
este/ufa , deve faber-fe adequada
mente a eflencia do íujeito. Mas
buraa e outra coula he muito dif-
ficultoía. Por tanto taes juizos nao"
fe ha6 de pronunciar taô facilmen«
VI. Toda a propofiçaô incepti-
va contém a deíitiva , como tarar
bem toda a difuiva cotem a in-
ceptiva. Por exemplo Antes do fe
cula 14 naõ havia arte Typograpbi-
ca: ÍJtgo bouvea depois do feculo 14.
Vir As propoíições incidentes
explicativas naõ influem na verdan
de, ou falfiiade das principaes \ af-
íim queoufejam verdadeiras, ou
falias, naá importa ás principaes:
peto contrario porém muito lhes
importa 4 verdade , m faWdade du
in-
Livro segundo. iij
incidentes reftrtbUvas. AMem dilto
como aquelle , que «fcreve , prin
cipalmente tem cuidado das pr.n-
cipaes , e menos das incidente» ex
plicativas , eftas naõ íe baó de mi»
tar demafiddamentc , nem imputar
aos eleritores muiti> pertinazmen
te : pelo coniuno porém as reBrir
âivas , as qu^es fazem numa par*
te eflencial das. piincipaes.
:,. CAPITULO VL
t .'
Dã quantidade , oppoflçaSeconver-
JaS das Enunciações.

.i...:hl * .\.
A Primeira propriedade das Enun
ciações be a quantidade. Elta le
conhece pelo fvjtito. Mas pode o
íujeíto da propofi.aõ (e> de quatro
modos, Indefinido, Unires fal, Par
ticular , e Singular He indefinido ,
quando com nenhum íignal de quan
tidade be notado , como , O bontt**
be mortal^ o circulo bejigur* pi" »«,
j%4 DasIdéAs&c."
. -«« q t';"' §.JlH. ':'::"' t''ii'' 3
-f; I..' 't;' ' ;j£ '-''í (.;'.' . r 'f i .;§. . 3

As propofiçôes indefinidas em
materia neceflaria por li , e por ítíáí
natureza fempre faõ univerfaesí. pò-1
rém em materia fortuita , ou con
tingente faô particulares. A mate
ria das propofiçôes chama- fe necef-
faria, quando o attributo he da ef-
fencia do fujeito : chama-fe porém
fortuita , quando o attributo naô
he da effencia do fujeito. por exem
plo. O corpo be extenfo ; o homem he
racionai: Eftas propofiçôes faõ in
definidas em materia neceflaria ;
porque os attriburos faô da eflen-
cia dos fuj eitos ; e por iffo mefmò
faô unirerfaes por lua propria na
tureza. Porém as outras feguintes ,
ohomem beGeometra\ocorpo bever~
meího , faõ indifinidas em materia
fortuita; porque os attributos naô
faõ da effencia dos fuj eitos : pelo
que equivalem a particulares.
•ii .'i §. IIL
Livro segundo. \i$
-.IrnrT . " . . '. *.*......:' m ,orr.v:>
-e ':i, "ií.;-.; ;i £ III.. i' a 6 t>1-':. n
~í-; ; ' . .\! .-.'' '''''..., j) olii-j . B;bi.p
A propofíçaõ chama-fe univer-
ia I , quando o fuj ei to he un i ver fal ,
como , /tfdo o homem he mortal ;
ninguem he de toda aparte feltz.
CoRumam os Logicos diftinguir
duas univerfalidades das propofi-
ffcs, Metajyfica, e Moral. A pro
pofiçaõ be metajyficamente univer-
íal , quando naõ tem excepção* al
guma, como,., todo o corpo hedivi-
fivek Ghama-fe porém moralmente
«nivèríaí', quando; tem fuas exce
pções , como aquillo do Salraifta;,
nenhum ha que obre hem;, porque
eTta pTbpbfíçaô éntende-fe da'maio>
parte dos homens , e naõ de todos *
é de cada hum.

*£'* ,/-. t. '..'.. '$; IV.! ,;.,> -? sju:)


.-.'.-.A propofiçaõ particulars, fefr ar
quei !a , cujo fajeito he hum Só m
verdade, mas naô determinado',
JV £ co-
Ttté Das IoE»*&t.
como, tnorreo algum ho nem Final
mente a propofit^fingular he a-
quella , cujo fujeiro "he hum , e de
terminado como, Plataé foi Athe-
nienjt ; eflt metal he prata,
_j .oVw«-í,j «\ ,«\.:\ o <... \ «í,.i-_;

.*:>> '.Av^ -.. |V.'Y^ '-'a \'.-.--..!*-....


". '"^ílir) ,;;:l;oJ fi-, ,; .':v.'-o"i
. Òs Lógicos, carififlerart dois fww*
«dos geíieros de propofiyôes qaM*-
'ea* quantidade . imiVerfaes , e par*-
ficulares Mas como dias teô afr
firnraeivas , ou negativas , explica^
ifto com quarro letras fymbolicas
já.» Et /,. O. A figwtíieiçaá deftís te-
Iras c«Qtéarf*feitosníegwintes verfos?
:^r/lr Á , Wg; ,/ & jfervi* HOiver?
ia liter inibo , ^
JfleritX negai 5, [ed partícula*
riter an,bo.
Cuja veiíaô hêi^flirma o A, wg*
tf E, mas ambos umverfatmente.
Jíffima,ò'l,wp%$ ventas ambos
fuHicui*Ynàtaéi>\\i\ o[.w , k.'-^
« :i.fi{ii\;;;,.í^ dst: as/H *íí-;:/í3V
-^ §. VI.
Livro seguhdo. l%y
1 !V

§ VI
'\ t..•

Segue- íe a oppofíçaõ das propo-


fiçôes. Eíb be huma repugnancia
de áaat propofições , que coftftam
do mefmoíujeito, edomefmo pre«.
dicado. Por tanto, paraque duas
propofições fejaõ oppoftas , devem
conftar do mefmo fujeito , e do
meímo predicado, mas huma deve
íit afirmativa , e outra negativa.

'.•.•'
§. Vil . • . '. i
Ha trts géneros de oppofiçfies i
porque as propofições oppotlas laõ
ou contrarias > ou contradictorias ,
ou fubcòntratias. Às contrarias Ía6
St, £, iftò be , ambas univerfaes i
imas huma affirmativa , e outra toe*
ga t i va , eorttb , todo » carpo be pe-
zado\ nenhum corpo be pezado : As
tôhtfadictorias fofl A;0, ou £, L,
ctotovem ;a faber , bufnáuhiverfal-,
te outra particular ; tuas fcutoaafir*
ma-
^*S J3*£ Ideas &C.Í
tnativa, e ourra negativa. Por exem
plo. Ninguem vqlcefiara fijó '. Al"
guem nafce parajtfó. As fubcon-
iraíUíffaÕ li0, Ifto he;, ambas par-
fjçularej, mas huma afirmativa, e
putiia osgâlj^a^.íOíóo,^ algum he*
membe racional: algum homem uaõ
beractQMhq. .vi :.;" v -í .orrr . '

ob .> ,o:b;;ii cnibi? t.í, .i:::':v


avíí<íft»..lP«Mi f^ibade advertir ,
q.ije a^á?f qppii^oes^ gçfttraViàíj. eai|
materia fortuita hô ambas falias,
ruas em mate^iayne^eflaria {omen>
te huma delias pode" fer verdadei
ra. Ppr, e xe.m pi.0 .-..- Todo o bvmetH he
avarento '.'. Nenhum homem he ava~
rtiffPúítôAty. Tia teria contingente ,
e ambas fa,lfas. Todo o corpo.be ex*
tettfo: jy?nbumK«rpo heexttnfa, faô
erp ;m,aj«ria ae/qeffairiá3 i e ppr iílp
ityefni[q buma, dçUas ta0,fómente he
yy6rd.ade.icat ^T^mbem daspropoíi;
$6z\ cqj t ^ad (íjtpjjas ejri(qiatena rfieT
cRMaçlafhpmastqmepl€cVe3ver4^dei;
*W miam #»Aafer^iÇppt^nt?
ata a
Livro segundo. 120
â univerfal fempre he falfa. Final
mente das fubcontrarias em mate ^
ria necefíaria huma íomente pôde
fer verdadeira ; mas em materia for-
tuira ambas podem fer verdadeiras,
como , algum homem be prudente :
algum homem naõ be prudente.

:;t ;,.:! §. iX. ;; .


A terceira propriedade das pro«
pofiçòes he a converfaâ. Converte-
fe a propoíiçaõ quando o fujeito fe
faz predicado, e o predicado fujei
to. Se a mefma quantidade perma
necer em huma , e outra ptopo/i-
ça6, fe chamará íimples a conver-
faõ , como , nenhum circulo befigu*
ra folida : nenhumafigura lolida he
circulo. Se a quantidade fe mudar ,
a converfaõ íe chamará per acci*
dens , como , todo o fogo be corpo :
algum corpo be jogo.

I $. X.
l$0 pA? iDfA? $Cé

& Y ":':

Conforme a doutrina dos Logi


cos as propoíljôes E, I, ifto he, as
uniyerlaés negativas , e particula
res affirmativas , convertem-fe fim-
plelmente": ^ porém" as propofições
E , A, ou as univerfaes negativas,
e affirmativas convertem-fe per ac-
cidsns. . , . . . ,
» ; ^

• . ! •"!. ...:.....•., : a .r; ..ibt.t. .»."i


-«. ^ *; :..•:•.. ,. «ril>m fi í.r.: .^.i

-:.:':". • -it: ri £• ;«•• if">" 3Í . , '(?"' -


..j.-.ií , íí.Udj ; '•'. i

.t L'L:.. .; • '.. .". 1".'vVí;í.:. í;

w*.* \

LI-
x3»

LIVRO TERCEIRO.
• • . .' . «,
Dà Herdade t eFa/Jtdade, e dos
Criterios da verdade em geral,
, .--.*"rt, . *!-"...,. .' . v .• .
DEpois que no primeiro Llvró
fizemos diligencia por tirar os
impedimentos , que podem embara
çar os qutf pertendetn confeguír a
verdade ; e no fegundo explicamos
a natureza , a origem , os generos ,
os objectos, e os. fígnaes das nof-
fas idea&i agora be neceflario que
expliquemos qual. feja a verdade ,
queo Filofofo profefla feguir: alem
difto quaes -fejam os fignaes da ver
dade , e quaes os caminhos para a
indagar. .; .;

I* CA-
jaí Da Verdade, e Falsidade.
CAPITULO I.
Da Verdade , e Falfidade , e de va
rios eftados da alma humana , em
quanto pertence á verdade.

§. I.
O Vocabulo verdade he equitoco,
íBo he , nao tem huma íb figni-
ficaçaõ, mas muitas. Porque a wr-
dade , ou he Mor*/ , ou Natural ,
ou Metafyfica , ou Logica.
.

A verdade moral he huma con


cordia das fcntenças, e juízos da al
ma icom os lignaes , com que elles
fe exprimem. A efta íe oppoem a
mentira.
§. 111.
A verdade natural he quando
huma coufa he aquillo, que deve
íer por fua natureza , itlo he, quan
do
Livro TtfJcErto. ' 13$
do na6 he corrupta , e depravada.
Aífim chamamos verdadeiro ouro ,
«verdadeira prata aquelles , com
que nada eftá mifturado.
§• IV.
A verdade metafyfica he huma
conveniencia das coufas com as ide-
as eternas, e immudaveis de Deos.
A eira verdade nenhuma falfidade
he oppolla; porque todas as cou
fas faó aquillo, que Deos confor
me a fua eterna razaõ quer que fe-
jam.
§. v.
A verdade -logica he huma con
veniencia dos noííos juizos com os
íeus objectos j e a falcidade logica
he huma diíconveniencia dos nof-
fos juizos com os feus objectos.
De dois modos he a verdade logi
ca , formal , e objeSliva. Quando
os noffos juizos íe referem fo pa
ra as noflas ideas, e naô para os
.. : . c obje-
134 Da Verdade , e Falsidade.
objedtos externos , fempre lhes fa(S
conformes , e por ido verdadeiros ,
e efta verdade chama-fe formal.
Mas fe fe referem para os objectos
externos , nem íempre faõ verda
deiros , mas tambem algumas ve
ies faõ falfos. £ efta verdade , ou
fallidade fe chama oèjefliva , e real,

§. VI.
Os eirados da nofla alma , quan
to pertence a efta verdade , faõ to
talmente quatro, de ignorancia , de
duvida , de opiniam , e de certeza.
Dizemos que ignoramos aquellas
coufas , de que nenhumas nojôes
temos , nem pelo fentido , nem por
conjectura , nem pelo raciocinio ,
nem por alguma outra via. A'lem
difto dizemos que ignoramos aquel
las coutas , de que temos fim al
gumas ideas , mas naõ as podemos
entre íi comparar , e por iíTo naõ
podemos conhecer perfeitamente a
lua conveniencia , ou difconveni-
encia. §. VII.
Livilo "terceiro. 13J:

Três ettados ae ignorancia ha


rios homens,: de inteira ignoran
cia, qual ha nos meninos de pou
co nafcidos , os quaes nenhumas
noções tem das coufas: eftado de
pura fé, quarido temos na verda
de algumas ideas , mas naô as ía-
bemos ajuntar entre fi, e por ííTq
naõ íabemos julgar , mas admirá
mos como noffos os juizos de ou
tros , o qual eftado ha nos meni
nos , nos eflupidos , e idiotas a ref-
peiro de muitas coufas. O tercei
ro eftado de ignorancia he mixto
de fciencia , fé, opiniam , duvida ,
e ignorancia , qual ha em todos os
homens ainda doutilfimos. forque
tambem os doutos poucas coufas
avaliam com o feu juizo, crêrn
muitas pela aúthoridade de outros,
em muitas opinam , ou duvidam ,
e ignoram infinitas.
§. VIII.
136 Da Verdade, e Falsidade;

§. viu.
Chama-fe eGado de duvida , quan
do a alma para nenhuma das par
tes fe inclina, de tal forte, que
nem íabe affirmar , nem negar. Mas
a duvida he de dois modos , nega*
tiva , e fojitiva. A negativa he
quando por nenhuma parte ha ra
zões de affirmar , ou negar, como,
Je as eftrellas fixas faõ pares , ou
nones em numero*. A pofitiva he
quando as razões faõ iguaes por
huma , e outra parte.

§. IX.
O eftado de probabilidade , ou
'Opiniao" he quando a alma na verda
de fe inclina para huma de duas par
tes, mas perplexamente; porque natí
íe inclina por certas , nem evidentes
razões. Ifto acontece ou quando
fomente de huma parte ha razões,
mas taes , que nem faõ certas , nem
evi-
;P t Livro terceiro. ' 137
evidentes: ou quando ha razões
provaveis por numa , e outra par
te, mas mais graves por huma del
ias. Probabilidade do primeiro ge-
aerohe, que ha habitadores na Lua.
E do fegundo , que nau ha vacuo
na natureza.
§• X. ,
A probabilidade he de dois mo
dos, intrinfeca , e extrinjeca. Efta
deriva-fe da authoridade, e aquel-
lá das razões naturaes. Aífim he
extrinfecamen te provavel , que ha
habitadores na Lua , porque gra-
vi/IImos Filofofos o affirmam: he
porém intrinfecamente provavel ;
porque algumas razões provaveis
ò perfuadem.
& XI.
, A probabilidade tem íeus gráos :
pelo que alguma doutrina he mais ,
ou menos provavel, e huma mais
provavel que outra, aífim como
as razões iaõ mais , ou menos gra-
.; .. •« ves.
f^JT DA VÉRbADÉ,fcFALsiDADB .'
ves. Oj gráos da probabilidade me-
derrt-fe abfoluta, ou relativamente.
Medem-fe ubfolutathente , quando
indagamos quanto a opiniam difta
da certeza , a qual fe divide como
hum todo em partes iguaes, de tal
forte que cada huma das partes
conflitua cada hum dos gráos da
probabilidade. Medem-fe porém
telàtivamente , quando huma opi-
niam fe compara com outra , e fe
conhece quanto he mais provavel.

§. XII.
O eftado de certeza he, quan
do a alma , ainda que queira , naó
pode duvidar do feu juizo. Efta
tambem he de dois modos; por
que ou he apparente , ou real. A
apparente he , quando fe tem por
Verdadeira, mas naõ he. A real
he , quando he tida por verdadei
ra , e o he.

§. XIII.
> Lrvm «ejicBiRO. 139
-:...' .;'. §. XIII. . .. .. 11
-.-. .. ,' '3 .'.' ,il. .'..-, jv ' : . ,-
De nenhum modo podemos , du
vidar que ha certezas apparentes ,
iíto he, juizos , ^uelaõ falfos ,
e faõ tidos por verdadeiros. Por
exemplo. Laítancio FirmiaoQ jul
gava como certo que nenhuns An
típodas havia , e zombava dos que
cuidavam que os havia. Comtudo
nada he mais .cerro do que haver
Antípodas. Por tanto aquella cer»
teza de Lactando era apparente. t

,§, XIV.
..!./. ' '," i tf ' r ? .. -.
As certezas apparentes nafcem
de todas aquellas caufas , de que
nafcem os erros; porque ellas iao
erros: mas principalmente nafcem
de quatro caufas, que faõ a bre
vidade da alma , os prejuízos dos
maiores , ou dos fentidos , a pre
guiça de inveftigarY í; 0§ affedlos
dominantes. Primeiramente, os que
.i . tem
i4o Da Verdade, e Falsidade.
tem a alma breve , facilmente fe
enganam com a primeira apparen*
cia da verdade. E como nem ain
da íufpeitam que a coufa pôde íer
diverfa do que entendem , naõ fa-
bem duvidar de fimilhantes feus
juízos. Depois difto os prejuízos
dos maiores , ou dos fentidos , de
pois que pervaleceram por longo
tempo, tem-fe em lugar de axio
mas, de tal forte que muito dif-
ficultofamente podem deixar de fe
ter por verdadeiros. De mais dif
to a preguiça faz que fatisfeitos
com huma íciencia iuperficial deí-
prezemos as mais coufas , ou naõ
queiramos tomar fobre nos ta6
grande trabalho , quanto he necef-
fario para examinar os noflos juí
zos. Finalmente os affectos domi
nantes de tal forte perturbam a al
ma , que muitas vezes entendemos
nuvem por Juno , taô pertinazmen
te , que naõ queremos que fe nos
cnfinc o contrario.
CA,-
. ' - Livro tibceiro. 141

~ -i CAPITULO II. ;
Da Scientia, e Fé?
'# I.
O Vocabulo de Sciencia toma-fe
de dois modos , ou por cada
hum dos conhecimentos evidentes,
ou por alguma fciencia inteira. To
mada, pelo primeiro modo he hum
conhecimento claro , e evidente ,
ou, algum juizo claro, c evidente.
Efla tambem he de dois modos,
de intuiçaS,y como . nos axiomas ,
por exemplo ; Otodohe maior que
a fita parte \ aquelias eoufas , que
}aÔ iguaes 4, mefma , Jaõ iguaes en
tre fi 1 e\ tíe demonflraçaÕ , como
nos Theoremas demonftrados, por
exemplo .. os angulos junto, d bafe
dos triangulos ifofcelesfaÕ iguaes,
§.11.
Quando a fciencia íe entende
do fegundo modo, he huma ferie
lS de
%j|i Da VBr»ADB, eFaLsidmje.
de fciençias particulares , ou de in
tuiçaõ , ou de efemonfliraçàõ ? ou pa
ra melhor ^ize,r^, he• huo\ habito
de entender, e demonftrar muitas
propofições entre punidas com fe
rie continuada, qual he a Geome-
ÉÚíl ioq i; « « -. .; n í t" \. . *

-o T .eiklin i.ry.'..J'?.írt: -. !s v; q ;•.»


fif HBl ^ideneia 'Hip fròpr ia - da fci*»
errcKíMas:,defTres' ritodo^Bellie^
tf detícSa3, Matbentafite^ fyfòfiÇf
Mtíraí^ AfíeVidehcia: MathèrriatíCaJ
qoé ítiifiberW^fe-^íe *c*fattfor*'i;>'*
dhfrftVifttòglrW} daf-fe íiosaxítH
rWafcf Wde^hdrttfrãçôes de pura Hn*
f<#?&jWy "íftial féacha na Geome-
tVíâ.^ AritíimètfcaV e • Metafyíiw^
Efli «VWèttcia. He 'a maior, e mài*
íegurà' ^IfVtódW*^- "»•.. . 'i. ; r%> J

^A' eVidèncía .Fyfrb ç ou fenfi>el


p^q&8ié^b*lertfidos y como quao*
T : . ,". í,IVHO( TERCEIRO. . J*f$
do claramente vemos , ouvimos , to
camos alguma coufa &c. , ou quan
do deftas fenfações , eexperiencias
de-monftramos alguma couía neceí»
fariamente. Eíla evidencia he me
nor que a antecedente , mas fegu-
ra naquellas coufas, que pertencem
aos., corpos. .;.. ,^ ,,. ,-.&„ ~fj
li t; '.."-. ' í . -. , . : ,*; . .i- 1 t. ?''..".'. ..
, Mí !:;.:, ;.-.§♦ íVw: t.'; ...v .::',..) i't

A evidencia moral (a qual im


propriamente fe chama evidencia)
provém da aut hor idade :. , por tanto
fjaz fé, e naõ feiencia. Mas a au-
thpridade he^die^oitínodos , dijtin
na %,.*. humana. E na verdade a di
vina aurhojid^dft f.íempre faz evi
dencia moral, ou cerreza : ;<»j A«-,
W2<?»<2 porém fômente a faz quando
muitas teflemunhas de probidade,
e oculares teftificam de alguma cou
fa. Mas a certeza da fé humana he
muito mais inferior que a da fé
divina.
§. VI.
144 Df Verdade , b Falsidade;
-•-. ;: ••-•v' §. VI.

