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ANO 2 / NÚMERO 13 / AGOSTO 2008 R$ 8,90

22 24 36
RREFORMA TRIBUTÁRIA CHINA LITERATURA
M PARA
MAIS DEMOCRACIA CORTÁZAR
Q
QUEM TEM MAIS GRADATIVA REVISITADO
PPOR ODILON GUEDES POR JEAN-LOUIS ROCCA POR GUY SCARPETTA

LE MONDE
BRASIL
diplomatique UM NOVO OLHAR SOBRE O MUNDO. UM NOVO OLHAR SOBRE O BRASIL.

CIDADES À BEIRA
DO COLAPSO
AS RAZÕES DA CRISE METROPOLITANA EVIS
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R U NDI .
POR RAQUEL ROLNICK, LUIZ CÉSAR QUEIROZ RIBEIRO, AE ADE
LUIZ ZER A CIDÇÃO”
AKRAM BELKAÏD E MOVIMENTO NOSSA SÃO PAULO A A
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ECONOMIA MUNDIAL
DO BOOM AO CRASH
ISSN: 1981-7525

POR GÉRARD DUMÉNIL, DOMINIQUE LÉVY E PIERRE RIMBERT

20 BOLSA FAMÍLIA
O PROGRAMA FUNCIONA?
POR FRANCISCO MENEZES E MARIANA SANTARELLI 28 HAITI
LONGE DA NORMALIDADE
POR CHRISTOPHE WARGNY 32 INTERNET EM DISPUTA
A NUVEM DA INFORMAÇÃO
POR HERVÉ LE CROSNIER

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AGOSTO 2008 Le Monde Diplomatique Brasil 3

EDITORIAL

© Claudius
Quem pode fazer?
POR SILVIO CACCIA BAVA

A
vida nas cidades está cada vez mais para as cidades. Elas continuam crescendo Em uma sociedade complexa como a a questão dos governos municipais. Go-
complicada para todos. Não escapa descontroladamente, sacrificando direitos, nossa, os parcos avanços da democracia vernos hierárquicos, centralistas, auto-
ninguém. É o trânsito, é a poluição, gerando desigualdades. ainda não permitem reorientar as políticas ritários, controlados pelas elites locais e
é a violência, é o medo, é a pobreza Mas, ainda assim, é preciso acreditar para atender os interesses das maiorias. Os pelo assim chamado “livre mercado”, que
convivendo com a opulência. Nes- que uma outra vida nas cidades é possível. governos das cidades continuam obede- orientam segundo interesses privatistas a
te momento de campanha eleitoral, muitos A dura e insensível cidade de pedra é uma cendo a interesses privados. Esta é a ques- gestão da máquina pública. O governo é a
candidatos vão prometer resolver ou ao me- construção ideológica. Ela não existe. O tão central. Nós, brasileiros, não temos for-
forma como se estrutura o exercício do po-
nos amenizar esses problemas. Mas é muito que existe é uma sociedade em movimen- ças sociais e políticas nem instituições de-
der. Para enfrentar esta realidade conser-
improvável que alguma solução efetiva re- to que produz, com todas as suas contradi- mocráticas com capacidade para impor o
vadora, de autoritarismo e centralismo, as
sulte dessas promessas. Porque as questões ções, as cidades e a vida que vivemos. que está escrito nas Leis Orgânicas Muni-
experiências apontam para a reforma das
continuam a ser tratadas como externalida- Criticando a concepção ideológica da cipais, no Estatuto das Cidades, nos Planos
des, sem que se busque compreender e in- “selva de pedra”, afirmou Milton Santos: Diretores e em tantas outras regulamen- instituições, promoção da transparência
fluir na trama de interesses e, mais do que “As cidades seriam coisas somente, quan- tações que existem no papel, mas não são e do controle social, descentralização da
isso, junto aos atores que produzem as cida- do, de fato, são coisas movidas pela ação executadas. Pedir o cumprimento das leis gestão e participação cidadã. Como se vê,
des e a vida nas cidades. humana. A abordagem urbanística é uma é essencial, mas não é o suficiente. até no plano da política já existem propos-
Era inevitável que chegássemos a este intervenção sobre coisas, vamos fazer uma A globalização também trouxe uma tas inovadoras. O Orçamento Participativo
ponto? Tudo indica que sim. Não havia en- ponte, vamos fazer uma nova autopista, maior integração do conhecimento. Hoje, é emblemático de todo um conjunto de ex-
tão, e não há agora, um conjunto de forças vamos fazer um túnel, vamos construir ca- existe um acúmulo gigantesco de soluções periências de democratização da gestão e
sociais e políticas capaz de reorientar a ação sas. Essa atitude – que é dos urbanistas, de técnicas para os problemas da vida nas cida- controle social que compõem hoje um am-
do Estado e as políticas públicas para outro uma maneira geral, diante da cidade – im- des. Há experimentos com novas fontes de plo repertório de possibilidades.
projeto de cidade. Os movimentos sociais pede o conhecimento do que é o organis- energia, novas tecnologias, novos materiais, Mas, então, surge a questão crucial. Se
conquistaram muitas coisas, começando mo urbano, impede o plano, impede... a que prefiguram soluções espantosas para os assumirmos que nossas cidades são uma
pelo capítulo de política urbana na atual construção do futuro”1. problemas atuais. As cidades com poluição produção nossa, reconhecemos a possibi-
Constituição. Influíram no desenho e parti- Somos chamados a reconhecer que a próxima de zero podem se tornar, em pou- lidade de transformá-las. Mas quais são as
cipam diretamente do Sistema Nacional de pólis é mais que a “selva de pedra”. É o con- cos anos, uma realidade. Surgem os primei-
forças sociais e políticas que podem fazê-lo?
Cidades, das Conferências e Conselhos na- junto das relações humanas que se esta- ros protótipos delas. Mas são uma aberra-
cionais, regionais e municipais. Mas toda a belece sobre o território da cidade. Assim, ção, ilhas de fantasia em meio ao mar bravio 1 Milton Santos, “Quem está na frente é o povo.” Entrevista
energia canalizada nesses mecanismos de entramos no reino da vontade, das opções, da realidade social em que estão inseridas. a Carlos Tibúrcio e Silvio Caccia Bava, em “Um outro mun-
participação parece não ter sido suficiente da indeterminação. A cidade é e será o que O diagnóstico dos problemas urbanos do urbano é possível”, Cadernos Le Monde Diplomatique
para sustentar uma nova proposta política seus habitantes fizerem dela. ficaria incompleto se não enfrentássemos nº 2, São Paulo, Instituto Pólis, 2001.

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4 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2008

ECONOMIA MUNDIAL / DO BOOM AO CRASH

A dinâmica da
degringolada
No cerne dos mecanismos que culminaram na crise atual, encontra-se, além da ausência de regulamentação
dos processos financeiros, algo que se pode denominar de “a trajetória neoliberal” da economia dos Estados Unidos,
um itinerário iniciado nos primeiros anos da década de 1980, após três decênios de keynesianismo
POR GÉRARD DUMÉNIL E DOMINIQUE LÉVY*

C
hama a atenção o caráter edul- lado; e “transparência”, de outro. Outros do nos primeiros anos da década de 1980, déficit do comércio exterior. Enfim, ecoan-
corado da nota publicada no últi- termos estão ausentes, como “regulamen- após três decênios de keynesianismo. Cin- do tais tendências, é preciso mencionar o
mo dia 14 de junho ao término da tação”, por exemplo. E não se faz menção co grandes tendências estavam presentes. duplo aumento da dívida interna (essen-
reunião dos ministros da econo- aos fatores subjacentes à crise: os dese- Em primeiro lugar, a redução do investi- cialmente a das famílias e a das finanças)
mia do G8: “A inovação financeira quilíbrios crescentes da economia norte- mento produtivo. Com isto, nos referimos e do financiamento da dívida externa pelo
tem contribuído consideravelmente para americana. ao crescimento de todos os elementos “fí- resto do mundo1.
o crescimento e para o desenvolvimento No cerne dos mecanismos que culmi- sicos” necessários à produção: edifícios, Uma trajetória bem estranha, impul-
mundiais, mas, diante dos riscos à estabi- naram na crise atual, encontra-se, além da máquinas etc. Esse recuo veio acompa- sionada pelo consumo em detrimento do
lidade financeira, é imperativo o aumen- ausência de regulamentação dos processos nhado de uma fortíssima expansão rela- investimento produtivo, e alimentando-
to da transparência e da consciência dos financeiros, algo que se pode denominar tiva do consumo. Jamais se observou algo se das importações – demanda sustenta-
riscos”. As palavras-chave são: “desenvol- de “a trajetória neoliberal” da economia parecido no passado. A superexpansão do da graças ao crédito concedido pelas ins-
vimento” e “inovação financeira”, de um dos Estados Unidos, um itinerário inicia- consumo esteve na origem do aumento do tituições financeiras americanas, cientes

© Nelson Provasi
AGOSTO 2008 Le Monde Diplomatique Brasil 5

de que nada seria possível sem o finan- dos desequilíbrios da economia nacional, saída da crise de 2001 em termos de con- te dívida externa. Por trás do déficit, perfi-
ciamento pelo resto do mundo. Isso de- cada vez menos regulamentada. vergência de interesses entre a política do lavam-se não só a Europa como também,
veria causar inquietação, mas, ao contrá- Como explicar a insistência nesse rumo Federal Reserve e uma grande parcela do e cada vez mais, os países “emergentes”.
rio, a propaganda neoliberal tratou de di- durante tantos anos? Após as recessões de setor financeiro privado. Três elementos Tendo-se em conta as formidáveis reser-
vulgar a imagem lisonjeira de os Estados 1982 e 1990, a atividade foi efetivamente no total: 1) uma política de incentivo mui- vas financeiras desses desafiadores e a
Unidos serem a “locomotiva” do cresci- sustentada pelo impulso miraculoso das to ousada, tornada necessária pela trajetó- queda do dólar, a economia dos Estados
mento mundial. novas tecnologias, ditas “da informação”. ria insustentável; 2) uma resposta eficaz a Unidos transformou-se, para eles, numa
O aumento dos desequilíbrios e a crise Lentamente no começo, mas de modo curto prazo, mas impossível de ser manti- pedra no sapato.
financeira nasceram nos próprios Estados particularmente tenaz, a onda agigantou- da, que levaria ao choque do subprime; 3) Como evitar tal coisa? Podia-se esperar
Unidos, e não seriam possíveis sem o do- se na segunda metade da década de 1990: uma desvairada efervescência financeira, uma intervenção maior do Estado: o socor-
mínio exercido por esse país sobre o res- quatro anos de boom, durante os quais os que prolongou a trajetória além do razoá- ro ao setor financeiro ou a compra dos cré-
to do mundo. Mas o neoliberalismo tam- valores tecnológicos foram propelidos a vel e multiplicou as conseqüências da cri- ditos duvidosos, o aumento das despesas
bém tem uma parcela de responsabilida- alturas sem precedentes: a bolsa Nasdaq, se do crédito hipotecário. A crise e as ten- públicas, a “re-regulamentação” das finan-
de, pois os lucros das empresas, dos quais que negociava ações de 1.053 empresas em dências da macroeconomia alimentavam- ças (proibição de certas práticas de crédito
uma grande parte era anteriormente re- janeiro de 1996, passou a abrigar 5.132 em se mutuamente. E o endividamento impa- e maior controle sobre os fundos especu-
tida para investimento, foram transferi- março de 2000. O capital estrangeiro afluiu gável das famílias fez com que se insistisse lativos). Também era possível implemen-
dos aos credores, na forma de juros, e aos precipitadamente para aproveitar a ines- em uma trajetória perigosa – ao custo do tar a defesa das empresas americanas no
acionistas, na forma de dividendos. Logo, perada vantagem. Mas ao boom seguiu-se aumento da dívida, ao mesmo tempo em exterior e nos Estados Unidos. No entan-
as empresas passaram a reservar cada vez o crack estrondoso: em outubro de 2002, o valor e em proporção à renda nacional. to, continuava sendo inconcebível que os
menos para investir. Além disso, as fron- número de empresas com ações na Nas- dirigentes atacassem o livre-comércio e
teiras comerciais se escancararam – prin- daq havia despencado para 1.114. O APEGO ÀS REGRAS NEOLIBERAIS a livre circulação dos capitais, essenciais
cipalmente para os países da periferia, Em 2001, com o estouro da bolha da in- A ciranda financeira não causou a ten- ao domínio das empresas transnacionais
nos quais o custo de mão-de-obra era bai- formática, veio a recessão, e foi nessa oca- dência, pois esta era muito mais antiga e americanas no mundo.
xo (China, México, Vietnã etc.). Uma fra- sião que se revelaram os efeitos perversos profunda; apenas prolongou a sua dura- Portanto, podia-se entrever um afasta-
ção crescente da demanda dirigiu-se para daquelas tendências. O Federal Reserve ção. Não se trata de inconsciência por par- mento simulado e limitado das regras ne-
as importações, a tal ponto que, nos Esta- entrou em cena e fez o seu trabalho habi- te das autoridades monetárias, e sim da re- oliberais. Exceções ad hoc. Uma nova lei
dos Unidos, se pode falar em “desterrito- tual: o estímulo ao crédito. Mas as empre- lutância em abandonar as regras neolibe- sobre os investimentos estrangeiros e a se-
rialização” da produção. sas não-financeiras não reagiram ao apelo. rais, tal como o exigia a correção da traje- gurança nacional, Foreign Investiment and
A necessidade de manter uma deman- Quando faziam empréstimos não era para tória. Ocorre que o neoliberalismo não era National Security Act, votada em 2007, deu
da voltada para a produção em território investimentos produtivos no território dos uma questão de princípios, mas de inte- ao presidente norte-americano importan-
americano impôs a injeção massiva de cré- Estados Unidos, e sim para empreender a resses; de modo que as regras encobriam tes poderes para limitar os investimentos
dito: ano após ano, e cada vez mais, ao pas- pequena batalha das fusões e aquisições propósitos muito mais importantes e sa- desse tipo nos Estados Unidos, em nome
so que a demanda continuava fugindo para ou para incentivar a compra de suas pró- grados do que os princípios proclamados. de uma definição bem ampla da segurança
o resto do mundo e a produção era pouco prias ações2. Então Alan Greenspan apli- Era o que se veria nos anos seguintes. interna. Esse gênero de neoliberalismo “re-
sustentada pelo investimento. Assim, o pro- cou o remédio em dose dupla [ver o qua- A amplitude da crise surpreendeu e a mendado” configura o esquisito destino de
cesso exigiu muito mais crédito do que se- dro]. Baixou de modo espetacular a taxa de urgência da intervenção se evidenciou. Já uma potência hegemônica cujo domínio a
ria necessário numa economia pouco aber- juros, que se tornou cada vez mais baixa e não estávamos em 1929 e “tudo” se fez para longo prazo está em jogo.
ta e voltada para o seu próprio crescimento. mesmo negativa em termos reais (isto é, sustentar o sistema financeiro. Primeiro,
Este é o ponto essencial e foi ele o desen- uma vez descontada a taxa de inflação). abriram-se as torneiras da política mone-
cadeador da crise financeira: uma trajetória tária: ao todo, foram despejados mais de * Gérard Duménil e Dominique Lévy são economistas.
insustentável, percorrida mediante o artifí- 600 bilhões de dólares, com a perspectiva Entre outros livros, escreveram, em conjunto, Crisis y sali-
cio do estímulo sempre renovado, ao pre- de novos aportes se necessário, pois ago- da de crisis: orden y desorden neoliberales (Cidade do
ço de um endividamento crescente, até as ra se tratava de manter em funcionamen- México, Fondo de Cultura Económica, 2007).
areias movediças do subprime. A crise nasceu da ação to um sistema que desabava. Mas isso não
A isso somou-se o papel central do conjugada de um setor foi suficiente, e não faltou quem se emo-
O consumo ganhou cerca de 7 pontos percentuais do
dólar, mundialmente usado nas transa- cionasse: “Aquilo que começou como uma 1

ções comerciais e financeiras, como divi-


financeiro que levou à deterioração relativamente bem contida
PIB: 2% retirados do investimento (com exceção da se-
gunda metade da década de 1990, o esforço de investi-
sa de reserva, sobre a qual muitas outras inadimplência muitas de certos segmentos do mercado ameri- mento, nos Estados Unidos, não cessou de diminuir em
moedas indexaram suas taxas de câmbio. famílias endividadas com cano dos subprimes degenerou, por me- relação ao PIB) e 5% de importações líquidas suplemen-
O resto do mundo colaborou alegremen- tástase, num grave deslocamento para os tares. Em 2006, o déficit do comércio exterior chegou a
te. Derramou-se pelo planeta um fluxo o aumento acelerado do mercados maiores do crédito e do finan- 6% do PIB, contra menos de 1% no início dos anos 1980.
Os ativos (ações, títulos etc.) dos Estados Unidos retidos
enorme de notas verdes, correspondente déficit do comércio exterior ciamento, que agora ameaça as perspecti- pelo resto do mundo, que se elevaram a 110% do PIB
ao déficit comercial dos Estados Unidos. vas macroeconômicas dos Estados Unidos americano, correspondem a mais do que o dobro dos ati-
Os estrangeiros aplicavam os dólares que e do mundo”3. vos da mesma natureza de empresas ou Estados do resto
recebiam em troca dos bens que expor- A curto prazo, era difícil impedir a ex- do mundo retidos pelos agentes norteamericanos (47%
do PIB).
tavam para os Estados Unidos. Compra- O remédio fez efeito. Mas a que preço? pansão do déficit orçamentário, que já O mesmo lucro dividido entre menos ações resulta em
2
vam ações, obrigações privadas e públi- O setor financeiro, ou uma fração dele, correspondia a 3% da produção do país. maiores dividendos e elevação das cotações na bolsa.
cas, bens do tesouro etc. Mesmo porque precipitou-se no espaço aberto pela que- E esse incentivo não remediava a crescen- 3 Global Stability Report, FMI, abril de 2008.
não tinham escolha. Não havia nenhum da das taxas de juros. E as famílias de clas-
meio de absorver tantos dólares desde se média responderam pela sustentação
que essa moeda deixou de ser conver- da demanda. Convém lembrar que, nos
sível em ouro. Sem dúvida, o desejo ge- Estados Unidos, a expansão formidável ALAN GREENSPAN E A INSTABILIDADE
neralizado de se desfazer das notas ver- do crédito hipotecário serviu para finan-
des pressionava sua cotação para baixo ciar, ao mesmo tempo, os próprios imó- Em julho de 2005, Alan Greenspan, então presidente do Federal Reserve, o banco central
e, conseqüentemente, tornava necessá- veis e o consumo (como o pagamento dos dos Estados Unidos, exigiu que os riscos de inadimplência das famílias fossem bem avaliados.
ria a elevação da taxa de juros nos Esta- estudos dos filhos ou o tratamento médi- Recorreu às lições do passado: “A história ensina que os períodos de relativa estabilidade ge-
dos Unidos. Mas, desde o início dos anos co, caríssimo em um país em que a prote- ralmente engendram expectativas irrealistas quanto à sua continuidade e podem levar a ex-
2000, a taxa de juros de longo prazo per- ção social é deficiente). A partir de 2000, o cessos financeiros e a tensões econômicas”. Tal declaração demonstra, retrospectivamente,
maneceu baixa. Assim, a economia dos consumo, que atingiu um nível elevadís- que ele não ignorava a tempestade que se acumulava no horizonte. Greenspan teve de enfren-
tar a crise de 2001. Mas dentro da bitola neoliberal. Isto é, sem regulamentar o setor financeiro
Estados Unidos foi derrapando ao longo simo, parou de crescer mais rapidamente
(coisa, aliás, que teria emperrado as engrenagens do incentivo ao consumo mediante a facili-
dessa trajetória em que os desequilíbrios que a produção total, mas a compensação
dade do crédito); sem questionar o livre-comércio, e sem restringir a mobilidade internacional
internos e externos, reais e financeiros, veio da construção civil, aquecida devido dos capitais. Portanto, seu remédio consistia em crédito e somente crédito (inclusive por meio
se ampliavam progressivamente. à alta dos preços dos imóveis. A economia do endividamento público). Tratava-se de optar pelo pior para não tocar no “essencial”.
saiu da recessão. Greenspan observou a tripla expansão do endividamento das famílias, do consumo e dos
INTERNET: DA EUFORIA À QUEBRADEIRA Essa medalha teve vários reversos: a desequilíbrios externos que o tratamento da crise de 2001 acabou por intensificar. Ele preci-
Os detentores de capitais e os segmen- entrada em cena de um setor financeiro sava frear a máquina infernal. Também estava consciente da deterioração da situação do
tos mais elevados da pirâmide salarial (uns inescrupuloso, que levou à inadimplência mercado imobiliário e dos correspondentes mecanismos de crédito. Vendo a saída da reces-
e outros se interpenetrando) prosperaram muitas famílias endividadas; o aumento são de 2001 se confirmar, desencadeou um processo gradual de elevação das taxas de juros
e se distanciaram do resto da população. acelerado do déficit do comércio exterior dos “fundos federais”: lentamente, o mais gradualmente possível, 17 pequenos passos de
Mas a produção manufatureira diminuiu, e o correspondente crescimento do finan- 0,25%, entre junho de 2004 e junho de 2006.
e o país passou a depender cada vez mais ciamento desse déficit pelo resto do mun- Esse procedimento que visava desacelerar o aumento do endividamento pela alta das
da generosidade dos estrangeiros. Estra- do; a queda das taxas de juros, que insti- taxas de juros finalmente deu certo, mas, em vez da esperada aterrissagem suave, o edifício
financeiro ficou desestabilizado. É justamente isso que significa “instabilidade”. As variáveis
nha concomitância entre o enriquecimen- gou as mais temerárias estratégias por par-
deixam de ser controláveis e um impulso a mais provoca o naufrágio.
to de uma minoria, o aumento do consu- te das sociedades financeiras.
mo dos mais favorecidos e o agravamento É possível interpretar a conjuntura de
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ECONOMIA MUNDIAL / DO BOOM AO CRASH

Quando a água
bate no peito
À medida que se intensifica a tripla convulsão (financeira, monetária e energética) que abala a economia
mundial, o pânico alcança as elites. Seu credo se desmancha: o mercado já não é mais a resposta para tudo.
E os ganhos estratosféricos dos altos executivos das corporações passam a ser questionados
POR PIERRE RIMBERT *

© Nelson Provasi

“Crise é um estado no qual as coisas irregu- dia, o governo volta a estatizar o setor fer- banco Bear Stearns, asfixiado por seus cré- pânico ganha as elites. Seu credo se des-
lares são a regra; e as coisas regulares, im- roviário; em Londres, o pessimismo toma ditos imobiliários tóxicos. É inútil apontar mancha. “O mercado não é mais a respos-
possíveis” (Marcel Mauss1) conta da mídia econômica. os “suspeitos” habituais: Estados bloquea- ta para tudo”, ousa Michaels Skapinker,
“Medo”, “recessão”, “salvamento”, “pro- dores, burocracias emperradas, trabalha- outro editorialista do Financial Times. Si-

O
que dizer de um estado no qual as tecionismo”: palavras alarmistas se suce- dores arcaicos. John Thornhill, editor-che- nal de catástrofe avançada, o Handelsblatt,
finanças oscilam, o preço da ener- dem na primeira página do Financial Ti- fe da edição européia do diário financeiro, um dos mais influentes jornais alemães da
gia dispara e a desconfiança po- mes. “Memorizem o dia 14 de março de indica os culpados: “Muitos bancos prova- área financeira, aplaude a intervenção que
pular provoca uma série de dis- 2008”, escreve o cronista Martin Wolf. “Nes- ram ser de uma irresponsabilidade mons- manda os princípios sagrados do neolibe-
túrbios? Em Wall Street, o Federal se dia, o sonho do capitalismo de mercado truosa, se não criminosa”. ralismo para o ralo. O Wall Street Journal e
Reserve (FED) coloca os bancos sob tute- global morreu.” Ele se refere à “sexta-feira À medida que se intensifica a tripla o The Economist fazem-lhe eco. “Para que
la; nos Países Baixos, aprovam-se leis regu- negra”, na qual o FED, o banco central nor- convulsão (financeira, monetária e ener- o sistema funcione”, lembra o semanário
lando o salário dos patrões; na Nova Zelân- te-americano, decidiu pelo salvamento do gética) que abala a economia mundial, o liberal, “é preciso, às vezes, que os ban-
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queiros percam seus empregos e os inves- Na França, os escândalos também se contestação mais profunda: “Num lapso de
tidores, suas camisas”. sucedem. Grave problema de gestão na tempo bastante curto, a sociedade coesa e
Sensíveis à direção do vento, os res- Société Générale, delito cometido pelo igualitária da segunda economia mundial
ponsáveis políticos e econômicos rompem time de executivos da EADS, confusão na foi transformada em uma sociedade entre-
com seus ídolos. Ontem elogiado por seu UIMM: a repetição leva os dirigentes ao vada pelos males do modelo liberal: classe
rigor, o banco central europeu sofre agora descrédito e desmoraliza as regras do jogo desfavorecida crescente, marginalização,
as críticas do primeiro-ministro espanhol, econômico. Reagindo aos subsídios conce- hiatos cada vez maiores de ganhos e des-
José Luis Zapatero, e do ministro alemão didos ao ex-CEO da Vinci, Antoine Zacha- contentamento velado”.
da Economia, Peter Steinbrück. Enquanto rias, o ensaísta Max Gallo resumiu a pro-
Josef Ackermann, CEO do Deutsche Bank blemática em 2006: ”Não sou um igualita- O PODER ESCORREGA PARA A ÁSIA
e figura emblemática do capitalismo eu- rista, sou pela economia de mercado. Mas Entre 2000 e 2007, as economias “mais
ropeu, perde a confiança (“Não acredito existem indícios de tais desigualdades que avançadas” (Estados Unidos, União Euro-
mais no poder de autocorreção dos merca- levaram questões sobre os próprios prin- péia, Japão e Canadá) evoluíram em um
dos”), seu colega, Horst Köhler, antigo di- cípios do sistema”. Ao que Philippe Meyer único sentido: a parte correspondente
retor geral do Fundo Monetário Interna- replicou: “Você quer dizer que existem in- aos salários nos montantes nacionais bai-
cional e presidente da República Federal dícios de desigualdades que colocam em xou de 56% para 53,5%, enquanto a parte
da Alemanha, perde a paciência: “Os mer- causa a própria desigualdade?”. correspondente aos lucros das empresas
cados internacionais se metamorfosearam Em Bruxelas, Jean-Claude Juncker, pre- cresceu de 10% a 16%6. Lawrence Sum-
em um monstro que deve ser empurrado sidente do Eurogroupe, que reúne os mi- mers, antigo economista-chefe do Banco
para sua caverna”. nistros da Economia da zona do euro julga Mundial, depois secretário da Fazenda do
Essa gritaria evoca aquela da crian- “perfeitamente escandaloso” as “derrapa- governo Clinton, esclareceu os termos da
ça diante do diabinho que sai da caixa de gens excessivas [sic] da remuneração dos batalha: “A oposição aos acordos de livre
surpresas e pula sobre o seu nariz. Na pri- dirigentes de empresas”. comércio, e em geral à globalização, re-
meira vez, isso pode ser engraçado. Mas e fletiu a tomada de consciência pelos tra-
na segunda? Nos anos que sucederam ao balhadores de que aquilo que é bom para
crash de outubro de 1987, os prestidigita- a economia global e para os campeões
dores de Wall Street expressaram a súbi- dos negócios não é necessariamente bom
ta necessidade de “moralização dos negó- Quando o diretor de uma para eles”.
cios”, às vezes estimulados por uma esta- O questionamento da globalização
da atrás das grades. Em 1997-1998, a cri-
transnacional ganha por seus próprios arquitetos tem muito a
se monetária asiática colocou em xeque 60 milhões de euros de ver com a percepção de que, de agora em
as instituições financeiras internacionais remuneração em um único diante, a direção das operações lhes esca-
e inspirou o megaespeculador George So- pa. O poder econômico escorrega em dire-
ros a escrever um livro contra “a integra-
ano, a falta de tato na ção à Ásia. E, neste momento de perda de
ção dos mercados”. Depois do estouro da rapinagem constrange até controle, admite-se o que havia sido nega-
bolha internet, em 2001-2003, e dos es- mesmo seus colegas do para afastar o que se provocou. “Os pa-
cândalos Enron, Vivendi e WorldComm, râmetros da globalização foram fixados no
o principal assunto foi a questão de ética Ocidente, reconhece Philip Stephens, edi-
nos negócios e a neutralização das “armas torialista do Financial Times. A liberação
financeiras de destruição em massa”, de- Quando oito executivos do Converteam do comércio e do fluxo de capitais era um
nunciadas pelo multimilionário Warren distribuem entre si 700 milhões de euros, projeto essencialmente americano. Não
Buffet. Economistas e patrões apontaram resultantes da venda da empresa em junho era de forma alguma uma empresa impe-
os defeitos do capitalismo... a fim de oti- de 2008, quando o CEO da Porsche ganha 60 rialista. Mas, quando todo mundo esta-
mizá-lo2. Depois, esqueceram tudo, en- milhões de euros em 2007, quando seu co- va pensando que tirava proveito da inte-
quanto uma nova bolha enchia, desta vez lega holandês do grupo alimentar Numico gração econômica, um princípio implícito
no setor imobiliário. Excesso de liquidez, recebe um bônus de 66,8 milhões de euros, se impunha, no qual os principais ganhos
especulação, crash, contrição: essas qua- a falta de tato na rapinagem constrange até iam para os mais ricos.”
tro estações dão ritmo à história das fi- eles mesmos, os diretores. “Se isso conti- Tanto para os operadores financeiros
nanças desde o século XVIII3! nuar, a opinião pública não ficará mais do como para os responsáveis políticos, che-
lado dos empreendedores”, explicou Wou- gou a hora de entregar os anéis para salvar
SUCESSÃO DE ESCÂNDALOS ter Bos, ministro holandês da Economia, os dedos. Um debate se abre assim nos pi-
A perturbação do discurso liberal não para justificar uma lei tributando as remu- lares da mídia sintonizada com as altas fi-
resulta somente da crise econômica. Ela nerações escandalosamente generosas. Na nanças, focalizando temas como sujeitar
também vem na esteira de uma suces- verdade, não é a desigualdade entre ricos e os mais ricos a impostos mais pesados, re-
são de escândalos. Na Alemanha, a eva- pobres que viola a roda capitalista, mas a duzir o dumping fiscal e conceder aos tra-
são fiscal de grandes contribuintes para que existe entre executivos e acionistas. As balhadores maior segurança econômica.
Liechtenstein e os casos de corrupção na entradas exorbitantes dos primeiros devo- “Os banqueiros devem entender que se
Deutsche Telekom, na Siemens etc. coinci- ram os ganhos dos segundos. “No ano pas- eles próprios não fizerem nada para frear
dem com a exposição pública de desigual- sado, por exemplo, o salário médio de um seus piores excessos, os reguladores sofre-
dades recordes. De um lado, “a Alemanha diretor do S&P 5004 praticamente dobrou, rão provavelmente uma forte pressão para
se vê com 22% de trabalhadores pobres”, enquanto o lucro médio de suas empre- agir em seu lugar”, afirma editorial do Fi-
conforme a manchete do jornal Les Echos; sas aumentou apenas 12%”, revolta-se nancial Times. O serviço meteorológico
de outro,conforme nota do corresponden- o suplemento Corporate Finance do Fi- econômico anuncia um novo dilúvio de
te em Berlim do jornal Le Figaro, “a remu- nancial Times. Convidada a testemunhar códigos de boa conduta, virtude e ética. E,
neração média dos diretores de 30 empre- diante de comissão da Câmara dos Repre- quem sabe, um leve declínio dos altos sa-
sas cotadas no Dax aumentou 62% em cin- sentantes, Nell Minow, conselheira do go- lários. Um diagnóstico muito severo para
co anos, contra 2,8% de aumento do salá- verno norte-americano, não poupou pa- um remédio tão leve.
rio do empregado médio”. Consternado, lavras: “A remuneração injusta acordada
o presidente alemão admite que muitas ao CEO que fracassa deveria ser restituída
águas vão rolar antes que seja “restaurada aos acionistas”5.
a confiança pública na elite econômica ar- Ameaçadas pela crise financeira, cri-
ruinada pelo comportamento incorreto de ticadas por sua ostentação, as classes diri- * Pierre Rimbert é jornalista, autor de Libération, de Sar-
certos executivos de empresas”. gentes ocidentais temem também pela ins- tre à Rothschild (Paris, Raisons d’Agir Édition, 2005).
Brendan Barder, secretário-geral da tabilidade social. A inflação da energia, das
Confederação dos Sindicatos do Reino matérias-primas e dos alimentos pesa so-
Unido, aponta a elevação da temperatu- bre as populações. Do desfile de sindica- 1 Sociólogo, como seu famoso tio, Émile Durkheim, Marcel
ra: “Os trabalhadores comuns sentem não listas europeus em Liubliana aos cortejos Mauss (1872-1950) é considerado o pai da etnologia fran-
cesa. A frase citada é de seu livro Écrits politiques (Paris,
dispor de nenhuma ficha no cassino capi- egípcios de trabalhadores e profissionais li-
Fayard,1997).
talista. Estão enfurecidos, pois sofrem para berais, uma mesma ameaça parece ganhar 2 François Chesnais, “Quand le patronat accuse le capita-
pagar suas contas, enquanto uma minoria vulto em todo o mundo. Assim, por trás da lisme”, Le Monde Diplomatique, março de 2006.
de super-ricos flutua com a ausência de ação de um punhado de trabalhadores agrí- 3 Charles Kindleberger, Histoire mondiale de la spéculation
financière, Hendaye, Valor, 2004.
gravidade social”. Recentemente, soube- colas japoneses que, em junho último, ata-
4 Relação das 500 empresas com ações mais bem qualifi-
mos que a fortuna dos mil britânicos mais caram a polícia com pedras e coquetéis Mo- cadas no mercado.
ricos quadruplicou desde a chegada dos lotov, Michiyo Nakamoto, correspondente 5 Les Echos, 12 de março de 2008.
trabalhistas ao poder em 1997. do Financial Times no Japão, percebe uma 6 Financial Times, 9 de junho de 2008.
8 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2008