• Boi tanto a fé he ter alguma


coufa por verdadeira , naõ 'porque
nós à percebamos iom inlíuiçao^y
ou de^tionftraçaõ , mas porque nos
he referida por aquelle , que fup-
pomos a fabe. Pela qual razaõ a
fé refolve.fe na-fciencia daquelle,
a quem damos credito , ou neila
tem a fua força. Mas a fé he de
dois modos i divina ,.' e humana.
Aquella procede de!iDeòs, e efta
dos homens. A fé humana tambem'
pôde fer de duas maneiras, certa ^
epr«vave/t iflO he ,• affim cofflo hé
maior,' ou menOr a iâufhòridírde7
dos que" 'teftificani; / ír ' ;'-": J
'j'..y/.t .v;1'i v,*.: .;;' v'n:.'j ?..-;«
...'^•Jj.rp./ í.3:'...0.."i ' 'íi^mh.I
-U\>j f O ../; ..b •.•zjíiihji :.j|~fíi"0 3
sil wf '.::._•:: ài &L- ^.taiw f .' /"•'' b!

...\

17 4 CA-
Livro terceiro. 14$

CAPITULO III.
Dos Criterios da verdade.

§. I.
F Aliemos agora do Criterio, é
quaíi fenha da verdade , pois
que alguma deve haver , paraque d
verdade fe polia difcernir da ralfi-
dade. Mas haõ-fe de diflinguir as
coufas , paraque fe poffaô confti-
tuir os criterios , e fignaes da ver*
dade. Porque nas coufas intelligi-
veis he o caracter da verdade a evi
dencia intelligivel: rias coufas fen>
liveis he a evidencia Fyjica , ou /tf»*
sivel: e nas coufas hiftoricàs , ou
de faélo , ou naquellas , que exce
dem a noffa capacidade , he a evi
dencia moral. Logo aquelle que ti
ver alcançado a evidencia nas coil-
ías , que enumeramos , efteja cerro
que percebeo a verdade. Mas qual
quer deve fer para fi teftemunha,
e juiz defta evidencia : porque nos
K mef-
146 Da Verdade, b faísidade.
tnefmos fomente conhecemos o ef-
tado interior da noffa alma.

§.11.
Expliquemos itto com alguns
exemplos. Pergunta-fe, poi ventu
ra he verdade , que o todo be maior
que a sua parte ? He verdade ; por
que tem por criterio delia a evi
dencia intelligivel de intuiçaõ. Per
gunta-fe fegunda vez, fe os ân
gulos junto d bafe do triangulo ifuf-
celesjaoiguaes} Sa6; porque iffo
tem por criterio da verdade a evi
dencia intelligivel de demonftraçaõ.
Tambem fe. pergunta, Se exifte a
SoH Exifte; porque he evidente
fenfivel. Mas pergunta-íe outra vez,
fe o Solbe maior que o terra} He
maior na verdade ; porque ifto tena
evidencia fenfivel de demonftraçaõ
mixta com evidencia intelligivel,
A^lem difto fe pergunta , Cefar por
ventura triunfou dos exercitos de
Pompeio ? Triunfou ; porque ifto
tem
Livro Terceiro. i4f
tem evidencia moral humana. Fi
nalmente pergunta-íe , haverá po?
ventura em algum tempo rèfúrrei-
faff dos corpos ? Haverá ; porquê
ifto tem evidencia moral divina.

$.' IIL

Que ha de fazer o Filofofò , diz


alguem , quando huma evidencia fé
oppoem a outra íbbre a mefma
coufa ? Seguirá eftas Regras.
Regra primeira.
I. Se a evidencia Fyfica fe op*
Íofer i Mathematica , ter-fe-ha á
/fica por enganadora ; porque efc
ta he menor , a qual por ifto mèf-
mo he mais jufto deixar , do qué
duvidar de algum modo da Mathe
matica , que he a maior.
Finjamos (poflo queo julgo faí-
ío) que fe demonftr a com eviden
cia Mathematica , que a Terra fe
move. Se alguem conttapozefíc á
evidencia dos fentidos, nao devia
K a fer
448 Da Verdade , e Falsidade.
fet ouvido, íe naõ quizermos an
tepor a menor evidencia á maior,
II. Se a evidencia Mathematica
parecer oppor íe á Mathematica ,
e a Fyfica á Fyfíca , huma delias
fe terá por enganadora.
Affim que quando huma demonf-
traçaõ fe oppoem a outra demonf-
traçaõ , e huma experiencia a ou-
tra experiencia , neceffariamente en
gana huma delias. Mas efte he hum
caio , em que fe deve confultar o
commum fentido dos optimos.
III. Deixa a fé humana , feella
repugna á evidencia Mathematica,
ou Fyfica.
Porque com eftas íe naó pode
comparar na dignidade , nem na fe-
gu rança.
IV. Se a authoridade clara de
Deos fe oppoem á evidencia Fyfi
ca , o fentido fera tido, e havido
por enganador. ,
Porque a authoridade clara de
Deos he a razaõ de Deos , a qual
totalmente fe ha de preferir á evi
dencia
Livro terceiro. 149
dencia dos noflos fentidos , ou an
tes fubftituir.fe-lhe. Dice a Autbo-
ridade clara de Deos: porque fe naô
for clara , e podermos de algum
modo duvidar do feu genuíno fen-
tido , ainda naó nos havemos de
apartar da evidencia Fyííca.
V. A authoridade clara de Deos
naõ pode oppor-fe á evidencia Ma-
thematica.
Demos que fe lhe opponha: Co
mo a authoridade de Deos hc a iu-
prema razao, e por i íTo certi filma ,
fera totalmente verdadeira : Logo
ferá falfa a evidencia Mathemati-
ca , e por iflb mefmo naõ ferá íi-
gnal da verdade. Como ifto naõ
pôde fer ( conforme o que antece
dentemente fedice); fegue-fe que
huma na6 pôde oppor-fe á outra.
VI. Se á evidencia Mathemati-
ca parece oppor.fe a authoridade de
Deos , oií aquella naõ lie eviden
cia, ainda que por tal feja avalia-
da , ou efta fe naõ entende. Logo ,
paraque aquella fe examine, fe ha
de
iyo Da Vírdadk t e Falsidade.
de çonfultar o fentido commum ;
e para que eft* claramente fe en
tenda , deve-fe çonfultar a Igreja.
Porque afllm como o ientido
comnunn he o juiz da evidencia ,
lambem a Igreja , de quem formm
confiadas as palavras de Deos be a
sr.eftra de interpretar a divina au-
thor idade.
CAPITULO IV.
Ouaes caminhos Jejaõ propoflos ao
homem para adquirir a fabedo-
ria , e ejfes caminhos explica*.
dos geralmente.

§. I.
QUatro totalmente fa6 os cami
nhos , pelos quaes fe adquire
todo o noffo conhecimento ,
a authoridade externa , as experien
cias dos íen tidos , a intima confçien-
çia, e o raciocínio. Daqui fedirivam
todas, as noflas ideas , e todos os
noffos conhecimentos; Fora deftas
fontes
Livro terceiro. iyi
fontes naõ íabemos , nem podemos
faber. coufa alguma.

§. H.
E certamente todas as coutes ,
que podemos faber , fa6 ou exter
nas, ou internas. As externas ou
faõ fujeitas aos fentidos , ou nao.
A'lerh difto as que naõ fa6 fujeitas
aos fentidos , ou faõ acconimoda-
das á capacidade da noffa alma ,
ou a excedem. As couias , que a
cada hum faõ intrinfecas ou fe per
cebem com a intima confciencia,
como que nos exiftimos , que co
gitamos , que temos varias vonta
des, que fomos agitados com va
rios affectos , que prefentimos algu
ma dor , ou gofto &c. : ou le conhe
cem com algum raciocínio deriva
do da intima confciencia , como
que a noíTa alma he incorporea ,
e que he itnmortal. Tambem nef-
tas coufas utilmente nos íervire-
mos da authoridade daquelles , que
v. .. c . . : mais
ip Da Verdade , e Falsidade.
mais diligentemente coníideraram
a nofla natureza , porém íim nla
remos delia , naô paraque laiba-
mos fomente pela aurhoridade del-
les , mas paraque nós mel mos com
as fuás cogitações nos excitemos a
cogitar tambem.

§. III.

As coufas, que faô externas,


e fujeitas aos fentidos , fomente fe
haõ de aprender com as experien»
cias dos mefmos fentidos. Mas ifto
fe deve entender de tal forte , que
as experiencias fe naõ feparem do
exame da razaõ. Affim que prece
derám fim as experiencias diligen
temente feitas , mas delias fe ha de
raciocinar doutamente. Porém fe
eftas coufas externas naõ forem fu
jeitas aos fentidos, como os eípi-
ritos , as forças aélivas dos corpos ,
&c. , entaõ fe hade recorrer ao ra
ciocinio , e conjectura. Por tanto
íó com o raciocinio podemos co
nhecer
Livro terceiro. 15:3
nhècer quaes fejam as forças dos
Planetas ; mas funde-fe efte racio
cinio nas experiencias dos íentidos.

§. IV.
Finalmente aquellas coufas, que
excedem , a capacidade da nofla al
ma , ifto he , as que naõ podemos
perceber com os noflos íentidos ,
nem por conjectura , e raciocinio ,
nem com a intima confciencia fe
hàô de aprender da authoridade dos
Íjue as fabem , fe alguns ha. Taes
aÒ as coulas de facto , a que nõs
naõ eftivemos prefentes : taes íaõ
as coufas divinas , que excedem a
capacidade da noíTa alma ; e final
mente todas as coufas, que faõ ]'u-
periores á noffa razaõ.

§. V.
Deftas fontes tiraremos utilida
de , fe delias primeiramente beber
mos principios, ou prenoções da
noffa
ijT4 Da Verdade, b Falsidade.
noífa fciencia : Depois difto , fe
deftes principios eftendermos mui
to o noíío conhecimento. Por tan
to deve o Filosofo diligentemente
fazer duas coufas : Porque ha de
adquirir principios verdadeiros , e
tambem com o ufo , e exercido.
A arte , com que poda delles bem
raciocinar. Comprehendamos eftas
coufas em poucos preceitos.
Regra primeira.
I. Nenhuns outros caminhos de
aprender tem propoflos os Filofo-
fos fôra deftes quatro , authorida-
de , ientidos externos , confcien-
cia , raciocinio , e conjectura. Por
tanto muito diligentemente nelles
fe exercitarám , e faraõ verfados.
II. Naô paflarám tôra dos limi
tes deftes caminhos : faberám quaes
coufas fe devem aprender com o
fentido , e naõ com a intelligen*
cia , quaes com a inteiligencia , e
naõ com o fentido ; e quaes com
nenhum delles: obfervarám bem os
limites. IH.
Livro terceiro- ijjt
III. Primeiramente conliderarám
com diligencia, e medirám as no
ções , que dahi bebem : pondera
ram bem fe laò verdadeiras , ou
diftam da verdade , e quanto.
IV. Còm longo exercício adqui
rirám a arte , com que poliam de
rivar juftos conlequentes dos ieus
principips ,..çon,vem;arfabe^.r para-
que naõ tirem temerariam.enjte.con*
fequentcs verdadeiros dej prVicipios
faJfos , certos 4e provaveis , nem
evidentes de duvidofos \ e par?. que
aprendam a laber que taes taõ os
confequentes , quaes jaõ os princí
pios , donde na Icem. Em huma pa
lavra, paraque poliam avalia^ ca*
da huma das coufas com o Teu pezfc
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LIVRO QUARTO.
Do ufo da authoridade , e da Arte
Critica.
A Authoridade , de que ufamos
em adquirir o conhecimento
das coufas , ou he interna , ou ex
terna. Os noííos fentidos fazem a
authoridade interna , e os outros
a externa. Pela qual razaõ primei
ro de tudo t radiaremos da autho
ridade dos fentidos , e tanto mais
de boa mente , . porque daqui be
bemos as primeiras noções das cou
fas.
CAPITULO I.
Da authoridade dos Sentidos.
§. I.
OS Sentidos forafi dados ao ho
mem , paraque com o ufo del-
les conheça as coufas externas , e
cor-
Livro quarto. 157
corporeas. Daqui na ice a primei*
ra materia do noflo entendia ento ;
porque dos ientidos recebemos as
primeiras noções das coufas. Mas
quatro couías fe podem coníiderar
nas externas, e corporeas, a exif-
tencia , as qualidades , e proprieda
des , as relações , e finalmente a ef-
fencia.
§. II.
A exiftencia de alguma coufa
corporea percebe-fe ou com o im-
mediato toque dos fentidos , ou
com argumento tirado delle. Per
cebemos o Sol , a Lua , o Ar , e
outros muitos corpos com o toque
immediato dos fentidos. Defcubri-
mos huns certos animalejos , que
roem os corpos , e que faô inac-
celliveis aos fentidos , com hum ar
gumento deduzido dos effeitosfen-
fiveis. Porém naõ he neceflario que
conheçamos perfeitamente todas as
propriedades dos corpos , para co
nhecermos a lua exiftencia , mas pa
ra
tf8 Do USO T>À AOTHORIOADEÍ
ra iflo he fufficiehte íe comosfen-
tidos percebermos huma, ou outra.
Pelo qde rectamente concluimos fo
mente da luz, ou do cheiro, ou
do íbm , ou outra qualquer quali
dade que exifte o corpo , que luz.
ou lança cheiro , ou fom. Pela qual
razarrj concluímos bem da luz, e
do fom que a materia electrica he
corpo.
§. HL

As propriedades , e qualidades
dos corpos tambem ou fé perce
bem com a impreflaõ nos fent idos,
Ou fe concluem com neceííarios ar
gumentos daquellas còufas , que
com os fertridos fe percebem. Af-
fim percebemos a folidez , a luz ,
e o cheiro dos corpos com a im
preflaõ notacto, nos olhos, e na
rizes. Mas muitas vezes por eflas
percebemos , e defcubrimos outras
propriedades occultas. Porque naô
fe ha de crer que nenhumas Outras
propriedades ha nos corpos , fenaó
as
* LlVKO QUARTO T ^9
as que percebemos fomente com os
fencidos.
§. IV.
Como pois naõ podemos duvi
dar que ha nos corpos , proprie
dades , e qualidades defconhecidas,
na6 nos devemos admirar de que
algumas vezes delias naíçaõ taes fe
nomenos, cujas caufas ignoramos,
os quaes naô íe devem ter por fa-
buloíos , nem íobrenaruraes , pela
razaõ de que as caufas faõ defco
nhecidas. Por exemplo. Almanat*
trabe o ferro'- a agulha de marear
confiantemente fe vira para os Pó
los : Ha eftes fenomenos , que tem
fuas caufas em a natureza corpo
rea, aindaque defconhecidas: Naõ
os devemos ter por fobrenaturaes ,
porque ignoramos as caufas.

§. V.
Quanto ao que pertence ao co
nhecimento das relações das cou-
fas
IõO Do USO DA AUTHOR IDADE.
fas corporeas , ou entre fi , ou com-
nofco , defte fe fallou no primeiro
livro: nefte conhecimento fem du
vida íe deve ajuntar a razaõ com
os fentidos; porque neftas coufas
podemos enganar-nos , e muitas ver
zes nos enganamos.

§. VI.
Porém as effencias das coufas
externas , principalmente das fubf-
tancias , de nenhum modo fe podem
conhecer com os fentidos. Porque
as eflencias das coufas eftam poftas
na uniam de todas as proprieda
des ; os fentidos porém naõ podem
reprefentar todas as propriedades
dos corpos. Affim que havemos de
confultar a razaõ , paraque na6 va
mos mais alem do que podemos ir
com os fentidos. Tambem pode a>
contecer que perpetuamente igno
remos a eflencia das coufas corpo
reas , nem faihamos das que eflaõ
fora de nos coufa alguma , exceptos
os fenomenos. §. VII.
Livro quarto 161

$. VII.
Os filofofos reduzem a dois ge
neros as coufas, que fe percebem
com os fentidos , as obfervações , e
experiencias. Dizem-fe obíervar-fe
aquellas coufas , que acontecem por
fua propria natureza fem algum
trabalho noflo: Affim obfervamos
como nafcem , e como crefcem as
plantas como fe movem os aftros ,
como apparecem no ar os meteo
ros, como correm os rios , &c. As
experiencias porém fazem. fe com
o Hoffo trabalho, e induftria , co
mo quando experimentamos a for
ça de algum remedio , quando ufa-
mos de maquinas , quando exami
namos por quanto tempo vive o
paflarinho no vacuo Boyleano &c.

§. VIII.
Mas duas coufas fe devem ad
vertir á cerca do ufo das experi-
L en-
1Ó2 Do USO DA AUTHORIDADE.
encias , e obfervações. Primeira ,
que Ce façam com diligencia. Se
gunda , que delias fe tirem bem os
confequentes. Para que íe façam di
ligentemente , nellas haõ de traba
lhar homens peritos na materia de
que fe trata , e juntamente habeis ,
e faceis em manejar os inftrumen-
tos. Afiim naõ fe hade dar credi
to facilmente ás experiencias, e ob-
fervações que vulgarmente fe con
tam , e que pela maior parte foraô
feitas por homens ignorantes. Alem
difto ajuda a fazer muitas vezes as
experiencias , e obfervações , ecom-
parallas com as que fizeraõ outros
homens doutos. Finalmente deve
mos chegar a fazer as experiencias,
e obfervações fem opiniões antici-
padas , paraque nellas naõ vejamos
as coufas , que naõ exiftem fenaõ
na noffa mente. Dahi nafee que di-
vei los Filolofog , enganados pela
fantafia cheia de opiniões anticipa-
das, muitas vezes obfervam coufas
diverlas , e contrarias fobre o mef-
• mo objecte. §. IX.
Livro quarto. 163

§. IX.
Devemos proceder com caute
la em tirar as confequencias. Pri
meiramente naõ fe ha de tirar con-
iequencia univerfal de hum feno
meno , ou de huma, ou outra ex
periencia i porque naõ fe ha de ar
gumentar logo de coufas particu
lares para univerfaes. Porém com
muita probabilidade inferimos de
muitas experiencias por varias ve
zes repetidas , e confiantes conclu-
faô geral pertencente para aquel-
las coufas , íobre que fe íizeraõ as
experiencias. Depois difto naõ fe
ha de argumentar dos fenomenos
de hum genero para os de outro :
porque os fenomenos de diverfos
generos tem diverfas caufas. Mas
tambem ha alguns fenomenos , que
parecem fímilhantes , e com tudo o
nao laõ perfeitamente j Dos quaes
por efta razaõ naõ fe hade affignar
a mefma caufa.
L x §. X.
i6á Do uso da autboridade.

Por tanto o noflo Filofofo at-


tenderá para as feguintes regras.
I. Investigará todas as caufas
poffiveis do fenomeno affignado, e
muito diligentemente com elle as
comparará.
Duas utilidades ha nefta regra:
I. A alma do Filofofo por ette mo
do chega pouco a pouco a huma
profunda , e intima contemplaçao
da natureza , e quando inveftiga
huma verdade , defcobre muitas , e
faz o entendimento cada vez mais
capaz , e iníhuido. 2. Julga da cau-
fa do fenomeno com menor peri
go de erro. Por tanto nunca apro
vei , como em outro lugar dice , a
prompta, e breve forma de difpu-
tar nas Fy ficas por fyftemas : por
que o que affim filoíofa , eftá pe
gado ^ao íeu fyftema, como a hu
ma pedra , e nem inveftiga , nem
íabe outra coufa. A melma Fyfíca
Newto-
Livro quarto. 167
caufasB, C, e/), que fe podéram
inveftigar : Quando naõ confta cla
ra , e diftindlamente que o A de-
pende de huma deftas , e naõ efla-
mos certos que nenhuma outra reí-
ta , de nenhuma deftas direi affir-
madiiTimamente que procede o A.
Porém fe comparadas eftassaufas,
e attentamerite ponderadas todas as
coufas , fe acha eftar a razaõ fuffi-
ciente do A em B 2 em C 3 , e em
D 4, a probabilidade, com que fe
affirma que nafce do D , compara
da com a que fe affirma que pro
vém do C. he como 4 para 3 : com
a que porém fe affirma que nafce
do B , he como 4 para 2.

§. XI.

Naõ fomente of Fyficos , e os


Medicos devem 'obfervar eftas re
gras , mas tambem , e principal
mente os Políticos, a cujo cuida
do , e diligencia, eflá comettida a
tranquiUidade da sociedade : por
que
l68 Do USO DA AUTHORIDADE.
que eftes com o mefmo cuidado,
e ainda maior devem examinar ,
por que caufas pode acontecer a
tranquiliidade , ou perturbaçaõ da
fociedade. .Advirroque desejo mui
to que os Filofofos de pouca ida
de principalmente fe iuftiuam , e
exercitem neftes eftudos.
CAPITULO II.
Da Authoridade humana.
§. I.
A Authoridade humana faz que
movidos íomente com o tefte-
munho dos que teflificam nos per-
fuadamos como verdadeiras, ou
provaveis as ccufas , que naõ en
tendemos por intima experiencia ,
nem por via dos fentidos , nem pe
la razaõ. Por tanto efta authorida
de tem lugar ou nas coufas de
fado, a que naõ podemos eftar
prefentes , como na historia : ou na-
quelles dogmas, que nos ainda naõ
po-
Livro quarto: 169
podemos entender por caufa da fra-
quefa da nofla alma.
§• II.
Aífim que na hiftoria a autho-
ridade dos que teftificam lie o uni-
co principio, e como deípenfa,
donde podemos tirar os factos. Po
rém na Filofofia natural , e nas
mais difciplinas da razsõ a autho-
ridade pode ter lugar por algum
tempo , até que crelça a noffa ra-
zam: porque, augmentada ella, ha
vemos de fazer diligencia , para-
que nos mefmos entendamos pomos
effes dogmas , paraque nem fempre
fejamos guiados por outros á ma-
neira de gado. E ifto principal
mente fe ha de fazer naquella par
te da Filofofia , que fe chama Ethi-
ca, e que toda pertence para a nof-
fa tranquillidade , e dos mais.
§. III.
Toda a authoridade depende de
ires dotes do que teftifica da fua
ca-
170 Do USO DA AITTHORIDADE.
capacidade , e perfpicacia de enten
dimento ., da fciencia do facto , e
da probidade. Porque fe naõ confia
que o author , que teftifica alguma
coufa , teve hum entendimento ca
paz de entender as coufas , e prom-
pto , e perfpicaz em as difcernir ,
e que fabe o que teftifica , ou en-
íina , e que naõ mente , nem inter
pola a narraçaõ , perece toda a Tua
authoridade. Certamente fe o hif-
roriador naõ tiveíTe capacidade,
perfpicacia, e bom juizo , e fofle
facilmente credulo , pôde enganar-
fe: pela qual razaõ fe lhenaõ dará
facilmente credito. Além difto fe
naò confiar que pôde faber o que
narra , nenhum prudente o crerá.
Finalmente fe naõ for bom , e de
nenhuma forte incitado para men
tir por genio , nem por caufas ex
ternas , nenhum, credito merecerá.
§. IV,
Facilmente fe pode fazer juizo
da capacidade , e perfpicacia do
hiC-
Livro quarto. 171
hiftoriador pela lua hiftoria : por
que o engenho , a mente * e toda a
doutrina de quem elereve fe mani-
feita nos (eus eferitos. Pelo que fe
naõ formos totalmente eftupidos ,
naõ teremos facilmente por douto
o author ignorante , e idiota Conf-
tará poiém que o author pôde fa-
ber o que narra, fe folie, coevo,
e domeftico , de tal forte que naá
foíTe neceflario receber de outros
as fuas narrações. Porque os que
naõ' faõ coevos, nem domefticos,
podem enganar-íe , em quanto de
pendem de outros: porque a dif-
tancia dos tempos , e lugares ou
augmenta ou diminue , ou pertur
ba , e interpola todos os factos.

§. V.
Mas tambem fe requer no hif
toriador a probidade, ilto he , tal
com que eftejamos certos, que naõ
quiz de propofito enganar. Por tan
to fe conílar que o author foi leve ,
e
171 Do USO DA AUTHORIDADE.
e mentirofo , de nenhum modo fe
lhe dará credito. A probidade po
de faltar ao hifloriador ou por cau•
fa da lua natural leviandade , e ge
nio mentirofo, quaesfaõ em grande
parte os hiftoriadores Gregos , ou
por caufas exteriores, como por
exceífivo amor da Patria , por odio
de outra parcialidade , por temor
de algum mais poderofo , por cau-
fa de medo de efcrever verdades ,
com que muitos se ofrendam , por
occaíiam de dinheiro , com que ef-
teja corrupto , ou por outras fimi-
lhantes caufas.

§. VI.
Pergunta-fe aqui , quanta pro
babilidade faça hum hifloriador?
Respondo que faz , e tem grandif-
íima authoridade, fe de nenhum
modo fe pode duvidar da fua pro
bidade , e elle fofle coevo , e pre-
fente, e além difto homem perf-
picaz , e naô idiota. Menor po
rém,
Livro quarto. 17 $
rém , fe fofle coevo , mas na6 pre-
íente. E pequena , fe naõ fofle coe
vo, nem piefente.

§. VII.
Além difto fe pergunta , quan
ta authoridade tem muitos hifto-
riadores , fe todos receberam a fua
hiftoria fomente de hum ? Refpon-
ào que naõ a podem ter maior do
que a tem aquelle author , de quem
receberam a hiftoria? Porque iaÔ"
teftemunhas na6 oculares , mas de
ouvida. Porém na,s coufas de facto
toda a authoridade se nade referir
a teftemunhas oculares.

§. Viu.
No ufo da hiftoria tambem fe-
guirá o Filofofo as Regras feguintes.
Regras.
I. Por iflb que hum pôde enga-
nar-fe naõ fe legue logo que fe en
174 Do fJSO DA AUTHORIDÀDE.
ganou : Por tanto rejeitar a autho-
ridade fomente com efte argumen
to, porque he rallivel , he enlou
quecer: outros argumentos devem
haver , paraque delia te apartes.
II. As coufas, que narram to
dos, ou muitos hiftoriadores , con
tradizendo nenhum , devem-fe ter
por certas : Se hum , ou outro tef-
tificar contra muitos , devem-fe
comparar os dotes dos hiftoriado
res: conforme elles íe ha de Julgar.
III. Os factos , que narra hum ,
ou outro hiftoriador ocular , efcre-
vendo ninguem o contrario , faõ
proximos á certeza , íe efles hifto
riadores tiveffemos verdadeiros do
tes de hiftoriadores.
IV. Aquelle, que cala alguma
coufa, naô a nega: Logo aquellas
coutas , que referem os hiftoriadores
coevos, naõ fe ha6 de pôr em dúvida
fômente , porque outro , ou outros
tambem coevos as calam (pela 2.
e 3. ) : porque aquelle que cala , po
de íer accuíado , ou de negligen
cia
LlVRQ QUARTO. \J$
cia , ou quando muito de malícia.
Porém dizem, as leis da hifto-
ria pediam que naõ calafle. Mas
que fe íegue? Contra eítas peccou
o hiftoriador : mas naõ fe pôde di
zer que negou aquellas coulas que
cala : e ie as naõ negou , eltá em
pé a authoridade dos hiftoriado-
res , que as contam. He couta ad
miravel que os doutos podeflem dií-
putar entre fi com taõ grande con
tenda fobre efle argumento, a que
chamam negativo.
V. Haõ-íe de pôr em duvida a-
quelles factos que contam ainda
com grande concordia , teftemu-
nhas naõ coevas , nem oceulares ,
fe nenhum dos hiftoriadores coe
vos, e oculares os referem, quan
do havia opportunidade de os re
ferir.
Porque donde beberaõ eQes mo
dernos effes factos ? Nenhuma ou
tra coufa fe pôde ailegar , fenaõ a
fama popular , a qual he muito
mentirofa. E efle, e naô aquelle
an- "
176 Do uso da authoribade;
antecedente he o argumento nega*
tivo , que iempre foi reputado pe
los homens doutos fer de muito
grande pezo.
VI. Senaõ houver alguns hifto-
riadores coevos, e oculares, re-
pute-fe provavel a authoridade dos
modernos , quando nenhuns argu
mentos ha para contradizer.
VIL A hiftoria, que repugna
a razões claras , feja reputada falfa.
VIÍI. A hiftoria naõ fe diga
contraria á razaõ , porque fe op-
poem aos coftumes , e opiniões
prefentes; pois que fe mudam as o-
piniões , e os coftumes.
IX. Naõ fe repute falia huina
hiftoria, porque narra aquillo, cu-
jas caufas nós naõ entendemos.
Acima damos razaõ defta Regra.

.«;.«J ;i,... ... . •. '.


.' • ! .M.ííliV . ' '
•.;.r.. •'•'.; • «

CA-
Livro Quarto. iff

CAPITULO IIÍ.
Da auíhoridade Divina.
§. i
A Authoridade Divina heaquel-
la , que fazem as palavras dé
Deos. Efta authoridade he a mais
excellente; porque he authoridade
da fuprema razaõ divina , que naõ
fe engana , nem, pôde enganar : por
que Deos he infinitamente labio ,
c infinitamente bom.

$.11.
'.7i .:• .
Mas tres coufas faó neceííarias,
paraque alguem poda ufar da di
vina authoridade para entender as
verdades divinas. Primeiramente
deve-lhe conftar que Deos fallou :
Em fegundo lugar deve faber , qual
feja o sentido das palavras divinas:
£ em terceiro lugar quaes fejam as
palavras de Deos. Se ignora hu
M liia
I78 Do TOO 'DA AUTHORIDADE.
ma deflas tres coufas , naõ uiabem
da authoridade de Deos.

§ III.
Confta que Deosfallou, ou pe
la authoridade, ou pela razaõ. Conf
ta na verdade pela authoridade , fe
a Igreja eníina que Deos falloá.
Affim confta pela authoridade da
Igreja que Deos fallou pelos Pro
fetas, e Àpoftolos. Certamente fem-
pre ifto eníinou toda a Igreja. Da
qui vem que os íivros Profeticos,
e Apoftolicosfazem authoridade di
vina. £
, . r.'l . §. IV.
.y • -
O mefmo pôde confiar pela ra
zaõ , fe o que falia em nome de
«Deos, ,' enlina doutrina de nenhu-
: roa forte centraria i. razaõ natural ,
e tetnefpirito profético , e faz ver
dadeiros milhes. PoTque o efpi-
rito profético naõ pode provir ft-
naõ de Deos , o qual fo conhece
Livro quarto. 179
anticipadamente os futuros : e/iin-
Íjuem pôde fazer verdadeiros mi*
agres, fenaô fó Deos , ou quem
obra com poder , e imperio de
Deos. Daqui fe entende que os
Profetas , e Apoflolos foram Efcii-
tores divinos : porque en finaram
doutrina de neshuma maneira con
traria á ra/aõ natuial , e verdadei
ramente pronofticaraõ futuros , e fi-
zeraõ milagres.
*

Pelas mefmas razões fe fabe que


OS livros dos Profetas , e Apofto-
los contém palavras de Deos , e que
O Filofofo por iflo mefmo nelles
deve inveftigar as verdades divinas.
Mas a Igreja fe ha de confulrar fe
bre a interpretaçao das divinas pa
lavras: ifto he , ha de dar-fe ás. di
vinas palavras aquelle fentido , que
fempre, e em toda a parte lhes deo
a Igreja. Naquelles lugares porém ,
em que a Igreja ainda na<j interpoz
M z ^ .0.
l8o Do USO DA AUTHORIDKDE.
o íèu juizo, ufará o Filofofo das
regras da sagrada Hermeneutica ,
as quaes aprendará dos Theologos.
Nòscomprehendemos as principaes
em hum Capitulo nos Elementos
da Logica.

CAPITULO IV.
Sobre o conhecer os erros , genuida~
de , e inteireza dos livros.

§. I.
TOdos os livros antigos , que na-
quelle tempo foram dados á luz,
eram manuferitos antes do feculo
14. da era Chriflã. Deftes livros
manuíeriros foram tirados os pre»
íentes. He officio da arte Critica
examinar fe nos livros antigos po-
derarri introduzir-fe erros infeníi*
velmente, e quaes, e de que mo
do fe podem conhecer. A'lem difto
he officio delia ponderar , fe eftes
livros faõ genuinos, ou efpurios,
fe inteiros, fe truncados, ou inter
polados. §. II.
Livro quarto. 181

§. II.
Os livros antigos podéram fa
liu errados por muiras caufas , con
vem a faber por defcuido , ou igno
rancia dos Livreiros, ou pela te
meridade dos Críticos , pelas im
portaras dos Livreios, ou Letra
dos, e por caufa do tempo, com
que Te corrompem todas as coufas.
É primeiramente fe os Livreiros
foram negligentes, ou ignorantes
podéram deixar palavras , ou regras
inteiras, trocar letras , ou palavras ,
e efcrever numas por outras , e af-
íim manchar os livros com erros
muito feios.
§. III.

Porém fe outro dictafle acs Li


vreiro? , de muitos modos podéram
acontecer erros. Piimeiramente por
defcuido e ignorancia do que di-
clava. Em fegundo lugar por cau
fa da voz naõ íer clara , nem dif
tin-
iSi Do USO DA AUTHORTDADE.
tinfta. Em terceiro Jugar por na6
fer baftantemente corredio o livro,
de que fe fervia o que dictava. Em
quarro lugar pela negligencia dos
mefmos Livreiros em ouvir, ou ef-
crever.
§• ÍV.

Mas como os Críticos perten-


deflem emendar os livros antigos,
fe elles foflem ou ignorantes , ou
muito temerarios- quaes foram em
grande parte os Críticos antigos ,
taó jonge eftá que os emendaffem,
que antes nelles introduziffem no
vos erros. Daqui nafceo que nos
livros antigos algumas vezes íe a-
chem erros irremediáveis.

§. V.
Accrefceram os impoftores , os
quaes, paraque fatisfizeflem ás fuas
opiniões , ou á fua utilidade , ou
falfamente attribuirsm os livros á-
quelles authores, que os n2o ef-
cre-
Livro quarto. 183
creveraô , o que foi muito frequen
te entre os antigos , ou os muti
laram ,.ou interpolaram. Finalmen
te o tempo , que coníome todos os
corpos , naõ fomente devorou mui
tos Jivros , mas tambem fez mui
tas corrupções , e faltas nos que
reílam*
§. VL

Mas paraque diftinguamos os


livros genuínos dosefpurios, e os
inteiros dos corruptos , feguiremos
as dez íegras leguintes.
A /primeira Regra be.
I. He indicio de livro fuppof*
to , fe nos livros novos fe attribue
a outro author , quando nenhuma
razaõ ha; porque naó ieja reputa
do fer daquelle, cujo nome fe mof-
tra nos antigos livros: he prova
porém de livro interpolado fe nos
antigos livros falta alguma coufa ,
que nos novos fe acha : finalmen
te he indicio de livro mutilado , fe
ai-
184 Do USO DA AUTHORÍDADE.
alguma couta ha nos livros anti»
gos , que nos novos falta.
A razaõ defta regra he , porque
nenhuma outra prova ha da genui-
dade , e inteireza de algum livro ,
fen..õ o juizo da antiguidade conf
iante por alguns feculos deíde o
mefmo tempo do {Sfcritor. Certa
mente aífim como em examinar as
hiltorias antigas preferimos aos hií-
toriadores modernos os antigos , e
coevos , e fcientes da materia ; af-
íim quando fe d i (puta fobre a ge-
nuidade , e inteireza de hum livro ,
com raWÕ antepomos os antigos
livros aos modernos , quando ne
nhuma outra razaõ ha, que nos
poíTa embaraçar,
A fegunda Regra he.
II. Se aquellas coufas , que an
tigamente foram pelos antigos al-
legadas de algum livro, faltam a»
gora no livro do mefmo titulo , ou
efte he diverfo , ou mutilado : Se
porém íe lerem de outra maneira,
ne-
- Livro quarto. 185"
neceffariamente he fui peito : Se io
das a^coufas fe acharem me fruas ,
he o livro genuino , e inteiro, fe
naõ ha outras razões de duvidar.
A terceira regra he.
III. Os efcritos , de que nenhu
ma mençaõ fe faz ros catalogos
antigos , e que naõ foram mencio
nados por algum Efcritor dos le-
culos proximamente feguintes, pe
la maior parte ou (e devem julgar
fingidos ou fe haõ de ter por luf-
peitos , fe naõ ha outra razaõ em
contrario.
Porém efta Regra falha em Phe*
dro e Curcio Efcritores Latinos :
Peloque deve-fe ufar delia com cau
tela \ porque se funda em argumen
to negattvo , como lhe chamam ,
cuja força naõ he fempre a mef-
ma, como em outra parte fe ex
plicou.
A quarta Regra he.

IV. A quelles efcritos , queex-


pref-
l8é Do US» DA AUTHORIDADE.
preffamenre foram rejeitados , ou.
poftos em duvida pelos mais anti
gos , na6 fe podem admittir como
genuinos pela authoridade dos mo
dernos, fe a ifTo nos naõ movem
graviífimas razões.
Sem duvida as obras genuinas
dos Efcritores deveraõ fer mais cor
nhecidas por aquelles , que foram
mais chegados ao feu tempo , do-
que pelos que nafcemos mais tar
de ; porque tanto mais tenue noti
cia das coufas pafladas nos chegou.

A quinta Regra be.

V. O livro, em que fe lêm dog


mas contrarios , aos que o Efcri-.
tor, cujo nome moftra conftante-
niente defende, principalmente te
elles parecem fer de algum momen
to, ou he efpurio ,ou interpolado..
Mas tambem fe ha de uíar def-
ta regra com grande cautela ; por
que o author depois de fe fazer
mais douto pôde eícrever dogmas
dif-
Livro quarto. 187
differentes , e enne tanto naõ fe
lembrar dos primeiros ; o que a ca-
da paffo acontece aos que efcrevem
muito. Pôde fer hum pouco mai»
dado ao Scepticifmo e aífim de
fender diverlos dogmas em diver-
fos lugares , o que fabemos ter fei
to, alem de outros , Plataõ , e Cí
cero entre os antigos , e Pedro Bae-
lio entre os modernos.
A fexta Regra be.
VI. Livro , em que fe mencio
nam ou peffoas, ou nomes ou fa
chos mais modernos que o author,
aquem íeattribue, ouheeípurio,
ou interpolado.
Mas deve-fe ufar defla regra
com grande juizo , porque pôde
fucceder que algumas notas fe in-
troduziffem da margem para o ttx-
Xo convem afaber, finjamos que
hum Grammatico quando lê os li
vros de Cícero d cerca do Orador
nota na margem do livro ou o no
me , ou humas certas palavras de
Quin-
l88 Do USO DA AUTHORIDADE.
Quintiliano, que depois hum Li
vreiro ignorante ajunte ao texto
como efquecidas ; nem por iflo ef-
tes livros acerca d• Orador logo
fe haõ de feparar com rigor dos ge
nuinos de Tullio , aindaque elies
eftejam interpolados por hum certo
acafo.
A feptima Regra be.

VII. O livro ignorante, ou cheio


de ignorancia naõ pôde attribuir-
fe em parte , ou ao menos todo a
homem douto , nem o livro cheio
de fabulas imputar-fe ahomemnaõ
inhabil potto que moftre o feu no
me nos antigos livros.
Homens doutos com efle argu
mento julgam interpolados os co
mentarios de Servio fobre Virgí
lio , e de Donato sobre Terencio ,
porque contém muitas coufas frias,
vans , e indignas daquelles homens.
Com o mefmo argumento negam a
Agoftinho aííim outros livros, como
principalmente o intitulado Ser-
mo-
Livro quarto. 189
tnoes aos Frades do Ermo: porque
quem dirá que hum homem dou
to entre as mais fabulas refira , que
elle , fendo Bifpode Hiponia , de
manda a Ethiopia , e que ahi vira
com feus olhos Centauros de hum
io olho , e outras coulas poiun-
tofas defte genero ?

A oitava Regra be,


VIII. O livro, em que fe t ra
diam , ou comtemplam controver
tias nafcidas depois dos tempos do
Efcritor , aquem fe attribue , ou
em que fe acha imitação de Eícri-
tor mais moderno , ou he elpurio,
ou interpolado. ;
Com efte argumento negam os
Críticos que o Symbolb Athanaílano
feja de Saneio Athanaílo ; no qual
certamente , alem das mais coufas ,
oauthor claramente faz mençaõ das
herefias Neftoriana , Euthyquiana
nafeidas depois de Sandlo Athana
ílo.
A
IQO Do USO DA AUTHOR1DADE.