ENTREVISTA / LUIZA ERUNDINA

“Precisamos plantar
a semente da mudança”
“Ninguém vive bem em São Paulo. Nem os pobres nem os ricos.” Esta é a fala de quem conhece
de perto os problemas da megalópole. E não acredita nas soluções miraculosas das campanhas eleitorais.
“Esta cidade precisa ser pensada em escalas de tempo de 20 anos ou mais”, afirma.
POR MAÍRA KUBÍK MANO E JOSÉ TADEU ARANTES *

á 20 anos, a pernambucana Lui- intervindo nas decisões. Isso imprimia como a globalização impactaram as rela-

H
ERUNDINA Os grandes túneis, viadutos e vias
za Erundina foi eleita prefeita de expressas. São obras caras e com muita vi- uma dinâmica que extrapolava a atuação ções econômicas e a composição social do
São Paulo. Essa militante políti- sibilidade, além de servirem a interesses dos partidos e dos políticos. Foi esse dina- Brasil. Hoje, a sociedade tem uma cara dife-
ca sui generis, que iniciou sua nem sempre confessáveis. Com certeza, as mismo social que gerou o PT e elegeu Lula rente da que tinha há 20 anos.
atuação nas ligas camponesas, moradias populares, as escolas, os hospi- presidente. Hoje, no entanto, temos uma
imprimiu ao mandato as marcas da hon- tais e uma gestão democrática e participa- sociedade civil desmobilizada, sem moti- DIPLOMATIQUE Ao mesmo tempo, as insti-
radez e do compromisso com as grandes tiva não ajudam tanto a promover um pre- vação para participar. A cultura política de- tuições não se atualizaram para responder
reivindicações sociais. O tempo passou. feito. Vamos pensar novamente no caso do caiu muito nestes últimos tempos e os par- às novas demandas.
A população cresceu. E a gigantesca me- trânsito. A quantidade de vias é insuficien- tidos contribuíram para seu próprio
galópole se encontra hoje à beira do co- te para o número de veículos existentes na esvaziamento. Se analisarmos as propos- ERUNDINA Tanto é que a Constituição de 1988
lapso. Para a atual deputada federal cidade. Calcula-se que haja atualmente em tas dos candidatos à próxima eleição, vere- já está se tornando superada e grande parte
(eleita pelo PSB, Partido Socialista Brasi- São Paulo um automóvel para cada dois ha- mos que emerge delas a visão de uma cida- dela continua sem regulamentação. O siste-
leiro), a resposta continua a ser um go- bitantes. Ao passo que o transporte coletivo de fatiada, com políticas sociais setorizadas ma político está completamente defasado. E
verno que olhe para o futuro. Em uma segue há décadas sem investimentos sufi- que não obedecem a uma lógica de conjun- o próprio Estado não tem mais capacidade
escala de tempo que vá muito além dos cientes e sustentáveis. O incentivo que es- to. Não há um projeto maior que integre to- de acompanhar a dinâmica da sociedade.
quatro anos de gestão. sas obras dão ao transporte individual pra- das as medidas, potencializando seus re- Isso se reflete de forma muito aguda na ques-
Esta será a primeira eleição, desde o fim ticamente inviabiliza a cidade. E as sultados. Essa é uma responsabilidade que tão urbana. O Estatuto das Cidades, por
de seu mandato em 1992, em que ela não con seqüências não dizem respeito apenas deve ser assumida pelos governos que se exemplo, aprovado em 2001, tem muitos
concorre à Prefeitura. E o faz em prol de um à locomoção, mas também ao agravamen- pretendam democráticos populares e de mecanismos ainda não implementados, co-
projeto político maior. Com 74 anos, ela to do problema ambiental, ao estresse, ao esquerda. Mudar a forma de fazer política e mo a democratização do acesso à terra para
acredita estar plantando, mais uma vez, a mal-estar. Viver nesta cidade tornou-se ex- governar pode ser inclusive um fator de resolver o déficit habitacional.
semente que outras gerações verão tremamente desconfortável. São Paulo tem motivação para que se inicie um novo ciclo
germinar. de ser pensada para além de eleições e de histórico de acumulação de forças. DIPLOMATIQUE Enquanto isso, na região
governos. Agora, como conseguir isso? central de São Paulo, há milhares de imó-
DIPLOMATIQUE Com mais de 11 milhões de DIPLOMATIQUE A senhora está dizendo que, veis desocupados. O Movimento dos Sem
habitantes e uma frota de 6 milhões de veí- ao impulsionarem a redemocratização e Teto do Centro fala em 600 mil domicílios
culos, São Paulo apresenta diariamente pa- eleger Lula, os segmentos mais progressis- não utilizados. Sabemos que muitos desses
ra seus habitantes o desafio da esfinge: Temos uma sociedade tas da sociedade civil como que exauriram prédios têm enormes dívidas de IPTU com
“Decifra-me ou te devoro”. Porém, as res- toda a energia acumulada, chegando a um a Prefeitura. Eles não poderiam ser desa-
postas apresentadas pelos políticos pare- civil desmobilizada, sem resultado que ficou muito aquém das propriados com a finalidade de reforma
cem sempre emergenciais, sem qualquer motivação. A cultura expectativas? urbana?
estratégia por trás. A cidade está à deriva?
política decaiu muito e os ERUNDINA Sim. ERUNDINA Sim. A região central está hoje su-
LUIZA ERUNDINA Não ter planejamento ur- partidos contribuíram bocupada, com uma infra-estrutura urba-
bano vem sendo o estigma de São Paulo. para seu próprio DIPLOMATIQUE E que essas forças precisa- na ociosa: redes de esgoto, sistemas de
Precisamos pensar estrategicamente esta riam, como a fênix, renascer das próprias transporte, escolas, postos de saúde. É pre-
megalópole, que hoje dialoga com o país esvaziamento cinzas e iniciar, agora, um novo ciclo de ciso reverter o fluxo de ocupação do espaço
e o mundo de forma caótica, espontânea acumulação? urbano para revitalizar essas áreas. Para
e partidarizada. Cada novo governo elei- tanto, edifícios ociosos, em dívida com a
to tenta imprimir à cidade a marca de seu ERUNDINA É exatamente isso que eu penso. Prefeitura, são um estímulo à desapropria-
partido e tudo fica personalizado, sem DIPLOMATIQUE Este é o problema: parece As determinações se impuseram. Quem te- ção. Há também muitos prédios públicos
coerência, sem continuidade. Questões haver um círculo vicioso que não sabemos ve e tem poder real nesses dois governos de vazios, que estão emperrados em decisões
centrais, como o transporte urbano e o como romper. É difícil esperar que o próxi- Lula? Os mesmos de antes. As forças popu- judiciais e poderiam ser reutilizados. É pre-
trânsito, por exemplo, deveriam ser resol- mo prefeito, seja ele quem for, consiga mu- lares que, direta ou indiretamente, cons- ciso um programa de aproveitamento des-
vidas nos marcos do Plano Diretor, caso dar essa perspectiva, principalmente sem a truíram o PT e elegeram Lula não foram ca- ses imóveis que contemple a demanda
se pensasse para além de um governo de participação da sociedade civil organizada pazes de impulsionar sua gestão, nem crescente por moradia popular.
quatro anos. Mas os prefeitos parecem no governo. foram chamadas para atuar como protago-
presos a um projeto de gestão, não a um nistas nas decisões estratégicas. Com isso, DIPLOMATIQUE Mas a senhora acha isso fac-
projeto de cidade. Isso vale igualmente ERUNDINA Realmente, a falta de mobiliza- perdemos a grande oportunidade de ini- tível? Para quem está fora do jogo, parece
para a moradia, a educação, a saúde etc. ção social e participação popular são hoje ciar um novo processo político – processo evidente. Porém, colocar essa medida em
São Paulo é uma cidade que não tem es- agravantes concretos. A sociedade civil or- em que a ética fosse um pressuposto, não prática talvez não seja tão simples.
tratégia de desenvolvimento. Esse é um ganizada cumpriu um papel significativo uma virtude. Um governo de fato democrá-
de seus grandes problemas. nas décadas de 1970 e 1980, impulsionando tico não existe ainda, e há muitos setores ERUNDINA É factível, sim, mas não como so-
o processo de redemocratização do país. desestimulados. Claro, esse não é um pro- lução apenas local. O município não tem
DIPLOMATIQUE E o que resultou dos sucessi- Não só em São Paulo, mas no país inteiro, blema apenas do Lula. Muitas coisas acon- capacidade de ser o principal ator de uma
vos projetos de gestão? havia importantes segmentos mobilizados, teceram desde a fundação do PT. Fatores política habitacional que dê conta de toda a

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AGOSTO 2008 Le Monde Diplomatique Brasil 9

os problemas ambientais – como também


© AE/Alex Silva

os relativos aos transportes, à segurança e


outros – extrapolam a esfera do município.
No entanto, a Constituição de 1988 não
confere às regiões metropolitanas um real
poder de planejamento. Em vez da sinergia
de recursos e ações, o que existe é a compe-
tição entre os governos dos diferentes mu-
nicípios que integram a região metropoli-
tana – competição ditada por mesquinhas
disputas partidárias e eleitorais. É uma ir-
racionalidade gritante. Houve uma expe-
riência de consórcio intermunicipal para a
gestão da água. Mas não foi muito longe. É
preciso trazer o planejamento das regiões
metropolitanas para o centro do debate po-
lítico. Acho que as próximas eleições po-
dem proporcionar um momento privilegia-
do para isso.

DIPLOMATIQUE A senhora parece bastante


confiante na capacidade de as próximas
eleições suscitarem debates realmente
substantivos.

ERUNDINA Dom Tomás Balduíno costuma


dizer que “o novo é o povo quem cria”. Não
são os políticos nem os partidos. É por isso
que precisamos sempre plantar a semente
da mudança, senão desanimamos. A próxi-
ma eleição pode ser um instrumento para
isso. Aqui, em São Paulo, a candidatura de
Marta Suplicy talvez tenha a capacidade de
reaglutinar as forças de esquerda. Não por
ela ou pelo PT, porque, sozinhos, eles não
configuram um campo político à esquerda.
Mas pelas propostas que talvez se associem
ao seu nome. Sua campanha e seu governo
poderiam proporcionar espaços para agre-
gar muitas forças, inclusive as insatisfeitas
com Lula. E os movimentos sociais que
Erundina: “não temos perspectivas de mudanças imediatas, mas a história dá saltos.” protagonizaram as grandes mudanças a
que nos referimos antes e que hoje se en-
contram desmotivados certamente viriam
demanda. Diminuir o déficit habitacional e seria destinado a acabar com o déficit de seu papel. Pelo contrário, é alienante. A ju- juntos. Quem sabe saia desta eleição não
o enorme número de favelas, cortiços e vagas no ensino fundamental. A proposta, ventude está desorientada por padrões apenas uma candidata eleita, mas uma ar-
pessoas morando nas ruas é também uma porém, foi fortemente rejeitada, após uma consumistas e violentos. E o que dizer da ticulação capaz de gestar um novo proces-
questão de emprego e renda. A questão ur- violenta campanha de mídia contra a mi- absurda desigualdade de renda? Trata-se so político. Devido à enorme importância
bana é uma questão social, que deve ser re- nha gestão. de um problema de fundo. Precisamos econômica, social, política e cultural de
solvida pelo país de forma conjunta. Não construir um projeto político de longo pra- São Paulo, isso repercutiria no país inteiro.
precisamos apenas de um projeto de cida- DIPLOMATIQUE A senhora foi massacrada zo ou a tendência é que tudo isso se agrave. Não estou embarcando na candidatura da
de, mas também de um projeto de nação. pela mídia conservadora! Claro, não temos perspectivas de mudan- Marta achando que é disso que a cidade
ças imediatas, mas a história dá saltos. Du- precisa, mas em nome da oportunidade de
DIPLOMATIQUE É possível trazer temas ERUNDINA Na época, eu respondi que as rante a ditadura militar, tínhamos a sensa- gerar uma nova dinâmica capaz de atrair
dessa magnitude para o debate eleitoral pessoas contrárias à mudança no imposto ção de estar em um beco sem saída. No as pessoas interessadas em intervir, em
municipal? preferiam contratar seguranças privados entanto, o processo histórico-social foi se participar. Um fórum onde se discuta a ci-
para se proteger dos “trombadinhas” a gestando nos bastidores, nas entranhas da dade, as grandes questões urbanas e uma
ERUNDINA Eu acho que um candidato ou um mandar crianças para a escola. Mas não sociedade. E, de repente, as coisas aconte- gestão democrática capaz de abrir espaço
partido que se reivindique de esquerda e adiantou. Infelizmente, não há sensibilida- ceram! É por isso que temos de acreditar. para os movimentos sociais se expressa-
queira ocupar um campo diferenciado de- de social para entender que uma cidade Eu já dimensionei minhas expectativas não rem. Dessa forma, se iniciaria um novo ci-
ve centrar-se não só na questão ética, da mais justa é uma cidade melhor para todos. pelo meu tempo de vida, porque não vou clo de acumulação de forças. Antigamente,
honestidade e da transparência, mas tam- Aumentar a altura dos muros é investir no ver concretizado aquilo por que lutei, mas essas forças estariam em um partido políti-
bém no método de gestão. O que diferencia presente. Educação é investimento no fu- pela perspectiva histórica. A história se faz co, mas hoje não existe mais uma legenda
um governo democrático-popular de outro turo. É uma pena que em São Paulo ainda em séculos. que corresponda a tais expectativas. Justa-
sem essa vocação é justamente a inversão haja tão pouca solidariedade. Quem quer mente por isso devemos criar um espaço,
de prioridades, o investimento no social. Is- que se proponha a resolver esses problemas DIPLOMATIQUE Na perspectiva do século, com o pretexto da eleição, que dê condição
so pode soar óbvio, mas é a única alternati- em apenas quatro anos está se iludindo ou deste século, talvez o nosso maior desafio de ação política a todas as pessoas que pen-
va para diminuir o fosso entre uma minoria iludindo os outros. É preciso pensar a cida- seja a dimensão extremamente crítica as- sam a cidade e o país para além de um aca-
com altíssimo padrão de vida e a larga faixa de em escalas de tempo de 20 anos ou mais sumida pelos problemas ambientais. São nhado horizonte de quatro anos.
da sociedade excluída dos serviços e das ri- e investir pesadamente nisso. É preciso Paulo convive há décadas com a poluição
quezas produzidas na cidade. Apesar de mudar a cultura política: promover a trans- atmosférica, a ocupação de áreas de ma- DIPLOMATIQUE A mensagem que fica é, en-
não enxergar isso, a elite também é prejudi- parência, favorecer o controle social, esti- nanciais e outras agressões ao meio am- tão, de esperança?
cada pela deterioração geral. Ninguém vive mular a participação popular, aceitar a biente. É possível pensar em alguma ação
bem em São Paulo! Com o aumento da vio- atuação de um legislativo legítimo que eficaz no âmbito da gestão municipal? ERUNDINA Com certeza. Às vezes, nós só en-
lência, cresceu o número de pessoas que exerça de fato seu papel fiscalizador. En- xergamos o processo apenas a partir da di-
vivem cercadas por muros eletrificados e fim, trata-se de colocar o poder público a ERUNDINA A situação ambiental em São mensão pessoal, individual. Ela é muito
andam em carros blindados, acompanha- serviço dos interesses públicos. Paulo é gravíssima. Durante o meu gover- pobre. A história acontece além da nossa
das por escoltas privadas. A situação vem no, São Paulo tinha 9,5 milhões de habitan- compreensão, não é?
piorando ao longo dos anos. No período em DIPLOMATIQUE Tudo isso desemboca na tes. Hoje, são mais de 11 milhões – 20 mi-
que fui prefeita, tentei aprovar algumas questão da cidadania, de as pessoas se as- lhões se contarmos a região metropolitana.
propostas que alterariam essa realidade, sumirem como atores da história. Há uma conurbação generalizada. E, se as
como o IPTU progressivo. Os maiores pro- fronteiras são artificiais, é necessário um
prietários pagariam mais. Dessa forma, te- ERUNDINA Continuamos presos a uma con- planejamento em escala mais ampla, que * Maíra Kubík Mano, jornalista, é editora-assistente de Le
ríamos uma política tributária que funcio- cepção política muito atrasada, repleta de envolva todos os municípios do entorno. Monde Diplomatique Brasil e mestranda em Ciência Po-
naria como mecanismo de distribuição da projetos personalistas. A mídia, pelo menos Nosso ordenamento institucional privile- lítica da PUC-SP. José Tadeu Arantes é jornalista, escri-
riqueza, pois o montante arrecadado a mais grande parte dela, também não cumpre gia as esferas do município e do estado. Mas tor e professor, editor de Le Monde Diplomatique Brasil.

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10 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2008

MATÉRIA DE CAPA / CIDADES À BEIRA DO COLAPSO

A lógica da desordem
O modelo de exclusão territorial que define a cidade brasileira é muito mais do que a
expressão das diferenças sociais e de renda, funcionando como uma espécie de engrenagem
da máquina de crescimento que, ao produzir cidades, reproduz desigualdades
POR RAQUEL ROLNIK*

E
m menos de 40 anos, entre as dé- Excluídos do marco regulatório e dos siste- res condições de urbanidade é exclusivo Se essa foi a lógica predominante de
cadas de 1940 e 1980, a população mas financeiros formais, os assentamentos para quem já é parte deles. estruturação de nossas cidades ao longo
brasileira passou de predominan- precários foram autoproduzidos por seus Finalmente, a lógica da desordem se do processo de urbanização, as transfor-
temente rural para majoritaria- próprios moradores com os meios que se completa com o caráter predatório do mo- mações que definiram a nova fase do capi-
mente urbana. Impulsionado pela encontravam à sua disposição: salários bai- delo, que condena a cidade como um todo talismo impactaram fortemente a ordem
migração de um vasto contingente de po- xos, insuficientes para cobrir o custo da mo- a um padrão insustentável do ponto de urbanística. Como aponta Loïc Wacquant:
bres, esse movimento socioterritorial, um radia; falta de acesso aos recursos técnicos e vista ambiental e econômico. Em primeiro “Junto com a modernização econômica
dos mais rápidos e intensos de que se tem profissionais; e terras rejeitadas ou vetadas lugar, a concentração das oportunidades acelerada, provocada pela reestruturação
notícia, ocorreu sob a égide de um mode- pela legislação ambiental e urbanística para em um fragmento da cidade e a ocupação global do capitalismo, a cristalização de
lo de desenvolvimento urbano que privou o mercado imobiliário formal. extensiva de periferias cada vez mais dis- uma nova divisão internacional do traba-
as faixas de menor renda de condições bá- Assim, em terrenos frágeis ou áreas não tantes impõem um padrão de circulação lho (fomentada pela velocidade frenética
sicas de urbanidade e de inserção efetiva passíveis de urbanização, como as encos- e mobilidade dependente do transporte dos fluxos financeiros e dos trabalhadores
à cidade. Além de excludente, tal modelo tas íngremes e as várzeas inundáveis, além sobre pneus e, portanto, de alto consumo através de fronteiras nacionais porosas) e
mostrou-se também altamente concentra- das vastas franjas de expansão periférica energético e potencial poluidor3. Em se- o desenvolvimento de novas indústrias de
dor: 60% da população urbana vivem hoje sobre as zonas rurais, vai sendo produzida gundo lugar, a ocupação das áreas frágeis uso intensivo do conhecimento baseadas
em 224 municípios com mais de 100 mil a “cidade fora da cidade”, desprovida das ou estratégicas do ponto de vista ambien- em revolucionárias tecnologias da infor-
habitantes, dos quais 94 pertencem a aglo- infra-estruturas, equipamentos e serviços tal – como mananciais de água, complexos mação e geradoras de uma estrutura ocu-
merados urbanos e regiões metropolitanas que caracterizem a urbanidade. dunares ou mangues – é decorrente de um pacional dual, produziu-se a moderniza-
com mais de 1 milhão de habitantes. Ausentes dos mapas e cadastros de padrão extensivo de crescimento por aber- ção da miséria: a emergência de um novo
Concentrando incrementos econômi- prefeituras e concessionárias de serviços tura de novas fronteiras e expulsão perma- regime de desigualdade e marginalidade
cos/demográficos em algumas regiões do públicos, inexistentes nos registros de pro- nente da população mais pobre das áreas urbanas”5.
território e esvaziando as demais, esse mo- priedade dos cartórios, esses assentamen- ocupadas pelo mercado.
vimento é concentrador também no nível tos têm uma inserção ambígua nas cida- Esse padrão, regido por um mercado DESEMPREGO E DESINDUSTRIALIZAÇÃO
intra-urbano: em cada município carac- des onde se localizam. Modelo dominante ávido por lucros rápidos e confrontado No caso brasileiro, os efeitos dessas
terizado pelo crescimento e pela dinâmi- de territorialização dos pobres nas cidades com um território que sempre pareceu ser transformações se fizeram sentir princi-
ca urbana, as qualidades urbanísticas se brasileiras, sua consolidação é progressiva, uma vastidão sem limites, ditou a lógica de palmente nas metrópoles, em especial
acumulam em setores restritos, locais de mas sempre incompleta e dependente da produção do “novo”, expandindo os limites naquelas que se constituíram na fase do
moradia, negócios e consumo de uma mi- ação discricionária do poder público. da cidade de forma fragmentada e a par- capitalismo fordista, quando as esperan-
noria da população moradora. Essas áre- tir de iniciativas de proprietários de terra ças de modernização e integração por
as, ditas “de mercado”, são reguladas por e loteadores, ou arrasando e removendo o meio do emprego formal, da “casa pró-
um vasto sistema de normas, leis e contra- tecido construído para acolher os outros pria” e do acesso à educação e ao bem–
tos, que tem quase sempre como condi- produtos imobiliários destinados às parce- estar alimentaram identidades coletivas e
ção de entrada a propriedade escriturada
A concentração das las “solventes” dos moradores urbanos. E a fertilizaram as lutas pela inclusão territo-
e registrada. É ela a beneficiária do crédito oportunidades e a engenharia urbana mecanicista, que pro- rial e a reforma urbana.
e a destinatária do “habite-se”. Os terrenos ocupação extensiva das curou transformar a cidade em máquina Nos anos 1990, o desemprego (decor-
que a lei permite urbanizar, assim como os de produção e circulação, tratou sua geo- rente do processo de automação ou da
financiamentos que a política de crédito periferias impõem um grafia natural – os rios, os vales inundáveis, destruição de um parque industrial outro-
imobiliário tem disponibilizado, estão re- estressante padrão de as encostas – como obstáculo a ser supera- ra protegido por barreiras alfandegárias) e
servados ao restrito círculo dos que pos- do, terraplenando, aterrando e caucionan- a agenda do ajuste estrutural (que limitou
suem recursos e propriedade “formaliza-
circulação, que depende do do as águas, num desenho que procura mi- o gasto público, reduzindo as possibilida-
da” da terra em seu nome. transporte sobre pneus nimizar as perdas territoriais para o insaci- des de distribuição de benefícios) trans-
Para as maiorias, sobram as terras que ável mercado de solos. formaram a geografia da pobreza urbana
a legislação urbanística ou ambiental ve- O modelo urbanístico concentrador, e da vulnerabilidade social, com impac-
tou para a construção ou não disponibili- excludente e predatório, que estruturou a tos profundos na dinâmica de agregação
zou para o mercado formal, ou os espaços Ao delimitar as fronteiras que sepa- lógica da desordem de nossas cidades na societária do território popular e nas rela-
precários das periferias e as viagens coti- ram os regulares/formais dos irregulares/ passagem para uma economia e socieda- ções reais ou simbólicas que este estabele-
dianas “à cidade”. Embora não exista uma informais, o modelo de exclusão territo- de modernas, tem origens profundas na ce com o restante da cidade6.
apreciação segura do número total de fa- rial que define a cidade brasileira é mui- formação histórico-política brasileira. Tra- Essas mudanças introduziram novas
mílias e domicílios instalados em favelas, to mais do que a expressão das diferen- ta-se, nas palavras de Ronaldo Vainfas, da variáveis para a estruturação da cidade. As
loteamentos irregulares, loteamentos clan- ças sociais e de renda, funcionando como “obsessão diabólica pela riqueza fácil”4, grandes áreas da produção fordista foram
destinos e outras formas de assentamentos uma espécie de engrenagem da “máquina que perpassou o sistema colonial e regeu, sendo substituídas por uma economia de
marcados por alguma forma de precarieda- de crescimento que, ao produzir cidades, entre outros, os “ciclos” do açúcar, do ta- fluxos, desterritorializando-se e deixando
de urbanística e irregularidade administra- reproduz desigualdades”2. Em uma cida- baco, do ouro e dos diamantes. Evidente- grandes áreas urbanizadas vazias, muitas
tiva e patrimonial, é possível afirmar que o de dividida entre a porção rica, legal e in- mente, tal modelo, inscrito na ordem ad- vezes contaminadas, pelo caminho. O ter-
fenômeno está presente na maior parte da fra-estruturada e a porção pobre, ilegal e ministrativa que regula a cidade, não foi ritório popular se densificou, sobre uma
rede urbana brasileira. No vasto e diverso precária, a população em situação desfa- fruto de pactuação. Sua lógica é marcada base urbanística frágil e tosca, fruto de in-
universo dos 5.564 municípios que existem vorável acaba tendo muito pouco acesso por dois elementos constitutivos de nossa tervenções fragmentadas, desconectadas
hoje no Brasil, são raras as cidades que não às oportunidades econômicas e culturais cultura política: a indistinção e a ambigüi- e descontínuas, definidas e executadas na
têm uma parte significativa de sua popula- que o ambiente urbano oferece. O acesso dade entre o público e o privado e entre o temporalidade “da política”. O espaço me-
ção assentada precariamente1. aos territórios que concentram as melho- real e o legal. tropolitano da era industrial também se

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AGOSTO 2008 Le Monde Diplomatique Brasil 11

© GETTY IMAGES / Christopher Pillitz


O acesso aos territórios que concentram as melhores condições de urbanidade é exclusivo para quem já é parte deles.

transformou, expandindo-se sobre a zona lidade entre os territórios populares e o res- tação sociopolítica territorial resultante total de domicílios urbanos brasileiros, ou 16 milhões de
rural, redefinindo as fronteiras urbanas e tante da cidade. A essa formação de encla- famílias, das quais 12 milhões têm renda familiar mensal
dessa reconfiguração representa não ape-
abaixo de cinco salários mínimos.
espalhando enclaves como condomínios, ves “fora do controle estatal” corresponde, nas uma nova forma de estruturação urba-
2 Expressão empregada por João Sette Whitaker Ferreira
hipermercados e shopping centers. na outra ponta do espectro, a auto-segre- na, mas um desafio para a noção mesma no livro O mito da cidade global – O papel da ideologia na
A antiga dualidade centro-periferia se gação das elites e classes médias, gerando de cidade, na medida em que, nas palavras produção do espaço urbano (São Paulo, Vozes/Editora
desfez, para dar lugar a uma nova: lugares – esta também – territórios de exceção. Os de Marcelo Lopes Souza, induz a uma “ero- Unesp/Anpur, 2007).
seguros versus lugares violentos. A captura chamados “lugares seguros” são espaços fe- são bastante real das condições de exercí- 3 Sistemas de transporte de alta capacidade, baixo consu-
de assentamentos precários pelo comér- chados e exclusivos, nos quais a multiplici- cio da cidadania e busca de autonomia”, mo energético e baixo potencial poluidor, como os trens
e metrôs, requerem concentração de viagens e, portanto,
cio varejista de drogas impôs, nesses ter- dade da cidade não penetra. São cercados, requisitos indispensáveis para a constru-
alta densidade de ocupação ao longo das linhas, o que,
ritórios, uma nova sociabilidade, violen- murados, vigiados por câmaras e protegidos ção de um desenvolvimento urbano inclu- do ponto de vista do modelo de cidade, é bastante distin-
ta e implementada de forma paralela aos por dispositivos eletrônicos e um exército de dente e sustentável. to da necessidade de levar cotidianamente multidões
aparatos de segurança do Estado. Embora seguranças privados. Entre esses dois pólos, dispersas a seus locais de trabalho e devolvê-las a suas
presente em apenas alguns dos assenta- a “cidade das ruas”, estruturada a partir de casas no final do dia. A crise atual do modelo de mobili-
dade urbana, que atinge principalmente as metrópoles,
mentos precários do país, a territorializa- espaços e equipamentos públicos, fenece,
com conseqüências nos congestionamentos veiculares
ção das favelas pelo tráfico de drogas con- exposta e desprotegida, por não contar com e nos processos de aquecimento global decorrentes da
tribuiu para construir no imaginário urba- comandos e milícias nem com aparatos so- * Raquel Rolnik é urbanista, professora da Faculdade de emissão de gases de efeito estufa, é um dos sintomas
nístico a identificação de todas as favelas fisticados e guardas particulares7. Imediata- das “deseconomias” e impactos ambientais provocados
Arquitetura e Urbanismo da USP e relatora especial do
por esse modelo.
e periferias precárias do país com “lugares mente, o mercado traduz esse definhamen- Direito à Moradia Adequada do Conselho de Direitos Hu-
4 Ronaldo Vainfas, “A arte de furtar”, Folha de S.Paulo, Ca-
violentos”. Para citarmos novamente Wac- to em produtos imobiliários, estimulando, manos da ONU. Foi diretora de Planejamento da cidade derno Mais, 3/6/2007.
quant, “a nova marginalidade mostra uma com a ajuda de estratégias de marketing, o de São Paulo (1989-1992) e Secretaria Nacional de Pro- 5 Loïc Wacquant, Parias urbanos: marginalidad en la ciu-
tendência a aglomerar-se em áreas ‘irre- desejo por um paraíso asséptico, homogê- gramas Urbanos do Ministério das Cidades (2003- dad a comienzos del milenio, Buenos Aires, Manantial,
dutíveis’ e aonde ‘não se pode ir’, que são neo, imune às tensões e conflitos: vale dizer, 2007). 2007.
claramente identificadas – tanto por seus fora da cidade. 6 Orlando Santos Jr. e Luiz César de Queiroz Ribeiro, “Demo-
próprios residentes como por pessoas ex- cracia e segregação urbana: reflexões sobre a relação entre
1 A pesquisa Perfil Municipal (Munic-IBGE 2000) revela a
ternas – como poças urbanas infernais, re- FRAGMENTAÇÃO SOCIAL DO TERRITÓRIO cidade e cidadania na sociedade brasileira”, Revista Eure,
presença de assentamentos irregulares em quase 100%
volume XXIX, Santiago do Chile, dezembro de 2004.
pletas de privação, imoralidade e violên- A instalação das classes médias e altas das cidades com mais de 500 mil habitantes e 80% das
7 Marcelo Lopes de Souza, O desafio metropolitano: um
cia, onde somente os párias da sociedade nas periferias em assentamentos de baixa cidades com populações entre 100 mil e 500 mil. Até nos
estudo sobre a problemática sócio-espacial nas metrópo-
tolerariam viver”. densidade conectados a rodovias reatuali- municípios com menos de 20 mil habitantes, os assenta-
les brasileiras, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2000.
mentos informais aparecem em mais de 30% dos casos.
O impacto dessa configuração vai, no za a força do modelo centrípeto, que é um De acordo com estimativas do Ipea, baseadas em meto- 8 A perversidade, nesse caso, é que um dos principais argu-
entanto, além do aprofundamento da segre- dos responsáveis pela insustentabilidade dologia do UN-Habitat e em dados do Censo Demográfi- mentos de venda desses produtos são justamente suas
gação socioespacial, limitando a permeabi- de nosso sistema urbanístico8. A fragmen- co, estão nessa condição aproximadamente 40,5% do características “ecológicas”!