A nona regra be.


XI. Se o eftilo for diverfo do
conhecido , ou do Efcritor , a quem
fe attribue , ou do feculo em que el-
]e viveo , he efpurio. Se porém o
eftilo he o mefmo com o de outro
Efcritor , defte antes fe deve julgar
que he , fe nenhuma outra coufa
obfta.
A decima Regra be.

X. Os vocabulos do tempo fe-


guinte indicam Efcritor mais mo
derno, ou interpolaçaõ do livro:
Porém fe na traducçaõ nada ha que
imite a lingua , em que confta que
efcreveo o author , a quem le at
tribue o livro , naõ he traducçaõ.
O mefmo Clerico na Arte Cri»
tica confirma eftas Regias com mui
tos exemplos.

CA-
Livro quarto. 191

CAPITULO V.
.llu:'.J)e Arte Hermeneutica.
: ,'i :'. J . ? ., ; 1.1. i.,c ,....,
§. I.
A-S regras pertencentes áautho-
ridade , o;ue enlinámos nos Ca
pítulos antecedentes , íerám inu
teis , fe naõ enfinarmos de que mo
do fe devem interpretar os livros
dos authores. Pela qual razao foi
inventada a Arte Hermeneutica ,ifto
he , a arte de entender bem as pala
vras de ourros. Mas efta arte conf
ia de poucas Regras. Eftas perten
cem parte ás coufas externas, e par-
re ás internas. Para a primeira claf-
fe pertencem as feguinteSi
1. 'O que ha de interpretar al
gum livro , deve laber a lingua ori
ginal , em que foi efcrito , tambem
"como o que eíèreveo.
* A raza6 defta Regra he , por
que naõ ha vèrfôes algumas perfei
tas, ifto he , qué inteiramente ma
ni-
19a Do USO DA AUTH0R1DADÈ.
nifettem a mente do author , nem
fe podem fazer perfeitas de modo
algum , como com muitas razões
demonftra o doutilfimo Richardo
Simonio na Hiftoria Grit V. T.
Forque primeiramente as linguas
naó concordam entre fi perfeita
mente. Em fegundo lugar , os idio-
tifmos das linguas , as fuas cores
nativas , graças , e enfales naõ íe
pôdem verter para a alhea. Em ter
ceiro lugar , os que traduzem li
vros , pela maior parte entendem
os vocabulos fegundo a relaçaõ pa
ra os objectos , ou para as pro
prias noções , o que igualmente fe
oppoem ás leis de interpretar, co
mo, advertimos no fegundo livro.
II. Devemos fazer diligencia
paraque tenhamos muito bem cor
redios os livros dos Authores , que
interpretamos. .;,, -.. .
A razaõ difto he , porque os li
vros interpolados , mutilados , e
corruptos ou impedem que perce
bamos a mente do author , ou po
dem
Livno qua«to. 195
dem fer caufa , porque lhe attri*
buamos fentenças , que naõ faõfuas.
III. He neceflario que faibamos
a idade, parria , coftumes , profif*
fa6, e Religiaõ do Efcritor : por
que por eftas couías muito facil
mente penetramos a fua mente.
Na verdade os Eícritores a ca
da pado refpeitam nos feus efcri-
tos as opiniões , ou coftumes da íua
idade , ou patria : a cada pado em
butem as íuas ideas com a côr da
fua profiflaõ , ou religi aõ : pela
maior parte avaliam as couías alheas
pelos feus coftumes, ou opiniões.
VI. Devem-fe aprender as anti
guidades , e coftumes da naçíõ , de
que he aquelle Efcritor : porque he
difficil que o Efcritor naô tinja os
feus efcritos com a côr das opiniões,
ou coftumes da fua naçaõ.
Pelo que me parecem ridículos
aquelles , que ignorantes das anti
guidades Hebraicas , Gregas , e La
tinas , fe metem a interpretar os
livros dos Hebreos , Gregos , ou
N La-
ip4 Do USO DA AOTHORtDADE.
Latinos , fatisfeitos ló com aGram-
tnatica , e Diccionatios, no que mi*
íeravelmente ie allucinam os mef-
mos , e enganam os outros.
V. Alem dtfto deve-fe contem
plar o fim doElcrhot» porque de
hum modo fe ha de interpretar o
Filotofo, de outro o Orador , e de
outro o Poeta , fuppofto que o fim
de efcrever de todos na6 he o mef-
mo. Os Oradores , e Poetas ou re-
cream , ou leguem coulas agradaveis
ao povo , pela maior parte contra
aquillo , de que fe tem perfuaclido:
por cuja razaõ as verdades Poeti
ca , e Oratória , pi flo que fejam
yerdades populares , ifto he , pre
juizos do povo , algumas vezes naô
faõ verdades Filojojicas. Porém o
fim do Filofoto he ío a verdade.
Pela qual razaõ fe naõ confta que
o Filoiofo quiz zombar como Poe
ta, deve fe interpretar mais tigo-
roíamente. Efta melma regra fe de
ve guardar em ler os livros dos
primeiros Theologos da Religiam
Omita.
Livro quarto. 195"
Chriftã. Na verdade aquelles Pa
dres naô fallavám do meímo mo
do nos fermtíes ao povo , em que
ou calavam , ou explicavam obícu-
ramente humas certas coulas , pa-
raque naõ chegafíem aos deprava
dos , e profanos ouvidos do Gen*
tilifmo: e nos livros dogmaticos,
ou nas cartas familiares efcritas a
homens doutos. O que S. Jerony-
mo claramente adverte a Pamma-
quio.
VI. Se algum lugar de hum au-
thor naô he claro , lerá preferida
a interpretaçaõ daquelles , que fo
ram ou difcipulos , ou amigos , ou
coevos do meímo author , á dos
modernos, com tanto que naõ re- '
pugnem as palavras.
Por exemplo. Pofloque na6 fabe-
mos claramente o que quiz dizer
Plataõ com o nome de ideas eter
nas \ com tudo naõ duvidamos pre
ferir a interpretaçaõ de algum ef-
critor contemporaneo á fentença de
Plotino, e de outros modernos. Por
N 2 conta
IQr5 Do USO DA AUTHORIDADE.
conta deita regra na interpreta-
çaõ da doutrina Apoflolica , ha
vendo igualdade no mais , preferi
mos a eftes modernos interpretes
os Padres , que foram mais vifinhos
aos Apoftolos. A razaõ deita regra
he, porque he muito verofimil que
a mente do Efcritor foi mais co
nhecida por aquelles , do que por
eftes.
VII. Havendo igualdade no ma
is , a interpretaçao" daquelle, que en
tendia bem a língua do Author,
deve»fe preferir áquella , que he fei
ta fômente por alguma verfaõ.
A razaõ dilto he , porque faõ
muito raras astraducções perfeitas.
VIII. Havendo igualdade no
mais , nos lugares efcuros deve-fe
preferir a interpretaçaõ daquelle ,
que he verfado na materia , fobre
que o author he interpretado , á
daquelle , que da meíma he igno
rante.

§. II
Livro quarto. 197

§. II.
E eflas faô as principies Regras
de interpretar , que pertencem ás
coufas externas. Entremos agora
para as que faó internas a qualquer
livro. No que pertence a eftas
A primeira Regra he.
I. Toma as palavras no íentido
natural , fe naô ha razaô certa pa
ra apartar do fentido litteral. Mas
o íentido natural das palavras íerá
aquelle , que ellas primeiramente ti
veram , e a que se oppoem o meta
forico.
Por cauía deita Regra fomos ou
tra vez admoeflados , que adquira
mos intelligencia das linguas , de
que uíaram os Efcritores , e que
diligentemente inveftiguemos a pro
priedade dos vocabulos de cada hu-
ma delias : de outra maneira com
nenhumas forças efperemos perce
ber o íentido natural das palavras.
.'«. Porém
Iç8 Do USO DA AUTHORIDADE.
Porém as razões que nos obrigam
a apartar-nos do íentido .proprio ,
pôdem fer muitas , mas principal
mente aquellas duas, quando de ou
tra maneira o Efcritor ou nenhum
fencido exprimiria , ou aquelle, que
repugna ao feu inftituto : accrefcen-
ta , ou quando exprimiria aquelle,
que he manifeftamente abíurdo , e
que fe naõ pôde attiibuir a hum
homem , que naõ he totalmente in-
habil.
A fegunda Regra bê.

II. Os lugares eícuros interpre»


tem-fe por outros mais claros.
Paraque feobfervebem efta Re
gra , primeiramente íe haõ de fa
zer duas diligencias : I. todo ofyf-
tema do author fe ha de compre-
hender em poucas palavras , dif-
tribuir em memoriaes compendio-
fos , paraque fe poíTa ver claramen
te quafi com huma fó vida de olhos.
Se ido efliver feito por outros ho
mens doutos, ufemos do mefmo:
II.
Livro quarto. ' 199
II. Ha-fe de fazer hum diccionario
proprio do tal livro. Affim muito
facilmente fe compararám fenten-
ças com fentenças, e palavras com
palavras. Mas diftojá fe fallou em
outro lugar.

A terceira Regra be.

III. Inveftinguem-fe , e exami-


nem-fe diligentemente os fujeitos,
e os predicados das propolições.
Potque as noções dos predica
dos certamente fe entendem pelas
noções dos fujeitos , e mutuamen
te. Por exemplo. O vocabulo ruab
( cofluma verter-fe Efpirtto ) tem
nos livros Hebreos nove , ou dez
noções diverfas, as quaes nunca fe
entenderam , fe osattributos fe naõ
invefligarem diligentemente. O vo
cabulo ©*«? para com os Gregos fi-
gnifica affim Deos fupremo , como
os Demonios, como tambem osHe-
roes , e as coufas uteis, ou excellen.
tcs no feu genero : Logo pelos at
tribu-
100 Do USO DA AUTHORIDADE.
tributos le ha de defcubrir a íua no
çaõ. Por exemplo, Referio Clemen
te Alexandrino na Milcellanea, que
entre os Egypcios fe reputavam ©£oc
os eftrondos dorentre: erra quem
interpreta Deofes, quando antes de
ve interpretar uteis á faude , para-
que naõ sejamos obrigados a dizer ,
que os Egypcios foram mais lou
cos que huma pedra. Em todas as
línguas ha poucos vocabulos , que
tenham huma fo noçaõ. Affim que
as fuas noções devem-fe inveftigar
pelos attributos. Efta Regra he uti-
liífima.
A quarta Regra be.
IV. Se naó lermos bem , diffi*
cultofamente pôde acontecer que
interpretemos bem.
Mas leremos bem : I. fe primei
ramente lermos aquelles livros , que
daõ luz aos outros. II. Se lermos
hum livro fem demoras entrepoftas,
mas continuadamente : porque os
que lem com interrupcam , naò" re-
tem
Livro quarto. 201
tem na memoria , nem pôdem com
parar entre íi as couías , que leram :
De que nafce , que naõ entendem
o que lêm. III. Se lermos tanto ,
quanto a noffa memoria poder fup-
portar ; porque a muita , ou varia
liçaó opprime as forças da alma.
IV. Se tomarmos a confiderar o que
lemos : porque aflim fe corrobora
a memoria, e mais facilmente íe
comparaõ as coufas com couías, e
as palavras com palavras. V. Se
confultarmos as notas , *ou com-
mentarios de homens perípicaces,
e eruditos: porque ha muitas cou
ías , que os homens naô advertem
facilmente , fe naõ tiverem Jido ex
citados por outros.

§. III.

Pergunta alguem , quando fe ha


de julgar efcuro algum lugar , e
que ha de fazer o interprete , quan
do elle he efcuro? Respondo pri
meiramente, que nenhum lugar de
algum
aOl Do USO DA AUTHORTDADB.
algum livro fe deve julgar elcuro ,
porque o feri tido do que fe rraíla ,
naõ he fufficientemente evidente ao
ignorante ; porque de outra manei-
ra nada já mais ferá claramente ef-
crito na Republica litteraria. De
pois difto naõ fe nade confundir a
fubliin idade , e difficuldade com a
efcuridade , a qual toda eftá ou no
modo de cogitar , ou no ufo dos
vocabulos. Finalmente naõ have
mos de julgar da efcuridade de al
gum livrb , ou lugar fomente pelo
noffo parecer , íe outros muitos ho
mens doutos o naõ julgarem efcu
ro; parque i(ío pôde naícer de hu-
tna certa conftituiçaõ particular da
noífa alma. Por tanto entaõ fe ha
. de julgar efcuro algum livro , ou
lugar de livro, quando I. os ho
mens mais doutos , e peritos doque
elle tracia , o reputam efcuro: cu
II. quando , ainda que expreffamen-
te o naõ confeffaõ , com tudo por
obra o confeffaõ , convem a faber,
quando na interpretaçaõ fe dividem
em
LlVBQ QUARTO. a©|
em diverfos pareceres. Pofto que
fe naõ deve negar que os homens
doutos algumas vezes mais fazem ,
doque adiam dificuldades quando
explicaõ os livros ; de tal forte que
muitas vezes he melhor ler os li
vros íem commentarios alguns.

§. IV.
Porém fe conda que he efcuro
hum livro , ou lugar do livro, en
tao ufe o interprere deftas regras.
I. Diligentemente examine, e
compare entre fi todas as noções
pofliveis , que o author pôde dar
ás palavras. Por exemplo. Explir,
car-fe-ha efte lugar , O efpirito do
Senhor era levado íobre as aguas
(/Gen. i. )devem-fe examinar todas
as noções do vocabulo Hebreo ruab
( Efpirito ) , como tambem dos vo
cabulos ruah Jebovab, Efpirito do
Senhor, para que depois difto com
paradas eltas com todo o lugar ,
íe polia entender, o que o divino
author
ao4 Do uso da authoridads;
author entendeo com eftes vocabu
los.
II. Se conftar com graviífimas
razões que o author de todas as
noções, por exemplo A,BtC,EHE%
deo ás-palavras fomente A , fejam
rejeitadas as mais : ou fe com gra
viífimas razões forem rejeitadas Bt
C, D, £, feja o A a noçaõ das pala
vras.
III. Se faltarem eftas gravifli-
mas razões , íerám inveftigadas as
provaveis : mas a interpretaçaõ íe
reputará provavel , e naõ certa.
IV. Eleja aquella noçaõ, que
he mais conforme ao rim , á dou
trina antecedente , ou fubfequente ,
e á economia do fyftema do author.
V. Quando muitas faõ igual
mente provaveis , nada fe defina
com certeza , mas deixe-fe o lugar,
como de nenhuma maneira intelli-
givel.

LU
20f

LIVRO QUINTO.
Das coufas , que pertencem ao ra
ciocínio*

CAPITULO I.
Sobre o medir , e augmentar a ca
pacidade do entendimento.
§. I.
PAra que fe entenda quaõ gran
de feja a capacidade donoffo
entendimento , devemos lembrar-
nos do que em outro lugar fe dice ,
que nos conhecemos as coufas ex
ternas com o auxilio das ideas. Da
qui fe pôde tirar o primeiro indi
cio da capacidade do noffo enten
dimento. Porque íerá maior , ou
menor a capacidade de cada hum ,
conforme tiver maior, ou menor
numero de ideas.
$. II.
20a Das cousas do raciciomo.

§. IL
Mas as ideas íaõ como huroa
materia do noflb conhecimento , a
qual o noffo entendimento , como
hum certo artifice , modifica quafí
de infinitos modos Pot tanto pela
força defte artífice faõ edificadas nas
nonas ideas muitos juizos , raciocí
nios , e fyftemas. Deftes fe dedu
zem novas noções, conhecem-fe as
coufas antecedentes , confequentes ,
e as que tem connexaõ. Daqui cref-
ce a capacidade do entendimento.
Aflim que toda a capacidade de
qualquer entendimento he igual ao
numero das ideas , e artificio do
mefmo entendimento. Por tanto os
que tem poucas ideas , e nenhum,
ou pouco artificio das mefmas ideas,
íaõ de pouca capacidade: mas os
que tem eftas coufas maiores , faó
de maior capacidade de entendi
mento.
§. IH-
Livro quinto. 207

§. III.
Porém o noffo entendimento faz
quatro coufas com o feu artificio á
cerca das noflas ideas : convem a
faber , ou percebe a fua identidade,
ou diflineçaõ : ou as fuas relações:
ou a lua coexillencia em hum íu-
jeito : ou a lua realidade. A per
cepçaõ da identidade , cu difline
çaõ das ideas eftá junta com a per
cepçao das rrefmas ideas , ao me
nos nas que íaõ claras : porque af-
lim que percebo a idea de alguma
couía , entendo que ella be efla ,
e naõ outia , que he buma, enaõ
moitas. Efte conhecimento he ne-
ceflario a toda a vida humana. Pe
lo que fe naõ foramos capazes de
perceber a identidade , cu difline
çaõ das ideas , e por iflo tambem
das coufas, fe perturbariam todos
os officios humanos.

§. IV.
2o8 Das cousas do racioc inio.

§. IV.
Alem difto fe naõ fôramos ca
pazes de conhecer as relações das
ideas , e das coufas , naõ podería
mos julgar , nem raciocinar j por
que os juizos , e raciocínios faõ o
mefmo que percepções das relações
das ideas ,e coufas. Finalmente por
iffo o homem he racional, porque
conhecendo as relações das couias
julga , e raciocina.

§. v.
O noflb entendimento tambem
percebe a coexiflencia de muitas
coufas em hum fujeito commum ,
como a coexiftencia da exteniaõ,
folidez , gravidade, figura &c. em
hum íujeito commum , que he o
corpo. Daqui nafcem as ideas das
iubibncias; porque as fubftancias
faõ nuns certos fujeitos , em que fe
entendem coexiftir muitas proprie
dades. §, VI.
Livro, quinto. 209

Finalmente o noflo entendimen


to pelas ideas que tem , percebe a
exiftencia real dos objectos que nel-
las fe reprefentaõ. Êfte conheci
mento tambem nos he neceflario ;
porque nenhuma, utilidade tem a-
quelles conhecimentos que naõ tem
realidade: pois que fimilhantes co
nhecimentos Ca 5 quimericos , e de
nenhuma utilidade.

§. VIL
E. eftas faõ as coufas, que o
noflo entendimento faz á cerca das
ideas , como (obre a materia das
fuas operações. Quando poií fe ha
de medir a capacidade do noflo en
tendimento , naõ fomente le deve
fazer conta das noffas ideas , mas
tambem do artificio do entendi
mento, de tal forte , que aquelle
entendimento íe julgue maior , o
-iv O qual,
lio Das cousas do raciocínio.
qual , como fe dice , tem maior nu
mero de ideas , e mais artificio. Po
rém deve-fe advertir , que entre as
noffas ideas , e os feus artifícios fo
mente fazem onoíío entendimento
mais illuminado , e mais perfeito
aquelles , que faÒ claros, e diflin-
íbos ; porque os que faõ efcuros,
mais elcurecem o entendimento ,
do que o illuminam.

§. VIII.
Daqui verdadeiramente fe enten
de quaes faõ os meios , com que fe
pôde augmentar o nofío entendi
mento. Porque primeiramente fe
deve cuidar em que ie adquira gran-
diffimo numero de ideas , o que fe
faz com a experiencia , com a liça©1
da hiftoria , aífim natural , como ci
vil , e com a meditaçaõ. Depois'
difto devemos fazer diligencia pa
ra que as ideas fe feçaõ claras , e
diftinctas , quanto he poffivel. Final
mente deve-fe fazei que o artificio
á cer-
Livro quinto. 211
á cerca das noflas ideas feja muito
claro , o que íe faz meditando , e
raciocinando.

CAPITULO II.
Sobre o entender o attençaô.

§. L
A Attençaõ do entendimento he
de tal forte neceflaria para def-
cubrir as verdades , que as melmas
verdades evidentes fe naõ enten
dem , quando falta a attençaõ. Por
que affim como para fe verem os
objectos corporeos na6 bafta que
elles eftejam allumiados peio Soi ,
mas alem difto he neceflario que
os olhos fe virem para elles: do
mefmo modo fe naõ ha attençaõ
no entendimento , ifto he , de tal
forte que elle fe applique tanto a
contemplar as ideas , que perfeve-
re immovel , de nenhum modo po
demos entender as fuas relações, e
por effa caufa nem a verdade.
O 1 §. II.
U2 Das cousas do raciocínio.