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MATÉRIA DE CAPA / CIDADES À BEIRA DO COLAPSO

O desafio das metrópoles


No Brasil, as grandes cidades foram utilizadas como fronteira amortizadora dos conflitos
sociais inerentes ao capitalismo concentrador e excludente que aqui se implantou. Por isso, as
metrópoles apresentam hoje os maiores obstáculos à nossa construção como nação
POR LUIZ CÉSAR QUEIROZ RIBEIRO *

O
destino das metrópoles está no Ao mesmo tempo, apesar do aumen- comando e direção das grandes cidades organizado essencialmente pela combina-
centro dos dilemas das socieda- to das assimetrias, as metrópoles amplia- na “economia em rede”. Isto é: concentra- ção entre as forças de mercado e um Esta-
des contemporâneas. As trans- ram seu papel indutor do desenvolvimen- ção populacional, capacidade de centra- do historicamente permissivo com todas
formações econômicas, sociais e to econômico das nações, como já mos- lidade, grau de inserção na economia de as formas de apropriação privatistas das
tecnológicas em curso desde a se- traram os trabalhos clássicos de J. Jacobs serviços produtivos e poder de direção cidades. Não se trata de constatar e pro-
gunda metade dos anos 1970, em especial (1969) e as pesquisas sobre a relação en- medido pela localização das sedes das curar entender a ausência do planejamen-
as decorrentes da globalização e da rees- tre a globalização e as metrópoles (Veltz, 500 maiores empresas do país, pelo volu- to governamental no intenso e acelerado
truturação socioprodutiva, aprofundaram 1996; 2002). Porém, para tanto, as metró- me total das operações bancárias/finan- processo de urbanização, que transferiu
as dissociações engendradas pelo capita- poles devem ser mais do que meras plata- ceiras e pela massa de rendimento men- para a cidade 8 milhões de pessoas na dé-
lismo industrial entre progresso material formas de atração de capitais fundadas na sal1. O mapa que acompanha este artigo cada de 1950, 14 milhões na de 1960 e 17
e urbanização, economia e território. Se- lógica do rebaixamento dos custos. A re- fornece uma representação gráfica da dis- milhões na de 1970. A omissão planejadora
gundo previsões de organismos interna- dução dos custos da distância e as vanta- tribuição e da hierarquia dos grandes es- do Estado decorreu da utilização da cidade
cionais, em 2015 teremos 33 aglomerados gens pecuniárias – produtos da revolução paços urbanos brasileiros. como uma espécie de fronteira amortiza-
urbanos do porte de megalópoles, dentre dos meios de transportes e comunicação e Os 15 espaços considerados metropo- dora dos conflitos sociais inerentes ao ca-
as quais 27 estarão localizadas em países dos novos sistemas de gestão empresarial litanos têm enorme importância na con- pitalismo concentrador e excludente que
em desenvolvimento. Apenas Tóquio será – contam hoje menos do que os efeitos de centração das forças produtivas nacionais. aqui se implantou.
a grande cidade do mundo rico. aglomeração decorrentes da densificação Eles centralizam 62% da capacidade tecno- Por esse motivo, as metrópoles estão
Por outro lado, enquanto boa parte das relações sociais, culturais e intelectu- lógica do país, medida pelo número de pa- hoje despreparadas, material, social e ins-
das metrópoles do Hemisfério Sul con- ais. As metrópoles devem, portanto, cons- tentes, artigos científicos, população com titucionalmente, para o crescimento eco-
tinuará a apresentar taxas explosivas de tituir-se em meios sociais capazes de pro- mais de 12 anos de estudo e valor bruto nômico baseado na dinâmica da inovação,
crescimento demográfico, dissociadas do mover a inovação, a confiança e a coesão da transformação industrial (VTI) da em- na economia do conhecimento e na efici-
necessário progresso material, aquelas social, tornando-se veículos da junção en- presas que inovam em produtos e proces- ência que mobilizam não apenas a lógica
que concentram as funções de coordena- tre Estado e nação. sos. Nessas 15 metrópoles estão concen- do mercado, mas também os efeitos positi-
ção, direção e comando dos fluxos econô- Apesar de seus desequilíbrios, o nosso trados também 55% do valor de transfor- vos da coesão social. Nelas está conforma-
micos mundiais encolherão relativamen- sistema urbano constitui importante ati- mação industrial das empresas que expor- do um conjunto de passivos cujo enfreta-
te de tamanho. Teremos então duas con- vo para o desenvolvimento nacional. Ele tam. Temos, portanto, um sistema urbano mento é imperativo para que forças produ-
dições urbanas: a gerada pela vertiginosa é composto por 37 grandes aglomerados que pode ser considerado importante ati- tivas consteladas na complexidade de nos-
concentração populacional em grandes urbanos onde residem aproximadamente vo para um projeto de desenvolvimento sa rede urbana possam alavancar o desen-
cidades, nos países em processo de “des- 45% da população (76 milhões de pessoas) nacional, perante as novas tendências de volvimento nacional.
ruralização”, induzido pela incorporação e se concentram 61% da renda nacional. transformação do capitalismo. Examinaremos três dimensões desses
do campo ao espaço mundial de circula- Entre os 37 grandes aglomerados urba- Mas, ao mesmo tempo, nelas estão passivos. Tomemos, em primeiro lugar, as
ção do capital; e a decorrente da concen- nos, temos 15 metrópoles, isto é, aglome- concentrados também os grandes desafios conseqüências dessa “política urbana per-
tração do capital, dos recursos de bem-es- rados que apresentam características pró- a serem enfrentados, na forma de passivos versa” sobre a mobilidade espacial. Inexis-
tar social e do poder. prias das novas funções de coordenação, resultantes de um modelo de urbanização tem sistemas públicos e coletivos de trans-

A CONCENTRAÇÃO DENTRO DAS REGIÕES METROPOLITANAS


Belém
Distribuição do PIB e da população nos municípios, segundo o seu nível
de integração ao pólo da metrópole
Fortaleza
Natal
60

Recife

40
Salvador
Brasília

Belo
Goiânia Horizonte 20
GRANDES
ESPAÇOS URBANOS Espírito
Espírito
Espírito Santo
BRASILEIROS
Santo

Maringá
Rio de Janeiro
Rio de Janeiro 0
São Paulo PIB 2003 POP. ESTIMADA 2004 INCREMENTO POP.
1991/2000
Curitiba
Florianópolis

Pólos Muito alto Alto Médio Baixo Muito baixo


Porto Alegre
Elaboração Observatório das Metrópolis 2008
Fonte: IBGE

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AGOSTO 2008 Le Monde Diplomatique Brasil 13

portes urbanos nas metrópoles capazes de sos, o emprego de parcelas consideráveis diante a lógica mercantil, dos territórios orfandade política? Até quando será pos-
estruturar o uso e a ocupação do espaço da renda no aluguel. populares marginalizados, com a cons- sível conciliar o processo de democrati-
e, ao mesmo tempo, se contrapor à sub- Essas características não estão homo- tituição de mercados paralelos de mora- zação com a manutenção de tamanhas e
missão ao transporte individual e priva- geneamente presentes em todas as me- dias (sem titulação formal), de seguran- gritantes disparidades sociais?
do, hoje gerador de enormes “desecono- trópoles, pois são altamente influencia- ça pública (sujeitos à ação de milícias Em resumo, o sistema urbano-metro-
mias” urbanas. Os últimos números so- das pela história das formas de produção privadas) e de serviços coletivos (“ga- politano brasileiro contém forças produ-
bre São Paulo são impressionantes: no dia da moradia popular e do regime político tonet”, “gatogás”, “gatoluz”) – fato que tivas potencialmente capazes de susten-
3 de abril de 2008, o índice de congestio- de gestão do território urbano. Em São aprofunda a separação da população tar um novo modelo de desenvolvimento.
namento atingiu a marca 229 quilômetros. Paulo, por exemplo, as favelas apresen- que neles mora das instituições garanti- Depende da capacidade de a sociedade
Mas, como era de esperar, as conseqüên- tam maior precariedade quanto ao tipo doras da coesão social por meio dos di- brasileira instituir um verdadeiro Progra-
cias dessa irracionalidade não atingem de terreno ocupado e maior afastamen- reitos de cidadania; ma de Reforma Urbana que transforme as
igualmente a todos. A “São Paulo dos ne- to das áreas centrais. Ermínia Maricato • a difusão de uma sociabilidade violen- metrópoles em metropolis, ou seja, em ur-
gócios” paira acima do inferno do trânsi- (1996) estima que 49,3% das favelas da ci- ta2 como ordem social e suas conse- bes, civitas e polis.
to, movimentando-se com a utilização da dade de São Paulo estão localizadas em qüências na vida coletiva prevalecente
segunda maior frota particular de helicóp- beira de córrego, 32,2%, em terrenos su- nesses territórios;
* Luiz César Queiroz Ribeiro é professor titular do Insti-
teros do mundo, com cerca de 500 apare- jeitos a enchentes, 29,3% foram constru- • a tendência à concentração territorial
tuto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional
lhos. Enquanto os “players do mercado” ídas em terrenos com declividade acen- dos segmentos vivendo relações instá- (Ippur) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ufrj),
circulam pelo ar, os trabalhadores enfren- tuada e 24,2%, em terrenos sujeitos à ero- veis com o mercado de trabalho e seu pesquisador IA do CNPq e coordenador do Observatório
tam as conseqüências desse modelo de ur- são. Os mapas de localização das favelas conseqüente isolamento sociocultural das Metrópoles/Instituto do Milênio-CNPq. (www.obser-
banização, buscando formas de estar pró- de São Paulo evidenciam o seu distancia- em relação ao conjunto da cidade. vatoriodasmetropoles.net).
ximos aos espaços onde se concentram os mento em relação ao núcleo econômico Os três mecanismos se reforçam
empregos e a renda. O gráfico que acom- e social da metrópole, mas em áreas que mutuamente, transformando a segregação 1 Para mais detalhes sobre os procedimentos e indicadores
panha este artigo nos fornece uma visão permitem o acesso. Em compensação, os residencial em uma das principais mar- utilizados, consultar o documento “Análise das Regiões
da pressão demográfica pela centralidade. cortiços parecem constituir estratégia de cas da atual ordem urbano-metropolitana. Metropolitanas do Brasil. Relatório de atividade 1: identifi-
cação dos espaços metropolitanos e construção de tipo-
Ele traz o grau de concentração do PIB, da proximidade, em razão de sua localização Observamos, em nossos estudos, evidên-
logias”, disponível no site www.observatoriodasmetropo-
população residente e do incremento de- nas áreas mais centrais. Já na região me- cias empíricas nessa direção. Além das já les.net. Ver também Ribeiro e Santos Junior (2007).
mográfico nos pólos e nos quatro graus de tropolitana do Rio de Janeiro, o regime ur- conhecidas tendências ao auto-isolamen- 2 Pode-se apresentar como característica mais essencial
integração aos pólos dos municípios que bano permite um modelo de proximida- to das camadas superiores em cidadelas da sociabilidade violenta a transformação da força, de
meio de obtenção de interesses, no próprio princípio de
compõem as 15 metrópoles. de das favelas com os bairros que concen- fortificadas – conhecidas como “condomí-
regulação das relações sociais estabelecidas (Machado,
A pressão pela ocupação das áreas cen- tram as moradias dos segmentos superio- nios fechados” –, constatamos a formação 2004b)
trais resulta da combinação das transforma- res da estrutura social, conforme descrito de territórios concentrando uma popula-
ções do mercado de trabalho ocorridas nos por Ribeiro e Lago (2001). ção que vive o acúmulo de vários proces-
anos 1980 e 1990 – cujo principal traço é o Ao lado desse conflito, as metrópoles sos de vulnerabilização social. São bairros BIBLIOGRAFIA
crescimento da ocupação informal, transi- brasileiras estão concentrando também periféricos e favelas onde habitam pessoas
tória ou precária, especialmente no setor de os aspectos mais dramáticos da crise de que mantêm laços instáveis com o merca- ESPING, A. O futuro do Welfare State na nona ordem mun-
serviços, e sobretudo nos serviços pessoais sociabilidade, cujo lado mais evidente é do de trabalho e vivem sob condições de dial, Lua Nova – Revista de Cultura e Política, 1995, núme-
ro 35.
e domésticos – com a reconhecida crise da a exacerbação da violência. Os dados so- fragilização do universo familiar – territó-
FURTADO, C. Brasil: a construção interrompida. Rio de Janei-
mobilidade urbana e o colapso das formas bre a criminalidade violenta nas metró- rios que tendem a concentrar uma espécie ro: Paz e Terra, 1992
de provisão de moradia. Como a riqueza poles brasileiras são tão impressionantes de “capital social negativo”, segundo a ter- ____. O Brasil pós-“milagre”. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
continua concentrada nos municípios-pólos que levaram o historiador Luiz Mir (2004) minologia de Wacquant (1998). 1981.
JACOBS, J., La economía de las ciudades. Barcelona Edicio-
pode-se concluir que uma das principais ca- a cunhar a expressão “metrópoles da mor- Em estudo realizado pelo Observató-
nes Península. 1969.
racterísticas da dinâmica socioterritorial nas te”: a taxa de homicídios dobrou em 20 rio das Metrópoles (Ribeiro, 2007), cons- MACHADO, L. A. Sociabilidade violenta: por uma interpreta-
metrópoles é o conflito pela centralidade na anos; a média da taxa de vítimas de homi- tatamos que o risco de jovens de 17 a 24 ção da criminalidade contemporânea no Brasil urbano, In
ocupação e uso do solo urbano. cídio, entre 1998 e 2002, foi de 46,7 vítimas anos ficarem em situação de “desafiliação Ribeiro, L. C. R (org.). Metrópoles. Entre a coesão e a frag-
por 100 mil habitantes. Esse valor está bem institucional” (ou seja, sem estudar, sem mentação, a cooperação e conflito, Rio de Janeiro, Editora
Revan/Observatório das Metrópoles/FASE, 2004a.
TROCARAM O ÔNIBUS PELO PAR DE TÊNIS acima da média nacional, que, no mesmo trabalhar, nem procurar ocupação) au-
____. Sociabilidade violenta: uma dificuldade a mais para a
As duas outras expressões desse con- período, foi de 28,6. Ou seja, a incidência menta 30% se moram em bairros com for- ação coletiva nas favelas, In Rio. A democracia vista de
flito são, de um lado, a imobilidade de de homicídios nas regiões metropolitanas te concentração de responsáveis por do- baixo, Rio de Janeiro, Ibase, 2004b.
parte da população trabalhadora e, de é quase duas vezes maior que a incidência micílios que mantenham frágeis e instá- MARICATO, E. Metrópole na periferia do capitalismo, São
Paulo, Hucitec, 1996.
outro, a reprodução da precariedade do nacional. Como é sabido, as vítimas de ho- veis laços com o mercado de trabalho. E
MIR, L. Guerra civil. Estado e trauma, São Paulo, Geração
habitat urbano. Nos últimos nove anos, micídio concentram-se no segmento dos que o risco de “desproteção escolar-fami- Editorial, 2004.
nas principais metrópoles, nada menos jovens do sexo masculino. liar” de crianças e jovens de 4 a 14 anos OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES (2004). Índice de Ca-
de 26% dos brasileiros que hoje vegetam O terceiro aspecto decorre das co- aumenta 28%. rência Habitacional. Observatório das Metrópoles/Metro-
com renda familiar abaixo de R$ 500 tro- nexões entre a segregação residencial e As metrópoles, que apresentam ex- data. Ippur-Ufrj/Fase. Disponível em: http://www.ippur.ufrj.
br/observatório/metrodata/ich/index.html. Acesso em nov.
caram o ônibus pelo par de tênis! Outros os mecanismos de reprodução das desi- pressivos traços das forças produtivas re-
2004.
13%, pela bicicleta. Estudos têm estimado gualdades sociais. A utilização da cidade queridas pelo novo modelo de desenvol- ____. Análise das Regiões Metropolitanas do Brasil. Relatório
que, se os trabalhadores das regiões me- como fronteira amortizadora dos confli- vimento, geram condições de vida e estru- da atividade 2: Tipologia social e identificação das áreas
tropolitanas utilizassem de maneira pro- tos implicou a instituição de um regime turas bastante desfavoráveis à reprodu- vulneráveis. Convênio Ministério das Cidades/Observató-
rio das Metrópoles/Fase/Ipardes. Brasília, 2005. 60 p.
dutiva o tempo gasto em transporte, tal dual de bem-estar, combinando a varian- ção social e, conseqüentemente, à coesão
Disponível em http://www.observatoriodasmetropoles.
fato acarretaria, em um ano, um aumento te “familístico-mercantil” (Esping-Ander- social. Estão, portanto, no coração dos di- ufrj.br/produtos/produto_mc_2.pdf
de cerca de R$ 55 bilhões na renda do tra- son, 1995) com a atuação de um Estado lemas atuais da nação brasileira. Em seu ____. Análise das Regiões Metropolitanas do Brasil. Relatório
balho (em valores de março de 2004). Nas de bem-estar social seletivo. Foram trans- solo, estão concentrados e dramatizados da atividade 1: identificação dos espaços metropolitanos
metrópoles de São Paulo e Rio de Janeiro, feridas para as famílias e comunidades as os efeitos da disjunção entre economia, e construção de tipologias. Convênio Ministério das Cida-
des/Observatório das Metrópoles/Fase/Ipardes. Brasília,
onde as distâncias dos bairros periféricos principais funções de reprodução social, sociedade e nação inerentes a nossa con-
2005. 118 p. Disponível em http://www.observatoriodas-
à cidade-pólo são as maiores, essa perda ao mesmo tempo que se instaurou uma dição histórica de periferia da expansão metropoles.ufrj.br/produtos/produto_mc_1.pdf
potencial corresponde, em cada uma de- perversa política urbana de tolerância to- capitalista, acelerados pela subordinação OLIVEIRA, F. “O ornitorrinco”, In Crítica à razão dualista. São
las, a 26% da massa de renda apropriada tal para com todas as formas e condições à globalização hegemonizada pelo capital Paulo, Boitempo, 2003
RIBEIRO, L. C. Q. & LAGO, L. “The Favela/(Formal) neighbor-
pelos trabalhadores. Em outros termos, o de ocupação da cidade, tanto pelo capital financeiro.
hood contrast in the social of Rio de Janeiro”, In DISP 147
aumento da eficiência da circulação po- quanto pelo trabalho. A fisionomia, a or- Planning in Brazil (4/2001), Zürich, 2001.
deria ter um impacto muito positivo na ganização do território, a vida social, en- POR QUE TÃO POUCO TEM SIDO FEITO? RIBEIRO, L. C. Q. A dimensão metropolitana da questão so-
diminuição da pobreza, com repercus- fim, todos os aspectos de nossa realidade Devemos ser capazes de construir cial: ensaio exploratório. Trabalho apresentado no XXXI
sões adicionais no aumento da produtivi- urbana expressam as várias facetas desse respostas às ameaças de descoesão so- Encontro Nacional da Associação de Pós-Graduação em
Ciências Sociais – Anpocs, Caxambú, 22 a 26 de outubro
dade da economia. regime de reprodução social. cial, sem o que nenhuma mudança de
de 2007,
Os trabalhadores que conseguem se Hoje, podemos dizer que atravessa- rumo do transatlântico da economia es- RIBEIRO, L. C. de Q., SANTOS, JUNIOR (orgs.) As metrópo-
infiltrar na centralidade metropolitana tro- mos, nas grandes metrópoles, uma crise tabilizada e solvável será possível ou terá les e a questão social, Rio de Janeiro, Editora Revan/Ob-
cam a imobilidade pela precariedade habi- decorrente da fragilização desse regime sentido. Lembrando Celso Furtado, diría- servatório das Metrópoles, 2007.
VAN ZANTEN, A. L´École de la périphérie, scolarité et ségré-
tacional. As favelas são a sua mais eviden- dual de bem-estar, cujos mecanismos são mos como ele que, nas metrópoles, es-
gation en banlieu., Paris, PUF. 2001.
te expressão. Nas 15 metrópoles, quase três as transformações do mundo do trabalho tão concentrados os processos que inter- VELTZ, P., Mondialisation. Villes et territoires. L’économie
quartos dessas moradias se distribuem por e a fragilização das estruturas sociais nos rompem a nossa construção como nação. d’archipel. Paris, Presses Universitaires de France. 1996.
um raio de até 10 quilômetros a partir dos planos da família e do bairro, combina- Mas cabe, então, perguntar: se enfrentar a VELTZ, P. , Firmes et territoires. Je t’aime moi non plus. Semi-
pólos. As características da precariedade dos com os mecanismos de segregação re- questão social é uma necessidade simul- nario Entrepreneurs, Villes et Territoires. Paris, École de
Paris du Management, 2002. Disponível em http://www.
habitacional são a ilegalidade, a irregulari- sidencial. A fragilização das estruturas so- taneamente social e econômica, além de
ecole.org/seminaires/FS4/EV_03/EV_090102.pdf
dade, a construção em solos pouco propí- ciais familiar-comunitárias tem ocorrido um imperativo moral, por que tão pouco WACQUANT, L. Negative social capital. State breakdown
cios à função residencial, o adensamento pela ação de três tendências: tem sido feito? Por que a questão metro- and social destitution in American´s urban core, Neth J. of
da ocupação da moradia e, em muitos ca- • a crescente incorporação à cidade, me- politana tem sofrido de uma ameaçadora Housing and Building Environment, vol. 13, 1988.

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14 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2008

MATÉRIA DE CAPA / CIDADES À BEIRA DO COLAPSO

Utopias tecnocráticas
Em ritmo acelerado, nada menos do que 15 complexos urbanos estão em construção em países
como Arábia Saudita, Bahrein, Catar, Emirados Árabes Unidos, Kuwait e Omã. Mas os problemas ambientais,
econômicos, sociais e culturais provocados por esse boom não são pequenos nem fáceis de resolver
POR NOSSO ENVIADO ESPECIAL AKRAM BELKAÏD, JORNALISTA

F
az quase 50 graus à sombra. Fortes Se os especialistas ambientais do mun- leste a oeste, de norte a sul, uma floresta de fi, um jovem motorista de táxi do Bahrein
rajadas varrem a superfície de areia do todo saúdam o projeto de Masdar, que gruas parece cobrir os seis países do Con- que espera economizar dinheiro suficien-
e pedras, provocando um turbilhão tem o apoio do WWF (World Wide Fund for selho de Cooperação do Golfo (CCG)1: se- te para adquirir um dos imóveis previstos
de cor ocre. Aqui, à margem do Gol- Nature, ou Fundo Mundial para a Nature- gundo uma estatística regularmente cita- para Durrat al-Bahrain. Essa nova cidade
fo Pérsico-Arábico, a 30 quilôme- za), os economistas da região se mostram da na imprensa econômica internacional, se estenderá, ao sul da ilha, sobre 15 ilho-
tros a leste de Abu Dhabi, se erguerá, até divididos quanto à sua pertinência econô- a região mobilizaria atualmente cerca de tas artificiais em forma de meia-lua, por
2016, a nova cidade de Masdar, cujo nome, mica – sem, no entanto, manifestar a mes- um terço do parque mundial dessas má- uma superfície de 21 quilômetros quadra-
em árabe, significa “fonte”. “Não será a fu- ma severidade mostrada em relação a al- quinas. Os resultados: arranha-céus, sedes dos. Deverá ficar pronta em 2015 e mobi-
tura capital dos Emirados Árabes Unidos, guns canteiros turísticos que desafiam a de multinacionais, hotéis de luxo, comple- lizar um investimento de 4 bilhões de dó-
porém representará bem mais do que isso. razão e o bom gosto, como, por exemplo, xos turísticos e nada menos de 15 cidades lares.
Será a primeira cidade totalmente ecoló- a clínica de cirurgia estética inteiramente novas em construção. “E esse número não Para entender o segundo fator, é pre-
gica do mundo”, entusiasma-se meu guia, submarina projetada ao largo de Dubai. inclui as ampliações de cidades já existen- ciso saber que a construção de novas ci-
apontando para os canteiros de obras bas- “Masdar beneficia-se do impacto da tes. No entanto, uma cidade como Dubai, dades propicia, além do desenvolvimento
tante avançados que circundam o sítio. novidade”, admite um alto economista de que triplicou sua área em menos de dez meteórico de várias empresas regionais de
Mais a leste, o novo aeroporto interna- um grande banco de Abu Dhabi. “Construir anos, pode legitimamente ser considera- engenharia civil, o aparecimento de cen-
cional surge da terra, ao passo que, ao nor- uma cidade que consumirá apenas 25% da da uma cidade nova”, observa o arquiteto tros urbanos dedicados à diversificação
te, está sendo concluído um imenso com- energia e 40% da água que seriam necessá- Mussa Labidi, que divide seu tempo entre econômica.
plexo turístico na ilha de Yas, com circuito rias para qualquer outra cidade equivalen- o Magreb e o Golfo. Foi este principalmente o caso da Ará-
de Fórmula Um. No momento, os 6 quilô- te no Ocidente é realmente um feito. Mas O fenômeno das novas cidades no Gol- bia Saudita, que conta com sete cidades
metros quadrados sobre os quais se ergue- a questão é saber se não se tratará de uma fo se explica por dois fatores principais, em construção em uma área total de 450
rá Masdar permanecem pouco movimenta- pequena encenação destinada a fazer com que os economistas resumem com a ex- quilômetros quadrados, mobilizando um
dos, com exceção de algumas máquinas de que as pessoas se esqueçam de que os pa- pressão “Duplo D”: demografia e diversifi- investimento total de 500 bilhões de dó-
terraplenagem imóveis e de um punhado íses do Golfo figuram entre os maiores po- cação econômica. Para explicar o primei- lares. Longe de qualquer publicidade os-
de topógrafos de gestos lentos. luidores do planeta.” ro “D”, bastam alguns dados quantitativos: tensiva e do marketing ecológico, o reino
Segundo o escritório do arquiteto bri- Além da exploração de hidrocarbone- a demanda por imóveis aumenta todo ano wahabita aproveitou o aumento de suas
tânico Norman Foster, responsável pela tos, a região abriga importantes indústrias 20%, fazendo crescer um déficit já estima- receitas petrolíferas para fundar essas no-
concepção do projeto, Masdar será “a pri- poluidoras (petroquímica, alumínio, des- do em cerca de meio milhão de habitações. vas unidades urbanas, oficialmente cha-
meira cidade a não emitir gás carbônico e salinização da água do mar). E seu modo Tal penúria é resultado do aumento da po- madas de “cidades econômicas”, cujo con-
a não descartar resíduos, graças ao empre- de vida consumista se traduz, ano após pulação local e do afluxo incessante de tra- ceito se assemelha ao dos “clusters” anglo-
go exclusivo de energias renováveis, entre ano, no aumento do lixo doméstico. Em balhadores estrangeiros qualificados. De- saxões.
as quais a solar e a eólica, e à prática siste- 2005, apenas a cidade de Dubai produziu vido à crise de moradia e à inflação, estes A construção de uma delas, a King Ab-
mática da reciclagem”. A cidade disporá de 120 milhões de toneladas de lixo, cifra que últimos consagram em média quase a me- dullah Economic City (Kaec), foi iniciada
uma central fotovoltaica para a alimenta- pode triplicar até 2014. Basta assistir ao in- tade de seus polpudos salários ao aluguel em dezembro de 2005 e deve terminar em
ção elétrica, e suas construções, ditas “in- cessante balé noturno dos caminhões de – uma proporção que corre o risco de au- 2016. Bem mais imponente que Masdar ou
teligentes”, produzirão, sua própria ener- lixo em Abu Dhabi, Dubai, Doha ou Ma- mentar no decorrer dos próximos meses. Durrat al-Bahrain, a cidade do rei Abdullah
gia. Não será admitido nela nenhum veí- nama, para perceber como os países da re- “As novas cidades no Golfo devem também se espalhará por 168 quilômetros quadra-
culo a combustão, e muros, que a protege- gião podem progredir em matéria de pro- reter os estrangeiros, que contribuem para dos e custará 27 bilhões de dólares. Situada
rão do deserto, também contribuirão para dução de lixo. o boom econômico da região”, estima o às margens do Mar Vermelho, próxima à ci-
a ventilação, por meio de canalizações des- “Queremos fazer de Masdar um exem- economista Marios Maratheftis, que traba- dade de Djedda, ela comportará um porto
tinadas a captar os ventos marinhos. plo a ser seguido”, responde um alto dirigen- lha na Standard Chartered. “Se eles partis- para contêineres, uma fundição de alumí-
Pela bagatela de 22 bilhões de dóla- te do emirado, que rejeita a insinuação de sem em razão de dificuldades para morar, nio, um terminal com capacidade para aco-
res, segundo a estimativa total, Masdar que a construção da nova cidade tenha o ob- isso constituiria um duro golpe na atrativi- lher 500 mil peregrinos de passagem para
poderá acolher 50 mil habitantes e mais jetivo de melhorar a imagem de Abu Dhabi. dade do Golfo.” Meca e milhares de habitações coletivas to-
de mil empresas especializadas em no- “Com essa cidade, nós definimos um mode- Mas a questão não diz respeito apenas talizando 2 milhões de habitantes.
vas tecnologias e energias verdes. “Os lo mundial em matéria de desenvolvimento aos estrangeiros. De Bahrein ao Kuwait, as “Essa cidade constitui o coração do
habitantes de Masdar serão beneficiados sustentável. Se não é possível mudar a situa- novas gerações também sofrem com a fal- dispositivo saudita em matéria de no-
com a melhor qualidade de vida do mun- ção dos grandes centros urbanos que já exis- ta de moradias, que, aliada à dificuldade vas cidades econômicas”, diz a Saudi Ara-
do, em uma cidade totalmente voltada tem no Golfo ou em outros lugares, devemos para encontrar emprego, só faz avivar as bian General Investment Authority (Sa-
para a pesquisa em matéria de proteção realmente fazer com que as futuras cidades tensões sociais. “Não sou o único a esperar gia), o organismo encarregado dos proje-
ambiental”, promete o sultão Ahmad al- da região sejam compatíveis com a luta con- que essas cidades fiquem prontas. As pes- tos das novas cidades. “Ela deve assegurar
Jaber, diretor geral do Abu Dhabi Futu- tra a poluição e o aquecimento global.” soas da minha idade não têm meios para o desenvolvimento industrial da região
re Energy Company, o organismo estatal Masdar, na realidade, não representa o comprar casas comparáveis àquelas cons- de Djedda, oferecendo novas possibilida-
encarregado do projeto. único projeto de nova cidade no Golfo. De truídas por seus pais”, declara Ali al-Wa- des de moradia aos sauditas.” Outras no-
AGOSTO 2008 Le Monde Diplomatique Brasil 15

MICROCRÉDITO

© REUTERS/Steve Crisp
Vista de Dubai, capital dos Emirados Árabes Unidos: cenário futurista alimentado pelo dinheiro farto do petróleo.

vas cidades privilegiam a “economia do al, baseado na grande dependência em re- tentar as novas construções”, lamenta um problema é que as classes médias do Golfo
conhecimento”, como a Knowledge Eco- lação aos empregados estrangeiros em um universitário de Bahrein. “A gravidade dos correm o risco de não dispor do poder de
nomic City, projetada nas proximidades contexto de desemprego importante dos danos resulta da força das lógicas econô- compra indispensável para se instalar ali,
da cidade de Medina, que as autoridades jovens sauditas.” micas, cada vez mais poderosas.” a menos que se endividem ainda mais.” No
sauditas desejam tornar a equivalente re- Tratando-se da cidade do rei Abdul- Esse ponto de vista é relativizado por final de junho, uma nota do Banco Central
gional do Vale do Silício. lah, vários especialistas sauditas temem Doug Watkinson. Vice-presidente encar- dos Emirados Árabes Unidos alertava efeti-
Por mais imponente que seja, o progra- também que seu sucesso ocorra em de- regado do desenvolvimento de Bahrain vamente contra o endividamento com mo-
ma de cidades econômicas da Arábia Sau- trimento de Djedda, pulmão econômico Bay, um projeto de nova cidade ao nor- radias provocado pela especulação, reco-
dita não convenceu todos os especialistas. da parte ocidental do reino. “As duas ci- te de Manama, que custará cerca de 3 bi- mendando aos bancos da região que limi-
Muitos deles, inclusive os locais, pergun- dades correm o risco de desempenhar o lhões de dólares, o homem, com roupa de tassem a concessão de créditos imobiliá-
tam se, uma vez entregues, esses proje- mesmo papel, principalmente no que diz obra e guiando um veículo 4x4, tem um rios. Assim, esse documento fez voltar à
tos não se parecerão com tantas fábricas e respeito à atividade portuária”, preocu- real prazer em visitar seu canteiro cruzado tona as suspeitas relativas à iminência de
instalações importadas prontas pelos paí- pa-se Omar al-Badsi, agente marítimo. “É por imponentes caminhões. A quase tota- um crash.
ses do Terceiro Mundo e que não são usa- preciso assegurar-se de que não ocorrerá lidade dos 2 quilômetros quadrados foi to- “Construir uma nova cidade não signi-
das jamais. “A aposta consiste em ir mais uma transferência de atividades, pois os mada do mar, mas ele nega a idéia segun- fica simplesmente erguer as paredes e es-
longe na industrialização do país”, explica trabalhadores que moram em Djedda po- do a qual esta “land reclamation” seria pre- perar pelo comprador, mesmo que ele seja
um executivo do Saudi British Bank (Sabb). dem não ter como investir em moradias judicial ao meio ambiente. “Nossa técnica um estrangeiro rico”, conclui Salah H. A.
“Essas futuras cidades e as atividades eco- na nova cidade.” mostrou seu valor na Ásia, principalmen- Miri, arquiteto e diretor geral do The Blue
nômicas que abrigarão não poderão sobre- Outra dificuldade: o impacto dessas te em Cingapura e em Hong Kong, e não City, um projeto de nova cidade no Sulta-
viver se não se inserirem na globalização, o construções sobre o meio ambiente. Não causou maiores danos. E a aplicamos mui- nato de Omã, cuja primeira fase terminará
que implica a instalação, em seu seio, de se trata apenas de futuros resíduos atmos- to mais facilmente nas águas do Golfo, em em 2011. “É preciso também se inserir na
empresas estrangeiras. Isso está longe de féricos dos centros industriais, mas tam- razão da pouca profundidade.” tradição cultural da região, de modo a não
estar garantido, mesmo sendo boa a con- bém da deterioração infligida às águas do Resta ainda outra incógnita. Qual será, desorientar as populações. Hoje, a abun-
juntura econômica atual.” Golfo. Em Abu Dhabi e em Dubai, como ao longo prazo, o impacto dessas novas ci- dância de aço e vidro não contribui para
Entre os obstáculos que poderiam im- também em Bahrein e no Qatar, muitos dades sobre as populações locais? Segundo isso. A seu modo, as novas cidades do Gol-
pedir o sucesso das cidades econômicas projetos de novas cidades ou de amplia- o discurso oficial, esses projetos são desti- fo mostram muito sobre como os países do
sauditas, é citada freqüentemente a nacio- ção de cidades existentes se realizam em nados principalmente aos nativos, mas, na Golfo evoluem.”
nalização dos empregos. “É um paradoxo”, terrenos tomados ao oceano. E, freqüen- realidade, muitos deles visam os investido-
reconhece o executivo da Sabb. “Essas no- temente, os materiais não provêm do de- res estrangeiros, aos quais prometem pro-
vas cidades devem oferecer 1,3 milhão de serto, mas do fundo do mar, aspirados por priedades luxuosas. Todos os países da re-
novos empregos aos sauditas, mas as em- dragas que destroem a fauna e a flora. gião têm modificado as leis a fim de permi-
presas estrangeiras permanecem reticen- “A influência modesta das sociedades tir aos estrangeiros comprar bens imobili-
tes em relação à mão-de-obra local e fa- civis e a falta de envergadura das organiza- ários. Daí uma considerável especulação.
zem pressão para poder importar traba- ções ambientais na região facilitam o uso “Ao lermos os folhetos publicitários, 1 O Conselho de Cooperação do Golfo é formado por Ará-
lhadores da Ásia. No final, corremos o ris- intensivo de materiais do fundo do mar essas novas cidades serão apenas luxo e bia Saudita, Bahrein, Catar, Emirados Árabes Unidos,
co de perpetuar o modelo econômico atu- para a criação de terrenos capazes de sus- descontração”, observa Mussa Labidi. “O Kuwait e Omã.
16 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2008

MATÉRIA DE CAPA / CIDADES À BEIRA DO COLAPSO

Propostas para um
futuro melhor
Aproveitando o momento eleitoral, em que o debate político ganha as ruas, centenas
de idéias e proposições para diminuir as enormes desigualdades regionais e sociais de São Paulo.
Resta saber se, assim como a sociedade, o próximo governante fará a sua parte
PELO MOVIMENTO NOSSA SÃO PAULO*