§. II.
Mas paraque a alma concilie at-
tençam , primeiro de tudo devemos
delia apartar quaesquer coufas , que
a podem diftrahir para outras par-
tes. Diftrahe>fe a attençaõ da alma
por muitas caufas I. Por aquellas,
que nimiamente fujeitam a mefma
alma ao corpo | quaes faó princi-^
pai mente os goftos fenfuaes do mef-
mo corpo II. Pelas que quafi di
videm a alma em varias partes,
quaes fa6 os affectos muito vehe-
nientes , ou as perturbações. III.
Pela fantafia muito viva, que ar-
rebata o entendimento para outra
coufa quafi violentado. IV- Pelos
lentidos, que continuamente o pre
cipitam da contemplaçaõ. Se o Fi-
lofofo quer entender a puriífima
verdade , deve apartar para longe
da lua alma todas eftas caufas ge
nericas , e outras particulares , que
cada hum pôde em & conhecer.
§. III.
Livro quinto. 213

§. HL
Depois difto devemos applicar
todos aquelles meios , com que a
attençaõ fe faça mais intenta. O
primeiío deftes meios he que ex
citemos em nos o amor da verda
de , com que quaíi emedemos a al
ma. Porque he dífficultofo ter at-
tençaô quando naõ fomos cõmovi
dos com amor algum de íaber. Mas
paraque em nos accendamos o amor
de faber , devemos muitas vezes pôr
di?nte dos noffos olhos os grandes
frutos da fabedoria. Os principaes
delles: faõ I. O cuidado de nos
niefuios , e a nofía confervaçao.
II. A honta, e dignidades, que
feguera a fabedoria 111. Os bens,
e riquezas , que eila traz comfígo.
IV. Os goftos, que peitcncem á-
quelles , que conhecem verdades
da Natureza ignoradas pelos mais.

§. IV.
a 14 Dai cousas do raciocínio.

§. IV.
O fegundo meio he que , Fe pô
de fer , para conciliar a atrençaõ ,
u t il mente u fe mos daquel 1 as cou í as ,
com que ella cofluma perder-fe. So
bre tudo ufaremos dos mesmos fen-
tidos , le em algum lugar fe pôde
fazer cõmodamente. Podemos con-
fervar as verdades abftraílas em
imagens fenfiveis , paraque na(S ef-
queçam: Affim na Geometria util
mente ufamos de linhas, letras , e
cifras de nutneios. Defte modo pa
ia excitar , e confervar a artençaõ
muito utilmente ufaremos dos fen-
tidos , e fantafía, os quaes de ou-
rra maneira coftumam diftrahir o
entendimento.
§. V.
O terceiro he: Utilmente tami
bem podemos ufar de huns certos
affeclos. Porque ha alguns, com
que todos os homens coftumam in-
flammar*
Lívio qíiikto; 215
flammar-fe para o amor da fabedo-
ria , qmes' íaõ a ambiçao da honta ,
e gloria , a eíperança do premio ,
.a emulaçaõ, e a indignaçaõ. Simi.
Ihantes afFectos , como tambem or
dinariamente a ira, excitam a al
ma , e nella produzem grande at-
tençam. Mas como todos a affe-
clos coftumam corromper o juízo,
deftes uiácemos dm para excitar o
vigor , e attençaõ da alma , mas
acautelar- nos-hemos, para que naõ
perturbem, osjuizos.

§. VI.
Finalmente pôdem collocar-fe
entre os meios de intender a at-
tençaõ todas aquellas coufas , que
abalam, e excitam a alma pregui-
çoía. A alma abala- Te , e excita-fe
com a agiraçam do fangue, e dos
eípiritos do cerebro. Dahi natee ,
que os que faõ de temperamento
frio, e tardo, inutilmente fe ap-
plicam a meditações fublimes , fe
naÕ
ií6 Das cousas do' raciocínio.
naõ vencem a rroxidám do corpo
com numa agitaçaõ muito vehemen*
te. Por tanto quaefquer remedios
que produzem algum calor no ce
rebro , tambem excitam o enge
nho , e attenç?á. Daqui vem que
nos excitamos fortemente com nu
ma vehemente diipura , como o fil
iar alto , com o esfregar a tefta ,
e com o efcrever . Mas o efcrever
hé aquelle grandiífimo fegredo pa
ra' excitar, e augmentar o enten
dimento Nenhum outro igual a el-
le experimentei. Por tanto faibam
os Principiantes que ío efte fez tan
tos homens excellentiífimos na Re
publica litteraria/

CAPITULO IIÍ.
Da natureza , e generos do Racio
cínio.
.. j .'''.' '

TOdo o noffo. conhecimento de


pende ou da experiencia inter
na , ou da intuicao dos fentidos ,
OU
LlVEO QUINTO. " 2T7
oq da fimples inteihgencia do en
tendimento , ou do Raciocinio , e
conjectura. As coulas, que conhe
cemos com intuiyaô ou da conlci*
encia , e entendimento , oir do? len-
tidos , lao muito poucas em rodas
as Iciencias : e inveftigarrtos 'as réf-
tantes com o raciocínio , e conje-
étura. Dahi fe manifefta que o uío
do raciocinio he neceflano aos ho-
men-. Mas he necelíario que ra
ciocinemos bem: porém raciocina
remos bem , quando obíervarmos
muito diligentemente as regas de
raciocinar.

§. II.
i

O raciocinio faz-fe, como em


outro lugar dicemos , quando de
duzimos judas conltquencias da-
quellas coutas , que confiam por in
tuiçaõ , ifto he , taes , que com ellas
tem neceíTaria connexaô, A querias
coufas, donde concluo, charnam-
íe princípios 4a, raciocinarão ; e as
que
2 18 Das cousas do raciocínio.
que fe concluem , chamam-fe con
clusões , e conjequentes. Mas he ro-
talmente neceflario que a todos es
raciocinios fe eftabeleçaõ primeiro
feus principios. Porém as conclu
sões , que neceíTariamente fe con«
cluem , tambem fe porám em lu
gar de principios , de que fe pón
dem inferir outras muitas.

§. HL
í

Por tanto aquelle, que defeja


fazer progreffos nas (ciencias, que
eftam em ufo entre os homens., pri
meiro de tudo deve adquirir abun
dancia de principios , e com elles
ajuntar a arre de raciocinar bem ,
e diligentemente. Os princípios ad-
V
quirem-fe com a comparaçao das
primeiras ideas , que temos adqui
rido com a experiencia , ou com
a liçaõ , ou com a intima confci-
encia ; mas a arte adquire-fe com
o exercicio de difputar, edemonf-
trar. O efludo de Geometria he o
mais
Livro quinto a?jp
mais utii de todos os exercidos ;
porque em nenhuma outra iciencia
íe obferva mais diligente ordem de
raciocinar, nem ha outra alguma,
que pofla dar mais claras demonf-
trações.
f. IV.
Todos os principios das nof-
fas racincinações fe podem reduzir
as duas claíTes , de tal forte que huns
íaô" de evidencia , e outros de fé.
Os primeiros tiraõ-fe dos femitfos ,
e do entendimento , e os fegun-
dos das testemunhas. Tambem huns
princípios evidentes faõ deevtden-
cia do fentido intimo ; outros de evi>
dencia fy/lca , ou de experiencia,
outros de evidencia mathematica ,
ou de puta intelligencia. Pela qual
razaô de tres fontes le bebem os
principies evidentes , ifto be , dos
lentidos externos , da confeiencia ,
e do entendimento.

V;
220 Das cousas do raciocínio.

§. V.
Os principios de fétambem per
tencem para duas clafles : porque
huns faõ defé divina , outros defé
hu nana. Pois que naquelias coutas,
a que n*6 chegam os noflos ten ti
dos , nem a intima experiencia , nem
o entendimento , põdem-fe tirar os
principios das noíTas racioci nações
da amhoridade divina , ou humana ,
íe em algum lugar ha alguns ac-
commodados ás coutas , de que t ra
diamos.
§. VI.

Se os confequentes fe tiraõ bem


dos principios, tem tanto pezo,
quanto os princípios. Pelo que fe
os principios forem de fé , tambem
os confequentes feraõ de fé: mas
( {c os principios forem evidentes,
tambem as conclufões feraõ evi-
' dentes. Pelo que as conclufões naô
pôdem ter maior forja que os prin
cípios,
Livro quinto. 22 r
cipios. Pela qual razaõ aífim como
de principios falfos fe aaô fóde
concluir cou ia verdadeira, tarr.bem.
dos duvidolos fe naô pôde con
cluir coufa certa , nem dos menos
provaveis coufa mais provavel.

§. VII.
Porém fe os confequentes fe naS
tiraõ bem , pôdem fer incertos , e
obfcuros , ainda que os principios
temiam fido certos , e evidentes.
Mas tira6-fe bem os confequentes
quando dos principio» fe naõ tiram
outros, fenaõ aquelles , que evi
dentemente íe entendem nelles eftar
inclufos.
§. VIII.
De dois modos fe pôde con
cluir dos principios concedidos,
direita , e indirectamente , e alfim
duas fao" as raciocinações , directa,
e indirecta. A raciocinaçao directa
he, quando dos princípios conce
didos
a»* Das cousas uoitácrociKio.
didos tiramos coo» recta ordem a-
quelles confequentes, que hetles fe
contém. Por exemplo. O que eftd
em bum lugar, pôde eftar em outro'.
O que pode mudar-/e de bum lugar
para outro , be movei'. Qualquer
corpo eftd em hum tugar : Logo pó-
de mudar-fe pura outro : Logo todo
o corpo be movei. Demonftremos
tambem pelo meímo modo , e or
dem que o Sol he neceflario para
a vegetaçãô das plantas : As chu
vas faõ neceffarias para a vegeta
ção das plantas : As nuvens faõne~
ceffarias para aproducçaõ das chu
vas • Os vapores faõ wceffarios pa
ra /e fazerem as nuvens : O Solhe
neceffario para fe elevarem os vapo
res : Logo o Sol be utçeffario para a
vegetaçam das pUntas. Efta racio-
cinaçaõ illuftra o entendimento com
a Iuí dos princípios , que por íua
propria natureza ie deriva para os
coníequentes.

§. IX.
Litro quinto. 2ij

§. IX.
A raciocinaçaõ indirecta faz-fe de
ires modos. Primeiramente, quan
do demonftramos , que fe naõ he
verdadeiro o que propofemos , íe
feguem dahi graviífimos abíurdos :
de que concluímos que he verda
deiro aquillo, que propofemos. Por
exemplo. Havemos de demonftrar
por efle modo e ordem , que a al
ma he incorporea. Se naò he im-
mortal , as fuas cogitações feraõ
movimentos corporeos : por tanto
os juízos , raciocínios , e demoní-
trações feratí uniões de movimen
tos : mas como eftas coufas faõ ab-
furdas ; naõ" pôde a ai ma fer cor
po. Na Geometria temos muitos
exemplos de íimilhantes demonf-
traçtíes. , ,

Em fegundo lugar faz-fe a ra-


ciocinaçaõ indirecta , quando fuppo-
mos
114 ^As COUSAS DO RACIOCÍNIO•
mos alguma propofiçaõ como ver
dadeira : depois, difto ponderamos
fe delia íe feguem todas aquellas
Couías , que íe devem leguir ; e íe
achamos qne.fe íeguem , inferimos
que aquelJa propofiçaõ he verda
deira. Deita raciocinaçaõufaõ mui
tas vezes os Analyticos , quando
faltaon os princípios de demonftrar
a coufa a priuri. Por exemplo. Hei-
de demonftrar por eftei methodo a
exillencia de Deos , fupponho que
exilte Deos , ifto he , numa cauía
do mundo intelhgenttjjima , poten-
tijfima , e óptima. Dahi deve fe-
guir-fe, que todas as coufas no mun
do Íaõ muito bem ordenadas , e de
tal ío'te que nada polia ler mais
bem ordenado Logo examino fe
na verdade Í3õ aífin as couta* do
mundo. E como acho que affim
Íaõ, entaõ concluo, que na reali
dade exilte huma caufa do Mundo
intelligcntiflitna, potentiflima , e
optima , ifto he , Deos. Defle género
.íaõ todos os lyllogifmos hypotheti-
«.os. §, XI.
Livro quinto. â2f
i

§. XI.
Faz-fe finalmente a raciocinaçarj
indireíla , quando, feita muito dili
gente enumeraçaõ das partes , de-
monftramos que fe ha de concluir
aquelia parte que refla , excluídas
as mais. Por exemplo. Se havemos
de demonftrar que agora he inver
no , uíaremos do feguinte raciocí
nio.
As eftações do annofao totjlmen-
te quatro , a Primavera , o Eftio , o
Outono , e o Inverno :
Agora naõ be Primavera t iiem
Eftiei , nem Outono : Logo be Invcr*
no.
§, XII.
Porém a enumeraçao das par*
jes deve fer muito diligente , de
tal forte que nada le omitta , e a
excluíam das mais partes deve fer
manifefla. Se falta huma deftas duas
condições, nenhuma força tem o
i. P argu-

/
%i6 Das «ousas do «aciocinio.
argumento. Convém a iaber , toda
a força delle argumento eftá pofta
em que huma coula de nenhum ou
tro modo polia fer ienaõ de hum;
do que ie infeie , que neceflaria-
niente íeja daquelle modo.

§. XIII.

A mais nobre de todas as ra-


ciocinações he aquella , a que os
Gregos chamam apodixis.t nos d*"
mon/iraçaõ. Mas na6 henecelTario
que a demonftraçaõ feja fyUogif-
mo , mas fim que feja huma necef-
faria uniaõ de muitos juizos evi
dentes. Porém os princípios da de
monftraçaõ devem fer verdadeiros*
Porque fefoffem falíos, n^õ gera
riam íciencia, mas erro, fe pro
vaveis, gerariam opiniam. Depois
devem fer primeiros , e careeer ât
meio; porque nada ha primeiTe qâé
tiles , pelo que poliam fer enfroá*
dos, e d em o nftrados- lfto aconte
ce quando a mefma uniaõ do fu-
í, jeito
Livro quinto. 417
jeito , e predicado he por íi eviden*
te , e hum de tal forte convem ao
outro, que nada íeja meio , pelo
qual fe entendam convir. Depois
difto devem fer mais evidentes; por
que , como por elles fe ha de rna-
nifeftaraconcluíaõ, devem os mef-
mos fer mais manifcftos. De mais
difto devem fer primeiros fegundo
a ordem da natureza. Alguns en
tendem ifto de tal forte , que fejam
univerfaes : mas naõ entendo fer
iflb neceffario , fe elles forem evi
dentes. Finalmente devem fer cau-
fa da conclufaõ , o que nós enten
demos de tal forte , que nelles fe
contenha a conclufaõ, e delles ne-
ceíTanamente fe infira*

§!xiV.
Coftumamdiftinguir.fedoisdjf.
ferentes generos de demonftraçaõ ;
porque ha huma demonftiaçafi cha
mada a priori , e outra demonf-
trajaõ , que íe chama apofteriori.
Pa Efta
328 Das cousas do raciocínio.
Efta moftra alguma couia pelos íi-
gnaes, e efFeitos \ e aquella dá a
razaõ de qualquer couía pela cau-
fa , ou natureza da mefma. Aflim
que demonftrar alguma couía a prio
ri, he demonftrala ou pela mefma
fua natureza , ou pela ca ufa. E de
monftrar a pofienori, he demonftrar
pelos efFeitos , e fignaes. Mas fo a
demonftraçaõ a priori , que fe faz
pela caufa proxima , e propria, ou
pela natureza da mefma coufa de-
monftrada , excede muito a outra.
Defte modo faõ as demonftrações
direitas da Geometria pura. Em de
monftrar os efFeitos pelas caufas de-
vem-fe oblervar eftes princípios.
I. As mejmas canjas produzem
os mejmos effeitos , e fimilhantes
produzemfimilba ntef.
II. As caufas neceffarias fempre
obram conforme todas as fuasfor
ças , xaõ da me/ma forte as livres.
1 1 L As caujas neceffarias fem
pre produzem os mejmos effeitos ,
naó da mefma forte as livres* '....
. í :cl §. XV.
Livro quinto. 229

§. XV.
Quando as caufas se indagam
pelos effeitos, fimilhantes indaga
ções fundam-fe neftes principios.
I. Nada fe faz [em razaÕ suf-
fietente , ou de na da nada fe faz.
II. Ninguem dd o que naÕ temy
nem mais do que tem.
III. Se todas as vezes que fe
põem o A , exiftir oB , e todas as
vezes que fe tira' o A , fe tirar »
B , o A jerd cauja do mejmo B.

§. XVI.
Em demonftrar as propriedades
de huma coufa pela natureza da
mefma coufa , deve governar efta
regra : Nada affirwes de qualquer
coufafenaÔ o que evidentemente en
tendes que je comprehende na fua
natureza. Aflim digo , que os tres
angulos do Triangulo faõ iguaes a
dois rectos, porque claramente en
tendo
ajo Das cousas do raciocínio.
tendo que ifto eflá ha natureza do
Triangulo.

CAPITULO IV.
Dasformas externas de raciocinar*
§. I.
O Que até aqui dicemos pertence
á mefma ellencia do raciocinio,
ou á fôrma intrinfeca de racioci
nar. Mas ha outras certas formas
de raciocinar , que fe pôdem cha
mar extriniecas. Eftas iete foram
frequentemente ufadas pelos anti
gos , a Inducçaõ , o Sjrllogiímo ,
o Exemplo , o Enthymema , o Epi-
cherema , o Sori tes , e o Dilemma.

§. II.
A Inducçaõ he huma argumen
taçaõ , que conclue o univerfal pe
la enumeraçaõ de cada huma das
partes. Efta pôde concluir , ou das
eipecies para o genero, ou das par»
tes
Livro quinto. 231
tes para o todo. Exemplo da pri
meira he efte : o ouro derrcte-fe com
o fogo : derrete-fe com o fogo o ef-
tunho , o cobre , o ferro &c. : logo
pertence á natureza do metal , que
com o fogo fe derreta. O exemplo
da fegun Ja pôde fer efte de Perfio
Saryr. 5. ver. 5"3. Elle fa/ diligencia
para provar efte univeríal ,
Cada bum tem o /eu querer ; nem
todos tem o mefmo gofto ; o que con-
clue com a enumeracaõ das partes
defta maneira ;
Huns daõ fe ao commercio : 0#-
tms d gula, fomno, e defcanço : Ou
tros ao campo: Outros aojogo: E
outros d luxuria , e lascívia.

§. HL
O Syllogifmo lie huma argu
mentaçao , pela qual , pofto o to
do, alguma çouía necefíariamente fe
conclue da parte que nelle fe con
tém , aflim pouco mais , ou menos:

A
*-$i Das cousas do raciocínio,
' A virtude he hum habito bom \
A Prudencia he virtude ;
Logo a Prudencia he habito bom.
Toda a força do fyllogifmo eftá
poda em que tudo , o que fe diz
do univerfal , fe deve tambem di
zer de cada huma das coufas , que
debaixo do univerfal fe contém.
Daqui nafceo , que todos os Logi
cos tenham enfinado , que naõ ha
fyllogifmo íem principio univerfal.
§. IV.
O Exemplo he huma argumen
taçaõ , que conclue de parte íimi»
Jhante parte. Por exemplo. Quan
do continuamente exercitas o cava
lado fazes mais prompto para ofreio,
e carroça: Logo fimilhantemente fe
exercitares a alma em continua con
templaçaõ , a farás mais habil, e
expedita para contemplar. Mas he
neceíTario que os exemplos fe to
mem de coufas fimilbantes ; porque
de outra forte nenhuma força te^
rám, §. V,
Livro quinto. 133

§. V.

O Enthymema he huma 'forma


de argumentar dos fignaes para as
coufas fignificadas ; como, A mulber
tem leite \ logo parto. NasEfcolas
modernas o Enthymema tambem fe
chama hum fyllogifmo , em que fe
cala a maior univerfal : como , He
homem , logo be mortal : em que fe
cala a univerfal , Todo o homem be
mortal.
§. VI.

O Epicherema he hum fyllogif


mo Dialectico , ou provavel , que
feoppoem ao filofofema , ou ao iyl-
logismo demonftrativo. Mas tam
bem fe coftiimou chamar ao Epi
cherema huma argumentaçaõ com
pofta , a cuja maior , ou menor ,
ou a huma , e outra feja junta a
fua prova. Por exemplo. A virtude
be habito bom , porque aperfeiçoa o
homem para o verdadeiro bem ; a
Pru-
234 Das cousas do raciocínio.
Prudencia hévirtud*\ porque tem
tud> o que he neceffario para con-
ftituir a virtude ; logo a Prudencia
be habito bom.
§. VIL
Sorites chamam algumas vezes
os Dialedlicos hum certo monte de
propofijôes de tal forte entre fi uni
das, que o predicado da primeira
le faça íujeito da feguinte , até que
o fujeito da primeira fe ajunte com
o predicado da ultima. Por exem
plo. Qualquer corpo está em hum ef
pafo, o que ejld em hum efpafo , po
de eftar em outro ejpafo \ o que pô
de e/lar em outro efpafo , pode- mu
dar o e/paço : o que pôde mudar o
tfpaço,be movei : logo qualquer cor
po be movei.
§. VIIL
Mas para com os antigos Sóri
tes , que em Latim fe chama acer*
valis , e em Portugues argumento
com-
Livro qbinto. jjjt
compofto , he numa argumentaçam
ordenada para enganar , na qual com
miudas addicções , ou diminuições
levamos o contendor daquillo , que
he evidentemente verdadeiro , para
o que he manifeftamente falfo. Co»
mo feeudifler , que mil grãos fa*
zem hum monte de trigo \ tu porem
inflares delta maneira , e que lerá
fe eu. tirar hum para fôra? Fica
por ventara ainda monte ? Que le
rá íe tirar iegundo ? E fe tirar ter
ceiro ? E que fe tirar quarto ? &c. ;
e me inflares tanto , até que eu af-
ligne aquelle unico graõ , com que
íe acaba o monte.