C
om o debate eleitoral começando sempenho relativos à qualidade dos servi- é da subprefeitura de Pinheiros (5,98 para do Programa de Metas de quem for eleito
a se aquecer, é hora de discutir o ços públicos no município de São Paulo. Se cada mil nascidos vivos, de acordo com da- ou eleita. Consideramos que parcela sig-
que queremos para a nossa cida- fosse cumprida, ela poderia, por exemplo, dos de 2007 da Fundação Seade) e o pior é o nificativa da sociedade está fazendo a sua
de. Sem dúvida, a população de medir o tempo médio de atendimento mé- da Capela do Socorro (16,90). Já em relação parte e esperamos que o próximo gover-
São Paulo merece uma qualida- dico para adultos e crianças e explicitar a ao acesso à rede de esgoto, a subprefeitura nante municipal siga o mesmo caminho.
de de vida muito superior à que tem atual- situação inaceitável em que vivemos – atu- mais bem colocada é a da Sé (0,75% dos do- Paralelo a isso, o Movimento Nossa
mente. Merece e precisa. Garantir um fu- almente, é preciso esperar semanas ou até micílios sem acesso à rede, segundo o censo São Paulo pretende realizar, anualmen-
turo melhor, porém, não é nada fácil: é ne- meses para agendar uma consulta ou exa- de 2000 do IBGE e dados de 2007 da Sabesp) te, uma pesquisa de percepção da popu-
cessário comprometer a sociedade e o pró- me! Experimentamos também o descaso e a pior é a de Cidade Ademar (37,08%). As- lação com mais de 200 respostas sobre as
ximo prefeito com a missão de ter um mu- cotidiano com as regiões da cidade. Admi- sim, é premente chegarmos aos melhores condições de vida na cidade e a qualida-
nicípio seguro, saudável, bonito, solidário nistrar um município com 11 milhões de índices se quisermos uma cidade que ofe- de dos serviços e equipamentos públi-
e realmente democrático. habitantes significa saber identificar e con- reça a todos os seus cidadãos as condições cos. Ficaremos vigilantes e ativos, traba-
Compreendendo isso, o Movimento templar as diferentes realidades e culturas. para seu pleno desenvolvimento. lhando para que São Paulo seja realmen-
Nossa São Paulo estimulou centenas de ci- E, para tanto, entendemos ser preciso co- Claro, para que isso seja possível, faz-se te uma cidade melhor!
dadãos, organizações sociais, universida- locar em prática a Lei 13.4305, que institui necessário também instituir de fato a sub-
des e empresas a formularem sugestões e o Plano Diretor Estratégico e os Planos Re- divisão distrital para a execução orçamen-
contribuições e apresentá-las aos candida- gionais, e a emenda nº 30 à Lei Orgânica do tária em cada área da administração mu-
tos à Prefeitura no dia 21 de julho, durante Município, de 19/2/2008, conhecida como nicipal. Dessa forma, saberíamos especifi- * O Movimento Nossa São Paulo é uma convergência
um ato político. “Lei do Programa de Metas”6. camente quanto do orçamento em Educa- de mais de 500 entidades, mobilizadas pela recuperação
Foram entregues também dez propos- Contudo, não basta planejar: é preci- ção, por exemplo, foi destinado à Brasilân- do município de São Paulo.
tas para uma cidade justa e sustentável, ela- so saber onde e como o dinheiro do con- dia, ao Jardim Ângela e à Penha. Ao mes-
boradas pelo Movimento Nossa São Paulo1, tribuinte será gasto. Por isso, defendemos mo tempo, com base na Lei do Programa 1 Todas as propostas estão disponíveis no site do Movimen-
to Nossa São Paulo: http://www.nossasaopaulo.org.br
e oito dos 11 concorrentes ao pleito assumi- o cumprimento da Lei 13.9497, que dispõe de Metas, o prefeito decidiria publicamen-
2 Disponível em http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/
ram o compromisso de colocá-las em prá- sobre a apresentação pública de relatórios te quais serviços e equipamentos seriam files/LeiOrganica.pdf
tica caso eleitos. Formuladas em debates e de execução orçamentária nas subprefei- implementados e com quais subprefeitu- 3 Disponível em http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/
consultas, elas estão divididas em dois blo- turas, Tribunal de Contas do Município e ras e distritos se comprometeria mais. Ou files/Lei13399.pdf
4 Disponível em http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/
cos. O primeiro refere-se ao cumprimento Câmara Municipal de São Paulo. Uma prá- seja, elaborar uma estratégica para con-
files/LeiIndicadores.pdf
de leis fundamentais, que visam garantir a tica democrática e transparente, obrigató- solidar equipamentos e serviços públicos 5 Disponível em http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/
absoluta transparência da gestão pública ria a todo governante. – tais como biblioteca, teatro, cinema, lei- files/PlanoDiretorEstrategico.pdf
municipal e os processos de participação O segundo grupo de propostas apresen- tos hospitalares, centros desportivos etc. 6 Disponível em http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/
cidadã nas várias instâncias político-admi- ta prioridades para as políticas públicas, que – tendo em vista a qualidade e o respeito emenda
7 Disponível em http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/
nistrativas setoriais e regionais da cidade, devem se concentrar no desafio de diminuir à legislação ambiental9. Cada distrito de
files/LeiTransparenciaOrcamentaria.pdf
assim como aquelas que instituem a prática substantivamente as enormes desigualda- São Paulo tem uma população equivalen- 8 Implementar uma efetiva política de produção e atualiza-
da consulta popular e dos mecanismos de des sociais e regionais existentes em São te a uma cidade média brasileira e deve ser ção anual de todos os indicadores de cada área da admi-
democracia direta. É o caso da Lei Orgâni- Paulo. A cidade já apresenta bons indicado- olhado separadamente. nistração municipal (Saúde, Educação etc.), georreferen-
ciados em distritos e subprefeituras, é uma das propostas
ca do Município2, que, se colocada em vigor res8 em algumas de suas regiões, o que pode É urgente também publicizar os dados
apresentadas aos candidatos.
integralmente, institucionalizaria instru- servir como referência para que todos os da cidade, divulgar no portal na internet 9 As subprefeituras de Ermelino Matarazzo e M’Boi Mirim,
mentos importantes, como os Conselhos distritos e subprefeituras alcancem os mes- da Prefeitura informações, serviços e es- por exemplo, estão entre as que têm “indicador zero”, ou
de Representantes, abrindo a gestão à par- mos números, por meio do estabelecimento tatísticas que possam ser interessantes à seja, nulo, para acervo de bibliotecas municipais infanto-
ticipação popular. Somada à Lei nº 13.3993, de um programa de metas de políticas pú- população. juvenis per capita, segundo as Secretarias Municipais de
Cultura e de Planejamento. E as subprefeituras de Cidade
garantiria a descentralização do governo. blicas que objetive a construção de uma ci- Acreditamos, enfim, que todas essas
Tiradentes e Cidade Ademar estão entre as que registram
Outro exemplo é a Lei nº 14.1734, de dade justa e sustentável. O melhor indica- propostas entregues aos candidatos po- indicador zero de leitos hospitalares, de acordo com a Se-
2006, que estabelece indicadores de de- dor de mortalidade infantil, por exemplo, dem contribuir muito para a elaboração cretaria de Planejamento.

Cuidar do planeta é
responsabilidade de todos nós.
Le Monde Diplomatique Brasil faz
um convite à consciência ambiental.
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Em breve nas bancas e livrarias.

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AGOSTO 2008 Le Monde Diplomatique Brasil 17

FRANÇA / POLÍTICA EXTERNA

A cruzada de Sarkozy
O reingresso da França no conselho militar da Otan é um dos indícios de que sua política externa não é
mais a mesma. Se os presidentes anteriores se esforçavam em não dividir o mundo em dois – capitalistas e
comunistas, ocidentais e orientais –, o atual é um entusiasta da cruzada norte-americana contra o terror
POR ALAIN GRESH

© Filipe Rocha

E
secundarizado em relação ao primeiro, ape- era proscrito. Desde a eleição de maio 2007,
ra quase rotineiro: a França elegia informais, como almoços e jantares. Pre-
um presidente e, um ano depois, um sentes em diversas instituições do Esta- sar da ascendência de um de seus líderes, porém, ele tornou-se um dos termos-cha-
jornalista fazia o balanço de sua ges- do, eles se apóiam em um grupo de “jovens Henri Guaino, a “conselheiro especial” do ve do sarkozysmo”, explica um diplomata3.
tão e constatava a manutenção da ideólogos” que defende que a França, as- presidente. Cortados do Ministério dos As- Isso ficou claro já em seu primeiro grande
política externa. Esse foi o consen- sim como Israel, pertence a um campo oci- suntos Estrangeiros e Europeus, eles tentam discurso sobre a política externa, em 27 de
so imposto em 1958 por Charles de Gaul- dental confrontado a múltiplas ameaças, resistir à sua marginalização e se apóiam em agosto de 2007, quando utilizou sete vezes
le e seguido pelos governos que lhe suce- que vão da Rússia à China passando pelo certas empresas pouco interessadas em sa- o termo “Ocidente” ou “ocidental”, espe-
deram, tanto de esquerda como de direita. Islã. Para eles, “a política árabe da Fran- crificar seus investimentos em prol de uma cialmente para advertir sobre os riscos de
Mas com a eleição de Nicolas Sarkozy algu- ça“, na melhor das hipóteses, não passou política norte-americana imprevisível. um confronto com o Islã.
ma coisa mudou. E o presidente, aliás, ga- de uma ilusão e, na pior, foi uma traição Há, enfim, um terceiro grupo, o dos Essa adesão ao Ocidente é acom-
ba-se disto: a política estrangeira faz parte dos ideais do Ocidente. Não acreditam em técnicos, que, em torno de Jean-David Le- panhada de uma vontade declarada de
de sua vontade geral de renovação. Mas o uma articulação nacional e estão prontos vitte, conselheiro diplomático do presi- acabar com aquilo que alguns chamam de
que há de ruptura e de continuidade? a sacrificar, sem peso na consciência, em- dente, gere com pragmatismo cada ques- “antiamericanismo”. “Não compreendere-
Nunca, desde os primórdios da V Re- presas francesas como a Peugeot-Citroën tão internacional e atenua, quando pode, mos quem é o presidente se não tivermos
pública1, as decisões estiveram tão con- e a Renault no altar do combate ao “peri- os impulsos do chefe de Estado. a medida de sua fascinação pelos Estados
centradas nas mãos de um homem só, que go persa”. Integrantes da União pela Maio- Com base nos discursos de Sarkozy, po- Unidos. É ela que dita seus posicionamen-
nutre profundo desprezo pelo Ministério ria Presidencial (UMP), coalizão que reúne demos afirmar que a primeira corrente do- tos, destacadamente seu engajamento em
dos Assuntos Estrangeiros e Europeus. Ao os três principais partidos de centro-direi- mina. Coerente e sem complexos, essa li- favor de Israel. Ele está convencido de que
seu redor, existem três grupos competin- ta, seu programa pode ser resumido pelo nha ideológica quer a ruptura com a prá- é nos aliando aos Estados Unidos que tere-
do para aconselhá-lo: em primeiro lugar, título de um livro do ex-primeiro ministro tica da ladainha diplomática. Dois princí- mos peso na política internacional”, expli-
alguns zelosos intelectuais, jornalistas e Edouard Balladur: Por uma união ociden- pios a estruturam: o pertencimento ao Oci- ca um analista.
homens de negócios, profundamente pró- tal entre a Europa e os Estados Unidos2. dente e a aliança assumida com os Estados Será que Sarkozy é “um neoconservador
americanos e que procuram influenciar as O segundo círculo é formado pelos her- Unidos. “Até o presente, a utilização do ter- americano com um passaporte francês”4?
escolhas do presidente durante encontros deiros da política tradicional gaullista e está mo ‘Ocidente’ nas notas e relatórios oficiais Qual a amplitude da mudança em curso?
18 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2008

A “tradição gaullista” ainda tem seu peso? as zonas de combate. Para legitimar sua e a União Européia se privam de qualquer além das críticas israelenses e americanas
Como explicar as “contradições” das esco- decisão, Sarkozy garantiu que a participa- papel autônomo. e das objeções dos “ocidental-atlantistas“,
lhas feitas recentemente? Para responder a ção francesa permitiria uma mudança na Outra abordagem seria possível. E a para quem a Síria – e seus aliados libaneses
essas questões, é preciso fazer um balanço direção da estratégia norte-americana na- União Européia sabe disso porque em de- – constituem um pilar do “eixo do Mal”.
das ações do presidente. Quatro episódios, quele país, dando prioridade à reconstru- zembro de 2003 conseguiu fazer com que o Com a crise política instaurada a par-
entre outros, permitem uma avaliação ini- ção. Esse foi também o argumento utili- governo iraniano suspendesse seu progra- tir de novembro do ano passado, quando
cial: os relatórios conjuntos com a Organi- zado por Tony Blair, ex-primeiro ministro ma de enriquecimento de urânio e assinasse o Hezbollah se sentiu ameaçado pelo go-
zação do Tratado do Atlântico Norte (Otan) inglês, para justificar o engajamento bri- o protocolo adicional ao TNP (que permite verno e ocupou parte de Beirute, Kouch-
e os Estados Unidos; as relações com a Sí- tânico no Iraque, com o “sucesso” que já inspeções muito mais consistentes do AIEA). ner multiplicou suas viagens ao Líbano,
ria e o Líbano; a questão nuclear iraniana; conhecemos... Tudo por meio do diálogo. Teerã respei- onde mantinha antigas relações políti-
e o conflito israelo-palestino. Mais grave, porém, é o presidente fran- tou esse compromisso até o início de 2005, cas. Impaciente e convencido de que era
Foi durante uma reunião com todos os cês ter inscrito esse conflito no quadro do quando renunciou a ele invocando a parali- possível resolver os problemas “de ho-
embaixadores franceses que Sarkozy ex- “choque de civilizações”. Em sua viagem ao sia da Europa diante de um posicionamento mem para homem”, o presidente francês
plicitou seu plano de reintegração à Otan5: Afeganistão em 22 de dezembro de 2007, intransigente de Washington, que insiste em enviou a Damasco o secretário-geral de
“Essa aliança atlântica, é preciso lembrar, ele declarou aos soldados franceses: “Vo- ver nos árabes a encarnação do Mal. governo, Claude Guéant, e seu conselhei-
é nossa. Nós a fundamos e somos um de cês trabalham pela estabilidade do mun- Regularmente, há mais de duas déca- ro diplomático, Jean-David Levitte, sem
seus principais contribuintes. Estou con- do, pois se o Afeganistão se transformasse das, os Estados Unidos e Israel predizem informar Kouchner. A atitude impensada
vencido de que é de interesse dos Estados em um Estado terrorista, nós todos paga- que o Irã terá armas nucleares dentro de gerou enorme confusão. Como freqüen-
Unidos que a União Européia reúna suas ríamos um preço por isso”. Esse discurso, dois anos. Em 17 de outubro de 2007, Bush temente ocorre nesse tipo de negociação,
forças, racionalize suas capacidades e or- em conformidade com o de Bush, aponta declarou que era preciso impedir esse país em que se entrecruzam estratégias e in-
ganize sua defesa de maneira independen- o Afeganistão como a frente avançada da de desenvolver “a capacidade e o conheci- teresses externos múltiplos (sírio e isra-
te. Eu gostaria que nos próximos meses “guerra contra o terrorismo” e faz da Otan mento para fazer uma bomba atômica”. O elense, americano e iraniano, francês e
nós avançássemos em direção ao reforço um instrumento “global” encarregado da que a França fará se a Casa Branca atacar saudita), o acordo sobre a eleição do pre-
da defesa européia e à renovação da Otan. manutenção da ordem ocidental. preventivamente o Irã para impedi-lo de sidente, que parecia iminente no início
Os dois seguem juntos: uma Europa com Nas relações com o Oriente Médio, é adquirir essa “capacidade” e esse “saber“? de dezembro, foi suspenso. Paris desistiu
defesa independente e uma organização importante destacar o endurecimento da Quem definirá os termos de “capacidade” de interceder e deixou o campo livre para
atlântica na qual retomamos nosso lugar”. política francesa em relação ao Irã, que de- e de “saber”? Para os “ocidental-atlantis- o Qatar, que assumiu o papel de media-
A última cúpula da Otan, realizada em senhou-se entre 2004 e 2005, enquanto Jac- tas” a resposta é obvia: está fora de questão dor e encerrou a crise apenas em maio.
abril na Romênia, deu um passo gigantesco ques Chirac, então presidente da Repúbli- romper com Washington, como Paris havia Esse pequeno país exportador de gás
nessa direção quando o presidente George ca, buscava restabelecer pontes com Bush feito em 2003 no caso do Iraque. abriga a principal base norte-americana
W. Bush ratificou as idéias de Sarkozy. A após ter sido contrário à invasão do Iraque7. na região e mantém excelentes relações
etapa seguinte do processo acontecerá Apesar de sua forte desconfiança em rela- com a Síria, o Irã e também com a Fran-
no próximo ano, com a celebração do se- ção aos dirigentes da revolução islâmica, ça. Além disso, abriga um escritório de
xagésimo aniversário da Otan e o retorno Chirac não escondia sua inquietude diante representação israelense e cultiva conta-
da França ao clã em uma reunião que será dos riscos de uma escalada militar. Assim, Recusando qualquer tos com o Hezbollah e o Hamas. O gover-
“dividida” entre Estrasburgo e Kehl, terri- em janeiro de 2007, ele deu uma entrevista denúncia da “ocupação” no do Qatar conseguiu ser bem-sucedi-
tórios francês e alemão. esclarecedora para o International Herald do onde Paris fracassou: na formação de
Bruno Tertrais, da Fundação de Pes- Tribune, na qual observava que o fato de israelense da Palestina, um governo de unidade nacional. Sarko-
quisa Estratégica e integrante da comissão o Irã possuir uma ou duas bombas atômi- Sarkozy ratificou a política zy pagou um alto preço por sua falta de
que elaborou o Livre blanc sur la défense et cas não era tão perigoso. “Onde o Irã jogaria perseverança e sua leitura simplista do
la sécurité nationale [Livro branco sobre a essa bomba? Em Israel? Ela não teria com-
de boicote ao Hamas e conflito, que desconsidera as realidades
defesa e a segurança nacional], confirma: pletado 200 metros na atmosfera e Teerã já aceitou deixar o processo locais em prol de uma visão de enfrenta-
“A intenção de Sarkozy de juntar-se ao co- estaria arrasada8.” de paz nas mãos dos EUA mento com a Síria e o Irã.
mando integrado da Otan comporta um Com a eleição de Sarkozy, o governo Uma nova reviravolta nesse cenário
componente ideológico forte: a França, está em sintonia com os norte-america- ocorreu em 29 de maio, quando o presi-
fazendo parte da família ocidental, quer nos novamente. Desde a Conferência dos dente francês telefonou para seu colega sí-
apenas retomar seu lugar natural. Para ele, Embaixadores, o novo presidente denun- O ataque israelense contra a Síria, em rio Bachar El-Assad e o convidou a ir a Paris
anormal é a situação presente”. cia como “inaceitável” um Irã dotado de setembro de 2007, oferece uma prévia: a para a cúpula da União pelo Mediterrâneo.
arma nuclear e destaca “a absoluta deter- CIA publicou documentos, muito contro- Em nome da defesa dos direitos humanos,
O DESEJO DE ENTERRAR DE GAULLE minação da França no caminho escolhi- versos, afirmando que o local atacado era o Partido Socialista criticou a participação
Desde 1987, sob o pseudônimo de Da- do, aliando sanções crescentes, mas tam- uma base nuclear; em vez de condenar do chefe de Estado sírio na reunião, mas
mien Beauchamp, um diplomata adepto bém abertura, caso o Irã escolha respeitar essa ação militar, de flagrante violação do não disse nada sobre a presença dos pre-
do “novo caminho” escreve: “Essa ‘ortodo- suas obrigações. Esse é o único meio que direito internacional, a França apenas afir- sidentes egípcio e tunisiano ou do primei-
xia’ gaullista – à qual o general tinha hor- pode nos permitir escapar a uma alterna- mou ser importante que “a Síria esclare- ro-ministro israelense. Os Estados Unidos
ror, aliás – corre o risco de justificar a ‘pe- tiva catastrófica: a bomba iraniana ou o cesse completamente suas atividades nu- também exprimiram suas reticências.
trificação’ de nossa política estrangeira. É bombardeio do Irã”. cleares, passadas e presentes”. Poderíamos nos questionar sobre a
preciso matar o pai para lhe ser fiel”6. No A posição suscitou uma crítica vívida do Já em outros países, a interferência foi coerência dessas escolhas. “Por que re-
entanto, esse discurso tem poucas chances New York Times. O editorial de 30 de agos- mais direta. Rodeado por dirigentes de to- compensar a Síria por seu papel na solu-
de convencer, tamanho o seu desprezo por to de 2007, intitulado “No times for thre- dos os partidos políticos franceses e acom- ção da crise libanesa e não fazer nada so-
elementos simbólicos. O pronunciamento ats” [“Não é hora para ameaças”], não ti- panhado de dezenas de jornalistas, Nico- bre o Irã, que demonstrou uma grande
de De Gaulle em Pnom Pen, em 1966, con- tubeou: “O presidente Nicolas Sarkozy fez, las Sarkozy chegou a Beirute em 7 de junho moderação nesse caso?”, interroga-se um
tra a guerra norte-americana no Vietnã, as- em seu primeiro grande discurso de políti- para saudar o novo chefe de Estado, o ge- diplomata árabe com posto em Beirute.
sim como o de Dominique de Villepin em ca externa, um mau gesto, num mau mo- neral Michel Sleimane. O Líbano acabava Bem, o objetivo de Sarkozy era óbvio: levar
Nova York, em 2003, contra a invasão do mento, brandindo um possível uso da força de vivenciar uma crise que havia deixado o Assad a romper com o Irã, algo totalmen-
Iraque, não apenas alargaram a influência contra o programa nuclear iraniano. Os Es- país sem governo durante seis meses. Mais te irreal no contexto regional atual. Como
da França, como permitiram evitar uma di- tados Unidos e seus aliados devem inten- uma vez, a mídia apressou-se em glorificar dizia o general De Gaulle, é melhor não ir
visão simplista do mundo em dois campos sificar seus esforços para resolver os sérios o papel de mediador de Sarkozy, a despeito a um Oriente complicado com idéias sim-
antagônicos, outrora “capitalista” e “comu- perigos relacionados ao Irã por meio de ne- do acordo entre a maioria e a oposição no ples, principalmente quando essas idéias
nista”, hoje “Ocidente” e “Islã”. gociações globais e pressões econômicas Líbano ter sido firmado sem a França. são, na verdade, esquemas ideológicos ela-
Em Londres, em 26 de março de 2008, cada vez maiores, e não de ação militar”. É verdade que, quando chegou ao po- borados em Washington por responsáveis
o presidente Sarkozy exprimiu sua recu- As propostas de Sarkozy desemboca- der, Sarkozy herdou uma situação com- que quase nunca colocaram os pés lá.
sa de que “o mundo do século XXI fosse ram em uma postura francesa contrária ao plicada: desde 2005, Jacques Chirac vinha A aproximação com Israel é óbvia. Em
governado pelas instituições do século Irã e na tentativa de impor sanções euro- confundindo os interesses de seu país com 21 de novembro de 2007, o então porta-voz
XX, deixando à margem as principais po- péias fora do quadro da ONU, às quais Chi- os da influente família Hariri9. Prova disso de Sarkozy, David Martinon, foi ao Conse-
tências emergentes e seus 2,5 bilhões de rac sempre se opôs. A estratégia foi um fra- é que, ao final de seu mandato, Chirac se lho Representativo das Instituições Judai-
habitantes”. Mas, contrariando suas pró- casso: Teerã ignorou as resoluções do Con- instalou em um soberbo apartamento pa- cas saudar a lua-de-mel entre França e Is-
prias recomendações, ele apressou-se em selho de Segurança, continuou com seu risiense pertencente a Saad Hariri. Excita- rael, que deveria estar no “coração da União
manifestar sua boa vontade em relação a programa de enriquecimento de urânio e do com a idéia de mostrar-se o oposto de Mediterrânea”. Empolgado, ele afirmou que
essa “instituição do século passado“, au- diminuiu o controle da Agência Interna- seu predecessor, Sarkozy decidiu apagar as relações entre os dois países voltaram a
mentando os esforços franceses no Afe- cional de Energia Atômica (AIEA). Subordi- esse episódio da história e apoiar a pro- ser como antes. Ou seja, como na guerra de
ganistão, exatamente no momento em nando, segundo as resoluções de Washing- posta de Bernard Kouchner, ministro dos junho de 1967, em que a França ajudou Is-
que numerosos analistas estimavam que ton, o diálogo com o Irã à suspensão do Assuntos Estrangeiros e Europeus, de reu- rael a desenvolver a arma nuclear.
aquela guerra estivesse perdida. Na cúpu- programa de enriquecimento – que, é bom nir em La Celle Saint-Cloud, em julho de Desde 2004, Paris e Tel-Aviv experimen-
la de Bucareste, ele anunciou a partida de lembrar, está em conformidade com o Tra- 2007, todas as facções libanesas, incluin- tam uma grande aproximação, mas foi a saí-
centenas de homens suplementares para tado de Não-Proliferação (TNP) –, a França do o Hezbollah. Sem temer retaliações, foi da de Chirac, suspeito de simpatizar com os
AGOSTO 2008 Le Monde Diplomatique Brasil 19

árabes, que abriu caminho para o matrimô- gia norte-americana. Além disso, em abril mica?”, destaca um antigo embaixador, * Alain Gresh é jornalista. Integra a redação de Le Mon-
nio. Assim, um jornalista do Haaretz saudou passado deu sinal verde para uma viagem exasperado pelo discurso “moralizador” de Diplomatique (França).
com alegria a eleição de um presidente fran- a Gaza de Yves Aubin de la Messuzière, di- dos “ocidental-atlantistas”. No entanto, a
cês que pensa que “a criação do Estado ju- plomata aposentado. O antigo diretor de idéia de que essas duas potências, China
deu é ‘o maior fato político do século XX’10, África do Norte e Oriente Médio do Minis- e Rússia, representam uma ameaça ain- 1
A V República foi instaurada por Charles de Gaulle após a
redação de uma nova Constituição francesa, em 1958.
que se empenha a ajudar a travar o estabe- tério dos Assuntos Estrangeiros foi encar- da impregna o Livro branco sobre a defesa 2
Paris, Edições Fayard, 2007.
lecimento de um ‘Hamastão’ em Gaza e a ja- regado por Sarkozy de entrar em contato e a segurança nacional. Ao mesmo tem- 3
A maioria dos interlocutores preferiu não ser identificada
mais comprometer a segurança de Israel”. E com o Hamas. Mas, assim que o assunto po, o papel dos Estados Unidos, seu in- pelo nome.
concluiu: “Isso pode estar, ou não, ligado a saiu na imprensa, os Estados Unidos e Is- tervencionismo bélico, sua recusa em ra- 4
De um panfleto publicado em janeiro de 2007 pelo Partido
seus ‘genes’ judeus11, mas Nicolas Sarkozy rael criticaram a iniciativa, e a corrente tificar muitos tratados internacionais e Socialista, intitulado “L’inquiétante rupture tranquille de
Nicolas Sarkozy” [“A inquietante ruptura tranqüila de Nico-
parece um dos nossos12”. “ocidental-atlantista” se mobilizou para sua política monetária jamais são trata- las Sarkozy”]. O texto foi redigido sob a direção de Eric
barrá-la, junto com o Conselho Represen- dos como um “risco”13. Besson, que depois aderiria ao governo de Sarkozy.
REFORÇO DOS LAÇOS COM ISRAEL tativo das Instituições Judaicas. O porta- Nem sempre as mudanças da políti- 5
Em 1966, Charles de Gaulle, então presidente francês,
Recusando qualquer denúncia de “ocu- voz do governo alegou, então, uma atitu- ca externa são explícitas. Algumas vezes retirou a França do comando militar da Otan para ressaltar
a independência do país em relação a Washington.
pação” israelense na Palestina – termo que, de “individual” de Messuzière, sem negá- elas são impulsionadas por uma corren- 6
Damien Beauchamp, “La politique française au Moyen-
aliás, desapareceu do vocabulário diplo- la de fato. Vale lembrar que, se nos anos te “ocidental-atlantista” que avança nas Orient: un examen critique” [“A política francesa no Orien-
mático francês –, Sarkozy ratificou a polí- 1970 e 1980, a França tivesse apoiado po- sombras, repleta de idéias impopula- te Médio: um exame crítico”], em Politique étrangère [Po-
tica de boicote ao Hamas e aceitou deixar sição a israelo-norte-americana de quali- res, até mesmo para o partido no poder. lítica estrangeira], Paris, 1987.
7
nas mãos dos Estados Unidos o processo ficar a Organização de Libertação da Pa- Seus representantes também se aprovei- Ler “La voix brouillée de la France au Proche-Orient” [“A
voz confusa da França no Oriente Próximo”], Le Monde
de paz. Em 18 de julho de 2007, seu minis- lestina (OLP) como “terrorista” e não dia- tam do “vazio” intelectual: ninguém sabe Diplomatique, junho de 2006.
tro dos Assuntos Estrangeiros e Europeus logasse com Yasser Arafat, talvez as nego- como definir um projeto coerente, que 8
Ler “Chirac et l’Iran. Quand la presse s’emballe.” [“Chirac
chegou a afirmar que o Hamas mantinha ciações entre a OLP e Israel nos anos 1990 retome e, ao mesmo tempo, transforme, e o Irã. Quando a imprensa sai do controle.”], blog Nouvel-
“contatos com a Al-Qaeda”. não existissem. a tradição fundada por De Gaulle de de- les d’Orient, 2 de fevereiro de 2007. Disponível em http://
blog.mondediplo.net/-Nouvelles-d-Orient
A viagem do presidente francês a Is- A política externa de Sarkozy pode ser fender uma nação autônoma e um mun- 9
A família Hariri, de orientação sunita (o Hezbollah é xiita), é
rael em 22 de junho foi uma demonstra- classificada definitivamente como “de do que não seja partido em dois14. muito influente no Líbano. Entre seus membros ilustres
ção de que as relações entre os dois paí- ruptura”? Ou ainda há indícios de con- estão Saad Hariri, líder da maioria anti-Síria no Parlamento
ses se aprofundam. Enquanto as pressões tinuidade? Não há uma resposta preci- GESTÃO POLITICAMENTE ATIVA libanês, e Rafik Hariri, ex-primeiro-ministro, assassinado
são permanentes sobre a Autoridade Pa- sa para essas perguntas. Paris procura, Em 1º de julho, a França assumiu a em 2005. Esse crime levou Chirac a suspender os contra-
tos de alto nível com a Síria após a ONU ter concluído que
lestina, os laços bilaterais com os israe- por exemplo, manter boas relações com presidência rotativa da União Européia. o governo sírio havia participado da organização do aten-
lenses são reforçados, como se a ocupa- a China apesar da questão tibetana, e os Animado com a queda-de-braço sobre a tado.
ção não existisse, como se a colonização discursos sobre a violação dos direitos adoção de uma nova Constituição, o pre- 10
Realmente, o presidente Sarkozy declarou que a criação
não avançasse e como se a repressão co- humanos na Rússia são delegados a al- sidente francês se preparou para exercer de Israel é “um fato político fundamental do século XX”.
11
Ele faz referência ao fato de que o avô de Sarkozy era ju-
tidiana fosse justificativa para o combate gum ministro ou subministro. Para pou- uma gestão politicamente ativa, funda-
deu.
ao terrorismo. par Moscou na cúpula de Bucareste, a da em três focos: na defesa do continente, 12
Haaretz, 30 de dezembro de 2007.
Claro, às vezes Sarkozy se tolhe: ele França se opôs, pelo menos provisoria- no Mediterrâneo e na luta contra a imigra- 13
Ler Pierre Conesa, “Les Etats-Unis, une menace pour
havia planejado estar em Jerusalém du- mente, à integração da Ucrânia à Otan. ção clandestina e o terrorismo. O “não” ir- l’Europe?” [“Os Estados Unidos, uma ameaça para a Eu-
rante o sexagésimo aniversário de Israel, “Quem vai esquecer que o gás russo pode landês ao Tratado de Lisboa significou um ropa?”], Le Monde Diplomatique, maio de 2008.
14
O único, talvez, que realmente refletiu sobre isso foi o ex-
mas preferiu adiar sua viagem para não garantir o fornecimento de energia para a duro golpe nessas ambições, mas Sarkozy ministro de Assuntos Estrangeiros, Hubert Védrine. Ler
exasperar ainda mais uma opinião árabe Europa e que a China é um mercado de- quer tentar manter o curso dos aconteci- Rapport sur la France et la mondialisation [Relatório sobre
que tende a identificá-lo com a estraté- cisivo em uma crise financeira e econô- mentos de qualquer maneira. a França e a mundialização], 4 de setembro de 2007.
20 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2008

BRASIL / COMBATE À POBREZA

O Bolsa Família funciona?


É preciso compreender o real significado deste programa, que se destina especificamente a transferir
renda para quem não tem nada. Apesar de mais da metade das famílias beneficiadas ainda estar em situação
de insegurança alimentar, sua mesa tornou-se mais farta e variada. Mas ainda há muito a fazer
POR FRANCISCO MENEZES E MARIANA SANTARELLI*

D
ona Maria da Penha não teve uma dentes do programa. Outras, como a de renda mensal total inferior ao salário míni- mais se ressentem é a exclusão do merca-
trajetória muito fácil. Começou Janete e Odair, têm mais condições de ul- mo, atualmente em R$ 415,00. do. Ao contrário do que pensam alguns crí-
a lida na roça aos 8 anos de ida- trapassar a linha da pobreza. Em comum, O Ibase revelou também que 55% das ticos do Bolsa Família, este não gera deses-
de. Diz que não aproveitou a in- o medo de passar fome, que está presen- famílias estavam em situação de insegu- tímulo ao trabalho: a maioria dos partici-
fância, sua única lembrança é ter te seja por suas histórias de vida ou pelas rança alimentar grave ou moderada, o pantes é enfática ao defender a preferên-
trabalhado a vida toda. Saiu do interior condições adversas que as cercam. que significa que passaram por restrições cia por garantir a sobrevivência da família
do Espírito Santo para ser empregada em Os impactos do programa na vida das na quantidade de alimentos ou por situa- a partir do próprio esforço.
casa de família no Rio de Janeiro, mas logo famílias também são diferenciados. A pes- ções de fome nos três meses anteriores à Além disso, em determinadas circuns-
cansou de ser explorada e virou bailarina quisa “Repercussões do Programa Bolsa pesquisa. As correlações com outras variá- tâncias, o Bolsa Família pode figurar como
de cabaré. Foi quando perdeu a guarda Família na Segurança Alimentar e Nutri- veis demonstram que são mais vulneráveis alternativa à erosão de direitos básicos. É
de dois dos seus três filhos. Hoje tem 55 cional dos Beneficiados”, realizada pelo a essas modalidades as famílias que têm o caso de Marta, moradora de Dourados,
anos e mora no morro do Boréu. Ganha Ibase (Instituto Brasileiro de Análises So- titulares negros ou pardos, analfabetos e no Mato Grosso do Sul. Depois de perder
R$ 70,00 por mês para cuidar do filho de ciais e Econômicas) e divulgada recente- sem trabalho formal. A falta de saneamen- o marido em um acidente de trabalho na
uma vizinha e mais R$ 88,00 do Progra- mente, permite conhecer melhor quem to básico também está fortemente relacio- fazenda em que moravam, no Acre, ela e
ma Bolsa Família. Para garantir que sem- são esses beneficiários, quais mudanças nada à insegurança alimentar grave. Entre seus filhos se viram totalmente impotentes
pre houvesse comida na mesa, Dona Pe- sofreram em sua situação alimentar e nu- as famílias beneficiadas que vivem em áre- diante do não-cumprimento das leis traba-
nha também costumava pegar a xepa na tricional, a relação com o trabalho e, em al- as rurais, as mais sujeitas à fome são aque- lhistas, que garantem a pensão em caso de
feira e em uma fábrica de biscoitos, mas guma medida, as perspectivas que têm. las que não têm acesso à terra. Já as assen- morte do cônjuge. Sozinha e sem dinheiro,
ultimamente tem sido impedida por pro- tadas em projetos de reforma agrária so- Marta foi obrigada a continuar na fazenda,
blemas de saúde. Ela não deixa a filha sair QUEM SÃO AS FAMÍLIAS BENEFICIADAS frem o problema em menor grau. trabalhando em troca de casa e comida. Ao
de casa à noite por causa dos constantes Entre os titulares do programa, a maio- Apesar desse quadro, há de se reconhe- longo de alguns meses, conseguiu juntar o
tiroteios na favela e sonha em poder ter- ria é mulher (94%), negra ou parda (64%), cer os avanços proporcionados pelo Bolsa recurso recebido do Bolsa Família para via-
minar de criá-la em sua terra natal. e está na faixa etária compreendida entre Família. De acordo com a pesquisa, o pro- bilizar sua viagem e a dos quatro filhos de
Em outro canto do Brasil, no Vale do Je- 15 e 49 anos (85%). No contexto familiar, os grama melhorou a estabilidade no acesso volta à cidade de origem.
quitinhonha, vive o casal Janete e Odair e novos arranjos domiciliares ganham des- aos alimentos: a garantia de uma renda re- Quando perguntados se haviam dei-
seus dois filhos. Odair trabalhou por alguns taque: 38% dos domicílios são compostos gular adicional traz maior segurança para xado de exercer algum trabalho a partir do
anos na lavoura no norte de Minas Gerais, por famílias monoparentais, sendo 27% as famílias e estimula o planejamento de ingresso no Programa Bolsa Família, 99,5%
adquiriu um pouco de conhecimento e dos titulares mães solteiras, índice que se gastos e modificações no padrão de consu- dos titulares disseram que não. Ainda que
voltou para sua terra natal. Casou-se, ga- torna ainda maior na área urbana. É signi- mo alimentar. Para 74% delas, a quantida- o beneficio seja vital para muitas famílias,
nhou 4 hectares de terra do pai e começou ficante também o número de idosos chefes de de alimentos aumentou a partir do pro- o valor médio mensal repassado, de R$
a investir em sua propriedade. A lida da de família e a proporção de filhos adultos, grama, enquanto 70% relataram mais va- 73,00 na época da pesquisa, é insuficien-
roça é dura, principalmente porque é cada muitas vezes com cônjuge e prole, que co- riedade. Entraram na dieta frutas, verdu- te para o suprimento das necessidades bá-
vez mais difícil o acesso à água na região: abitam com o pai e a mãe. Freqüentemen- ras, legumes, alimentos industrializados e sicas, obrigando-as a buscar outros meios
ao longo dos anos, a floresta de eucaliptos te, essas famílias ampliadas têm como úni- outros considerados “supérfluos”, além da para garanti-lo. Na realidade, o problema
que passou a cercar a maioria das comuni- cas fontes de renda a aposentadoria dos carne, muito valorizada e de difícil acesso. não está na renúncia a atividades produti-
dades rurais vem secando os mananciais. idosos e o Bolsa Família. Entre os que não tinham nem mesmo a vas e na acomodação, mas na falta de ofer-
Mas, além de seu empreendedorismo, Ja- A escolaridade é um problema entre os alimentação básica garantida – caso de fa- ta de trabalho para esse grupo mais vulne-
nete e Odair têm sorte: o lote herdado fica titulares do programa: apesar de 81% sa- mílias mais pobres e daquelas que produ- rável. Para as mulheres pobres, titulares
à margem de um rio. Plantam uva, tomate, berem ler e escrever, somente 56% estuda- zem para subsistência – o programa possi- preferenciais do programa, as barreiras de
laranja, abobrinha e outras leguminosas. ram até o ensino fundamental. Já no cam- bilitou a compra de alimentos considera- acesso ao mercado são ainda maiores, seja
No último ano, contraíram um emprésti- po da saúde 39% das famílias têm pelo me- dos básicos, como arroz e feijão. pelo baixo índice de escolaridade ou por-
mo do Pronaf (Programa Nacional de For- nos uma pessoa com alguma doença crô- O problema é que os resultados indica- que precisem tomar conta da casa, dos fi-
talecimento da Agricultura Familiar). Parti- nica. Também são freqüentes os relatos de ram também uma priorização de alimentos lhos e dos idosos.
cipam ativamente da vida organizativa da problemas mentais e diferentes experiên- com menor teor de nutrientes e mais densi-
comunidade e Odair é presidente da asso- cias de sofrimento psíquico, com depen- dade calórica, ou seja, que saciam a fome e FALTA ASSISTÊNCIA TÉCNICA NO CAMPO
ciação de feirantes da cidade. Dá gosto ver dência de medicamentos de uso controla- dão mais energia. Alimentos preferidos pelo Muitas das políticas existentes, como o
um casal que, em um ambiente tão hostil, do. Mais grave ainda é, sem dúvida, a res- gosto infantil também são mais consumidos, crédito e aquelas direcionadas para a agri-
consegue prosperar. São, sim, beneficiados trição ao saneamento básico: apenas 43% pois as mães tendem a satisfazer os desejos cultura familiar, não atingem ou não são
pelo Bolsa Família e Janete sabe que logo têm acesso à rede de esgotos, enquanto no dos filhos quando contam com uma renda adequadas ao perfil desse segmento. Entre
não vão mais precisar do programa, mas Norte os “privilegiados” são 5%. extra. Esse padrão alimentar, que não se di- as famílias rurais beneficiadas, 60% plan-
ainda não abre mão: “quem já passou fome Considerando todos os membros da fa- ferencia muito daquele observado como ten- tam alimentos ou criam animais, dentre os
não coloca os filhos em risco”. mília maiores de 16 anos, somente metade dência nacional na última pesquisa de Orça- quais 78% o fazem exclusivamente para o
As histórias de vida dos titulares do deles teve trabalho remunerado no mês an- mento Familiar, realizada pelo IBGE (Insti- auto-sustento, sem gerar excedente para a
Programa Bolsa Família dão a dimensão terior à pesquisa e apenas 21% com cartei- tuto Brasileiro de Geografia e Estatística) em comercialização. Dados da pesquisa mos-
da diversidade de condições a que estão ra assinada. A exclusão do mercado atinge 2003, pode contribuir para a prevalência do tram que apenas 57% são proprietárias da
submetidos seus 11 milhões de beneficiá- principalmente as mulheres. Entre elas, só excesso de peso e da obesidade e para o de- terra em que produzem, 83% não obtive-
rios. Nesse universo, não há como definir 37% estavam trabalhando, enquanto para senvolvimento de certos tipos de câncer e ram nenhum tipo de crédito agrícola nos
um único perfil: as vulnerabilidades são os homens esse percentual é de 67%. A ren- outras enfermidades crônicas associadas a últimos três anos e apenas 14% estão no
múltiplas e as possibilidades de superação da média mensal das famílias, incluindo dietas com alta densidade energética. Pronaf. Destas, 96% não receberam ne-
da pobreza variam caso a caso. Há famílias aquela transferida pelo programa e demais Na percepção dos titulares do progra- nhum tipo de assistência técnica.
como a de Maria da Penha, extremamente benefícios sociais, é R$ 431,54. No mês an- ma, entre todas as vulnerabilidades que Em áreas urbanas, os relatos mostram
pobres e vulneráveis à fome, muito depen- terior à pesquisa, 46% das famílias tiveram configuram a pobreza, aquela com a qual que a principal aspiração é por trabalho

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AGOSTO 2008 Le Monde Diplomatique Brasil 21

© OESP/Leo Caldas
Família pernambucana assistida pelo programa Bolsa Família

formal. Alguns testemunhos de beneficiá- outras ações. Algumas complementares, Bolsa Família que vão à escola recebem Mesmo que o país cresça a passos lar-
rios evidenciam a inadequação ou insufi- que contribuam para a aquisição de direi- merenda escolar gratuita. Durante o pe- gos, provavelmente são as famílias mais
ciência de programas profissionalizantes tos, e outras de caráter emancipatório. ríodo de férias, 33% dos titulares identifi- pobres, e em especial as mulheres, que
oferecidos pelo poder público, que nor- caram piora na alimentação familiar. Nes- têm menos chance de se beneficiar des-
malmente não chegam aos mais pobres. EDUCAÇÃO ALIMENTAR NAS ESCOLAS se sentido, a aprovação do Projeto de Lei se processo. Nesse sentido, não é possí-
Um dado positivo emerge entre tan- No que diz respeito às políticas de se- 2877/08, que cria um marco regulatório vel pensar que o puro e simples desen-
tas dificuldades: metade dos titulares do gurança alimentar e nutricional, ainda para o Programa Nacional de Alimentação volvimento econômico dará conta de in-
programa que não sabe ler e escrever está há muitos passos a serem dados. O incre- Escolar, em tramitação no Congresso Na- cluir estas pessoas no mercado. Foi criada
se alfabetizando, resultado da articulação mento da renda amplia o poder de esco- cional, reforçaria essa importância ao am- recentemente, no âmbito do Ministério
com o Programa Brasil Alfabetizado. lhas alimentares, o que não necessaria- pliar o atendimento para o ensino médio, de Desenvolvimento Social e Combate à
Qual a contribuição que o Programa mente se converte em uma alimentação além de criar melhores condições para a Fome, a Secretaria de Oportunidades, que
Bolsa Família pode dar, além de atenuar mais saudável. Muito pelo contrário: ten- oferta de uma alimentação saudável nas se propõe a enfrentar esse desafio. Exis-
os efeitos deletérios da pobreza? A direita e de a reforçar perfis de consumo social- escolas e garantir o fornecimento dos ali- te ainda uma série de iniciativas, como
parte daqueles que se intitulam de esquer- mente compartilhados e fortemente in- mentos produzidos pela agricultura fami- os “Territórios de Cidadania” e o Progra-
da no Brasil têm se unificado na crítica ao fluenciados pelos meios de comunica- liar para a alimentação escolar. O Progra- ma de Economia Solidária, que apresen-
programa, afirmando que ele não enfren- ção. Recomendamos ações de educação ma de Aquisição de Alimentos também tam potencial para garantir esse direito
ta os problemas reais que levam à pobre- alimentar que utilizem a escola como es- demonstra grande potencial ao articular até hoje negado aos menos favorecidos.
za. Os primeiros exacerbam a velha tese paço privilegiado e a regulamentação da a produção local com gastos públicos em
da excelência do livre mercado, ao mesmo propaganda de alimentos, principalmen- alimentação – escolas, hospitais, abrigos e ESPERANÇA DE UMA VIDA DIGNA
tempo que repudiam os gastos com as po- te aquela voltada ao público infantil. creches. A iniciativa garante, por um lado, A pobreza no Brasil deve ser enfren-
líticas sociais. Os segundos pedem medi- Ressalte-se, ainda, que o preço ele- a compra dos produtos da agricultura fa- tada sob a égide dos direitos, conside-
das que corrijam, de uma vez só, todas as vado dos alimentos de melhor qualidade miliar e, por outro, o abastecimento dos rando que ela não tem uma única cara e
mazelas produzidas pelo capitalismo. Sem obriga medidas que possibilitem a ofer- programas de assistência alimentar. exige respostas diversas e múltiplas. Não
contar aqueles que, para expressarem sua ta de produtos como legumes, frutas, Outra ação governamental prioritária existem saídas milagrosas. O pagamen-
decepção com o atual governo, rechaçam verduras e carnes a preços mais baratos, é aquela relacionada à geração de traba- to da imensa dívida social passa, inevita-
qualquer iniciativa que parta dele. mediante intervenções que promovam a lho e renda. Falta clareza, porém, sobre velmente, pela redução da desigualdade,
É preciso compreender o real significa- aproximação de produtores e consumido- como engajar os grupos em situação de com a cobrança dos custos que as elites
do do Bolsa Família. O programa está in- res. Cabe pensar também na retomada de pobreza extrema nessas possibilidades. brasileiras tanto relutam em assumir. Por
serido em uma política social mais ampla, uma política de abastecimento alimentar No espectro de beneficiados pelo Bolsa fim, o desenvolvimento deve ser regido
destinando-se especificamente a transferir centrada na valorização da agricultura fa- Família há aqueles que com um pequeno pelo esforço de inclusão de famílias como
renda para quem não tem nada ou muito miliar e nos instrumentos de regulariza- empurrão de políticas direcionadas para as de Maria da Penha, de Marta e de Jane-
pouco, satisfazendo necessidades básicas ção de preços no atacado e varejo, via es- a qualificação profissional ou para o de- te e Odair, que não podem perder a espe-
que não se limitam à alimentação. A com- toques de alimentos básicos, particular- senvolvimento de pequenos negócios ru- rança de uma vida digna. Se não para eles,
plexidade da pobreza no Brasil precisa ser mente no atual contexto internacional de rais e urbanos, podem cruzar a linha da certamente para seus filhos.
enfrentada com múltiplas iniciativas nas alta das commodities. pobreza. Porém há um grupo não despre-
diferentes esferas e níveis de governo. O Entre os programas de segurança ali- zível de beneficiados que estão em situ- * Francisco Menezes é diretor do Ibase (Instituto Brasi-
que não podemos exigir é que o programa mentar e nutricional que já estão em cur- ação de grande vulnerabilidade, residem leiro de Análises Sociais e Econômicas); Mariana Santa-
faça as vezes das demais políticas sociais. so vale destacar a importância do Progra- em bolsões de pobreza onde a dinâmica relli é pesquisadora do Ibase e coordenou a pesquisa “Re-
Afora a garantia das políticas universais de ma Nacional de Alimentação Escolar. De socioeconômica é baixa e as oportunida- percussões do Programa Bolsa Família na segurança
educação e saúde, o grande desafio será acordo com a pesquisa do Ibase, 83% dos des de emprego e geração de renda são alimentar e nutricional dos seus beneficiados”, realizada
conseguir articular o Bolsa Família com membros de famílias beneficiadas pelo muito escassas. entre janeiro de 2006 e junho de 2008.

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22 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2008

BRASIL / REFORMA TRIBUTÁRIA

Mais para quem tem mais


A maioria da população brasileira continua afastada da discussão sobre a reforma tributária. A nova proposta,
em trâmite na Câmara dos Deputados, está longe de resolver problemas estruturais e deve continuar servindo
aos detentores da riqueza, sem tocar em questões como a herança, a propriedade e a progressividade
POR ODILON GUEDES

O
recente projeto de reforma tribu-
tária em tramitação na Câmara
dos Deputados tem uma caracte-
rística muito semelhante a todos
os outros elaborados nos últimos
anos no Brasil: está sendo pouco discutido
pelos verdadeiros interessados, a maioria
do povo brasileiro.
O debate em torno desse assunto sem-
pre acaba centrado na diminuição dos im-
postos, já que a carga tributária é conside-
rada alta em relação aos serviços ofereci-
dos pelo Estado. Os que mais defendem
sua redução são os empresários, basea-
dos no argumento de que, ao pagar mui-
tos tributos, seus negócios ficam prejudi-

© Manzano
cados. Entre os excluídos do debate está a
maior parte da população, em especial sua
camada mais pobre – proporcionalmente
a que mais contribui –, que não tem a me-
nor idéia de como os impostos pesam no
seu bolso. Este artigo visa contribuir para a
discussão sobre o tema, apresentando, in-
clusive, alguns dados que permitem visu-
alizar o tipo de reforma tributária de que
o Brasil precisa. Uma reforma que além de
tornar mais justa a carga tributária contri-
bua também para distribuir as riquezas.

DESDE O TEMPO DE JOÃO SEM TERRA


A questão tributária tem sido causa ou
pretexto de inúmeras revoluções e trans-
formações sociais na história da humani-
dade. Em 1215, ano em que foi promulga-
da a Constituição inglesa, um dos pontos
centrais acordados entre o Conselho de
Nobres e João Sem Terra, baseava-se no
fato de que, dali em diante, não poderia
ser criado nenhum tributo pelo rei sem
que o Conselho fosse consultado. Havia
algumas exceções pontuais, como na oca-
sião do primeiro casamento de sua filha
mais velha ou quando seu primogênito se
tornasse cavaleiro. Na mesma Inglaterra,
a revolução burguesa que eclodiu na pri-
meira metade do século XVII teve como
um dos motivos a cobrança de tributos. O
rei Carlos I, para reforçar o absolutismo,
começou a exigir o pagamento de impos-
tos que já haviam caído em desuso. O ship
money, por exemplo, criado para prote-
ger as cidades portuárias de ataques pira- o início da guerra de libertação foi a co- Índias Orientais. Este último causou uma ve crise econômica e social que assolava
tas, foi cobrado até mesmo no interior do brança de impostos como o Sugar Act, de grande revolta em que os colonos america- o país após a derrota para a Inglaterra na
país, onde dificilmente haveria esse tipo 1764, que taxava produtos que não vies- nos se vestiram de índios e jogaram ao mar Guerra dos Sete Anos.
de ataque. O fim do rei foi inevitavelmen- sem das Antilhas Britânicas; o Stamp Act, o chá dos navios da Companhia ancorados No Brasil, a questão da cobrança de
te a decapitação. de 1765, que exigia selagem até de bara- no porto de Boston. impostos marcou profundamente algumas
Nos Estados Unidos, a celebração da lhos e dados – posteriormente revogado –; Já a Revolução Francesa teve como um rebeliões ao longo da história. A primeira
independência em 4 de julho faz lembrar e o Tea Act, de 1773, que concedia o mono- de seus estopins o aumento de impostos, delas foi a Inconfidência Mineira, tentati-
que uma das razões que contribuíram para pólio do comércio do chá à Companhia das decretado pelo rei para enfrentar a gra- va de libertar o país de Portugal que resul-

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AGOSTO 2008 Le Monde Diplomatique Brasil 23

tou no enforcamento do herói Tiradentes e países denominados em desenvolvimen- dos R$ 1,3 trilhão, estão nas mãos de 30 mil 1983 e 1985. É necessário destacar ainda
no desterro dos líderes envolvidos no mo- to, alguns exemplos mostram a seguinte famílias. Em 2007, o pagamento dos juros que, nesse caso, há outras questões a se-
vimento. O motivo principal da revolta foi situação: no Chile existem seis faixas cujas dessa dívida chegou a R$ 160 bilhões. Lo- rem discutidas e alteradas, como a atual
a “derrama”, isto é, a cobrança de impostos alíquotas vão de 5% a 45%; na Argentina gicamente, 70% desse valor ficou em posse isenção sobre a distribuição de lucros para
atrasados feita pelos colonizadores portu- são sete faixas, variando as alíquotas entre das tais 30 mil famílias 3. É, portanto, mais sócios das empresas, tanto no Brasil como
gueses aos moradores de Minas Gerais. 9% e 35%; e na Bolívia há cinco faixas, de do que urgente a aprovação do imposto no exterior, e a isenção para remessa des-
Entre as décadas de 1830 e 1840, a pro- 15% a 30% 1. sobre as grandes fortunas. ses lucros.
víncia do Rio Grande do Sul foi palco do O imposto sobre herança é defini- Sobre a questão da propriedade, a co-
mais longo conflito armado do Brasil, a do pelo artigo 155 da Constituição Fede- A REFORMA DE QUE O BRASIL PRECISA brança de impostos como o IPTU e o ITR
Guerra dos Farrapos. A causa central foi a ral brasileira, em que consta que a res- Diante desse quadro totalmente dese- deve ser feita de forma progressiva em
taxação do charque (carne seca) riogran- ponsabilidade pelo estabelecimento dos quilibrado e injusto, é preciso refletir sobre todo o país. É preciso tornar pública a ra-
dense pelo governo imperial e a isenção de percentuais cobrados é dos estados. Em o tipo de reforma tributária de que a popu- zão de a arrecadação do ITR ser irrisória
impostos para o mesmo produto impor- São Paulo, por exemplo, a alíquota é de lação brasileira precisa. Logicamente, não hoje e caminhar para um estágio em que
tado do Uruguai e da Argentina. Naquele 4%. Se comparada com a de outros países, se deve ignorar que são importantes as de- os grandes proprietários rurais e o agro-
momento, a elite gaúcha se sentiu profun- notamos uma diferença brutal: na Ingla- finições sobre a cobrança do ICMS (Impos- negócio passem, definitivamente, a pagar
damente prejudicada porque havia perdi- terra, onde esse tipo de imposto é cobra- to sobre a Circulação de Mercadorias e Ser- impostos sobre suas propriedades.
do a competitividade no mercado inter- do há mais de 300 anos, os jornais ingleses viços), sobre o número de alíquotas deste Quanto ao imposto sobre herança,
no. Já no fim do século XIX um dos pretex- noticiaram que o fisco ficou com metade imposto e do IPI (Imposto sobre Produtos uma proposta viável é elevar sua alíquota
tos para o exército brasileiro cercar e des- dos US$ 30 milhões deixados pela prince- Industrializados), e a possível criação do de forma progressiva, pois ela é baixíssi-
truir a comunidade de Canudos – interior sa Diana para os seus filhos. Lá, a taxação IVA (Imposto sobre o Valor Agregado). Mas ma no Brasil. Em razão da alta concentra-
da Bahia – foi o fato de seu líder, Antônio é apoiada até pelos conservadores. Tanto essas questões precisam estar submetidas ção de riqueza que há em nosso país, deve-
Conselheiro, pregar aos habitantes de vá- que, segundo matéria da revista Veja, pu- às decisões sobre as características básicas ríamos ter como referência a tributação de
rios municípios do interior do Nordeste blicada em setembro de 2007, o primei- da reforma pretendida. cerca de 50% estabelecida na Inglaterra e
brasileiro o não-pagamento dos impostos ro-ministro inglês Winston Churchil, que Muitas orientações vêm sendo propos- nos EUA. Isso possibilitaria ampliarmos a
instituídos pelo regime republicano. conduziu a Inglaterra na luta contra os tas por vários especialistas da área tributá- arrecadação e diminuirmos a regressivi-
nazistas, costumava dizer que o imposto ria que se preocupam com os problemas dade da carga tributária, além de garantir-
OS POBRES PAGAM MAIS sobre a herança era infalível para evitar a sociais do Brasil. Eles percebem claramen- mos o mínimo de justiça social.
A questão da injustiça tributária no Bra- proliferação de “ricos indolentes”. te a necessidade de fazer justiça social uti- Já o Imposto sobre Grandes Fortu-
sil é gravíssima, e podemos dizer, com toda Nos Estados Unidos, esse tributo tem lizando como instrumento importante a nas (IGF), previsto na Constituição Fede-
segurança, que as camadas mais pobres uma alíquota de 47% para fortunas acima cobrança de tributos. Adam Smith já afir- ral de 1988, poderia ser cobrado também
da população pagam proporcionalmente de US$ 1,5 milhão, e no Japão, a alíquota é mava, na História da riqueza das nações, de forma progressiva, segundo proposta
mais impostos no país. Vários estudos fei- de 70% 2. Os números vindos de fora con- que “os súditos de todo Estado deveriam do economista Amir Khair, arbitrando-se
tos pelo Unafisco (órgão dos auditores fis- tribuem para demonstrar como o mesmo contribuir para sustentar o governo, tanto um nível mínimo de isenção e incidindo,
cais da Receita Federal) e pela Universida- imposto é extremamente baixo no Brasil. quanto possível em proporção às suas res- por meio de alíquota reduzida, sobre o va-
de de São Paulo (USP) comprovam clara- Tendo em vista ainda o alto índice de con- pectivas capacidades 4”. lor daquele patrimônio declarado no Im-
mente tal situação. Mostram que as pesso- centração de riqueza no país, concluímos Abaixo, elenco dois grandes eixos que posto de Renda ao final do exercício, de
as cuja renda familiar alcança até dois salá- que há uma ampla margem para aumentar deveriam embasar a reforma tributária 5: pessoas físicas e jurídicas, que exceder o
rios mínimos gastam 48,9% de seus recur- sua cobrança. valor da isenção. O projeto em tramita-
sos mensais com o pagamento de tributos, Outra distorção flagrante pode ser no- • Redução de tributos sobre o consumo e ção na Câmara dos Deputados prevê que
enquanto famílias que têm uma renda su- tada na arrecadação dos impostos sobre a isenção da cesta básica 51,6% do IGF sejam direcionados para es-
perior a 30 salários mínimos comprome- propriedade – o Imposto sobre a Proprie- Uma das vertentes que a reforma tribu- tados e municípios.
tem apenas 26,3%. dade Predial e Territorial Urbana (IPTU), tária deve ter em vista é a redução da carga É importante destacar, como forma de
Esse brutal descompasso ocorre por- de âmbito municipal, e o Imposto Terri- tributária sobre o consumo. É uma medida apoio à aprovação desse imposto, dados do
que mais de 50% da carga tributária no país torial Rural (ITR), de âmbito federal. Nos extremamente positiva porque diminui a Fundo Monetário Internacional (FMI) que
é indireta, isto é, incide sobre o consumo. 12 meses de 2007, foram arrecadados, em regressividade na cobrança de impostos e mostram que a riqueza e o Produto Interno
Na maioria dos países capitalistas desen- todo o território nacional, cerca de R$ 379 beneficia a classe média e, principalmen- Bruto (PIB) mundial atingiram, em agosto
volvidos, a carga tributária direta é muito milhões na cobrança do ITR, segundo da- te, a população de baixa renda, melhoran- de 2007, US$ 190 trilhões e US$ 48 trilhões
mais acentuada que a nossa, recaindo so- dos da Receita Federal. O valor consegue do seu poder aquisitivo. A isenção de co- respectivamente. Ou seja, a riqueza é quatro
bre a renda, a riqueza, a propriedade e a ser menor do que dois meses de contribui- brança de impostos indiretos na cesta bá- vezes superior ao PIB. Como já reiteramos,
herança. Os dados apresentados pelo Ins- ções recolhidas de IPTU apenas na cidade sica também é de grande importância por- o Brasil apresenta uma das mais perversas
tituto Brasileiro de Planejamento Tributá- de São Paulo. que tem o efeito de diminuir o custo de vá- distribuições de renda e riqueza do plane-
rio (IBPT) ilustram a regressividade na co- Ao mesmo tempo, de acordo com dados rios produtos de consumo popular, o que ta e, diante desse quadro, podemos deduzir
brança de tributos em nosso país. Do total do Ministério do Desenvolvimento Agrário, permite, indiretamente, a elevação da ren- que entre nós a concentração deve ser bem
que se paga da conta de luz, por exemplo, o Brasil tem um universo de 5 milhões de da da população e possibilita uma melho- maior do que a apresentada pelo FMI. Por-
45,8% são de impostos. Assim, se um cida- propriedades rurais. Destas, apenas 26 mil – ria em sua qualidade de vida. tanto, a aprovação do IGF é urgente.
dão gastar R$ 100,00 de energia, R$ 45,80 menos de 1% do total – detêm 46% das ter- Em síntese, essas são questões vitais na
vão para os cofres públicos, independen- ras. Outros 55 mil imóveis são classificados • Aumento da taxação sobre a renda, a ri- elaboração de uma autêntica reforma tri-
temente do fato de ele ganhar um salário como latifúndios improdutivos e detêm 120 queza, a propriedade e a herança butária no Brasil, que seja verdadeiramen-
mínimo ou R$ 50 mil por mês. Em relação milhões de hectares. Paralelamente, o agro- A outra vertente deve se apoiar na ta- te capaz de promover mais justiça e igual-
a um quilo de açúcar, a carga tributária é negócio movimenta bilhões de reais e uti- xação mais acentuada e progressiva da dade de direitos.
de 40,5%, e sobre o litro de gasolina inci- liza cada vez mais áreas para o plantio da renda, da riqueza, da propriedade e da
de 53,0%. Já a taxação dos impostos sobre cana-de-açúcar. E o capital internacional herança, proporcionando a abertura de
a renda, a riqueza, a propriedade e a he- avança cada vez mais na compra de terras um amplo espaço para fazer justiça so- * Odilon Guedes, economista, mestre em economia pela
rança é muito baixa, especialmente quan- na Amazônia e por todo o país. Comparan- cial. A adoção de tal medida compensa- PUC-SP, é professor das Faculdades Oswaldo Cruz. Foi
do comparada à de outros países. do o cenário do campo com o baixo valor rá a perda dos impostos em decorrência presidente do Sindicato dos Economistas no Estado de
No Brasil existem somente duas fai- arrecadado pelo ITR, pode-se concluir que, da diminuição dos tributos sobre o con- São Paulo e vereador na cidade de São Paulo.
xas de cobrança do Imposto de Renda na prática, os latifundiários e grandes pro- sumo e da isenção da cesta básica. Além
(IR): para os salários entre R$ 1.371,82 e prietários rurais não pagam esse tipo de im- disso, abrirá a possibilidade de reduzir a
R$ 2.743,25, a alíquota é de 15%, e para os posto no país. carga tributária incidente sobre pequenos
1 Waterhouse & Coopers/Unafisco Sindical.
que ultrapassam esse valor é de 27,5%. A O Brasil figura entre as 12 economias e médios produtores e também sobre ra- 2 Mais informações disponíveis em http://www.legiscenter.
isenção é aplicada para remunerações até mais ricas do mundo, mas tem um nú- mos industriais que atendam aos interes- com.br.
R$ 1.372,81. Nesse contexto, é importante mero alto de pessoas com renda irrisória. ses da sociedade brasileira. 3 O Atlas da exclusão social – Os ricos no Brasil, publicado
pela Editora Cortez em 2004, é outra referência importan-
lembrar que, entre 1983 e 1985, havia 13 O grande problema é a extrema concen- Em relação ao Imposto de Renda, uma
te em que se demonstra a enorme concentração da renda
faixas com variação de 0% a 60% nas alí- tração da riqueza. Dados publicados pelo proposta possível é aumentar o número de e riqueza em nosso país.
quotas e intervalos de 5%. economista Márcio Pochmann mostram faixas e a amplitude de sua cobrança. Po- 4 História da riqueza das nações, Adam Smith, São Paulo,
Para efeito comparativo, nos Estados que 5 mil famílias brasileiras detêm um de-se estipulá-la a partir de um patamar de Nova Cultural, 1985.
Unidos existem cinco faixas, cujas alíquo- patrimônio da ordem de US$ 250 bilhões. R$ 1.987,51, que é o salário mínimo defini- 5 Uma questão preliminar a ser destacada e definida antes
de discutir as propostas é autorizar a progressividade dos
tas variam de 15% a 39,6%; na França são Por outro lado, o ministro de Assuntos Es- do pelo Dieese para maio de 2008, e criar
impostos como determina a Constituição Federal, no pa-
12 faixas cujas alíquotas variam entre 5% tratégicos, Roberto Mangabeira Unger, de- 12 faixas, com variação de 5% a 60% nas rágrafo 1º do artigo 145. Isso porque a progressividade é
e 57%; e na Holanda, há quatro faixas com monstra, num estudo, que 70% dos títulos alíquotas e com intervalos de 5%, seme- um instrumento de importância fundamental para fazer
variação de 6,2% a 60%. Por outro lado, nos da dívida pública do Brasil, hoje na casa lhante ao que ocorria em nosso país entre justiça tributária.

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24 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2008

CHINA / SOCIEDADE

A ‘democratização
conservadora’
Por meio da constituição em seu interior de “tendências” que expressem os diferentes segmentos sociais, o
Partido Comunista busca conservar o monopólio do poder e garantir a estabilidade, proporcionando, ao mesmo
tempo, uma válvula de escape para os descontentamentos e um mínimo de escolha política para os cidadãos
POR JEAN-LOUIS ROCCA *

o Congresso do Partido Comunis- No meio intelectual, o fato de aderir didas concretas, que incluem a extensão vo encarregado das eleições nas aldeias.