§. IX.

O Dilemma he huma argumen


taçaõ , que fe chama Bicorne , por
que o feu antecedente confia de duas
partes , e de huma , e outra le íe-
gue incommodo. Aflim humFilolò-
fo velho querendo provar que naõ
he conveniente ao homem calar
com
1^6 Das cousas do racíocinio.
com mulher alguma, ufava do fe-
guinte dillema: Ou cafarás com mu
lher fea , ou formofa; fe com fea ,
ella naõ te agradará ; fe com for-
mofa , entao agradará aos outros:
Logo abfolutamente nao convem a»
homem cal ar com mulber alguma,
Ella argumentaçaõ muitas vezes fe
volta ás avefias , e os Gregos lhe
chamam Antiflrephon , e os Latinos
Reciprocam , que em Portuguez li-
gnifica. Que volta para donde veio.
A argumentaçaõ antecedente pôde
voltar- (e affim. Se eu cajar commu-
Iber formofa, agradar -me-ha a mim;
fe porém com fea , naõ agradará
aos outros : Logo be abfolut amente
conveniente cafar com alguma mu-
lber.
§. X.

Mas ha hum dilemmaícomplexo,


cujo exemplo fe pôde tirar deGell.
liv. 14. cap. 1. Quer demonftrar
que fe naó haõ de ouvir os Aflro-
logos judiciarios, ou os queprog*
nofli-
Livro quinto; 237
fiofticaõ futuros pelonaicimento de
qualquer , e ííruaçaõ- dos adros. Pa
ra iíTo uía deite dilemma. Ou os Aí-
trologos judiciarios dizem fucceíTos
futuros incommodos , ou felizes Se
profperos , e enganam , ferás mife-
ravel , efperando de balde: fe dizem
íucefíos incommodos , e mentem ,
ferás miferavel , temendo de balde:
fe dizem coufas verdadeiras , que
jiaõ faó felizes , ja dahi ferás mi
feravel no animo , antes que o fejas
feito com a fatalidade : fe prome
tem coufas felizes , que haõ de acon
tecer , entaõ certamente haverá dois
incommodos ; porque a expectaçaõ
te fatigará fufpenfo da efperanqa ,
e ja a efperança te terá tirado a flor
á futura utilidade do gofto, Logo
de nenhum modo nos devemos ler-
vir de fimilhantes homçns^que prog-
nofticao coujas futuras.

CA-
' 138 Das covsas do ragiocwio.
CAPITULO V.
Do methoàt em geral, etamhem da~
quelias regras âomethodo de ra
ciocinar que [ao continuas a bum
e outro metbêdo , ijio he , de cotn-
pqfiçaS , e de refoíufaõ.

M.
Em invelli gar aquellascoufas que
nem (e entendem com o primei
ro intuito , nem fe defcobrem com
hum único lyllogi imo , he neceffa-
fio que ufemos da uniam de mui
tas raciocinaçdes Os Giegos lhe
chamam METHODOSt e os Lati
nos Ordo i porqup he ordem dos
noiTos juizos , e raciocinares.
§, II.
Mas dois methodos coilumam
. diftinguir os Filoíbfos , Analytico,
ou de refoluçaõ , e Synthetico , ott
de compoficaô. O Anajytico exa-
'... :j mina
Livro qvinto. 139
mina as coufas particulares cada hu-
ma por íl , e dahi tira principios ,
e regras geraes. O Syntbetico def.
ce dos princípios , e regras geraes
para as coufas particulares.

* III.
Tambem fe chama methodo Ana-
lytico , quando huma coufa que fe
indaga , fe fupõe achada por hypo-
thefe. Depois difto pondera le , fe
deíla íuppoíiçaõ fe feguem todas a-
quellas coufas , que neceflariarrtn-
te deviam feguir-fe , fe «lia tofle
verdadeira: e feguindo-fe , fe con-
elue que he verdadeira : porém fe
naõ fe feguem , tentaõ le outras hy*
pothefes pelo mefmo modo , até
que feache a verdadeira. Seja por
exemplo algum circulo Z: procu
ro o centro Supponhamos que he
o B: fe todas as linhas tiradas do
B para a circunferencia fe acharem
çuaes , concluirenos que o B he
o centro : porém fe naõ le acharem
- . igua-
Í40 Das cousas do raciocínio:
iguaes , tentaremos outros pontos ,
até que o achemos. Delte methodo
ufam muitas vezes os Mathemati-
cos.
§. IV.
Deve-fe uíar do methodo Ana-
Iytico em fe indagar a verdade ,
principalmente a generica: e do
Synthetico em fe en finar. Porque
quem ignora a verdade generica ,
naõ pode chegar a ella fenaõ com
inducçaõ das coufas Angulares. Mas
quem a aprendeo , mais commoda-
mente começa pelas regras geraes
em eníinar as taes coufas Angulares.
Pofto que tambem as verdades par
ticulares ignoradas fe pôdem com-
modamente defcobrir com o ufo
das verdades geneticas : e enfinar-
fe com methodo analytico.

- . ' §. V. .. y. :

Ha porém humas certas regras


cõmuas a hum , e outro methodo , e
... . outras
Livro quinto. 241
outras particulares , e proprias. A
primeira regra comua he , que íem-
pre comecemos pelas coulas mais
evidentes , e faceis , e daqui cami
nhemos pouco a pouco para as dif-
licultofas , e efcuras. Porque fe en-
íinas , primeiro de tudo deves con-
ftituir coufas evidentes , e claras ,
pelas quaes fe podem entender as
occultas , e efcuras : fe indagas , as
coufas evidentes , e faceis feraõ á
maneira de luz , com que fe a!!u-
miam as occultas. ,

§. VI.
E aqui fe deve advertir , que
todo o noffo conhecimento tem
{irincipio das experiencias , ou nel
as fe refolve. Ifto he , todos os nof-
fos conhecimentos tem principio
das ideas Angulares , e fimples , que
íaõ ideas das experiencias internas,
ou externas. E as régras genericas
refolvem-fe em couías fingulares ,
poisque delias tiveram origem.
242 Das cousas do raciocínio.

§. VII.
Mas em adoptar os princípios
naõ íe ha de feguir tanto o fenti-
do vulgar , quanto a tazaõ : porque
muitas coufas fao recebidas como
evidentes, ou certas mais com ocon-
íentimento dos homens , doque com
a razaõ , as quaes deve examinar o
Filofófo , fe quer entender a pufa
verdade. E como eiras podem fer
tiradas ou dos fentidos , ou da pu
ra razaõ , ou da authoridade \ elle
entaõ porá as primeiras entre os
princípios , quando na realidade as
tiver experimentado: e entaõ as fe-
gundas , quando claramente tiver
entendido que as oppoftas faõ re
pugnantes : e as terceiras finalmen
te , quando tiver achado que item
evidencia moral.
§. VIII.
A fegunda Regra he , que quan
do das còufas evidentes, e faceis
difcox-
Livro quinto. 143
difcorres para diante, guardes a
mefma evidencia em cada hum dos
gráos da ferie dos juizos , em que
fe contém raciocinaçaõ mais extert-
fa. Ido he , com a mefma evi
dencia , com que dos principios
tiras os primeiros confequentes , ti
res dos primeiros confequentes fe-
gundos , dos fegundos terceiros , e
aflim dahi por diante, até que a
verdade haja fido deícoberta.
§. IX.
A terceira regra he , Diligente
mente divide aquillo , de qucfe tra
cia : explica com cuidado cada bum
das membros da divifam. Porque
fem diviíamdaquiilo de que fe tra
cia , nem fe indaga a verdade com
ordem, nem feenfina bem. Por tan
to nem a inveftigaçaõ a acha , nem
o difcipulo a entende.
S. X.
A quarta Regra he : Define ca'
da bum dos vocabulos , que tem al-
Q. 2 guma
244 Das cousas do raciocínio.
guma e/curidade, ou duvida, ijto het
determina luas cet tas noções, eto-
ma-os lempre com ehas. A razaõ da
Regra he, porque com duvida , ou
eícuridade dos vocabulos nem pode
mos deícobrir bem a verdade, im
pedidos com a oblcuridade das ide-
as ; nem podemos enfinar a que nos
meimos naõ entendemos.

§. XI.
Mas a definiçaõ he huma ora
çaõ , com que ie explica mais clara
mente qual íeja o lentido das pala
vras , de que ufamos. As regras de
definir faõ as quatro leguintes.
I. A definição deve jer mais clã'
ra que o seu definido , porque de ou
tra maneira naõ he definiçãõ.
\\% Nenhum vocabulo je ha de
pôr na definição , cuja idea naÕjejs
clara, ou que naõ Jeja primeiramen
te definido.
III. A definiçãõ deve feruniver-
Jalt ifio he , deve convir a toda a
coufa ,
Litro quinto: 14J
€Oufa , que queremos definir*
IV. A definição devefer própria\
iftv be , deve convir Jódcou/a defi
nida - e naõ a outra.

- C A P I T U L O VI.
Das Regras doMethodo Analytico.

§. I.
COm o Methodo Analytico inda
gamos as verdades genericas pe
las coufas Angulares. As Regras dei
te Methodo faõ as feguintes.
Primeira. Confidera diligente
mente fe es capaz para achara ver
dade, ou relolver a queftaÒ , para-
que te naõ canfes inutilmente, na
indagiçaõ , ou naõ digas delpropo-
fitos , e ridicularias.
Segundí. Líplica a difficulda-
de da queftaõ com palavras clarií-
fimas. Porque fe ifto fe n^Ó faz , de
nenhum modo podemos ir por di
ante na indagaçao com utilidade.
Terceira. Se a queftaõ for com*
pofla ,
146 Das cousas do raciocínio;
pofta, divide-a em todas as íimples
de que confta.
Quarta. Começa daquella par
te da queflaõ , que pôde dar luz
ás mais.
Quinta. Muito diligentemente
indaga todas as coufas , que tem al
guma connexam com a queftaõ pro-
pofta. Ajunte todas as que lhe po
dem dar alguma luz ; finje todas as
hypoiheíes pofiiveis. Porque aflítn
de toda a parte chamas preíidios ,
com que re faças mais habil para
refolyer a queftaõ , e defcobrir a ver
dade»
Sexta. Depois difto corta todas
aquellas coufas, que juntas pela re
gra antecedente, entendes q* nenhum
auxilio te podem dar , para que te
na0 caufem impedimento: reduze
tudo a poucas palavras.
Setima. Indaga principios foli-
dos , com que aches a verdade, ou
refolvas a queftaõ , e os tem con
tinuamente diante dos olhos como
tochas accefas. Mas eftes princi
pios
LlViJO QUINTO. 247
pios fe haõ de tirar daquelle appa-
rato de coufas , que fizemos pela
Regra quinta , e emendamos pela
fex/a.
A oitava adverte, que exami
nemos bem , fe a verdade depende
do raciocinio , ou das experiencias ,
ou finalmente da authoridade. Con
vem a faber , daquella fonte fe haõ
de tirar os principios , com que fe
defcubra a verdade , da qual efla
pode nafcer.
§. II.
Se a queflaõ depender da au
thoridade , fe obferve , fe ella he
authentica, ou naõ : fe ella for au»
thentica , guardemos as ieguintes
Regras.
,1. Obferva como axiomas as
coufas, qus efta authoridade clara-
menre enfina: por ellas governa a
indsgaça.6.
II. Tem como propofiçdes de-
tnonitradas as que claramente fe fe-
guem defles axiomas, e como tam
certas como elles. III.
248 Das cousas do raciciowo.
III. Reputa falfas as coufas» íj
claramente fe oppoem aos diftos
axiomas, ou aos ta es confequentes.
}V. Por nenhuma parte affirmes ,
mas abftem-te de julgar, ou difpu»
ta provalmente fem ira , e fem odio
33 coufas , que aquella authoridade
elcuramente enfína.

§. III.
Porém fe a authoridade naõ1 for
authentica , devemos lembrar-nos
daquellas regias , que explicámos
acima , aonde traftámps da author
ridade humana,.

§. IV.
As verdades , que fomente fe
podem achar com o ufo do racio
cinio, ferám indagadas com aquel-
las regras, de quefallamos nos lu
gares antecedentes , e em outros a
cada paflo. Poucas accrefcentarei.
I. Affirçna da idea aquellas cou*
fas,
Livro quinto'. 249
fas , que clara , e diflinctamcnte en
tendes que nella fe contém, nega
porém as que clara, e diftinctamen-
te percebes que fe lhe oppoem;
porque a clareza , e evidencia he
caracter certo da verdade.
II. Reputa efcuras, e incertas
aquellas coufas, que naõ percebes
evidentemente fe convem , ou re
pugnam entre fi : e affim ou bufca
algumas ideas manifeftas , que me
deiem entre ellas, com que podas
xefolver , ou nunca affirmes.
III. Quando achas que a natu
reza das coufas confiantemente con
corda com as verdades logicas , re-
puta-as reaes : fe ifto falta, nunca
as contes entre as verdades reaes ,
pofto que fe perceba clara, e dif-
tinctamente aquillo de que fe traíla.
Efta regra tçm por fim , que na
da definamos á cerca da Natureza
das coufas fem experiencias , nem
a midamos lomente com as verda
des logicas , e que com cautela ufe-
mqs do methodo naathematico nas
cou-
iço Das cousas do raciocínio.
coufas fyficas; porque elle he to
do hypothetico; e a Fyfica toda
neceffariamente fe funda em expe
riencias , e naõ em hypothefes.
IV. Se indagares por muito tem
po, e naô- achares aquella verdade
logica, ou efta fyfica, naõ digas
que he falío , o q* efti entre mãos ,
fomente porque o naõ entendes, fe
naõ es taõ ridículo , que cuides que
o teu entendimento he a medida da
verdade , e falfidade.

§. V.
Finalmente as queftdes fyficas
devem-fe refolver com experiencias,
eraciociuio: no que quaes regras
fe hajam de obfervar , já dicemos
muitas vezes em outras partes. Nef-
te lugar diremos pouco do argu
mento tirado da analogia , do qual
muitas vezes he neceflario ufar nas
coufas fyficas.

§.. VI
| Livro quinto- i %$i

§. VI.
• Çhama-fe argumento de ?nalo-
gia'o que fe tira de couías fimilhan-
tes para fimilhantes , como quando
da caufa das operações vitaes no
Cam achada argumentamos para a
cauía das operações vitaes do Ca
valo. Porque como faõ fimilhantes
os fenomenos de hum , e outro a-
nimal , copçluimos que faõ fimU
lhantes as caufas. Efie argumenta
funda-fe nefte principio , Our faS
fimilhantes as caufas defimilhantes
e/Feitos.
§. vn.
Mas defle argumento fe ha de
ufar com cautdla , nem loge fe ha
de concluir de íimilhante para li-
milhante, como em outro lugar di-.
cemos ; porque na valtiffima natu
reza das couías ha muitas diverías
caufas de fenomenos fimilhantes v
como aprendemos com continuas
expe-
iyi Das coasas no raciocínio.
experiencias, talvez porque os grof-
feiro* fentidos dos homens , e defi-
guaes á delicadeza da natureza na6>
podem perceber as delicadas diffe»
rencas.
CAPITULO VII.
Do Methodo Synthetico.
§. I.
Samos do Methodo Syntheti-
U co , quando queremos enfinar
a outros o que } abemos. Por tanto I.
Cuida em que enjines aquellas cou-
/as que tu /ahes , quanto mais per
feitamente pode fer. Porque hecou-
fa ridícula quereres enfinar aquel
las coufas , que ou totalmente igno
ras, ou aprendefle íuperficialmente,
e aprender no barro o oficio- de olei
ro • como fe cofluma dizer. Os que
viôlam efta lei , ou fe fazem mui
to ridículos, ou enganam outros
torpiífimamente,
$. IL
Livro quinto. 153

§. II.
II. Elege difcipulos babeis, Czx-
tamente nem todos podem alcan
çar todas as coufas , e nem de to
das fe ha de tractar com todos. Por
tanto os Egypcios , e depois delles
os Giegos , principalmente os Py-
thagoricos , enlinavam fomente aos
iniciados humas certas doutrinas
roais occultas , e íecretas. Chriflo
Salvador noflo naô eníinou aos A-
poltolos todas as coufas , porque
havia humas certas , que ainda na6
podiam perceber : pela qual razaõ
as diíFerio até a vinda do Efpirito
Santo. S. Paulo tambem diz , Dei-
vos leite como a meninos. E o B. Ba-
íilio diz, DevemosJaher quaes cou'
fas fe baõde dizer , e quaes fe baS
de calar. Porque muitas coufas ef-
tam hem occultas\ e ignoradas apro
veitam.... Dahi nafceo a lei do
fegredo entre os antigos ChriAãos.
*5"4 Daí cousas do «aciogisio.

%. «I.
IH. Define os vocábulos de que
ias de ufar , e que podemfer duvi
do/os, ou ejeuros Por tanto PlaraÕ,
e Cicero julgaram fer certo , e fem
duvida i que toda a inftrucçaÕ fobre
qualquer coufa deve ter feu princi
pio da definifam , paraquefe enten
da o que he aquillo de queje trafla.
Muitos põem no principio todas as
definições da feiencia , ou ao me
nos da materia, que enfinam fyn-
theticamente , como os Geometras.
Mas ifto naõ he neceflario , e ellas
bem fe podem dar naquelles luga
res , em que tem o feu ufo , o que
fizeram Gravenfandio na Fyfica , e
Wolfio nas obras Metaphyficas.

. $. iv. \ . .-

IV. Polias as definições , figam-


fe os axiomas , de que concluamos
os raciocínios. Saô os axiomas,
como
Livro quinto. 2$$
como em outro lugar dicemos, hu-
mas propofições taõ evidentemen
te verdadeiras , que a fua verdade
fe manifefta com huma íimples in
tuicaõ. Naquellas fciencias , em que
a authoridade dá os princípios ,
tem-fe em lugar de axiomas quaef-
quer propofições, que clara, e dif-
tinctamente fe contém nas palavras
do author , das quaes fe podem de
duzir raciocinações com nexo taõ
eftreito , como as demon Orações
geometricas dos axiomas geometri
cos. Algumas vezes temos em lu
gar de axiomas aquellas propofi
ções , cuja intelligencia depende
fim do raciocinio , mas com tudo
íaõ evidentes áquelles, com quem
difputamos. Mas tambem naõ pou
cas vezes tomamos por axiomas as
propofições demonftradas em outras
íeiencias. E outras vezes temos em
lugar de axiomas aquellas coufas ,
em que as partes convem entre íi ,
aindaque talvez naõ fejam eviden
tes, ou certas. Tambem algumas
vezes
ij*6 Das cousas do raciocioto.
vezes tomamos em lugar de prin
cipios aquellas coufas , que , ainda-
que falias , as tem por verdadeiras
aquelles , com quem difputamos. Af-
iim os antigos Chriftãos refutavam
bem o Gentiliímo pelos livros de
Mercurio Trifmegifto , ou das Sy-
biilas , ainda que iaõ efpurios aquel
les livros: fuppofto q* muitos Gen
tios os tinham por genuinos , e di
vinos. Mas ifto fomente fe ha de
fazer em caufa verdadeira.
§. V.
V. Nada ãemonftres fenaÔ pelas
coufas primeiro ejiaheleeidas , defi
nições , axiomas , pojlulados , hypo-
thefcs, e propofiçÕes provadas.
VI. De nenhumas propofiçÕes
ufes , que ou naÔ pertencem â mate
ria de que fe traEla , ou nao fervem
para demonflrar , ou explicar eflas
primeiras.
VII. Põem at propofições , que
fervem para demonflr ar outras , em
primeiro lugar que ellas.
Livro quinto. 257*
VIII. Se permiti ir a regra an
tecedente , as propofições Jimplices
precedam as compoftas, e as genéri
cas as menos genericas.
Muitas outras, regras fe podem
accrelcentar : mas ainda eftas tam
bem faõ fuperfluas aos que faõ ver-
íados nas íciencias Mathematicas ,
porque daquellas difciplinas me
lhor, 9 mais completamente íe a-
prende eile methodo de difputar,
do que de algum as regras dos Lo
gicos : aquelles porém , que naó íaõ
.verfados nas (ciencias Mathemati
cas , nenhumas regras dos Logicos
podem fer fufficiencey, paraque pof-
íam enfinar coufa alguma por efte
methodo fynthetico.
CAPITULO VIII.
Da Arte Syllogifticaj primeira
mente da Natureza do Syllogismo.
§. I.
OSyllogifmo he numa argumen
tação, pela qual , pofto o to
do , alguma coufa neceffariamente fe
R con-
25^8 Das cousas do raciocínio.
conclue da parte que nelle fe con
tém, aflim pouco mais ou menos: A
virtude be habito bom : A Pruden-
cia be virtude : Logo a Prudencia
be habito bom.
§. II.
Toda a força do Syllogifmo eflá
polia em que tudo aquillo , que fe
diz do todo , tambem íe deve di
zer de cada hum dos particulares,
e o que fe nega do todo, fe deve
negar de cada hum. Daqui naíceo
que todos os Logicos tenham enfi-
nado que naó ha Syllogifmo fem
principio univerfal. A qual regra
com muitas razões refuta Joaó Lo-
quio.
§. HL
Tres termos fomente fe da6 no
Syllogiímo , nem efte pôde conftar
de mais , para que feja perfeito. Saô
elles o maior , o menor, e o meio
termo. O termo maior tambem fe
chama maior extremo : e menor
chama-
Livro quinto ijo
chama- íe menor extremo: e o meio
íimplefmente meio.