D ta Chinês (PCC) em outubro de


2007 até os preparativos para os
Jogos Olímpicos, passando pela
tarefa de administrar o “caso tibe-
tano”, não se pode dizer que a China tenha
oferecido uma imagem renovada do seu
sistema político. Esse conservadorismo
ao partido pode garantir certa tranqüili-
dade de espírito. Assim, para um jornalis-
ta, “o fato de pertencer ao partido propor-
ciona uma maior liberdade de expressão”.
O paradoxo é apenas aparente: a pessoa
cooptada acede a um círculo restrito onde
as discussões são mais livres. Essa percep-
limitada, porém real, dos sistemas de se-
gurança social, a atenuação do fardo fiscal
dos camponeses, além do controle, que
pretende ser menos brutal, das migrações
e dos movimentos sociais.
Por trás de uma fachada de imobilis-
mo, o “gradualismo” reformador modifica
“Uma sociedade instável proibida de se
expressar por meio das urnas – instável
em parte porque privada de expressão –,
ou uma sociedade em desordem por cau-
sa das urnas?” A classe dirigente e a maio-
ria dos comunistas estão empenhadas em
evitar esses dois obstáculos.
que emana “de cima” contrasta, porém, ção remete precisamente ao tema da “de- os grandes equilíbrios políticos. É verda-
com a amplidão, a freqüência e a nature- mocratização do partido”, que foi aborda- de, está fora de questão organizar eleições NOVAS FORMAS DE AÇÃO POLÍTICA
za dos movimentos sociais que vêm sen- do por ocasião do 17º Congresso. a curto ou médio prazo: a “democratiza- Geralmente objeto de troça, não raro
do deflagrados pelo país afora. Com efei- É possível interpretar esse slogan como ção do partido” consiste numa série de por parte dos próprios chineses, a “demo-
to, nele estamos assistindo a uma semi- a pirueta retórica de uma organização que, experiências restritas, feitas para circuns- cratização”, contudo, não se limita a uma
institucionalização do protesto. E esta não diante de sua incapacidade de democrati- crever a reforma dentro de um quadro es- mera visão teórica. Ao lado da contestação
resulta de uma pressão social exterior ao zar realmente a sociedade, propõe um ené- treito. Da mesma forma que a democra- social, ou, melhor dizendo, por trás dela,
partido, mas sim da ação de indivíduos e simo sucedâneo de liberalização. Contudo, tização das campanhas, que já é antiga, revelam-se formas de ação política pro-
de grupos situados no próprio interior do o discurso oficial traduz um conjunto de re- havia limitado o seu impacto às questões movidas por membros do partido. Advo-
“sistema”. Uma tamanha modificação nos alidades diferentes. Nele se destaca o pro- internas da aldeia, a democratização do gados, deputados, funcionários, professo-
obriga a sair do quadro habitual da análise cesso de reflexão iniciado há alguns anos partido limita o espaço de discussão e de res, responsáveis de “organizações de mas-
política, que geralmente coloca em oposi- nas escolas do partido em torno de um ce- contestação a um público escolhido, inte- sa” (Federação das Mulheres, sindicato) e
ção um “poder” todo-poderoso, cujas prá- nário político de “democratização conser- grado por pessoas responsáveis. Nos dois empreendedores estão presentes, não só
ticas são tortuosas e sem escrúpulos, com vadora”. O objetivo era dos mais ambicio- casos, trata-se de evitar todo e qualquer na mídia e nas organizações não-governa-
uma “sociedade” alternativamente perce- sos. Tratava-se de responder à seguinte per- desvirtuamento do processo. mentais (ONGs) como também nos basti-
bida como atônica ou à beira da revolta. gunta: como conservar o poder (interesse Seguramente, o cenário da democrati- dores do poder, para defender categorias
Entre 2002 e 2006, cerca de 12 milhões pessoal) e garantir a estabilidade (interesse zação conservadora é relativamente pouco sociais que eles consideram vilipendiadas.
de pessoas aderiram ao PCC. Quais razões coletivo), criando ao mesmo tempo um es- importante se comparado com a “segunda Alguns dão aulas de direito para os mi-
as motivaram a fazer tal escolha? Para al- paço de expressão e de escolha políticas? onda democrática” (em conseqüência da grantes vindos do campo3, ou ainda publi-
guns indivíduos, que são executivos do Resposta: por meio da constituição, no Segunda Guerra Mundial) ou com a tercei- cam artigos nos quais apontam os vínculos
partido e da administração, a pergunta pa- interior do partido, de “tendências” que ra (a dos países do ex-bloco do Leste). Mas existentes entre os movimentos de protes-
rece simplesmente não ter sentido: per- permitam articular entre si os diferentes ele sustenta a comparação com a “primei- to e as injustiças sociais, e entre a contesta-
tencer ao partido é um meio para aceder meios sociais. O PCC conservaria, eviden- ra onda democrática”, que conheceram os ção e a defesa dos direitos. Outros apóiam,
a uma função e acumular poder. Para ou- temente, o monopólio do poder, só que à países da Europa ocidental: todo o questio- e até mesmo financiam, iniciativas em fa-
tros, as motivações são mais diversificadas. maneira do Partido Liberal Democrata ja- namento político das elites do século XIX vor dos pobres ou dos expulsos. Outros
“Se quiser subir na hierarquia, preciso me ponês, que vem atuando da mesma for- se articulou em torno da contradição entre ainda defendem o patrimônio, ou mesmo
submeter a esta formalidade”, explica um ma desde a sua criação depois da Segun- uma democratização percebida como ine- a idéia de uma redistribuição dos recursos
docente. Numa das grandes universidades da Guerra Mundial. O exemplo é citado ex- lutável, e até mesmo desejável, e os temores do crescimento.
do país, foram recenseados 80% de profes- plicitamente. Ou ainda, tal como na Euro- que ela suscitava entre os “dominantes”1. Recentemente, personalidades passa-
sores comunistas. Mas nem por isso o fato pa e nos Estados Unidos, no âmbito de um O pensador político Alexis de Tocquevil- ram a fornecer seu apoio para associações
de ser detentor da carteira de membro ga- sistema de poder movimentado por dois le (1805-1859, conhecido por suas análi- de proprietários de apartamento às voltas
rante a ascensão social. A rede de relações, grandes partidos que, concordando entre ses da Revolução Francesa) louva o povo com maus administradores de prédios que
o sucesso profissional e até mesmo o en- si a respeito das questões fundamentais, (o cidadão honesto e sensato), mas infa- mantêm assiduamente suas relações com
riquecimento constituem métodos muito fazem prevalecer o consenso acima do ma o populacho (a multidão, as massas, os as autoridades locais. A meta que está em
mais seguros para tanto. conflito e, portanto, a estabilidade. A de- revolucionários)2. Embora os grandes siste- jogo é considerável: trata-se de consagrar o
Um secretário do partido em uma ins- mocracia no interior do círculo das elites mas democráticos tivessem germinado em reconhecimento dos direitos da “classe mé-
tituição pública aguarda há muito tempo permitiria reformar o regime, evitando pa- função do medo gerado pela revolução, o dia” de gozar daquilo que ela mesma defi-
uma promoção à patente superior, ao passo ralelamente a instabilidade política. temor de ver surgirem das urnas maus di- ne como o seu fundamento, a propriedade
que sua adjunta, casada com um alto exe- rigentes (não só demagogos como também imobiliária. Nos grandes conjuntos habita-
cutivo de outra instituição, acaba de obtê- “SOCIEDADE HARMONIOSA” líderes desprovidos de experiência e de co- cionais de Pequim, a eleição de represen-
la, apesar dos questionamentos que pesam Desde 2002, os dirigentes vêm enfati- nhecimentos) por muito tempo impediu tantes dos proprietários tornou-se obriga-
sobre suas qualidades profissionais. Outro zando essa alteração de rumo. A escolha todo avanço radical nesse campo. tória. As autoridades locais não tardaram a
exemplo de sucesso fora dos quadros do de slogans que veiculam conceitos tais A problemática chinesa é idêntica, ex- encontrar estratagemas próprios para esva-
partido é o filho de uma riquíssima mulher como os da “sociedade harmoniosa”, da ceto que nela a desordem substitui a re- ziar essas eleições do seu sentido, mas a re-
de negócios: mesmo sem possuir diploma “pequena prosperidade”, ou ainda, mais volução. As elites procuram uma fórmu- forma caracteriza um reconhecimento dos
algum, apesar de três anos freqüentando as recentemente, da “ciência do desenvol- la que permita democratizar sem atritos direitos dos proprietários. Por fim, jornalis-
aulas de uma universidade estrangeira, sua vimento” confirma um processo de legi- e garanta ao mesmo tempo ao país os tas seguem denunciando escândalos rela-
mãe conseguiu introduzi-lo na alta hierar- timação das demandas da “sociedade”. A “bons” dirigentes. “Qual seria a situação cionados à poluição, e ainda os maus-tra-
quia de uma empresa pública. esse gesto simbólico acrescentam-se me- mais perigosa?”, pergunta um executi- tos infligidos aos migrantes, aos campone-
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© REUTERS/Andrew Wong
Integrantes da Juventude Comunista comemoram o aniversário do Movimento 4 de Maio, que, em 1919, sacudiu o país e propiciou, dois anos mais tarde, a criação do Partido Comunista.

ses e aos urbanos expropriados. Esse novo servaram uma sensibilidade, reflexos e uma não devemos mais intervir na política.” “É se recusando a conferir um quadro (jurí-
ativismo deve muito à modificação elitista linguagem em comum. “Dentre nós, muitos preciso evitar todo confronto direto com o dico, formal, legítimo) às suas prerrogati-
que alterou a composição do partido, a qual são aqueles que ficaram ressabiados, tanto regime”, acrescentam os outros. A sua es- vas. Eles não entenderam que o modo de
apresenta uma proporção crescente de jo- em relação ao mito revolucionário quanto à colha não é inteiramente de natureza táti- governo precisa evoluir e incorporar, em
vens, de homens de negócios e de diploma- crença na democracia e nas eleições”, diz um ca. Uma boa parte desses “militantes” per- parte ou totalmente, as aspirações sociais,
dos do ensino superior. intelectual renomado. “Tudo isso é perigoso tence ao sistema. E, mais precisamente, a caso eles queiram evitar... perder o poder.
Nem revolucionários nem dissidentes, e, nesse sentido, nós precisamos encontrar grupos sociais que foram favorecidos pe- A aparição de novas camadas sociais,
esses cidadãos, pessoas que em sua maio- um caminho intermediário.” las reformas econômicas: técnicos, execu- agrupadas sob a denominação prática, po-
ria estão com cerca de 50 anos, com freqü- tivos de grandes empresas, homens de ne- rém confusa e imprecisa, de “classes mé-
ência têm em comum um passado “de mili- REPRODUÇÃO DAS ELITES gócios, docentes. Da mesma forma que os dias”, constitui outra peça desse “quebra-
tância”. Os mais destacados dentre eles co- A sua trajetória conduz esses “demo- dirigentes, eles cultivam um apreço pela cabeça” político. A esses grupos sociais per-
nheceram os grandes movimentos políti- cratas conservadores” a pensar a reforma estabilidade e temem perder vantagens, tencem muitos comunistas. Beneficiários de
cos da época maoísta (Revolução Cultural, política em termos de evolução rumo a um tanto mais preciosas por terem sido obti- um nível de renda que lhes permite possuir
envio dos jovens instruídos para o campo), mecanismo que garanta ao mesmo tempo das tardiamente. No entanto, a sua ação uma casa própria, um carro, viajar e, resu-
além das fases de questionamento do regi- a ordem, a reprodução das elites e uma for- constitui uma demonstração de certa co- mindo, “tirar proveito da vida”, eles manifes-
me (principalmente em 1979 e 1989). Eles te dose de mobilidade social. Afinados com ragem e implica discrição: caso contrário, tam uma atitude política ambivalente.
dominam com a mesma desenvoltura tan- o discurso oficial, eles preconizam um for- o seu status, e até mesmo a sua liberdade, De um lado, criticam o enriquecimen-
to a língua oficial quanto a gramática da sua talecimento das leis, entre outras razões poderia estar ameaçado. to baseado nas remunerações ilegais ou
contestação. Após terem enfrentado todas para garantir os direitos fundamentais das O impacto dessas lutas é reduzido, po- nos “privilégios” (tequan) decorrentes da
as ondas de repressão sucessivas, eles hoje categorias desfavorecidas ou em situação rém não desprezível: houve uma melho- origem familiar, ao passo que eles mes-
perderam todo e qualquer senso do sacrifí- difícil: pessoas que foram expropriadas da ra considerável da imagem dos migrantes mos podem contar apenas com os seus
cio. Podem ser encontrados em todos os se- sua moradia ou das suas terras, migrantes no plano da opinião, enquanto o não-paga- próprios méritos e salários duramente
tores do poder. E não raro o observador se explorados, urbanos empobrecidos pelas mento dos seus salários os torna mais raro; o onerado por pesados tributos. Eles se di-
surpreende ao descobrir a existência de afi- reformas, proprietários de imóveis em luta número dos recursos contra os maus-tratos zem favoráveis a uma extensão da pro-
nidades entre indivíduos que ocupam po- contra os administradores e os empreitei- vem aumentando; o processo de conscienti- teção legal dos interesses individuais e a
sições muito afastadas entre si – nos cam- ros imobiliários, residentes que protestam zação diante dos problemas de poluição está uma ampla democratização das liberda-
pos das artes e da administração, no setor contra a poluição do ar ou dos rios… ganhando uma força inegável; os interesses des de expressão, de associação e de em-
acadêmico e no mundo dos negócios –, mas O seu objetivo é viabilizar canais legais dos proprietários de apartamento começa- preendedorismo.
que se conheceram na época maoísta. de expressão do descontentamento e en- ram a conquistar certa legitimidade. Embo-
Esse é o caso de Zhang, no passado um sinar os protestatários a utilizar o arsenal ra modestas, essas realizações superam as da DESCONFIANÇA EM RELAÇÃO ÀS ELEIÇÕES
jovem culto enviado para o campo e hoje o legal para fazer frente aos procedimentos dissidência; de fato, esta última exerce uma De outro, opõem-se à implantação de
diretor de um dos escritórios administrativos condenáveis dos homens de negócios e das influência limitada, tanto em razão do redu- eleições, nas quais enxergam uma fon-
de uma grande municipalidade4, que man- burocracias locais. A afirmação das cate- zido apoio popular com o qual pode contar te potencial de confusões sociais, de vio-
teve uma amizade com um artista célebre gorias sociais (proprietários, expropriados, quanto da repressão da qual é vítima. lência e de fragmentação política. “Quem
com quem ele passou três anos na Mongólia. pobres, migrantes) deve passar por uma Os inimigos da vertente “reformadora” pode nos garantir que os dirigentes oriun-
Num outro caso que vem a ser mais espan- proteção dos seus direitos (weiquan). não se encontram nem no governo nem no dos de um pleito sejam melhores do que
toso, um antigo guarda vermelho que ago- Nenhum “reformador” se arrisca a des- partido: são todos aqueles que, nas admi- os que governam a China atualmente?”:
ra se dedica aos negócios cultiva as melho- respeitar o sinal vermelho, aderindo à con- nistrações, nas empresas ou nas universi- tal é, em substância, a sua mensagem. Os
res relações possíveis com um dos seus anti- testação do regime. “O tempo das revolu- dades, querem continuar tirando provei- integrantes dessas novas camadas sociais
gos adversários. Dessa experiência, eles con- ções está encerrado”, dizem alguns. “Nós to do regime e simultaneamente seguem sublinham a importância da contribuição
26 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2008

ESTADOS UNIDOS / ELEIÇÕES

dos migrantes para a prosperidade atual e dernizar o país e de ampliar as margens

Devagar
defendem as medidas que podem melho- de liberdade e de justiça social”. A tática
rar suas condições de vida e de trabalho. tem um vínculo claro com as análises de
Mas também insistem na necessidade de economistas que preconizam o cresci-
“civilizar” esses camponeses antes que a mento da demanda interna por meio do
cidadania urbana lhes seja concedida5. aumento da renda dos menos favoreci-
Esse novo contexto político constitui dos, além da “ampliação da segurança”
uma forma de resposta às contradições
mais gritantes da sociedade. O ritmo frené-
tico do crescimento e a expansão conside-
rável da importância dos interesses sociais
que o acompanha geram frustrações e de-
sejos, os quais não podem mais ser satis-
feitos a não ser por meio... do próprio cres-
das condições de vida, próprias para esti-
mular o consumo7. Com isso, fica mais fá-
cil compreender por que o discurso agra-
da aos dirigentes do país. Uma sociedade
mais ouvida em suas aspirações, e dotada
de instituições modernizadas, garantiria a
perenidade do seu poder.
com o andor
cimento. A promessa perpétua de uma so- Muito pouco revolucionário, tal pro- Para aqueles que apostam suas fichas em Barack
ciedade futura melhor não é mais suficien-
te: muitos exigem garantias efetivas de que
jeto permite esquivar a questão de uma
mudança de regime, e reforça, portanto,
Obama, o candidato democrata já assinalou que
isso irá acontecer. o PCC. Ao vincular estreitamente as op- seguirá a política externa de Kennedy e Bush pai
Diante dessa situação, as vertentes po- ções políticas aos interesses individuais,
líticas que surgiram desde os anos 1990 não ele se preserva da tendência de se toma- POR SERGE HALIMI
oferecem nenhuma resposta adequada. O rem medidas irrefletidas e da repressão, e
retorno à “tradição”, que toma a forma de deixa ao mesmo tempo um espaço para o
uma regeneração do confucionismo, de social. No entanto, coincide inegavelmen-
modo algum se afina com o crescimento. te com as evoluções sociológicas do país.
Além disso, ele contradiz o desejo de expe- As camadas sociais mais ativas – as famo-

B
rimentar novos estilos de vida. A nebulosa sas classes médias – se mostram cada vez
de grupos e de pessoas que é chamada na mais decididas a defender seus interes- arack Obama é um homem de cabe observar – de “vencer as eleições”? Os
China de “nova esquerda” pode até mesmo ses, sem para tanto exigirem uma mudan- sorte. Surge após um dos presi- últimos meses parecem sugerir a respos-
seduzir alguns, por causa das suas referên- ça brutal de regime. dentes mais impopulares da his- ta: mais à direita. Não a ponto de torná-lo
cias à renovação nacional, mas a sua von- Mas não é menos verdadeiro que a es- tória de seu país, é jovem, mesti- equiparável ao republicano John McCain
tade de restaurar a coletivização da eco- tratégia que visa evitar interferir no campo ço e todo o planeta parece espe- e, portanto, de justificar a palavra de or-
nomia e de retornar ao igualitarismo não político (não podemos mexer nos funda- rar que ele chegue à Casa Branca. Está, dem “trocar seis por meia dúzia”. Mas su-
suscita interesse algum numa população mentos do poder), preferindo passar pelo portanto, mais bem municiado que qual- ficientemente distante do discurso pro-
conquistada pelas delícias da vida moder- social (vamos agir de tal forma que os di- quer outro concorrente para “renovar a li- gressista do início de sua campanha, e ain-
na. Quanto ao liberalismo político, ele não reitos individuais e a justiça social sejam derança norte-americana no mundo”1, ou da mais longe do que poderiam crer seus
raro é percebido, tanto pelos intelectuais respeitados), tem diante de si um bom nú- seja, reabilitar o nome América e tornar partidários mais idealistas, pois o bordão
quanto pelos chineses comuns, como por- mero de obstáculos. Assim, a lógica de de- mais efetivas – devido à maior aceitação e “Yes, we can” [Sim, nós podemos] tornou-
tador de um novo caos do tipo do massa- fesa dos direitos não garante o mesmo tra- adesão – as intervenções dos Estados Uni- se também: sim, podemos criticar uma de-
cre da Praça Tiananmen. tamento para todos os cidadãos: de fato, o dos no exterior. cisão da Corte Suprema, ela mesma mui-
direito é um produto da luta política. Nes- Aí se incluem operações militares, par- to conservadora, que proíbe a execução de
CANAIS DE EXPRESSÃO LEGÍTIMOS se contexto, as “classes médias” teriam a ticularmente no Afeganistão: “Construi- estupradores não culpados de assassinato;
A nova “vertente”, que revela ser tão legitimidade necessária – nem que seja rei o exército do século XXI e uma parceria sim, podemos proferir junto ao lobby pró-
difusa quanto as precedentes, adota um porque elas consomem – para se tornarem tão forte quanto a aliança anticomunista israelense um discurso que se alinha com
ponto de vista diferente. Ela não busca os pilares dessa democratização conser- que venceu a Guerra Fria, para que possa- as posições mais inflexíveis do governo de
promover uma receita, quer esta venha do vadora. Inversamente, as camadas sociais mos ficar sempre na ofensiva, de Djibouti Ehud Olmert; sim, podemos associar siste-
passado, quer do mundo exterior, mas sim desfavorecidas – os migrantes, por exem- a Kandahar”2. Para aqueles que ainda acre- maticamente a criatividade ao setor priva-
encontrar uma solução para o impasse do plo – enfrentariam dificuldades para se fa- ditavam que um presidente “multicultu- do, completar a missão de redefinir o pro-
crescimento. Em sua concepção, o descon- zer ouvir e poderiam se ver tentadas a em- ral”, nascido de um pai queniano, repre- gresso – lançada por Clinton e Tony Blair
tentamento social está crescendo porque preender ações “revolucionárias”. sentaria automaticamente a emergência – e promover uma aliança de classe cujos
ele não dispõe de canais de expressão legí- Existe outra armadilha: a resistência de uma América new age, onde o povo todo dirigentes seriam os atores-chave.
timos. Da mesma forma, a ascensão social às mudanças por parte das burocracias estaria de mãos dadas, o candidato demo- Há mais com que se inquietar. Anima-
vai ficando emperrada em razão do papel locais – e, sem dúvida, também de uma crata já assinalou que se inspirará menos do pela enxurrada de contribuições finan-
que desempenha o capital social e políti- parte da alta administração. A explora- em Pink Floyd ou George McGovern e mais ceiras que inundam os cofres de sua cam-
co no sucesso profissional. Se um reverté- ção dos migrantes ou a tomada de con- na política externa “realista e bipartidá- panha, Obama acaba de desferir um gol-
rio da conjuntura econômica viesse a de- trole sobre o setor imobiliário geram lu- ria, de George Bush pai, John Kennedy e, pe certeiro, talvez fatal, no sistema de fi-
sanimar a população em sua fé num futu- cros tão importantes que o governo cen- em certos aspectos, de Ronald Reagan”3. nanciamento público das eleições. Dessa
ro melhor, aumentariam os riscos de essas tral terá muitas dificuldade para refor- O multilateralismo não figura no horizon- forma, ele anunciou que seria o primeiro
frustrações desembocarem numa explo- mar essas práticas. te imediato. O imperialismo, entretanto, candidato à presidência desde o escânda-
são política. será mais soft, mais habilidoso e bem or- lo de Watergate a renunciar ao montante
Conforme comentou o sociólogo Chen questrado. E, quem sabe, um pouco menos doado pelo Estado (US$ 84,1 milhões em
Yingfang, “se, numa sociedade, as camadas mortífero – apesar de os oito anos de em- 2008) a cada um dos dois grandes rivais,
* Jean-Louis Rocca é pesquisador no Centro de Estudos
médias urbanas, que dispõem de uma ca- bargo econômico que a gestão Clinton im- em troca de aceitar um teto de despesas
e de Pesquisas Internacionais (CERI-Sciences-Po) e au-
pacidade de ação legal e de uma raciona- pôs ao Iraque também terem tirado muitas equivalente à soma recebida. O peso do
tor de La condition chinoise (Paris, Karthala, 2006) e La
lidade política, não dispuserem dos meios Chine vue par ses sociologues (Paris, Presse de Scien-
vidas... dinheiro na política não é um problema
necessários para defender seus interesses ces-Po, 2008).
Barack Obama tem muito talento. A au- de menor monta nos Estados Unidos, e
de maneira eficiente; ou se o poder inter- dácia de ter esperança, seu livro-programa, Obama já assinalou que não o resolverá.
ferir sistematicamente para impedir essa dá a medida de sua mescla de inteligência Em outros setores, porém, ele ainda tem a
1 Guy Hermet, Le passage à la démocratie, Paris, Presses histórica, de astúcia, humor, “empatia” po- chance de não decepcionar. O que permi-
expressão, recorrendo para tanto à lei ou à
de Sciences-Po, 1996.
ação política, e até mesmo à violência ou 2 Ler Philipe Videlier, “Des philosophes pour les propriétai-
lítica pelos adversários – sobre os quais ele tiria também aos verdadeiros amigos do
à ameaça, então os cidadãos podem op- res” in “L’Internationale des riches”, Manière de Voir, n° 99, afirma “entender as motivações e reconhe- povo americano conservar a tal audácia
tar pela ação revolucionária. O que vem a junho-julho de 2008. cer neles valores que compartilho”–, de de- de ter esperança.
ser uma opção mais onerosa em termos de 3 Esses “migrantes” (mingong) vêm do campo, mais ou me- clarações sabiamente equilibradas – que
nos clandestinamente, e ocupam os empregos menos
subversão social e de riscos políticos”6. não constituem uma grande solução, mas
qualificados. Seus direitos são raramente respeitados.
Para conjurar esse fantasma, a nova 4 Um diretor de escritório cumula as atribuições de um dire- satisfazem a (quase) todos –, e até mesmo
vertente propõe fazer convergirem forças tor regional e de um adjunto especial do prefeito. de convicção. Convicção essa dosada por * Serge Halimi é diretor de redação de Le Monde Diplo-
envolvidas com os movimentos sociais e 5 Ler “The imaginary of ‘urban executives’ in contemporary uma inquietante homenagem ao ex-presi- matique (França).
China: some findings”, palestra do autor no colóquio dente Clinton, que teria “extirpado do par-
as atividades associativas. Juntas, elas po-
“Asian Societies in Comparative Perspectives”, Seul, Yon-
deriam modificar os fluxos de mobilidade sei University, 26-27 de outubro de 2007.
tido democrata alguns dos entraves que o
1 Barack Obama, “Renewing American Leadership”, Foreign
social sem entrarem no campo político. 6 Chen Yingfang, “Poder de ação e limites institucionais: as impediam de vencer as eleições”4. Quais Affairs, Nova York, julho de 2007.
Trata-se de obrigar o Estado e, principal- camadas médias nos movimentos urbanos”, um estudo entraves? A recusa da pena de morte? A 2 Ibid. Essa pretensão implicará um aumento do orçamento
mente, as administrações locais a adota- em chinês, não publicado. ajuda social aos pobres? A defesa das liber- do Pentágono e o acréscimo de “65 mil soldados e de 27
7 Ler o sociólogo Sun Liping, “Enrichir le peuple pour ac- mil marines” nas forças armadas norte-americanas.
rem políticas sociais além de medidas de dades públicas? O respeito ao direito inter-
croître la demande intérieure” e “Penser autrement pour 3 Discurso de Greensburg, Pensilvânia, 28 de março de
proteção jurídica. Na opinião de um ex- refonder l’ordre social”, Nanfang Zhoumo (“Week-end du nacional? 2008.
professor agora dedicado aos negócios, sud”), Cantão, respectivamente de 16 de março de 2006 Barack Obama é ambicioso. Mas até 4 Barack Obama, The audacity of hope, Nova York, Crown,
“a sociedade é a única força capaz de mo- e de 17 de julho de 2007. onde o conduzirá a pretensão – legítima, 2006.
28 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2008

HAITI / RECONSTRUÇÃO

Ainda muito longe


da normalidade
A insegurança não está na violência das ruas de Porto Príncipe, muito exagerada pela mídia. Ela é até
menor do que a violência de metrópoles como a Cidade do México e o Rio de Janeiro. A insegurança reside,
isto sim, numa precariedade permanente: alimentar, sanitária, educacional e profissional
POR CHRISTOPHE WARGNY*

R
eeleito presidente do Haiti em Em um país tão isolado quanto o Hai- atingido pelo aparelho de Estado nestes Edouard Alexis e provocou uma nova crise
2006, René Préval define-se como ti, o celular revoluciona as relações. Havia 20 anos”, responde a presidente da Fokal, política no país.
um presidente de transição. É um 300 mil assinantes em 2005. Existem 3,3 Michèle Pierre-Louis, que simpatiza com O Haiti normal ainda tem um caminho
homem simples, modesto e hones- milhões atualmente! As primeiras opera- aqueles que tentam governar, mas não su- a seguir. A violência de classe permanece
to. Qualidades tão raras em seus doras identificaram potencial suficiente e porta a falta de coerência e rigor. “Há um paroxística. A oligarquia, próspera graças
antecessores! Ele pode até mesmo, se você perspectiva de lucros imediatos. As ope- vazio institucional não dissimulado. Os ao apoio do Estado e ao bom andamen-
estiver no Palácio Nacional e for seu último radoras que vieram a seguir esmagaram poderes públicos estão ausentes. Eles não to dos negócios, reinveste seus lucros no
interlocutor do dia, assumir o volante e le- as primeiras, apostando no longo prazo, têm estratégia nem prioridades, tampouco Bank of Boston ou no Citybank. Os prole-
vá-lo de volta para casa. Sem motorista ou em preços cinco vezes menores do que os têm uma política de incentivos ou meios tários, cada vez menos presentes nas fá-
acompanhante... em um país onde flores- da Europa, na cobertura total do país, no de repressão. Prende-se um importan- bricas (cujos efetivos somam apenas 3%
cem as milícias privadas, as empresas de apoio às equipes esportivas e em um sis- te traficante: no dia seguinte, ele está sol- dos trabalhadores ativos), engrossam as
segurança e a paranóia do atentado. tema que permite “recargas” mútuas entre to nas ruas!” É o que as militantes do mo- fileiras da economia informal nas cidades
Os 9 mil homens da Missão das Nações os diversos cartões. Resta ainda uma difi- vimento feminista Sofa qualificam de “go- e nos campos, sem outros interlocutores
Unidas para a Estabilização do Haiti (Mi- culdade: recarregar o novo “abre-te sésa- verno servil e invertebrado”, clamando por além de um Estado incapaz e de uma co-
nustah) estão lá, no entanto, desde 2004. mo” entre um corte de energia e outro! “um Estado regulador que se engaje em munidade internacional obcecada pela
Sua eficácia parece frágil, mesmo tendo Mais ainda que as bicicletas ou as pe- uma América Latina em plena mutação”. aparência de democracia.
garantido a realização das últimas eleições quenas motos que se multiplicam numa A Estrada Nacional 1 leva ao Departa-
e contido uma parte da violência. O pre- cidade plana ou nas estradas reconstruí- ESPERA-SE TUDO DO ESTADO mento do Nordeste, um dos mais despro-
sidente apreciaria que eles se empenhas- das, o telefone assegura uma continuida- Michèle recusou ser ministra do presi- vidos. São mais de sete horas para percor-
sem na construção civil, mas essa não é a de de relação até então inexistente. Os po- dente Préval, alegando a falta de visão da rer 300 quilômetros. As favelas à beira-mar
missão que lhes cabe. René Préval gostaria deres públicos, que nunca puderam de- classe política. Segundo ela, os parlamen- parecem calmas, cercadas por postos da
também que os ricos fossem menos arro- mocratizar o incerto telefone fixo (mina de tares têm mais talento para conseguir car- Minustah. Assim como as estações balneá-
gantes e os pobres, menos miseráveis. Ele ouro de todos os executivos, a Téléco Na- ros oficiais do que para votar as leis; a edu- rias de Archaïe, com poucos clientes. A ro-
anseia por um país normal. Um desafio tionale está em plena bancarrota), podem cação fundamental ou cidadã não é uma dovia foi sobrelevada para evitar as cheias
para o Haiti? encontrar na telefonia móvel um reforço prioridade verdadeira; e a atitude dian- cada vez mais imprevisíveis do Artiboni-
Normal. Como o aeroporto Toussaint da “normalidade”. A produtividade melho- te dos financiadores permanece confusa. te, o principal rio haitiano, que drena as
Louverture, limpo e seguro, onde agentes ra... para aqueles que produzem! “A política gera irresponsabilidade, repro- águas pluviais de um quarto do país. Mas
alfandegários e policiais se comportam dis- Resta um mistério: quando o preço dos duzindo o pior de nossa história. Uma vez nada detém as enchentes resultantes das
cretamente. Como os grandes progressos gêneros alimentícios aumenta bem mais que não há investimentos produtivos, es- tormentas tropicais. Em 2004, Gonaïves,
observados nas ruas: asfalto, início da co- rapidamente do que o poder de compra, o pera-se tudo do Estado, que não pode qua- a capital da região, foi soterrada por uma
leta de lixo, semáforos controlados por pai- que os haitianos fazem para pagar por esse se nada”. enxurrada de lama de 3 metros de altura:
néis solares e advertências aos contravento- suplemento da alma? A resposta não pode O Estado destina 8% do seu orçamento quase 3 mil mortos!
res. Como as fontes e os parques que exis- ser o salário mínimo, que, recentemente à educação (a metade da quantia “investi- A Minustah, países amigos e organiza-
tem em alguns bairros. Cité Soleil1 e suas vi- duplicado, passou a quatro dólares por dia. da” no pagamento da dívida) e escolariza ções não-governamentais socorreram uma
zinhas de infortúnio formam, à beira-mar, Pois este beneficia apenas os assalariados apenas uma em cada seis crianças. Mais parte da população, enquanto o governo
uma favela de meio milhão de almas mal- das empresas – de 3% a 5% dos trabalha- da metade do orçamento nacional depen- interino da época bateu todos os recordes
nascidas. Mas agora se circula a pé por ali: dores ativos –, sem que a lei preveja qual- de da ajuda externa. Cuba fornece médi- de inépcia e corrupção: os sobreviventes
as últimas zonas sem lei desapareceram. quer represália contra aqueles que não a cos e apóia a enésima campanha de alfa- deviam, por vezes, pagar pela carteira de
Comerciantes ocupam ilegalmente seu cumprem. Hipóteses aleatórias: as contri- betização. A Venezuela fornece petróleo6. identidade que dava direito à ajuda.
metro quadrado de asfalto, camelôs em buições da diáspora; menos generosidade O Brasil comanda a Minustah. Mas os Es- O Artibonite irriga a planície riziculto-
movimento, crianças em pencas, ribeiri- para o dízimo dos cultos; ou, quem sabe, tados Unidos e a União Européia garantem ra de mesmo nome. Há 20 anos, a produ-
nhos cercados por uma zona de livre co- menos proteínas. todo o resto, segundo critérios que deixam ção atendia a quase todas as necessidades.
mércio que se insinua por todos os lados: Esse “outro país”4, esses três quartos pouca escolha ao país recebedor. O crescimento demográfico e os violentos
o antigo quarteirão colonial tornou-se um dos haitianos excluídos de tudo, e princi- O governo destaca a volta da seguran- conflitos de terra, num país onde inexis-
mercado sem limites. E sem latrinas. Le- palmente de uma alimentação saudável e ça e da estabilidade. Mas a carestia trouxe te qualquer registro fundiário, não expli-
vantada pelos tap-taps2 e pelo vento ma- regular, são realmente excluídos? Muitos à baila as questões fundamentais: quan- cam por si sós o fato de que hoje 80% do
rinho, metade da poeira contém matérias pertencem a uma classe média que se re- do um haitiano em cada quatro não sabe arroz consumido no Haiti seja importado.
fecais! O ano de 2007 trouxe 80 mil novos compõe: do conserto mecânico ao suporte quando ou como comerá, a liberdade re- Os fertilizantes, cujos preços se multiplica-
hóspedes vindos das sombrias colinas com em informática, novas estruturas, mais ou cuperada perde quase todo o seu valor. ram por cinco, e as redes de irrigação mal
tão-somente um bilhete de ida. menos formais, mais ou menos profissio- Acrescente-se a crise alimentar mundial, conservadas são outros fatores. E o arroz
Embalada pela música rasin3 e pelo nais, nascem em Porto Príncipe. Espera-se que se agrava, e o país explodirá! Como americano, fortemente subvencionado,
rap, transmitidos pelas rádios FM em lín- que, em 2008, o país alcance uma porcen- quase aconteceu no último mês de abril, eliminou a metade dos pequenos produ-
gua mais créole que francesa, e pelas des- tagem de 10% de internautas. quando o saco de 23 quilos de arroz pas- tores haitianos. Para justificar a supressão
cargas dos canos de escapamento sem ca- Um dos melhores exemplos, mas não sou de 35 para 70 dólares, enquanto o mi- das taxas alfandegárias, exigida pelos pla-
talisadores, a poluição sonora se junta às o único: a Fundação Fokal5, uma organiza- lho, o feijão e o óleo de cozinha registra- nos de ajuste estrutural, dizia-se, na época,
demais. Misturam-se a ela as campainhas ção não-governamental engajada em pro- ram aumentos de 40% e o tap-tap ficou que era preciso favorecer os consumidores
dos celulares. Freqüentemente falta moti- jetos em prol do meio ambiente, da educa- 10% mais caro. Rebeliões e pilhagens cau- das cidades. Mas os importadores, senho-
vação real, mas é chique telefonar fazen- ção e da cultura, com centenas de funcio- saram seis mortos (dentre eles, um solda- res do mercado, não demoraram a aumen-
do outra coisa ao mesmo tempo: dirigir, nários e dezenas de bibliotecas. Esse pa- do da Minustah) e 170 feridos – 44 deles tar suas margens. E os agricultores falidos
por exemplo, ou abrir caminho em meio à pel louvável não caberia ao Estado? “Você baleados: uma explosão popular que cus- vieram aglomerar-se nas favelas de Porto
multidão para seguir em frente. não pode imaginar o nível de degradação tou o cargo ao primeiro-ministro Jacques Príncipe.
AGOSTO 2008 Le Monde Diplomatique Brasil 29

© REUTERS/Eduardo Munoz
Abril de 2008: uma cena típica do mercado ao ar livre de Porto Príncipe.

Passando Gonaïves, parcialmente re- A insegurança não é a violência nas A região não tem 1 quilômetro sequer O Haiti paga caro pelo meio século de
construída, a pista domina, à esquerda, um ruas de Porto Príncipe, exagerada pela mí- de estrada asfaltada. A uma distância de fuga de cérebros. Três quartos deles imi-
mar esmeralda e uma costa deserta, que dia. Ela é menor que a violência de metró- 30 quilômetros, percorridos em duas ho- graram para as Américas. Desastroso início
em qualquer outra parte do mundo causa- poles como a Cidade do México e o Rio de ras, encontra-se Môle Saint-Nicolas, um dos anos 2000. Fato este agravado pela in-
ria disputas. À direita, estende-se uma ter- Janeiro. A insegurança reside principal- quarteirão colonial de casas antigas, for- ternet que permite ao Quebec, por exem-
ra vermelha, queimada, desprovida das ár- mente nesta precariedade permanente: tes com canhões abandonados, invadi- plo, escolher os imigrantes francófonos
vores que, há três séculos, ocupavam todo alimentar, sanitária e profissional. dos pelo mato, uma magnífica enseada de de que necessita. Quando se sabe quanto
o espaço. Mas o carvão de madeira, princi- Crianças sem uniformes escolares. A praias virgens. Sem turistas. Os moradores custa no Haiti a formação de um profissio-
pal fonte de energia para a cozinha, ainda é freqüência à escola é aleatória. Algumas estão prontos, após um rico processo par- nal, compreende-se que o Canadá anuncie
fabricado: os arbustos de 3 centímetros de autoridades locais, assim como certas ticipativo, a pagar uma taxa de habitação o aumento de sua cooperação – coopera-
espessura, crescidos num pedregulho des- ONGs, têm consciência dessa realidade. que resolverá o problema do lixo e, no fu- ção que está longe de compensar a pilha-
provido de húmus, cortados e ensacados, Duas delas em especial – a Iniciativa De- turo, o do saneamento. A participação ci- gem ocorrida anteriormente. Isso pode ser
aguardam, à beira da estrada, o caminhão senvolvimento e o Adema (Ansanm pou dadã revela-se um meio de progredir mais sentido tanto em Jean-Rabel quanto em
que irá transportá-los. yon demen miyò an Ayiti – “Juntos para seguro do que a fé cega no “prêt-à-porter” outras partes: o déficit de desenvolvimen-
Isolados pela precariedade da estrada, um amanhã melhor no Haiti”, em língua democrático. to e a desnutrição derivam diretamente do
lugarejos e aldeias esperam por uma chuva créole) – criaram em Jean-Rabel uma es- As cooperativas declaram-se prontas conceito perverso de “imigração selecio-
cada vez mais rara e caprichosa, conseqüên- cola normal de professores primários, tal- para as primeiras obras. Há muito tempo nada”. Selecionada pelos outros.
cia do desflorestamento total. Os homens re- vez a melhor do país. A questão, no entan- existem possibilidades de financiamen-
únem-se em volta de uma partida de domi- to, é saber se centenas de alunos-mestres, tos destinados às corporações de classe.
nó. As mulheres transportam vasilhas d’água. aptos a criticar e a tomar iniciativa, serão Mas, para as ONG que as sustentam, há
A agricultura definha. Não há insumos nem suficientes para fazer evoluir um sistema outro obstáculo: o recurso humano local. * Christophe Wargny, enviado especial ao Haiti, é autor
reservas de água. E, como em outras partes, educacional marcado pela estagnação. As competências deixam a desejar, princi- de Haïti n’existe pas, deux cents ans de solitude (Paris,
observa-se o dumping dos produtos norte- palmente nas províncias isoladas. O mes- Autrement, 2008).
americanos, vendidos através do indefectível AUMENTAR OS SALÁRIOS CORTANDO VAGAS mo ocorre quando se trata de encontrar
alambrado dos pequenos armazéns, prote- Cem mil habitantes vivem em Jean-Ra- professores capazes para a escola primá- 1 A Minustah e a polícia haitiana reduziram, em 2007, os últi-
ção contra os esfomeados e os desonestos. ria e mesmo quando se tenta recrutar tra- mos bolsões proibidos na Cité Soleil, em Saline, Bel Air e
bel. Alguns milhares no centro, os demais es-
Martissant, onde o número de feridos a bala diminuiu sig-
Muitas crianças. Barrigas inchadas e palhados pelo imenso bananal ou sobre de- balhadores técnicos. Quando estes são en- nificativamente.
cabelos sem cor: sinais do déficit nutricio- clives mais áridos. A comunidade não con- contrados, a máquina da irresponsabilida- 2 Velhos ônibus ou camionetes que fazem o transporte de
nal. Mas não há fome. Tanto quanto pos- ta com nenhum recurso próprio. Nada além de, que ensina a desprezar ou reverenciar, passageiros.
sível, o Programa Alimentar Mundial su- de um fundo estatal e 45 funcionários públi- entra em ação. E para milhões de adultos 3 Corruptela da palavra francesa racine (raiz), rasin é o
nome de um movimento musical que combina elementos
pervisiona cantinas escolares, famílias nu- cos. Se as varredoras varrem, seu salário in- sem qualificação nada é proposto! Na au-
do cerimonial vudu e das canções folclóricas com o rock
merosas, mulheres grávidas. E também se depende do mínimo legal. O ministério res- sência de trabalho, não há outras alterna- and roll. A tendência iniciou-se no Haiti em 1987.
percebe a contribuição da diáspora, nessa ponsável propõe dobrar os salários... demi- tivas além da assistência oferecida pelas 4 Expressão utilizada por Gérard Barthélemy no livro Le
região tida como a campeã dos boat peo- tindo metade do pessoal. Com a ajuda do igrejas ou a revolta! As igrejas pentecostais pays en dehors.
ple com destino à Flórida. Segundo o Ban- e o catolicismo carismático estão por toda 5 O trabalho da Fokal (Fondation Connaissance et Liberté)
Adema, no entanto, as autoridades tentam
pode ser mais bem conhecido por meio do site www.
co Interamericano de Desenvolvimento definir um plano de desenvolvimento local. parte. E têm, quase sempre, as mais belas fokal.org.
(BID), a diáspora forneceu, em 2006, 1,7 Será necessário, em seguida, no catálogo das propriedades. As igrejas, em conjunto, são 6 A provisão é garantida a um preço inferior ao do mercado,
bilhão de dólares ao Haiti. cooperações, encontrar o financiador. também o primeiro empregador do país. com a metade da fatura escalonada em 20 anos.
30 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2008

ESTADOS UNIDOS / COMPORTAMENTO

Educação na redoma
Criticada por pedagogos, a escola em domicílio começa a chamar atenção nos EUA. Mais de 2
milhões de famílias já aderiram. Para os pais, a transmissão de valores considerados equivocados e o perigo
das “más influências” são motivos suficientes para retirar as crianças de um convívio social mais amplo
POR JULIEN BRYGO*

“Eu nunca deixei a minha escolarização sites especializados ou grupos de reflexão, uma pesquisa sobre o tema. De acordo com Amy King, que decidiu retirar sua filha da
prejudicar minha educação” os homeschoolers proliferam. Não só nos os resultados, 31% dos pais que optam por escola pública em 2001. Naquele ano, por
Mark Twain Estados Unidos como também na Fran- não colocar seus filhos nos estabelecimen- iniciativa do presidente George W. Bush,
ça, no Reino Unido, na Nova Zelândia, na tos escolares agem dessa forma por causa parlamentares democratas e republica-
Austrália, no Canadá etc 2. da sua preocupação com o “ambiente e o nos aprovaram a lei “No Child Left Behind”
m Ohio, estado determinante para

E
Cristã dedicada e bem relacionada entre contexto nos quais é ministrada a educação (“Nenhuma criança deixada para trás”),
a reeleição de George W. Bush, a classe média, a senhora Tompkins decidiu nas escolas”4. A segunda razão, que motiva- que acentuou a concorrência entre os es-
bate o coração da América pro- retirar seus filhos da escola pública por cau- ria outros 30%, está na sua vontade de “pro- tabelecimentos de ensino, facilitou o aces-
funda. Da América que sofre com sa da “má influência” que eles sofriam. Este porcionar aos filhos uma instrução moral so às escolas privadas e instituiu um verda-
a crise econômica e vê prospe- é o principal argumento de quem opta pela e religiosa”. A terceira justificativa, alegada deiro “mercado da educação”, alimentado
rar a ideologia conservadora num terre- educação em domicílio. Os pais avaliam os por 16,5% dos pais, está na sua insatisfação por “bônus educativos”6. Para Amy King, a
no antes fértil para a esquerda1. Em um de “dogmas progressistas”, a convivência en- em relação à “formação intelectual ofereci- homogeneização que resultou dessa lei “de-
seus rincões, o vale mineiro próximo ao rio tre jovens de condições sociais diferentes, a da nas escolas”. Certas necessidades parti- sastrosa”, “tornou a escola demasiadamen-
Hocking, está o barracão da família Tom- carência de disciplina e a educação voltada culares da criança (7%) ou, ainda, os seus te rígida, acentuou as desigualdades entre
pkins. A construção chama a atenção por para a sexualidade como uma sucessão de problemas de saúde física ou mental (7%) alunos” e instaurou a rapidez da aprendiza-
suas paredes, repletas de centenas de li- obstáculos para o desenvolvimento harmo- também foram mencionados. gem como “único critério educativo”.
vros. Mesmo sem um quadro-negro, essa é nioso de toda criança cristã virtuosa. Esse questionamento dos métodos de No fundo da biblioteca, Scott Grandy, 33
uma entre milhares de salas de aula priva- Os seqüestros e as matanças nos co- ensino começou a ganhar força no final anos, músico e produtor de legumes, faz a
das que existem nos Estados Unidos. Nes- légios e nos campi universitários acen- dos anos 1960. No livro Better late than sua contabilidade num dos sofás, enquanto
sa homeschooling, a escola em domicílio, tuaram a imagem de uma escola perigosa. early (Melhor tarde do que cedo), publicado suas duas filhas, Jorah e Sorell, trabalham vo-
os próprios pais lecionam para os filhos. Além do mais, os pais preferem adminis- em 1975, os pedagogos americanos Ray- luntariamente na organização dos livros. “Ao
Perto das prateleiras da biblioteca ca- trar tudo por conta própria, por temerem mond e Dorothy Moore, dois expoentes da forçar as crianças a permanecerem sentadas
seira, dois computadores estão conecta- perder o controle sobre os filhos. direita cristã, apresentam uma síntese dos durante seis horas por dia, a escola é bastan-
dos à internet banda larga. “Um dos prin- resultados de suas pesquisas: a escolariza- te cruel. Eu quero que as minhas filhas vivam
cípios da educação em domicílio reza que LONGE DOS “ANTROS DE PERDIÇÃO” ção das crianças começaria cedo demais e num ambiente que as deixe livres para apren-
quando você não sabe responder a uma Mas não parece ser esse o caso do con- seria nociva para os alunos tanto nos pla- derem o que quiserem, na idade que quise-
pergunta, outra pessoa provavelmente sa- dado de Athens, onde mora a família Tom- nos físico, moral e intelectual quanto no rem”, explica esse pai de família cuja renda
berá. Pode ser um internauta, um membro pkins. Nesse local absolutamente tranqüi- da sua socialização. Ela deveria ser inicia- anual não supera US$ 20 mil – o equivalente a
da cooperativa ou qualquer autor de um li- lo, as escolas públicas em nada se parecem da apenas a partir de 8 anos ou 10 anos. cerca de R$ 2.700 por mês. “Lá em casa, sem-
vro da biblioteca”, explica Jane Tompkins, com os antros de perdição descritos pela mí- Na mesma época, disseminou-se en- pre há livros sobre a mesa, e diariamente nós
uma antiga professora de história da arte dia, sempre em busca de crimes e escânda- tre os militantes de esquerda uma crítica nos reunimos para estudar, ora matemática,
da universidade do condado de Athens. A los que envolvam crianças. E mesmo assim, à instituição escolar como instância de re- ora leitura, ora música, ora educação artísti-
sua explanação é acompanhada atenta- o mito da degenerescência prospera, con- produção das desigualdades sociais. Eles ca... Nós as ensinamos também a fazer pão e
mente por seus filhos Will, 12 anos, e Be- vencendo todos os anos centenas de famí- denunciavam o caráter arbitrário dos con- ministramos aulas de pensamento crítico.”
ckie, 15 anos, para quem dá aula. Todos os lias cristãs a subtraírem seus filhos das “es- teúdos culturais e da pedagogia tradicional
dias pela manhã ela substitui o juramento colas do governo” e de seu “meio ambiente e questionavam a relação entre professor e RISCO DE SOCIALIZAÇÃO INSUFICIENTE
de obediência à Constituição dos Estados instável”, infectado pela “ideologia de Esta- aluno e de ambos com o saber. Temiam a Da mesma forma que os cristãos de
Unidos por uma oração, seguida pela lei- do”. Em três dos cinco distritos do condado, fabricação de cérebros dóceis e devotados Athens, Grandy participa de uma asso-
tura de um trecho da Bíblia. 3% do total de crianças está sendo educada ao sistema, a transmissão dos dogmas pa- ciação que se reúne uma vez por sema-
Esse centro de convivência de homes- em casa. Ainda não chega a ser um maremo- trióticos e burocráticos e a imposição dos na. Diferentemente dos religiosos, que a
choolers nada tem de revolucionário: os to, mas já é mais do que uma mera agitação valores consumistas. Aos poucos, a crítica chamam de “cooperativa”, ele a denomina
alunos ficam sentados durante a “aula”, das águas: desde 1999, o número de famí- à escola foi se transformando numa críti- “grupo”. A lógica, porém, é idêntica: trata-
ministradas pelos “professores”, e têm de- lias que optaram por retirar ou não colocar ca aos princípios da escola, seus objetivos se de socializar os conhecimentos dos pais
veres de casa para fazer. A única diferença seus filhos num estabelecimento escolar te- e meios. Por fim, a própria existência da es- e de organizar aulas coletivas. Oito famí-
visível em relação ao sistema convencio- ria praticamente triplicado, passando de 850 cola foi colocada em dúvida. lias participam do grupo de Grandy, para
nal de educação é que Will e Becky não re- mil para mais de 2 milhões em 2006 3. Ivan Illich (1926-2002), pensador da quem “a idade não é um fator determi-
cebem notas. Eles estudam conforme seu John Colvins, 15 anos, nunca freqüentou ecologia política e autor de Sociedade sem nante nas relações sociais. No decorrer da
ritmo e podem interromper a aula a qual- a escola do condado. Há dez anos sua mãe, escolas, defendia análises similares e pre- nossa vida inteira, nós aprendemos tanto
quer momento. O seu programa se inspira Sharon, dirige uma cooperativa escolar de conizou uma “desescolarização” da socie- com pessoas mais jovens quanto com ou-
amplamente nos currículos regulares e foi cinco famílias. Mas isso não o impede de ter dade: a escola, essa “residência vigiada”, tras mais idosas. Em nosso grupo, os alu-
preparado em função das competências uma avaliação razoável da questão: “A edu- seria então substituída pela disseminação nos são indisciplinados e livres, o que até
de sua mãe e das vontades deles: aulas de cação em domicílio constitui, em minha opi- de uma multiplicidade de ofertas educati- motivou a saída de uma das famílias. Acre-
piano, de história, ciências, matemática e nião, uma boa alternativa na medida em que vas no âmbito de redes que permitiriam a ditamos que o fato de questionar a noção
datilografia, entre outras. À primeira vista, Mao Tse-tung e os nazistas se serviram da es- sua livre comercialização. de autoridade é algo muito positivo”.
sua curiosidade é insaciável. cola pública para exercer sua propaganda”. Nos Estados Unidos, esses temas foram As críticas que têm sido formuladas con-
Quer suas inclinações políticas sejam Para o seu irmão caçula, Ben, a homeschoo- encampados pelo famoso ensaísta John Holt tra a educação em domicílio insistem não
de direita, quer de esquerda, os adeptos ling apresenta a vantagem de “permitir pla- (1923-1985), que lançou, em 1977, a revista apenas nos riscos de haver uma socializa-
da homeschooling argumentam que essa nejar a sua própria agenda de atividades e bimensal Growing Without Schooling (Cres- ção insuficiente das crianças, como também
prática é interessante porque suprime de ter uma educação religiosa”. Mas sua mãe cendo sem freqüentar a escola), um veículo questionam a validade dos ensinamentos
toda barreira entre instrução e aprendiza- assegura que a religião não é o único motivo próprio voltado à troca de idéias e práticas transmitidos, já que a maioria dos “profes-
gem. A educação é praticada em qualquer para essa opção: “Nós recusamos a influência de educação no lar. Depois de um tempo, o sores” não recebeu nenhuma formação para
lugar, o tempo todo. De manhã até a noi- do Estado sobre a ideologia dos nossos filhos”, próprio Holt e uma parte da esquerda termi- isso. Porém, vários estudos constataram o
te, aos fins de semana e durante as férias. resume. Antiga estudante da Universidade de naram adotando o que eles chamaram de bom preparo desses alunos para o sistema
Munidos de manuais escolares compra- Berkeley, na Califórnia, Sharon se tornou uma unschooling, ou seja, a “desescolarização”. universitário e avaliaram seu desempenho
dos na internet ou por correspondência, “libertária” convicta e defende a supressão do Na biblioteca municipal da cidade de como acima da média. Em 1998, por exem-
reunidos em cooperativas auto-adminis- Ministério da Educação americano. Athens, capital do condado homônimo, plo, o professor Lawrence Rudner, da Uni-
tradas por famílias com motivações simi- Aliás, esse órgão estatal, que monitora o muitos adeptos ministram aulas coletivas versidade de Maryland, testou os conheci-
lares, inscritos em diversas listas de blogs, ensino doméstico, divulgou recentemente de três a quatro vezes por mês. Um deles é mentos de 20.760 crianças educadas em do-
AGOSTO 2008 Le Monde Diplomatique Brasil 31

micílio. As notas que elas obtiveram lhe pa- ca que conta com mais de 80 mil famílias. de recursos para os estabelecimentos públi- prios limites. “A tarefa de instruir seus fi-
receram “excepcionalmente elevadas”7. Cla- Entretanto, a regulamentação varia de um cos do que com a expansão da educação em lhos requer demasiada dedicação por parte
ro, tais resultados devem ser ponderados estado para outro. Em 8 de março passado, domicílio, ele teme os efeitos ao longo prazo dos pais, principalmente da mãe. Raros são
pelo fato de que os adeptos da homeschoo- o Tribunal de Recursos do segundo distri- dessa prática. “As influências que esses futu- aqueles que se mostram realmente dispos-
ling vivenciam essa escolha como um sacer- to da Califórnia proibiu que pais que não ros cidadãos recebem ao permanecerem em tos a fazer os sacrifícios que a educação em
dócio. Além disso, é preciso levar em con- tenham recebido uma formação adequa- seu meio familiar não os abrem para a refle- tempo integral impõe. Ainda que esteja ga-
ta que a escola pública tem sido financei- da forneçam instrução por conta própria xão nem para a diversidade das opiniões, as nhando importância, esse fenômeno per-
ramente sacrificada nos Estados Unidos ao aos seus filhos. Com isso, de um dia para o quais são inerentes à democracia”, analisa manece marginal. A escola tradicional tem
longo de várias décadas, em particular pelas outro, 166 mil estudantes em domicílio se Wood, que é coordenador do Fórum para a belos dias pela frente, já que uma maio-
administrações republicanas. tornaram fora-da-lei, e os seus pais estão Democracia e a Educação. “Se essas crianças ria de pais segue optando por entregar-lhe
De qualquer forma, para quem quiser sujeitos a possíveis processos judiciários. não interagirem com pessoas de outras ori- seus filhos sem se mostrar tão preocupada
escolarizar seus filhos, as providências ad- gens e níveis econômicos e intelectuais, elas assim com o que lhes será ensinado. Apesar
ministrativas que devem ser tomadas são MELHORES RESULTADOS NOS TESTES tenderão a rejeitar a priori opiniões diferentes de tudo, a escola pública continua sendo a
de uma simplicidade desconcertante. Em Mike Smith, o presidente da Home das delas quando começarem a participar da principal babá das crianças americanas.”
Ohio, é preciso apenas ter concluído os estu- School Legal Defense Association, reagiu vida democrática”.
dos secundários. As famílias devem informar imediatamente contra essa decisão, de- A argumentação é semelhante à do sin-
as autoridades locais da sua intenção, antes fendendo o “direito fundamental dos pais dicato dos professores. Qualificada em 2004 * Julien Brygo, enviado especial aos Estados Unidos, é
do início do ano letivo, fornecendo-lhes um de educarem seus próprios filhos” na Cali- de “grupo terrorista” pelo então secretário de jornalista francês.
programa de estudos preliminar e garantin- fórnia. “Nos 49 outros estados americanos, Educação dos Estados Unidos, Rod Paige, a
do que os seus filhos receberão ao menos 900 os pais podem exercer o papel das escolas National Education Association (NEA, Asso- 1 Thomas Frank, Pourquoi les pauvres votent à droite, Mar-
horas de aulas no decorrer do ano escolar. Os privadas. A necessidade de possuir uma ciação Nacional de Educação) se inclui entre selha, Agone, 2008.
funcionários do School Board of Education formação prévia para praticar o ensino os opositores ferozes da homeschooling. “Por 2 A educação em domicílio vem ganhando força na Grécia,
França, Suíça, México, Japão, Rússia e África do Sul.
(Conselho de Educação Escolar) não avalia- não é uma obrigação prevista pela Consti- mais criticável que seja a escola pública, ela 3 Brian D. Ray, Recherches factuelles sur l’éducation à do-
rão o conteúdo do ensino, mas verificarão, tuição.” Ele ilustra sua argumentação com desempenha um papel formador essencial micile, disponível em http://www.nheri.org
um ano mais tarde, se o programa apresenta- uma pesquisa do instituto Ellison Research em termos de cultura e de conhecimento da 4 Homeschooling in the United States: 2003, Statistical
do pelos pais correspondeu aos planos anun- de Phoenix8 que aponta que 50% das pes- sociedade”, pondera Jen Thomson, integran- Analysis Report, disponível em http://nces.ed.gov/
pubs2006/homeschool/
ciados. Contudo, diante da inexistência de soas entrevistadas consideram a instrução te da NEA de Ohio e professora numa esco-
5 Ivan Illich, Deschooling society, Nova York, Harper and
qualquer controle dos conhecimentos, have- em domicílio tão eficiente quanto aquela la primária de Aimesville. “Na escola pública, Row, 1970.
rá algo mais fácil do que alegar ter ensinado ministrada nas escolas públicas. Segundo as crianças aprendem o que é a vida, se con- 6 Os bônus de educação transferem diretamente para os
uma matéria? “As pessoas podem não enviar ele, “isso se deve ao fato de que as crianças frontam com diversas opiniões. Não é por- pais a quantia que corresponde à parte dos seus impostos
seus filhos para a escola de maneira perfeita- educadas pelos seus pais não raro obtêm que o colégio pode comportar riscos de uma que teria sido atribuída ao orçamento da educação nacio-
nal. Nos Estados Unidos, essa orientação foi recomenda-
mente legal, alegar instruí-los em domicílio e melhores resultados nos testes de admis- possível exposição a ‘más influências’ que os da pelo economista ultraliberal Milton Friedman.
nada fazer durante o ano inteiro”, critica um são das universidades americanas”. pais têm o direito de manter seus filhos afas- 7 Lawrence Rudner, “Scolastic achievement and demo-
diretor de colégio em Athens. Numa das salas do colégio federal em que tados dele”. graphic characteristics of home school students in 1998”,
A educação em domicílio foi legalizada é diretor em Stewart, sudeste de Ohio, George Da mesma forma que muitos observa- Educational Policy Analysis Archives, volume 7, 1999.
8 http://www.ellisonresearch.com/releases/20080424.htm
graças, em grande parte, ao lobby da Home Wood apanha numa prateleira o livro coleti- dores, Aimee Howley, uma pesquisadora
9 George Wood e Deborah Meier, Many children left
Schooling Legal Defense Association (As- vo que coordenou, Many children left behind em ciências da educação da Universidade behind: how the “No child left behind act” is damaging our
sociação de Defesa Legal da Escolaridade 9
(Muitas crianças deixadas para trás). Mesmo de Athens, avalia que o ensino em domi- children and our schools, Forum for Education and Demo-
em Domicílio), uma organização evangéli- que esteja mais preocupado com a carência cílio encontrará mecanicamente seus pró- cracy, Beacon Press, 2004.

© GETTY IMAGES / Mario Villafuerte

Crianças adotadas e educação em domicílio: duas tendências que ganham expressão nos EUA.
32 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2008

INTERNET EM DISPUTA

A nuvem da informação
A independência das pessoas, das empresas e até das nações não se mede mais somente pelos
territórios, pela geografia e pelo espaço coletivo, mas também pelas relações que eles mantêm com essa
nova usina de produção “imaterial”, disputada a ferro e fogo pelos grandes provedores da internet
POR HERVÉ LE CROSNIER *

tador, mas em um servidor localizado em


algum lugar na nuvem. Fala-se de “softwa-
re as a service” (SaaS, programa acessível a
distância) e até de “platform as a service”
para designar essa redistribuição das car-
tas na indústria da informática4. Essa abor-
dagem permite descentralizar as ativida-
des diárias através da rede, desde assuntos
de escritório à organização de álbuns de
fotografia. É a realidade da conexão per-
manente, por pacote e com banda larga,
um conforto para o usuário.
Se a cloud computing foi primeiramen-
te testada com particulares, agora é preciso
que seja adotada pelas empresas. A recom-
pensa? A terceirização pura e simples dos
serviços de informática. Sempre reticentes
em confiar seus dados para pessoas de fora,
as empresas ainda têm a compreensão de
que a gestão, o armazenamento e a dispo-
nibilidade permanente dos servidores e dos
© Cavani

fluxos de informação estão entre os critérios


de eficácia de uma profissão muito técnica.
Mas também começam a perceber que esse
tipo de serviço foge ao domínio dos centros
servidores de pequenas dimensões.

C
omo se fosse um fluido vital, a in- Essa arquitetura leva o nome de “infor- lações, com a esperança de que dali saiam Um problema evidente que as expe-
formação digital está presente em mática em nuvens”, cloud computing: os programas capazes de gerenciar gigantes- riências com usuários individuais demons-
todos os lugares de nossa socieda- dados são distribuídos em uma nuvem de cos agrupamentos de computadores e me- traram é o risco da transformação dos aces-
de: circula nas redes, é exibida nas máquinas, formada por milhares de com- mórias, assim como métodos de cálculo sos em um balcão de serviços, em que cada
telas e ouvida nos telefones celula- putadores dos gigantes da Web. Como as adequados. operador de nuvem tenta conservar “seus”
res. Os artefatos materiais, outrora intima- informações estão copiadas várias vezes Com isso em mente, IBM e Google alia- usuários, dissuadindo-os de experimentar
mente ligados às nossas práticas de acesso na “nuvem”, é possível evitar os conges- ram-se para oferecer uma nuvem de ser- os serviços da concorrência. O caminho é
à informação – livros, jornais, discos, car- tionamentos informáticos. Graças à cloud vidores às universidades americanas, em semeado de obstáculos para quem deseja
tazes, quadros, álbuns de fotografias –, se computing, cada profissional da área dis- troca do desenvolvimento de um know- trocar de prestador de álbum fotográfico ou
tornaram ultrapassados diante dessas ma- põe de uma capacidade de processamento how de programação paralela2. Essa par- de correio eletrônico. Pois, para esses ope-
ravilhosas ferramentas eletrônicas. muito superior à de sua própria máquina, ceria atemorizou a Hewlett-Packard, rival radores, mais que os lucros a curto prazo
As empresas também se converteram até mesmo às de empresas e instituições. É da IBM, que decidiu comprar uma empre- oriundos da publicidade ou dos serviços
ao digital. Encomendas, notas fiscais, ras- por isso que a transcodificação de imagens sa de serviço e engenharia em informáti- pagos, é o lifetime value – o valor estimado
treamento de entregas, arquivamento con- do You Tube é tão rápida e o site é capaz de ca, a EDS, por US$ 13,9 bilhões3. Um ne- que um usuário pode trazer para uma em-
tábil e jurídico e documentação de produ- oferecer vários bilhões de vídeos por mês1. gócio arriscado, tendo em vista os custos presa – que representa o Santo Graal. É pre-
tos formam agora um grande circuito in- É também por causa dessa nuvem de ser- elevados de integração dos funcionários: ciso avaliar a rentabilidade de um cliente
formático. Fala-se de “desmaterialização” vidores que o correio eletrônico pode ser são 140 mil assalariados na EDS e 172 mil fiel quando se multiplicam os serviços e as
para designar essa separação entre o su- lido e arquivado a distância. na HP. Pouco importa. Para os partidários ofertas nos diversos aspectos de sua vida.
porte físico e o conteúdo, mas a expressão é Como sempre ocorre no mundo da in- dessa fusão, o futuro pertence aos serviços Assim como as propostas de serviços
ilusória: todas as informações estão arma- formática, a competição está acirrada en- e não à venda de material. “gratuitos”, as alianças de empresas que
zenadas em algum lugar. A grande questão tre os pretendentes ao título de “rei das nu- Afinal, todo esse investimento dará propõem uma diversidade de funcionalida-
é quem fará a gestão desses dados e irá di- vens”. Google, Yahoo e outros gigantes da rentabilidade aos capitais investidos so- des encobrem armadilhas: para consultar
vulgá-los para o mundo nesse momento de internet dispõem de centenas de milhares mente com uma condição: a migração para os arquivos de correio eletrônico ou atuali-
transformação do suporte material. de servidores potentes e rápidos, distribuí- a rede da maior parte das atividades de in- zar o álbum de fotografias, toda vez é pre-
A era digital não se importará em lo- dos em vários centros de dados, ou tercei- formática, tanto particulares como de em- ciso acessar o serviço on-line. Atraídos por
calizar esses arquivos onde quer que rizados para prestadores especializados. presas. Até pouco tempo, para funcionar, o não terem de pagar, os clientes podem per-
eles estejam. Na verdade, isso já acon- Forma-se, assim, uma cadeia industrial computador precisava de programas pesa- der a autonomia. Se, por exemplo, o único
tece: ninguém pode dizer em que disco em um setor em pleno desenvolvimento. dos, de uma memória de elefante e de um editor de textos que se tem à disposição é
rígido estão armazenados uma fotogra- Porém, essa nova concepção da informá- grande poder de cálculo. “Terceirizando” oferecido por uma plataforma on-line, é
fia do site de imagens Flickr ou um vídeo tica requer força de trabalho e ferramentas esses três elementos para prestadores es- necessário conectar-se a esse site para abrir
do You Tube. Cada vez mais, esses dados adequadas. E formar uma e conceber as pecializados e acessíveis por internet, o PC um documento ou escrever. E, portanto, ter
deixam os personal computers (PCs) e outras acabaram se tornando incumbên- fica mais leve, torna-se um simples termi- de se servir de caneta e papel no caso de
são encaminhados para centros distan- cias das universidades e centros de pes- nal. Dessa forma, quando o usuário quiser uma falha de conexão na rede! A informá-
tes, aos quais os usuários têm acesso pela quisas com os quais as multinacionais da trabalhar com um texto, o programa ade- tica das nuvens reforça incontestavelmente
internet banda larga. internet se empenham em estabelecer re- quado não estará instalado no seu compu- a influência dos prestadores. Uma situação
AGOSTO 2008 Le Monde Diplomatique Brasil 33