§. IV.
Mas deftes termos fe faz o Syl-
logiímo defta maneira. Do maior
extremo , e do meio faz-fe a pro-
poficaó maior : do menor extremo ,
e do meímo meio fe faz a propo-
iicaõ menor: finalmente de ambos
os extremos fe faz a concluíam, a
qual fempredeve fer huma propo-
liçaõ concroverfa.

Paraque fe entenda bem toda a


arte fyllogiftica , primeiramente fe
deve obfervar, que todas as pro-
pofições em quanto á quantidade
fe coníideram ou como univeríaes,
ou como particulares. E que em
quanto á qualidade fe coníideram
ou como afirmativas , ou como ne
gativas. Os Logicos coftumam de-
R % fignar
i6o Das cousas do raciocínio.
fignar tudo itto com as quatro le
tras , A, E , lyO, e o que ellas fi-
gnificam dicemos em outro lugar.

§. VI.
Alem difto devem-íe obfervar
alguns axiomas geraes dos Dialé
cticos. O primeiro he : apropoft-
çaõ univerfal contém a particular
do mefmo genero , e naõ pelo con
trario. Por exemplo. Elta propoíí-
çaõ , Todo o homem he animal , con
tém eftoutra, Ejie homem he animal,
e naô pelo contrario.- Efta regra fe
fe applica ás propofiçôes affirmati»
yas, chama-fe nas Efcolas princi
pio diBi deomni: mas fe fe appli
ca á» propoíições negativas , cha
ma-fe diE\um denullo. Aflim que a
diílo de omni diz-fe de cada hum :
e adiflo de nu/lo nega-fe decada
hum. Por exemplo. Todo o corpo he
pezado : O fumo he corpo : Logo o
fumo he pezado. Nenhum corpo pa*
de cegirar: 0 cerebro humano be
cor-
Livro quinto. 261
corpo : Logo o cerebro humano nao
pode cogiter. No primeiro exem
plo conclu-fe a diSlo de omni. No
fegundo a difto de nu ilo.

%• VII.
O fegundo axioma he : O fu-
jeito da propoíiçaô univerfal he uni
verfal, mas o fujeito da propofí-
Çaõ particular he particular. Por
que a univcrfalidade, ou particula
ridade da propoíiqaõ" depende do
fujeito particular , ou univerfal ,
como em outro lugar dicemos.

.".. . , $' VIIL


O terceiro he : O 2ttributo da
pròpofiçaó affirmativa fempre fe to
ma particularmente, sito he, , nao
íe toma por toda a íua extc.nfaõ ,
mas pela extenfaõ do fujeito. Neí-
ta propoíiçaõ, Pedro be animal,
naõ íe toma o animal por toda a
fua exteníaõ, mas pela extenfaõ do
fujei-
3õ2 Das cousas do raciocínio.
fujeito ; porque Pedro naõ he todo
o animal, mas ejle animal.

§. IX,
O quarto finalmente he: O at-
tributo da propoíiçaõ negativa fem-
pre fe toma univerfalmente, ifto he,
por toda a fua extenfaõ. Affim o
Circulo na6 be Triangulo , o Trian-
guio lignifica todos os triangulos.

§. X.
Dos quaes axiomas fe feguem
as feguintes cinco conclusões. Pri
meira: A propoíiçaõ univerfal ne
gativa , e fo ella tem ambos os ter
mos univerfaes. Segunda: A pro•
pofiçaõ particular afirmativa , e fo
efta tem ambos os termos particu
lares. Terceira: A propofiçaõuni-
rerfal affirmativa , ou particular ne•
gativa tem hum termo univerfal,
aquella o fujeito, e efta o predi
cado. Quarta ; A propofiçaõ affir
mati-
Livro quinto. 163
rnativa , que tem hum termo uni-
verfal , he univerfal. Quinta : A
propofiçaõ negativa , que tem hum
fó termo univeríal , he particular.

§. XI.
Mas as Regras dos Syllogismos
faõ as feguintes.
A primeira Regra he.
I. Na6 fe forme o Syllogifmo
de mais que tres termos , convem
a faber , os dois extremos da pro
pofiçaõ controverfa , e o meio.
Paraqae fe entenda efta Regra,
fe ha de enfinar a ordem de fazer o
Syllogismo. Afllgne-fe alguma pro
pofiçaõ : Efta confta de fujeito , e
attributo , ido he , de dois termos.
Se efta propofiçaõ se controverter ,
toda a controverfia eftará nifto , fe
o attributo convem, ou feoppoem
ao fujeito. Se eu hei de provar que
convem , efcolherei hum meio de
congruencia, e efle ferá terceiro ter»
mo,
264 Das cousas do haciocioto.
roo : com elle compararei os dois
primeiros cada hum por íi , e farei
as premiflas do Syllogifmo : mas a
concluíam fempre fera a mefma pro-
poíiçaõ controverfa. Trata- fe , fe o
AheB: negas: demohftro. Tomo
terceiro termo C,
A=C:
B=C:
Logo //=:#.
, Porém fe a propoíiçaõ fe conce
der, e eu hei de provar queella fe-
deve negar, ufo de meio dediftin-
çam.
O B he o mefmo como X:
OJhe diverfo doZ:
Logo O A he diverfo do B.
De tres fermos fomente fehade
fazer o Syllogilmo, comoheevi-
dente. Se fe ajuntar quarto , fera
Sofisma: Por exemplo..
A~ B:
Z) = C:
Logo Azz D.
AJe-
Livro quinto. 165
Afegunda Regra be.
II. He neceííario que o meio fe
tome univerfalmente , ao menos hu-
ma vez , e ifto ou elle fcja meio de
identidade , ou de diftincçaõ.
A razaá defta Regra he , porque
o meio tomado duas vezes parti'
cularmente naõ he hum ío , mas an
tes dois , porém ifto desfaz a unida
de do Syllogifmo. Por efta caufa
pois he falfo o Syilogifmo feguinte.
Alguma figura be circulo :
Algumafigura be tambem quadra-
do :
Logo algum quadrado be circulo.
Porque pofto que as premidas faÔ*
verdadeiras, com tudo o meio naÕ
he hum. Pois que Alguma figura
pofta na maior he diverfa defta Al
guma figura pofta na menor ; por
que naquella he o circulo, e nefta
he o quadrado. E efla Regra tam
bem fe entende ter lugar , fe <>
meio for attributo em huma , e ou
tra
7.66 Das cousas do raciocínio..
tra propofiçaó nos Syllogifmos af.
firmativus, conforme o terceiro a
zioma.
À terceira Regra be.

III. Os termos do coníequente


naõ podem fer mais univerfaes ,
doque faõ nas premiflas.
Sejam mais univerfaes: Logo
naó fe contem nas premidas (con-
forme o i. axioma): Logo delias
naõ fahe o confequente , e por iflo
meímo nenhuma confequencia ha.
Aflim por efta caufa he falfo Syl-
logifmo o feguinte : ':

Todo o triangulo confia de dois


ângulos reSlos:
Toio o triangulo befigura . •
Logo toda a figura confia de dois
ângulos reSlos.

Porque a figura na menor toma-


fe particularmente , e no confe
quente univerfalmente.

<í auari
Livro quinto. 167

A quarta Regra be.

IV. De premiffas negativas na


da fe pôde concluir.
Porque nada fe pode concluir af<-
firmando; pois que falta o meio
de identidade ; nem negando : por
que por ilTo que o A , e o B nsõ faõ
o mefmo como X , n&6 fe fegue
que nao fejam a mefma. coufa en
tre li : de outra forte duas linhas
palmares nao feriam iguaes , por
que oaõ faò iguaes ao mefmo meio
palmo. Por exemplo. Os Chir.cs nao
faõChriJiãos : Os Italianos naÕjaff
Chinas : Logo es Italianos naõfaõ
Chriflãos.
A quinta Regra be.

V. De afirmativas naó fe pôde


concluir negando.
Porque íe de duas affirmativas
deduzires huma negativa , negarás
mutuamente de fi aquellas coufas ,
que convem com o meio , o que
hç abfurdo. ' A ftx-
a68 Das cousas do raciocínio.

Afexta Regra be.

VI. Se huma das premifias for


negativa , o confequente fera nega
tivo.
Porque fe huma das duas premif-
fas for negativa , hum dos dois ex
tremos da propofíçaõ controverfa
convirá com omeio, e o outro íe
opporá ao mefmo : Logo o meio
fera principio de diverjidade: Peia
qual raza6 fe feguirá conclufaõ ne
gativa.
A Jetima Regra be.

VII, Se huma das duas premi f-


fas for particular , o confequente
ferá particular.
De outra maneira os termos do
confequente lerám mais univerfaes,
o que naõ pode fer ( conforme o
axioma i. ). Os Eícolafticos com-
prehendem eflas duas ultimas Re
gras em huma, Que a conclufam
. deve Jeguir a mais debil das pre-
- mijjas.
LlVFO QUINTO. 269
vtiffas. E elles tem por mais de
bil a negativa em comparaçaõ da
affiimativa , e a particular a refpei-
to da univerial.
.1
§. XII.
Os que eníinaraó a arte fyllo-
giitica , cofiumavam tratar nelte lu
gar outras infinitas coufas á cerca
dos Modos , e Figuras dos Syllo-
gifmos , fobre os Syllogiímosyí»i-
plices, e hypotheticos, e a reducçaõ
dos Syllogifmos. O mefmo Author
da Arte de penfar tratou eftas cou
fas muito diligentemente. Mas el-
las faõ inuteis; porque nao ajudam
ao que diíputa, e nunca íe uíam
na mefma Efcolaftica contenda. Eu,
que paflei a puericia neítes efludos ,
e fendo moço, difputei muitas ve
zes , e naâ poucas ouvi difputar
Homens Gorypheos das coufas Ef-
colafticas , certamente nunca uíei
das leis dos modos , e figuras , nem
adverti que outros uíaflem. Mas fe
alguem
170 Das cousas do raciocínio.
alguem ha, que ainda agora gotte
deftas coufas , eu lho permitto : ta6
fomente advirto, que naõ corrom
pa o entendimento com fofifmas :
porque cora a experiencia de mui
tos annos aprendi , que ílmilhantes
eftudos tem grande força para re
bater o godo da verdadeira fabe-
doria. Eu não nego, diz Seneca, que
eftas coufas fe hajam de ver de lon
ge : Mar fomente fe devem ver de
longe, e ejludar fuperfieialmente., fi
paraquenos naõ enganem ,e nôí nafi
julguemos que nas palavras ha ai;
gum grande , e occuko hem.

CAPITULO IX.
Regras de difputar.
§. I.
O Que na difputa nega alguma
coufa, nenhuma outra razaõ de
ve dar da fua negaçaõ , do que, que
nada provam as razões da parte
contraria. Mas com tudo tem obri
gado
LlYFO QUINTO. 27I
gaçaô cie refutar as ditas razões de
tal forte , que ellas totalmente íe
defvanegaõ. Se ifto naõ fizer, com
direito, e razaõ he condemnado.
Porém naõ íe diz que completa
mente refutou as razões contrarias,
o que lhes contrapõem humas iui-
peitas vagas , e genericas , convem
a faber , que poderá acontecer de ou
tra Jorte : talvez procede de outra
couja : aca/o falta alguma couja,
pelo que fuccede que ijio ignoremos ,
Ò"c. ; porque eftas , e nmilhantes
refpoftas unicamente podem con
cluir , que as razões da parte con
traria ao menos naõ poliam fer ti
das por neceflariamente concluden
tes : mas naõ lhes podem tirar a
probabilidade.
Ejcol. Por exemplo. Se alguem
nega que Troia foi cativa pelos
Gregos , efte deve refutar todos os
argumentos tirados de todos os an
tigos Hiftoriadores Gregos , e La
tinos. Se o naõ fizer , decahirá da
demanda, Se alguem nega que a al
ma
ijz Das cousas do raciociwio.
ma he incorporea , deve refutar to
dos os argumentos dos Metafyficos.
Nego haver vacuo na natureza : Lo
go me opprimirám quafi infinitos
argumentos, que fe naõ derribar,
íou convencido que com direito
naõ neguei. Mas naõ os derribo,
fe refpondo , nós naõfomos babeis
para comprebender a natureza das
coujas i nem a podemos plenamente
entender com arazaõ: quem fabe
com que leis ella be governada}&c.
Eítas coufas , digo , naõ faõ iguaes
áquelles argumentos , e certamen
te naõ debilitam de todo a fua forca.

§. II.
O que nega , fe demoftra que a
parte contraria he impojjivel , fez
inteiramente a fua obrigaçao ; nem
ellá obrigado a diífolver as objec
ções contrarias : porque as razões ,
com que pertendemos provar que
exifte huma couía impoffivel , naõ
podem íer fenaõ huns meros íofií-
mas. EfcoL
Livro quinto. 275
Efcol. Por exemplo. Nego que
ha os vortices , redomoinhos, e tur
bilhões Carteíianos : demonftro que
elles repugnam com a ordem do
univerfo , e que por tanto faõ im-
poífiveis : conclui tudo , nem lou
obrigado a dar fatisfaçaõ ás razões,
dos Carteíianos , que naõ podem
ler fenaõ huns fonTmas. Nego hum
Deos máo , que louvam os Mani-
queos : demonftro que eíie Deos
he , como dizem, contradiclorio :
porque íendo eterno efpirito per-
feitiífimo, e feliciffimo , com tudo
fe conftitue juntamente malfeitor ,
as quaes coufas faõ muito repugnan
tes , fe algumas o faõ : porque fa
zer mal he proprio de huma natu
reza naõ feliz, nem infinitamente
perfeita , mas fraca , movida com
odio, ou ira , e que teme alguma
coufa. Depois que ifto conclui , naõ
refponderei aos importunos argu
mentos dos Maniqueos ; porque naõ
podem fer fenaõ huns fofifmas. Mas
quando digo , demonftro , entendo
S tal
274 Das. cousasdo raciocínio.
tal prova , que necejj arlamente con
clua.
§. III.

Quando os princípios das pro


vas dependem da authoridade , o
que provou alguma coufa com hu-
ma atteíbçaõ clara , naõ he obri
gado a refponder a argumentos ti
rados de lugares duvidoíbs , ou ef-
curos do meímo author. Porque ef-
tes naõ podem derogar a fé á at
teftaçaõ clara : antes he jufto que
por efta fe expliquem.
Bjcol. Por exemplo. Provei com
lugares claros das Efcrituras , que
no tempofuturo ha de haver a re-
Jurreiçaõ de todos os corpos huma
nos : naõ eftou obrigado a refpon
der aos argumentos de alguns So-
cinianos tirados de lugares efcu*
ros : porque alem de que eftes lu
gares efcuros naõ podem fer con
trarios áquelles claros , de nenhum
modo podem tirar as forças aos
meímos claros. Provei com datas
leis
Livro quinto. 27^
leis civis que a herança no cafo A
íe deve ao herdeiro B: naõ fou o-
brigado a refponder aos argumen
tos , que o adverfario tira de lu-
gares eícuros , e duvidoíbs.

§. IV.
Os que diíputam , depois que
claramente explicaram o eflado da
queftam , devem ou indagar fontes
commuas, em que convenham huns,
e outros , paraque dahi tirem os
principios das fuas provas; ou con-
flituir eftes principios comuns. For
que toda a dilputa íe funda naquel.
las couías , em que as partes «fcon-
vem , e delias procede. Se falta
rem eftas fontes , ou principios ,
naõ fe ha de difputar ; porque fe
obrará inutilmente.
Efcol. Por exemplo. Os que dif-
putam á cerca de algum problema
Geometrico , devem aflignar por
fontes commuas as definições, 03
axiomas, e os poftulados Geome.
S 2 tricôs i
276 Das cousas do raciocínio.
tricos •, porque de outra maneira
nunca poderám convir entre íi. Se
a difputa heFyfica, he neceffario
que os que difputam convenham
em que o claro teftemunho dos fen-
tidos he verdadeiro, le naõ querem
difputar ás efcuras. Se he Jurídi
ca , devem as partes convir nas Leis
commuas. Por exemplo. Com o
Turco naó podemos litigar pelos
livros das Leis Romanas. Tambem
com o Mahumedano naô" podemos
difputar acerca da Theologia pe
las íagradas efcrituras do velho , e
novo teftamento , naõ mais do que
com pDeifta, que profefla queel-
le l^ue íomente a raza6 da natu
reza. Dahi vem que naõ podemos
difputar com o homem Sceptico ,
o qual naõ tem fontes algumas de
certeza , nem alguns princípios cer
tos.
§. V.
Quando ha promptas fontes cõ
muas , donde poffas tirar provas
cla-
Livro quinto. 277
claras , naõ fe haõ de inflar fontes ,
que o teu adverfario naõ admitte ,
paraque de difputa naõ faças dif-
puta.
Efcol. Por Exemplo. Podes de-
monftrar ao homem Sociniano a
Trindade pelos Evangelhos , naô
queiras inflar o lugar da Epiflola
fegunda de S. Joaò , que elle repu
ta interpolada. Podes provar huns
certos dogmas contra os Calvinif-
tas fó com a authoridade das E(-
crituras, na6 appelles para os Con-
cilios , cuja authoridade elles na6
conhecem. Podes refolver algum
problema por hum theorema Geo
metrico certo, e demonftrado , naS
ufes de theorema , que tu fim clara
mente entendes, mas o teu adver-
fario o nega. Convem a faber , he
prudencia reduzir a controverfia aos
menos pontos que pôde íer ; he po
rém imprudencia de dtfputas exci
tar dilputas.

§. VI.
378 Das cousas do raciocumo.

§. VI.
Na caufa da tua parte verda
deira , e jufta , naõ podendo con
vencer o adveríario lenaõ por fon
tes falfas, que elle reputa verda
deiras , he prudencia faze-lo affim :
be porém imprudencia , e malícia
o faze-lo em caufa da tua parte fal
fa ; porque nunca fe ha de defen
der a falfidade.
Efcol. Por exemplo. Os Padres
dos primeiros feculos do Chriftia-
nifmo , ainda que tiveraõ entendi-
do que os livros das Sybillas fo
ram* fingidos , com tudo obravam
prudentemente, ufando delles con
tra os Gentios idolatras ; porque
eflavam em huma caufa da fua par
te verdadeira , e jufta. Affim que
he licito demonftrar ao Turco pe
lo Alcoraõ a verdade da Religiam
Chriftã. Potém o que affim faz ,
na6 fe ha de julgar ter por verda
deiros os verlos Sybillinos , ou o
Alcorao". §. Vil.
Livro quinto- 279

§. VII.

Se no progreíío da djfputa o
adverlario fugir infenfivel mente da
queftaõ propofta , outra vez fe lia de
explicar o íeu eftado , e elle fuave-
mente feha de tornar a chamar pa
ra efte. Porém ifto logo fe ha de
fazer; porque feocafo fe prolon
gar muito, nuns e outros fe "me-
terám em trevas , e muito difficuU
tofamente poderám dahi voltar pa
ra a claridade. Por tanto devefe
confiderar com grande attençaõ ca
da numa das lelpoftas do adverfa-
rio. Muijas vezes experimentei, que
nada fe concluio de dilatadas dif-
putas , ainda entre homens doutos,
por fe deíprehr efla Regra. Porém
fe tu fozes o officío d« refponder,
e vês que o Adveríario inlta o ar
gumento fora da queft im , cluima o
'para ella com palavas muito sfFa-
veis , para que debalde naõ façaes
delia ambos digreflaó.
§. VIII.
28o Das cousas do raciocínio.

§. VIII.
Se e adverfario negar princi
pios alguns claros , fe lhe haô de
inferir os oppoflos , como para ex
perimentar a fua mente: fe elle os
conceder, fera convencido que con
cede huma manifefta falfidade: fe
outra vez negar, entam fe lhe ha
de perguntar , fe dois contrarios
podem fer juntamente verdadeiros ?
Porém fe elle conceder eftes dois
contrarios em materia , como di
zem, neceffarta , deve-íe deixar, ou
como falto de raeaõ , ou como tei-
moío, e que defeja muito contra
dizer , e naõ difputar por amor da
verdade,
§. IX.
Se o adverfario refiflir a mani»
fedas provas, uíando de refpoflas
efcuras, ou tu explica as fuas ref
poflas, para que entenda queellas
nao" faõ proprias ; ou roga-lhe , que
elle
Livro quinto. 281
elle mefmo as explique, e que quei
ra aflignar ideas claras aos íeus vo
cabulos. Se nem ainda entam con
ceder a verdade, ha-fe de deixar ,
como incapaz de razaõ ; mas de
vemos acautelar-nos de palavras, ou
geftos injuriofos.
Efcol. Porque ou o tal refifte por
malícia, ou por ignorancia. Se por
malicia , deve-fe avizar fuavemen-
te, que voite para o tribunal da
fua confciencia , e advirta que en
cobrir a verdade he muito indigno
de hum Filofofo , cujo officio he
indagalla. Porém fe elle julga fer
vergonha , cu deformidade dar-íe
por vencido , deve-fe-lhe perdoar,
e naõ íe ha de triunfar defcortez-
mente. Bafte a vergonha do adverfa-
rio : inífar mais para diante com
nenhuma utilidade da vetdade fe
pratica: porque nada faz mais obf-
tinados no erro oí homens , cujos
genios fa6 elafticos, doquea jactan
cia do adverfario , e a vangloria do
feu triunfo : pois que o defprefo he
affe-
28 z Das cousas do raciocínio.
affecto forte , com que os homens
huma vez eftimulados, antes fe en-
fjrcarám, doque cedam ao adver
sario. Pelo que, para dizer fince-
ramente o que entendo , naõ appro-
*o o modo de difputar de alguns
Theoiogos com os que íe rebela
ram da nofla Igreja , . aos quaes in
juriam com todos os difterios , e
aíFrontas. Como le a verdade fe naâ
defende-fe com a verdade , e argu
mentos, mas com violencia, e pa
lavras injuriofas.
Mas fe elle pecca por ignoran
cia , tu ainda peccas mais grave
mente, pois que tu te enfureces con-
tra o ignorante, a quem antes deves
enfinar. Naõ fe pôde dizer quanto
horror tenho a fimilhantes difputa-
dores , ou Mefties , defde que me
lembro do meu pedagogo homem
agrefte, o qual para que me deíen-
finafle os erros de menino ignoran
te , me levantava altamente no ar,
< me catHgava com grandes mur
ros: como fe na verdade me po-
l deífe
Livro quinto. 283
defle applicar á doutrina naquelle
eftado , em que eflava vexado com
dor , medo, e futlo: naõ entendia
aquelle homem , que com fimilhan-
tes argumentos fe pôde inclinar fim
a vontade , mas que fe naõ pôde
illuftrar o entendimento.

CAPITULO X.
Os Generos dos Sofifmas.

§. I.
ESta materia foi muito .vulgar
entre os Gregos Soriftas. Ma9
como em nenhum tempo faltam en
genhos íofifticos , henecelTario que
nos tambem digamos 8lguma cou-
fa acerca dos fotifrms , para que o
Logico adquira modo , e forma ,
com que pofla reliftir aos Sofiflas ,
paraque fe na6 aparte da verdade
embaraçado com peiguntas engana
doras , e fofifticas , quando as na6
pôde refolver. Porque , como ef-
creve Fabio Quintiliano, melhor ap
plica-
i^4 Das cousas do raciocínio.
plicard os remedios aquelle, que ti
ver jabido as coufas , que fazem
damno.
§. II.

Mas dois fao os generos fum-


mos dos fofiímas , hum dos quaes
eftá mvoz , outro na mefma ca»-
fa. Seis fallacias fe coftumam fa
zer na voz. Tres pertencem para
huma fimples voz , que faõ o ac-
cento , afigura de dicção , e a ho
monímia : tres porém para muitas
vozes juntamente collocadas , e faõ
a amfibohgia , a compojiçao , e a di-
•vifaõ. A Fallacia do accento prin-
cipalmente tem lugar entre os Gre
gos , cujos vocabulos fe variam por
modo admiravel variado o accen
to , ou o efpirito. Entre os Lati
nos tira-fe efta fallacia da quanti
dade das fyllabas. Defte modo zom
bava Nero quando dizia, Claudium
defiiffe inter homines morari : por
que o verbo moror com a primei
ra fyllaba breve fignifica permane
cer >
Livro quinto. aSf
cer'\ e com a me fina longa fignifí-
ca endoudecer. Para efla fallacia per-
tence o vicio de pronunciar , quan«
do fe feparam as palavras juntas ,
ou fe ajuntam as feparadas; com o
que fuccede , que le varie o accen-
to. Defte genero he aquillo de Ca-
pitolino fobre M. Antonino Filo-
íofo cap. 29. Crimini ei datum e/i ,
quod adúlteros uxoris promoverit ,
inter quos Tertullum. A ifto allu-
dindo o bobo no theatro , pergun
tou ao criado , eftando ouvindo o
mefmo Antonino, quem era o adul
tero de fua mulher. Refpondendo
elle , Tullus, Tullus, Tullus, e con
tinuando ainda o bobo a pergun
tar , entaô o criado como algum
tanto agaftado diz , nonne dixi , ter
Tullus: eftas duas ultimas palavras
juntas com o mefmo accento , e
modo de pronunciar fazem o nome
do adultero.

5, IIL
286 Das cousas do raciocínio.

" * §. nr.
Afallacia, que fe chama figura
de dicçao , faz-fe , quando algum
enganado com fímilhante pofíçaô,
attribue as mefmas íignificações a
diverfos vocabulos. Por efta falla-
cia zombava Diogenes Filofofo
Cynico, quando chamava a Efcola
de Euclides Dialectico naõ x0^, ,
mas JíoíiB* , iflo he , naõ Efcola, mas
colera, porque fazia os feus Difci-
pulos muito contencioíos. Para a
fallacia do folecifmo fe pôde redu
zir a galanteria de Plauto no Am-
fitruam , aonde Mercurio toma ver
hero por nome , e Socias por ver
bo. Pergunta Mercurio.

M. Servusesne anlibsr ? S.Utcum-


que animo colltbitmn e/i meo.
M. Jir! vero ? ò\ Aio enim vero*
M, Verbero*. S. Mentiris nune
jam.
Eftas eoufas íaõ de pouca , ou ne-
.1.' I nftuma
/
Livro quinto. 287
nhuma ponderaçaõ : com tudo o
Dialeélico as deve entender , nao
porque o pojjam fazer jabio (diz
Quintiliano liv. 1. cap. 10.) mas
porque he necejfario que elle nem a~
inda em coufas mínimas je engane,
§. IV.
A Homonímia he huma duvida
nafcida da neceffidade, ou ignoran
cia , ou fraude do que com huma
palavra fignifica muitas coufas. He
de dois modos , porque a voz al
gumas vezes íignifíca muitas coufas
de nenhuma maneira lin.ilhanies ,
como lè diceres que a efirella la
dra , porque huma certa eftrella fe
chama caé celefle. Outras vezes a
voz feattribue a muitas coufas por
huma certa analogia, e proporçaõ
do modo que laõ todas as metafo
ras , como quando a voz caput , ou
caheça fe diz do íummo genero de
diyerlas coufas. Defta ílmilhança fe
tiram argumentos lofifticos engana
dores. '§, V.
a88 Das cousas do raciocínio.

§. V.
A Amfibologia he huma fallacia ,
que nafce da conjunçaõ duvidofa de
muitas vozes , cada huma das quaes
por íi mefma carece de duvida. TaL
he a refpofta de Apolo dada a Pyr-
rho, que refere Cicero liv. 2. da
Advinhaçaô cap. 56. e Quintiliano
liv. 7. cap. 10.

Aio te , JEacida, Romanos vineere


poQe.
Similhantes cafos fazem , que naõ
valha mais o oraculo para Pyrrho ,
doque para os Romanos. Outros
exemplos tens em Cicero , eQuin»
tiliano nos mefmos lugares eirados.
Mas Luciano no Júpiter confutado
engraçadamente zomba deftes orá
culos emvoltos com erro duvidofo.

§. VI.
Livro quintoí 280

§. VL
Finalmente a compofiçaõ he hu«
ma fallacia , que naíbe do ajunta
mento daquellas vozes, e noções,
que fe naÒ podem entender bem ,
íe fe naõ íepararem: como fe alguem
dicer , que quem eftd afentado naõ
pôde e/lar em pé. Porque o que eftá
affentado na6 pôde eftar em pé ef-
tando affentado , mas poderá eftar
em pé , fe deixar de eftar affentado.
Pelo contrario a divifaõ de huma
fallacia , que divide o que fe naõ
ha de dividir: como fe alguem di
cer , que cinco be numero par , e no-
nes , porque cinco faó dois , e tres\
mas d»is ia 6 par , e tres nones. Os
Efcolafticos chamam efta fallacia de
fentido dividido , e a antecedente de
Jentido compojio.
§. VII.
Seguem-fe agora as fallacias, que
nafcem das coufas naõ bementen-
T didas ,
£9q Das cousas do raciocínio.
didas, as quaes fecoflumam nume
rar fete , de acalente , de dito naS
fimplefme»te,de confequente,de naÕ
cattfa por caujardfrpetiçúSdefriíf
Ctpto , de ignorancia de eieçqtt* , *
de muitas perguntas. A fajlaciaiir
accidente he hum lugar habil para
enganar , quando fe attribue á cou-
ía por fi , o que lhe çonv-era acafo ,
e acci denta Imante. Por tanto cahe
nefte vicio qualquer que toma oi
acontecimentos , e effeitos das cou-
fas pelas mefmas couías. Altim VeU
feio Epicureo em Cicero liv. I. da
natureza dos deofes capy 31* coa*
tende que os deofes conltam de for*
ma humana , porque ulam de ra*
zaõ i como fe na realidade a ror-
ma humana feja neceílariamente jun
ta com a raaarn. .v .-- j :.í:V' . ;
-Cí -' ai'»-- - . '. 3 : ' ».'.-/»»>.-.♦..' 'Vi

A fallacia de ditoiiaÕfíntplefmen-
tç ^eirqu.arido,ajquillo que valede-al-
gurpa. pa$íe § ifi emende:. do mcfitao
. a;bib T »nodo
Livro quinto. 291
modo , que valefle fimples , e abfo-
Jutamente; como feeudicer, con
forme Gel lio, IJia , que be neve, nao
be faraha ; a neve be branca \ logo
a laraiva nao be branca. Toma-lç
jia primeira propoliçaõ comoabfo-
lutamente verdadeiro , o que fomen-r
« O he de alguma parte. Por efta
fallacia diziam os Filofofos Cyni-
cos , Que o que be licito , em toda
a farte be permittido , como eftá
em Sexto Empírico.

§. IX.
fi, fallacia de nao caufa por cav
Ja he , quando fe entende como cau^
/a de alguma coufa aquella , que
naõ he caufa , como quando alguém
attribue aos Cometas as deígraças
do genero humano. Para efta mef-
ma rallacÍ3 íe pôde reduzir aquelle
t4ito de Terenciano : Averdaàecau-
fafldio: porque a verdade naõ he
caufa proporcionada do odio , mas
excita a malignidade , de que o o>
.X ? . .T 2 dio
iq i Das cousas do raciocínio.
dio proximamente procede, como
de verdadeira caufa. Para a mefma
fallacia pertence o que alguns lou
camente dizem , que as letras íaó*
perniciofas á Republica , porque al
guns homens letrados maquinaraõ
a deftruiçaõ das republicas. Tam
bem por fimilhante fallacia difpu-
tam aquclles , que põem a fortuna
em lugar de caufa. Similhantes laõ
asfaltadas dos prodígios , e prog-
nolticos , os quaes valiam muito en
tre os antigos Romanos. Por tan
to diz Cicero , he grande loucura
fazer os deofes caujadores defias
coufas, e naô indagar as caufas das
coufas. Pelo que pecca-fe neíte gé
nero todas as vezes que fe aífigna
alguma caufa commua , e remota
em lugar da propria , e proxima.
Tal he aquillo deOvidio/o^rr o
remedio do amor ver. 161. Pergun
ta-fe , por que razaS Egijio fe fez
adultero : a caufa he evidente : tra
ociojo.

§ X.
Livro quinto 293

§. X,
O pedir principia he tomar por
argumento aquillo, que eftá podo
em queiram , iltohe , provar o mef-
mo pelo mefmo. Podefe tirar o
exemplo de Sexto Empirico liv. 3.
das hypoth. Pyrrh. cap. 3.-, aonde
accufaos dogmaticos defta fal lacta ,
pofto que a accuíaçaõ naõ he pro
pria: O que diz que ha cnuja, ou al
iega cauja do/eu dito, ou nao: Se
a/lega , pede principio , porque pro
va a caufa pela cauja, ijlo he.aquil-
io que fe pergunta, por aquillo mef
mo queje pergunta : Se naÕ alkga ,
naõ merece credito. Para aqui per
tence aquelle genero de argumen
tar , a que os.Gregos chamam vol
tar da maô do gral, do qual falia
Plutarcho contra os Stoicos. Dahi
tomou o nome , porque quando a
raaõ do gral fe move ao redor ,
volta para o mefmo lugar donde
fahio. ....... k . .
,:..... §, XI.
* 294 Das cousas do raciocínio.

§. XI.
O Sofifta erttam fe diz errar com ig.
mrancia de elenquo , quando do feu
argumento naõ impugna aquif/o ,
que eftá em controverfia, mas ou
tra alguma coufa ; como fe alguem
dicer , que a morte naobe má , por
que nem mortifica os quebaõ de mor
rer , porque ainda nao exifte ; nem
os mortos porque já naõ' exifle. Faz
rhençaé defta fallacia Laílancio dif-
purando contra Epicuro liv. 3. cap.
J7. Mas o mèfmo nos livra do me-
do da morte com e/las palavras :
Quando nós exi(limos , nao exifte a
morte , quando a morte exifte, nao
exiflimos nós: Logo a morte be na
da p&ra nós : QuaÕ agudamente nos
enganou ! como fe na verdade fe te-
ma a morte pajjada, com que ja fe
tirou a vida \ e naõ o mejmo mor
rer , com que a vida fe tira.'A. mef-
ma fallacia commettem os quedif-
pucando contra a attraccaõ Newro
niana ,
Livro quinto. 29*
niana , a refutam com hlima cauía
occulta ; porque Newton naõ a sn»
teode por cauía , mas por fenome
no.
§. XIT.

A fallacia de muitas perguntas


he, quando juntamente fe pergun»
«am muitas couías , a que fe na6
pôde fatisfazer com huma reípoíta.
Por exemplo. Sócrates por ventura
hefilofofo , e Príncipe dos filofofos ?
Se alguem refponde ao que aifim
pergunta , Jbe , oxinaõ he , cahe em
engano. Para efta fallacia fe pode
reduzir toda a pergunta , que fe faz
por palavras duvidofas : porque a
.voz duvidofa íignifica muitas coii-
fas. Para que fe entenda todo efte
genero de fallacias , fie convenien
te lê*..o capitulo 2. do liv. 16.de
Gellio , em que fe deicreve o an
tigo coftume de pergufftar, eref-
ponder: Dizem , elle diz , que he
lei da [ciencia Diakflic^ , fe d cer-
fa de alguma CQufa fe perguntar,
ao 6 Das cousas do raciocínio.
e a/j put ar, e fores rogado, para quê
rejpondas que peja iflo \ entaõ nao
digas mais, doque fomente aquilio t
que te perguntaram , cu afirmes ,
ou negues : e os que nao objervam
e/ia let , e refpondem , ou mais , ou
de outra maneirando que foram per
guntados , fao avaliados Jer rudes\
e ignorantes , e nao entender o cof-
tume , e forma de difputar , &c.

§. XIII.
A eftes íe podem ajuntar outros
quatro generos de más raciocina*
çôes. O primeiro he, quando ci
tamos aquelles authores das noflas
opinides , que adquiriram grande
efiimaçam , ou com a fama publi
ca de entendimento, e fabedoria ,
ou com a dignidade, ou poder , ou
com qualquer outra razaõ , e na6
íei que imperio alcançaram nas al
mas dos outros. Mo fuccede de tal
forte, que fe hum dos quedifpu-
ram contradiz, íeja defacreditado,
í e
Livro quinto. J97
e tratado ou como louco, ou como
muito foberbo. Efle argumento po-
de-fe chamar ad verecundiam , ifto
he , para envergonhar, e delle ulam
os que ou deflituidos de razaõ , com
que fe poriam defender , ou narj fa-
bendo uíar delia , antes querem af-
fligir , doque enfinar a outrem. Mas
ajunto-o entre os fofrímas ; porque,
como fe demonftrou no li v 4., ne
nhum valor pode ter a author ida
de , quando faltam os argumentos
intrinfecos. . «,.;.
§. XIV.
. ..'.' . . : . i.. 1. t, ;. il
O fegundo he , quando rogamos
o adverlario , que relifte ás nofías
provas , ou que as julga vans , que
elle mefmo as queira dar melho
res : ao qual, quando naó queira,
ou naõ faiba , pertendemos trazer
á força para a nofla opiniam. He
tambem verdadeiramente máo eile
genero.de raciocinar , o qual fe pô
de chamar ad ignorantiam, ifto he,
fundado em ignorancia ; porque
— nem
»«8 Das cousas do raciocínio.
«em por iflo a minha opiniam he
verdadeira , porque o outro ou na6
queira desfazer os meus argumen
tos , ou naõ faiba affignar melhor
opiniam. Iftohetal, comô íe hum
pintor quizer de mim tirar por for
ça a confiffaõ da exceliencia de hu*
ma pintura , com efte argumento,
que eu naõ fei fazer fiinilhante.
Que fera , fe hum Medico , ou Fy-
íico contender que o A he caufa do
B , com efte argumento , que eu ne
nhuma outra caufa conheço? Por
que a ignorancia ém que hum eflá,
naõ pôde íer principio do conhe
cimento de outro. ;. C: r: T .\ f
8t,.! \i > i ' '!w%i v.jp ,.;:'i-. ur <"
3U .i , ::i'!-7.K7-'í^.''XVi' ;-' '
, 1 (!s*n i:ili R7.-.; • . .; : "... . ,. . ! .
,;..€> terceiro genero he argumen
tar ad hominem ,-, íílo he, quando
pelas opiniões verdadeiras, ou fat
ias de outro , que elle com tudo
tem por verdadeiras , pertendemos
perfuadir-lhe anorTa,featença. Efte
argumento he inhabil pata concluir.
í*— i Por-
—.-'áfr
Livro quinto. . vqp
Porque a minha lentença ina6 lerá
verdadeira , porque fe figa das ma
ximas da outra parte, ou fe admit
ia por fua confiflaõ , fe as fuas dou
trinas naõ forem verdadeiras , ou
a confiíTaô nafcer de ignorancia;
mas fim fe for conforme a prin
cípios verdadeiro» , e certos. Aflira
que tambem he máo efte genero de
raciocinar. Até onde com tudo he
permittido uiar delle , fe dice no
capitulo antecedente. - '
.. >
§. XVI.

O quarto he o argumento tira


do da Analogia , quando o Filofofo
naó" pôde acautelar afantafia; por
que nenhum ha , que mais facil
mente engana, e que arraltrou pa
ra graviffirnos erros homens «m ou
tro fentido doutos. Porque pofto
que o argumento de analogia feja
totalmente neceffario por caufa do
quafi infinito numero dos indiví
duos , e brevidade do entendimen
to,
joo Das cousas do raciocínio.
to , e feja utiliífimo para o aug-
mentar , fe fe fizer fabiamente : com
tudo quando oFilofofo na6 acau
telou fufficientemente as forças da
fantafia nefte genero de argumen
tar , attribue as fuas afFecções ás
me finas c ou las. Keplero julgou que
a Terra faz , e continua o leu mo
vimento com mufculos , e fibras ,
como os outros animaes. Accref-
centou, que a Terra perfente os
Cometas , e que por iflo Aia por
caufa do medo , e aífím explica ,
porque razaõ grandes chuvas coftu-
mam acompanhar os Cometas. Ifto
certamente he comparar as coufas
grandes ás pequenas , e explicar a
natureza das coufas , ifto he , o
mundo grande pela noíía natureza,
ou pelo mundo pequeno , como ele
gantemente diz Bacono. He facil
obfervar efte vicio em grande par
te dos Filoíoros. Aqui pertence a-
quillo de Seneca , quando trata dos
deofes, Avaliamo-los pelos rtoj/as
vícios.
F I M.
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^^!


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KÉ*
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