que abranda o entusiasmo das empresas e


preocupa os governos na medida em que a
quase totalidade dos atores da informática DO OUTRO LADO DA TELA
em nuvens são americanos5.
Os centros de dados que podem oferecer poder de cálcu- um centro da Google em Pryor, Oklahoma, o estado adotou
A independência das pessoas, das em-
lo e armazenamento representam uma vantagem industrial de uma lei autorizando as companhias locais geradoras de ele-
presas e até das nações não se mede mais so-
grande relevância. O que não acontece sem uma pressão in- tricidade a manter em sigilo os consumos dos grandes usuá-
mente pelos territórios, pela geografia e pelo
tensa sobre os recursos naturais e a redistribuição de funções rios industriais4.
espaço coletivo, mas também pelas relações
qualificadas. Diante do quadro desastroso, a “informática verde” tenta
que eles mantêm com essas novas usinas da
Na cidade americana de Dallas, dois hangares do tamanho conciliar meio ambiente e redução dos custos de produção.
produção “imaterial”. Essas empresas emer-
de um estádio de futebol erguem-se ao lado de quatro imensas Muitos operadores defendem o uso de energia eólica e solar
gentes gerenciam ao mesmo tempo os da-
torres de resfriamento no rio Colúmbia. É a sede de um centro para alimentar os milhares de computadores e suas torres de
dos, as identidades dos indivíduos e suas ne-
de dados da Google, adaptado para a indexação da Web e ca- resfriamento. E os fabricantes criam processadores eletrica-
cessidades. Também não se privam de ofe-
paz de fornecer respostas em prazos consideravelmente curtos mente econômicos que produzem o mínimo de calor.
recer esses perfis aos publicitários e a ou-
para milhares de usuários simultâneos. A infra-estrutura utili- A instalação das plantas industriais para os centros de
tros atores da indústria do marketing, como
zada, imprescindível para a implantação de uma “usina de da- dados também está sujeita à geoestratégia. É preciso apro-
comprova o lugar preponderante que a Goo-
dos”, já estava quase toda lá: o rio é responsável pelo resfria- ximar dos usuários os programas de cálculo, para evitar re-
gle conquistou em poucos anos no merca-
mento, as usinas próximas vendem energia a baixo custo e a correr demais às colunas vertebrais em vias de saturação
do da publicidade. Revela-se uma nova no-
conexão é de altíssima velocidade. e, ao mesmo tempo, globalizar-se para escapar da influên-
ção de “filiação”: não há mais debates entre
Como para todas as indústrias, esta também utiliza da cria- cia de um governo específico. A Google, que domina a arte
cidadãos formando “comunidades de desti-
ção de empregos, paramentado com a imagem atraente da in- do segredo em suas decisões e negociações, está realizando
no”, mas entre “usuários”, indivíduos ou em-
formática, para negociar auxílios e subsídios. Em Lenoir, nos uma concorrência entre vários países da Ásia para escolher
presas, membros de “comunidades de esco-
Apalaches, a Google investiu US$ 600 milhões para instalar onde construir e alojar um novo nó de sua trama de centros
lha” organizadas com base em seu consumo
seus pátios de servidores1. Já o montante das ajudas ofereci- de dados. A região é muito visada por sua vigorosa taxa de
e sua dependência informacional para com
das pelas autoridades locais é estimado em US$ 260 milhões expansão do uso da internet8. A firma também é membro do
os donos das nuvens.
de dólares, ou seja, cerca de US$ 1,24 milhão por emprego cria- consórcio Unity, que acaba de lançar, no final de junho, uma
do, ou melhor, importado2. A dinâmica do comércio local, re- obra de US$ 300 milhões para a instalação de um cabo sub-
* Hervé Le Crosnier é pesquisador na Universidade de
forçada durante as construções, perdeu o fôlego depois, com a marino interligando Los Angeles a Chikura, no Japão. Malá-
Caen, na França.
redução do número de funcionários permanentes superquali- sia, Taiwan, Coréia do Sul... a integração mundial dos centros
1 O instituto ComScore contabilizou 11,9 milhões de vídeos
ficados. Se a manutenção dos servidores de dados exige uma de dados está a caminho. (HLC)
vistos pelos Estados Unidos desde março de 2008. força de trabalho muito especializada, em contrapartida, ela
2 Dan Farber, “The IBM-Google connection”, Cnetnews. também pode interagir a distância. 1 Silicon.fr, 10 de abril de 2007.
com, 10 de maio de 2008. A indústria do imaterial consome muita água e eletrici- 2 The New York Times, 15 de março de 2007.
3 “HP compra EDS, número dois mundial dos serviços de
dade. Em quantidade tal que seus valores são classificados 3. Ler Ginger Strand, “Keyword evil: Google’s addiction to cheap electricity”, Harper’s,
informática”, 13 de maio de 2008, disponível em http://
como segredo comercial3. Resfriar as máquinas necessita tan- Nova York, março de 2008
www.zdnet.fr
4. Google Data Center FAQ (Part 2) . Ver
4 Ler “Os gigantes brigam na internet”, Le Monde Diploma- ta energia quanto as próprias operações de cálculo. O consu-
http://www.datacenterknowledge.com/googledatacenters2.html
tique Brasil, março de 2008. mo de energia dos maiores pátios de servidores iguala-se ao 5. “Asian nations battle for Google data center”, 29 de janeiro de 2008. Ver http://www.
5 Ler “A propos des services gratuits sur le Web, commen- de uma fundição de alumínio. Para obter a implantação de datacenterknowledge.com
taire sur une note du CNRS”, 30 de abril de 2008. Dis-
ponível em http://www.a-brest.net/article3944.html
34 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2008

CULTURA / ARTES PLÁSTICAS

Pura especulação
Da mesma forma que a academia no século XVIII, hoje quem consagra o artista é o colecionador.
Os candidatos à fama precisam ter agentes poderosos e manter-se cobiçados pelos fundos especulativos, que
já atingiram o mercado de arte. Quanto mais mídia conseguirem, mais alto é o preço de venda de suas obras
POR PHILIPPE PATAUD CÉLÉRIER*

E
m 21 de junho de 2007, uma das de aula para que professores e estudantes
© GETTY IMAGES / Matthew Lewis

obras do britânico Damien Hirst possam se familiarizar com as obras ex-


recebeu um lance inédito para um postas, a partir da ajuda de especialistas.
artista vivo: € 13 milhões. Quando Para Aude de Kerros, ensaísta e pintor, os
Lullaby Spring, um armário de me- grandes colecionadores são hoje uma bús-
tal repleto de comprimidos pintado à mão, sola para o mundo da arte contemporânea.
foi arrematado na sede da Sotheby’s, em “Os critérios tradicionais que estabeleciam
Londres, Hirst tinha 42 anos. o valor de uma obra no mercado de arte an-
Pouco tempo depois, esse mesmo artis- tiga, impressionista e moderna não se apli-
ta ultrapassou seu próprio recorde: For the cam mais às peculiaridades da arte contem-
Love of God, um crânio do século XIX mol- porânea. O que determina seu preço não é a
dado em platina e cravejado de 8.601 dia- obra em si, mas a rede de influências que a
mantes, foi vendido por € 73 milhões pela cerca. Assim, para o comprador, o que con-
galeria londrina White Cube a um grupo ta é o poder do marchand e a solidez de sua
de investidores anônimos. O valor cobriu o carteira de colecionadores”, explica. Geor-
gasto de € 19 milhões que Hirst teve com os ges Armaos, historiador da arte encarrega-
1.106 quilates que ornamentam a caveira. do de parte da clientela da Gagosian Gallery,
Desde os ready-made de Marcel Du- uma das mais poderosas galerias america-
champ – peças industriais assinadas pelo nas, confirma: “De fato, os colecionadores
artista sem terem sido criadas por ele –, compram suas obras em galerias reconheci-
tínhamos aprendido que qualquer obje- das porque sabem que o galerista ou o mar-
to poderia se transformar em obra de arte. chand garantirá sua perenidade no merca-
“Não é mais possível avaliar uma obra em do”. Porém, para ele, “além de qualquer con-
função de suas características materiais e, sideração mercantil, a maioria, principal-
particularmente, de sua adequação a um mente os europeus, adquirem as obras com
determinado parâmetro de beleza, como as quais desejam conviver”.
acontecia no tempo da academia. Outros Pode ser. Mas, como qualquer merca-
critérios, como o savoir-faire, o trabalho, do econômico, esse também precisa hierar-
a inovação, a técnica, o perfeito domínio quizar seus critérios de qualidade para fun-
do ofício, a originalidade e a autentici- cionar. Não é surpreendente, portanto, que
dade, tampouco estão em voga hoje. Ne- tais critérios estejam menos afeitos às obras
nhum deles conta na hora de fixar o pre- e mais próximos dos círculos de poder da-
ço das obras contemporâneas”, afirma Na- queles que as negociam. É por isso que o
thalie Moureau, economista especializada “Power 100”, ranking das cem personalida-
em cultura. Tanto que uma primeira vitri- des mais influentes no mundo da arte con-
ne farmacêutica, Lullaby Winter, com ca- temporânea, editado pela revista anglo-saxã
racterísticas muito semelhantes a Lullaby Art Review, é tão esperado a cada ano. Pou-
Spring, alcançou € 5 milhões no leilão da cos artistas estão incluídos em suas classifi-
Christie’s em Nova York um mês antes da cações, são apenas 19% do total, mas os co-
venda de sua consorte por mais que o do- lecionadores passaram de 19% em 2002 a
bro desse valor. Qual será o motivo para a Escultura da modelo Kate Moss, do artista britânico Marc Quinn: utilizar celebridades 31% em 2007, seguidos pelos galeristas e in-
diferença de € 8 milhões entre uma e ou- como modelos é uma das formas de alavancar os preços das obras termediários, que agora chegam a 22% das
tra? Será que é apenas porque a Sotheby’s pessoas listadas. E como os colecionadores
consegue mobilizar mais a mídia? Ou por- estão onde o dinheiro está, 74% deles são
que o dinamismo do mercado de arte lon- miação de Hirst tinha muitas vantagens: diais, descobriremos que a maioria deles americanos ou britânicos.
drino está sempre pronto a apoiar os artis- além de eleger uma obra de grande valor pertence ao conselho de administração de “A galeria Gagosian [instalada em Be-
tas britânicos? A explicação estaria, talvez, midiático – para a felicidade de seu novo um museu”, diz Nathalie Moureau. verly Hills, Nova York, Londres e Roma],
na própria personalidade de Hirst e na sua patrocinador, a cadeia televisiva Channel E muitos são também donos de mu- por exemplo, detém anualmente um volu-
poderosa rede de marchands, galeristas e Four –, também consagrava o olhar acura- seus. François Pinault, o papa do luxo fran- me de negócios ao menos 15 vezes supe-
colecionadores, particularmente ativa na- do de Saatchi, agregando valor às peças que cês, inaugurou o Palazzo Grassi de Veneza rior ao nosso, que é de € 15 milhões. Com
quela noite. Quem sabe? ele já tinha adquirido. Para os especulado- e entregou sua direção ao ex-ministro da freqüência, o comprador escolhe artistas
No final da década de 1980, Damien res, os sinais eram patentes: instituição e Cultura da França, Jean-Jacques Aillagon. O de seu próprio país, às vezes pela simples
Hirst conheceu Charles Saatchi, homem de mercado caminhavam de mãos dadas. Só corretor imobiliário e bilionário americano razão da proximidade geográfica. Por isso,
negócios britânico e proprietário de uma restava acompanhar a tendência. Três anos Eli Broad lançou seu próprio museu de arte as obras dos anglo-saxões estão entre as
das mais importantes agências de publici- depois, a cifra dos negócios de Hirst havia contemporânea – o Los Angeles Country mais cotadas”, observa Jean Frémon, dire-
dade do mundo. Artista e colecionador ra- aumentado 1.039%. Museum of Art – sob a batuta do arquiteto tor associado da galeria Lelong, uma das
pidamente se entenderam: as extravagân- Saatchi desempenhou, portanto, um Renzo Piano, conhecido por ter participado mais célebres na França.
cias provocativas de um entusiasmaram o papel fundamental nessa história. “Hoje, da idealização do Centro Georges Pompi- “Qualquer um pode se tornar um artista
senso midiático do outro. Em 1995, Hirst quem certifica a obra é o comprador, da dou, em Paris. Já o barão belga Guy Ullens, plástico, ou pelo menos tentar. Nem todos,
recebeu o cobiçadíssimo Turner Prize, con- mesma forma que a academia fazia no sé- um dos primeiros compradores da arte con- porém, terão êxito. É preciso saber vender-
cedido anualmente pela Tate Britain des- culo XVIII”, avalia o sociólogo Alain Que- temporânea chinesa, criou seu museu-fun- se”, sublinhou o filósofo Christian Dela-
de 1984 a artistas da cena britânica. Como min. Mais e melhor que qualquer institui- dação The Ullens Center for Contemporary campagne. Assim, quanto mais invisível a
o prêmio é criação do Patrons of New Art, ção, o grande colecionador consagra o ar- Art, o primeiro do gênero na China. obra é diante dos cânones artísticos tradi-
grupo de mecenas londrino fundado pelo tista, que acumula poder financeiro e capi- Da mesma forma, com a ajuda do cionais, mais o artista deve dar visibilidade
próprio Saatchi, em associação com a Tate, tal social. “O conjunto de recursos aplica- leiloeiro suíço Simon de Pury, Saatchi vai aos seus registros subversivos. E o que não
certamente houve algum tipo de influência dos nas obras advém de redes de influên- inaugurar, em 9 de outubro, seu novo mu- falta é estratégia de marketing. Para atrair
sobre o júri na escolha de Mother and Child cias e é fruto da capacidade de seus mem- seu de arte contemporânea em Chelsea, a clientela mais afortunada, alguns traba-
– um bezerro cortado em duas partes imer- bros de legitimar a arte. Se analisarmos a no coração da capital inglesa. Muito bem lham a transgressão com uma lógica em-
sas numa solução de formoldeido. A pre- lista dos 200 maiores colecionadores mun- equipada, a galeria contará até com salas presarial. Uma cabeça de vaca em decom-
AGOSTO 2008 Le Monde Diplomatique Brasil 35

posição de Damien Hirst ou uma virgem Sotheby’s ressaltou as milhares de horas de especialista em arte indiana. Com a multi- ve é menos a cultura e mais seu resultado?
coberta de fezes de Chris Ofili podem res- trabalho que Koons (ou, mais precisamen- plicação das feiras de arte pelos quatro can- Estamos perto de desejar uma crise finan-
ponder às expectativas de um determina- te, os operários de sua oficina) consagrou à tos do mundo, as casas de leilão reforçam ceira para purgar certas cotações indecen-
do segmento do mercado. Ao mesmo tem- obra. E foi baseada nesse critério um tanto seu poder de atração com influentes instru- tes. Reencontrar os valores artísticos ocul-
po, a natureza corrosiva da subversão aca- distante do mundo da arte que a casa de lei- mentos de marketing. tos sob valores financeiros. Não esqueça-
ba prejudicada quando os artistas aceitam lões vendeu o coração por € 16 milhões em Desmaterializado, o mercado de arte mos que o mercado de arte vive ao ritmo
que essas mesmas obras sejam subvencio- 14 de novembro de 2007. Um preço, aliás, contemporânea globaliza-se com facilida- dos ciclos econômicos.” Por enquanto, al-
nadas por instituições e “patronos”. que ultrapassou o recorde anterior do ar- de. Galerias, casas de leilão e bases de da- guns grandes compradores ainda puxam o
Alguns usam as celebridades como mário farmacêutico de Hirst. “Se não vales- dos especializadas fornecem, on line, todo mercado para o alto.
modelos, esperando que elas se tornem se mesmo nada, um colecionador bem in- tipo de informação ao comprador. Docu- Claro, a crise dos créditos imobiliários
suas clientes e promovam gratuitamen- formado não chegaria a um preço desses”, mentação, análises e estudos relativos aos americanos está por toda parte, mas ela era
te suas obras na mídia. Assim, o britânico justificava um marchand. Mas é indiscu- potenciais das peças cobiçadas seduzem esperada pelos mais precavidos. É por isso
Marc Quinn esculpiu a modelo Kate Moss, tível que quanto mais aumenta o valor de particularmente os fundos especulativos. que, entre aqueles investidores que pedi-
e o americano Jeff Koons, Michael Jack- uma obra, mais diminui a capacidade de A Artprice.com, líder mundial em dados de ram anonimato ao adquirirem For the Love
son e seu chipanzé Bubbles – arremata- crítica. Do vendedor ao leiloeiro, todos em- cotação da arte contemporânea e detento- of God, estava o próprio Damien Hirst, seu
do, aliás, por US$ 5,6 milhões por um ar- purram o preço para cima. “De fato”, con- ra de vários índices e resultados de vendas autor. Para melhor dominar a comerciali-
mador norueguês na Sotheby’s. Para Caro- cluiu ironicamente um observador do mer- de 405 mil artistas, fornece estudos, análi- zação de suas obras, Hirst já havia compra-
line Bourgois, diretora do Fundo Regional cado, “o que o comprador levou para casa ses e estatísticas. Os mais recentes, de ja- do algumas peças de seu antigo coleciona-
de Arte Contemporânea da Île-de-France, não foi bem uma peça, mas um preço. Por neiro deste ano, calculam em tempo real a dor, Saatchi, em 2003. Recentemente, Hirst
“as novas fortunas cultuam o imediatismo. vezes, a obra é tão débil que cabe perguntar confiança dos atores desse mercado para organizou quatro instalações na Tate. Sem
As formas devem ser compreensíveis para se o dinheiro ainda possui algum valor nes- acompanhar suas reações a temas de estri- dúvida, a intenção era oferecer uma vitrine
serem sedutoras. Observar um Jeff Koons se meio em que é tão abundante.” ta atualidade, tais como variação das bol- prestigiosa para as suas obras, consolidar
exige menos esforço que outros artistas”. Pouco importa. A arte contemporânea sas, acontecimentos geopolíticos e resulta- sua posição no mercado e tranqüilizar sua
Mas se Koons é tão popular é também por- anda de vento em popa e assenta as fortu- dos de uma venda espetacular. rede de galeristas, colecionadores e casas
que soube “fazer-se apreciar” pelas cele- nas adquiridas rapidamente. “Ela é o ingres- Alguns artistas se recusam a fazer parte de vendas. Algumas destas, cotadas na Bol-
bridades da moda. Seu casamento com a so a ser pago para entrar em um circuito de dessa engrenagem. Um deles é Emmanuel sa, estão adstritas a satisfazer seus acionis-
atriz-pornô Cicciolina certamente contri- relações em que a pessoa é julgada pelos Barcilon. “Quanto mais eventos, mais você tas-colecionadores. Tudo para se precaver
buiu em algo. Material farto para a impren- critérios de solvabilidade. Isso é particular- deve produzir. E quanto mais você pro- da crise. Oficialmente, porém, tratava-se de
sa sensacionalista, o artista dotou suas pe- mente importante para os novos empresá- duz, menos está suscetível a se regenerar e uma espécie de agradecimento à Tate, que
ças de uma aura midiática indispensável rios dos países emergentes”, comenta Aude a criar”, afirma. Embora tenha comprado- antes o consagrara.
ao ego dos compradores. O paradoxo é que de Kerros. China, Índia e Brasil são algumas res imediatos para suas obras, ele não pre- No fim das contas, tudo se resume ao
são os próprios compradores que acabam das nações que começam a experimentar tende ultrapassar 15 peças por ano. “No questionamento de Hans Belting: por que
emprestando às obras o estatuto de ícones esse fenômeno: “Os compradores sabem sistema atual, isso pode ser um problema”, uma cabeça de vaca em decomposição não
– por preços muitos altos, é claro. que os preços da arte contemporânea in- alerta seu galerista, Marc Hourdequin, da poderia fazer parte da arte contemporânea
Ou alguém por acaso falaria de Han- diana logo seguirão o desenvolvimento do Dukan & Hourdequin de Marselha. Afinal, quando esta, livre de suas “pretensões tra-
ging Heart, um coração gigante, croma- país. O ponto positivo desse súbito interes- o mercado, tão preso à mídia, contamina dicionais de autonomia estética, é com-
do em cor-de-rosa e enlaçado por uma fita se é finalmente o reconhecimento, do pon- os apaixonados por arte e os conduz a re- preendida apenas como mais um sistema
dourada, se a peça não tivesse atingido um to de vista financeiro, daqueles grandes ar- flexos especulativos. “Eles escutam, mais de reprodução simbólica do mundo?”.
preço estrambótico nas salas de vendas dos tistas que a cena internacional ainda trata do que olham”, lastima um galerista. “Mas
leilões? Para comercializar a mercadoria, a com indiferença”, observa Hervé Perdriolle, como criticá-los quando o que se promo- * Philippe Pataud Célérier é jornalista
36 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2008

LITERATURA / REEDIÇÃO

Cortázar, o mágico
Revisitar a obra de Cortázar é uma experiência sempre rica. Mestre de uma escrita revolucionária, dono de
uma imaginação sem limites e militante das causas libertárias, esse escritor continua a revelar, 24 anos após sua
morte, o mais íntimo da condição humana, com sua literatura profundamente esférica, complexa e crítica
POR GUY SCARPETTA*

J
ulio Cortázar sem dúvida teve
©Kennet Traynor

uma das imaginações mais ricas e


abundantes da literatura no sécu-
lo XX. O que, para ele, não excluía
um comprometimento firme com
as lutas antiimperialistas. A recente publi-
cação de sua obra completa em um volu-
me 1 é, sem dúvida, uma grande oportuni-
dade para redescobrir toda a complexida-
de desse escritor.
Em qualquer trecho de seus contos ou
romances, o encantamento é imediato. Em
“Apocalipse de Solentiname”, um homem
viaja por diferentes países da América
Central. Ele tira fotografias – especialmen-
te fotos de pinturas naïfs e populares, que
descobre fascinado. De volta a sua casa,
em Paris, manda revelar e fazer cópias dos
filmes e projeta seus slides. Nota, então,
que as imagens das pinturas naïfs desapa-
receram e foram substituídas por cenas de
violência, de repressão policial – remeten-
do, talvez, à Argentina da ditadura militar,
onde não colocou os pés durante a viagem.
O laboratório fotográfico teria, por engano,
trocado os rolos de filmes? Ou, na verda-
de, trata-se de um fenômeno muito mais
misterioso – como se a própria violência
da História o interpelasse e lhe impusesse,
de forma mágica, o espetáculo daquilo que
ele não soube ou não quis ver? O homem é
tomado por uma angústia, um mal-estar e
vai vomitar no seu banheiro, enquanto sua
mulher, que acaba de chegar, observa os
slides. Quando volta para junto dela, esta
lhe diz que acha magníficas essas fotos de
pinturas populares.
Ou então, no conto “A noite em face do
céu”, em que um homem, depois de sofrer
um acidente, tem de passar por uma cirur-
gia. Ao ser anestesiado, sonha que é um ín-
dio dos tempos pré-colombianos, perse-
guido e capturado pelos astecas. Progres-
sivamente, o sonho torna-se cada vez mais
claro, até o momento em que as coisas se
invertem: a realidade é aquela cena de sa-
crifício humano – e é o homem, o índio,
antes de ser morto, que é invadido por um
estranho sonho situado no futuro, quan-
do se encontra deitado em uma mesa de
operação, enquanto um cirurgião agita um
bisturi acima do seu corpo imobilizado.
Ou ainda, em “O outro céu”, uma ga-
leria comercial de Buenos Aires detém a
misteriosa propriedade de comunicar-se,
por meio de uma passagem coberta, com
a Paris do século XIX. O narrador tem, as-
sim, a possibilidade de ser transportado,
Porta-retrato com fotografia de Cortázar: imagem instigante.
de tempos em tempos, para o meio de
AGOSTO 2008 Le Monde Diplomatique Brasil 37

uma pitoresca multidão há muito desa- rica Latina – apoio às lutas antiimperialis- giosos, nos quais o leitor é projetado ime- Decididamente, para Cortázar a litera-
parecida – onde lhe apontam a presença tas, aos combates às ditaduras militares diatamente: onde um músico de jazz tem a tura tem seus direitos, sua complexidade,
de outro enigmático sul-americano, que etc. Um reconhecimento tão grande que faculdade, em alguns minutos, de “reviver” sua própria história. Ela deve ininterrup-
acabamos por adivinhar tratar-se do uru- uma das primeiras decisões tomadas por dias inteiros de sua vida, em todos os seus tamente se dedicar a investir e conquistar
guaio Lautréamont. François Mitterand depois de eleito presi- detalhes e, assim, às vezes, experimentar novos domínios (mesmo que imaginários)
As histórias desse tipo não se esgotam. dente foi a de conceder-lhe a nacionalida- essa estranha dilatação do tempo em sua e não se contentar em ilustrar aquilo que
Por isso considero uma excelente iniciativa de francesa – ao mesmo tempo, aliás, que própria música; onde uma moça, simples- já sabemos. Ela não deve estar “a serviço”
ter reunido, em um único volume, o essen- a concedia ao tcheco Milan Kundera. Cor- mente imaginada por crianças no decorrer de uma revolução: é, em si mesma, uma re-
cial das “formas breves” escritas por esse tázar morreria em 1984 por complicações de suas brincadeiras, acaba por se materia- volução positiva, um jogo maior, uma ex-
mestre do gênero que era Cortázar: não so- decorrentes de uma doença bastante es- lizar aos olhos de um adulto, que se apaixo- periência dos limites repelidos sem fim,
mente os contos e novelas já reunidos em tranha, que não parava de fazê-lo crescer na por ela; onde os relógios de sol da ilha de uma liberdade antecipada. E essa exigên-
coletâneas quando o autor era vivo (em li- – esta é, pelo menos, a lenda. Páscoa avançam ou atrasam de acordo com cia, de acordo com ele, não se baseava no
vros como As armas secretas, Final de jogo, Entre os grandes romances de Cor- o local da orla em que são colocados e onde desprezo do povo, mas, pelo contrário, em
Octaedro, Alguém que anda por aí etc.), tázar, a citação de O jogo da amarelinha é alcachofras podem substituir os pêndulos – uma confiança nele que nada partilha com
mas também as narrativas escritas como essencial. Essa obra-prima barroca, abun- basta desfolhá-las para saber a hora. aqueles que caem na “demagogia fácil de
contraponto de obras pictóricas ou gráfi- dante e verdadeiramente aberta, permite Cortázar, seguindo Borges de modo exigir uma literatura acessível a todo mun-
cas e inúmeros textos até o momento dis- ao leitor escolher entre dois romances di- muito mais fervilhante e exuberante, foi do”. “Não prestamos nenhum serviço ao
persos, por vezes inéditos em francês. ferentes no interior do mesmo livro, ape- um dos maiores mestres do registro fan- povo se lhe propomos uma literatura que
O resultado? Mil páginas de encanta- nas modificando a ordem dos capítulos. tástico no século XX e contribuiu para am- pode assimilar sem esforço”, dizia.
mento permanente. Um lugar onde escapa- De seu texto urde toda uma rede de ecos pliá-lo muito além de seus usos conven- Em outras palavras, “escrever de modo
mos do mundo das aparências, assim como e contrastes entre a Europa e a América cionais. E, para ele, não havia nada de in- revolucionário”, para Cortázar, não quer di-
das causalidades lógicas comuns. Onde é o Latina – entre a utopia que a América La- compatível em se interessar pelo mundo zer “escrever obrigatoriamente sobre o tema
próprio mundo real que assume um senti- tina representava para a Europa e a uto- real. Seus compromissos concretos são da própria revolução”. Não há nada mais
do figurado (desde os detalhes da vida coti- pia em que a Europa se transformou para testemunhas disso: sua participação no significativo do que seu relato mais político,
diana até os contextos históricos ou políti- a América Latina. Mas é na arte do con- Tribunal Russell2; sua adesão entusiasta à Reunião: nele, realiza a proeza de imaginar
cos) e nele se infiltram, imperceptivelmen- to, da narrativa breve, que Cortázar é mais Revolução Cubana, pouco a pouco mode- o monólogo interior de Che Guevara quan-
te, elementos insólitos, incertos, ilógicos, singular. Uma arte que ele explicou mui- rada pela consciência dos desvios autori- do desembarcou em Cuba, em companhia
maravilhosos, inquietantes, oníricos. Uma to bem durante uma conferência dada tários do castrismo – daí seu protesto, por dos primeiros guerrilheiros castristas. Mas
recomposição incessante do espaço e do em Cuba, em 1963, ao dizer que é preciso, exemplo, contra o destino dado ao poeta toma muito cuidado em evitar todo tom
tempo, em que se abrem rachaduras naqui- desde as primeiras linhas, captar a aten- Heberto Padilla, mas sem que isso o con- convencionalmente heróico ou épico – se
lo que consideramos como o mais sólido de ção do leitor introduzindo essa “ruptura duza, como inúmeros de seus amigos es- permitindo até mesmo fugas surpreenden-
tudo, brechas que autorizam toda sorte de do cotidiano” que “vai muito além do re- critores, a condenar o regime em bloco; tes em direção ao irracional. O Che, em seus
perturbações, de traduções imprevistas, de lato anedótico”; que o faz escapar desse seu apoio ao poder de Salvador Allende, devaneios, acaba por perceber que a His-
colisões, de transmutações. “falso realismo que consiste em acreditar no Chile – e depois, após o golpe de Esta- tória também funciona misteriosamente,
Apesar do prejulgamento escolar ou que todas as coisas podem ser descritas do de Pinochet, sua efetiva participação no com harmonias, dissonâncias, contrastes
jornalístico, a vida de um autêntico escri- ou explicadas”. Essa tática implicaria uma auxílio aos refugiados chilenos na Europa; rítmicos e contrapontos, como um quarte-
tor resulta daquilo que ele escreve. Cor- tensão constante – o leitor, diz ele, deve sua luta aberta contra a ditadura militar to de cordas de Mozart.
tázar e suas narrativas estão entrelaçadas ser vencido “por nocaute, não por pontos” na Argentina; sua alardeada solidarieda- Ao acompanhar Cortázar, o imaginá-
por circulações, por travessias, deixando –, um princípio de condensação máxima de ao movimento sandinista na Nicarágua, rio não é aquele que nos afasta da realida-
entrever um homem perpetuamente entre que exige “a eliminação de todas as situ- alvo de uma ofensiva dos “contras” manti- de, mas aquele que a inventa e a enrique-
dois espaços, dois continentes, que nun- ações intermediárias”, todas essas “frases dos pela CIA. Em suma, uma contribuição ce. É precisamente aí que ele pode unir-se
ca pôde ser confinado a nenhuma nacio- de transição” às quais os romances longos generosa e constante a todos os combates à grande esperança “afirmativa” e “vital”
nalidade. Nasceu em Bruxelas, em 1914, e, não podem escapar. A narrativa deve lem- antiimperialistas, fundada sobre o “difícil e do homem, “sua sede erótica e lúdica”, “sua
quatro anos depois, foi repatriado para a brar, em suma, uma intensa fonte magné- simples princípio segundo o qual a huma- exigência de uma dignidade partilhada so-
Argentina, berço de sua família. De imagi- tica suscetível de atrair “todo um sistema nidade começará a merecer seu nome no bre uma terra liberta do horizonte diário
nação precoce e formação em grande parte de relações conexas”. dia em que a exploração do homem pelo do trabalho opressivo e do dinheiro”.
autodidata, teve suas primeiras atividades Ora, o esforço de Cortázar, que se im- homem tiver cessado”3.
literárias motivadas por um sentimento de põe com a leitura desses “contos”, é reunir Ora, isso não significava, em absoluto,
asfixia na Argentina peronista, de onde se em poucas páginas tudo aquilo que carac- que fosse necessário fazer concessões aos
exilou deliberadamente em 1951 para Pa- teriza e qualifica a arte dos “grandes” ro- modelos constituídos da literatura mili- * Guy Scarpetta é escritor e autor do romance La Gui-
ris. Na França, publicou os primeiros livros mances: a variação das vozes narrativas (em tante. No auge de seu comprometimento, mard, Paris, Gallimard, 2008, entre outros.
e fez múltiplas viagens, entre elas um en- muitos casos), a multiplicidade dos pontos Cortázar não deixou de se opor inflexivel-
contro, durante os anos 1960, com aque- de vista, a exploração de territórios até en- mente aos “critérios estreitos daqueles que
les que constituem a grande constelação tão ignorados, a habilidade de sugerir espa- confundem literatura e pedagogia”: “Acre-
romanesca latino-americana da segunda ços e tempos paralelos para além da reali- dito mais do que nunca que a luta pelo so- 1 CORTÁZAR, Julio. Nouvelles, histoires et autres contes.
metade do século XX: Carlos Fuentes, Ga- dade cotidiana, os deslizamentos progressi- cialismo na América Latina deve enfrentar Paris, Gallimard, 2008.
briel García Márquez, Mario Vargas Llosa e vos de um universo a outro. Como se, para o horror cotidiano (…) guardando, de ma- 2 Reunião de intelectuais e autoridades morais dedicadas,
nas décadas de 1960 e 1970, que julgou os crimes norte-
Lezama Lima. Geração essa da qual é um ele, os constrangimentos da narração bre- neira preciosa e zelosa, aquela capacidade
americanos no Vietnã e, posteriormente, os crimes das
primogênito solidário. Conquistou uma ve, elíptica, longe de conter a imaginação, de viver que desejamos para esse futuro, ditaduras latino-americanas.
reputação cada vez maior e se empenhou servissem apenas para lhe dar mais densi- com tudo aquilo que isso supõe de amor, 3 Carta de Cortázar ao diretor cubano da revista Casa de
cada vez mais nas grandes causas da Amé- dade. Daí esses mundos fabulosos, prodi- de jogo e de alegria”. las Americas, 1967.
38 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2008

LITERATURA / IDEOLOGIA

Profetisa conservadora
A russa Ayn Rand conquistou, nos EUA, admiradores entusiastas, como Ronald Reagan e
Angelina Jolie. Sua literatura, que exalta o indivíduo e o livre mercado, tornou-se uma arma de combate
da cruzada da extrema direita contra o multiculturalismo, as políticas ambientais e o Estado
POR FRANÇOIS FLAHAULT *

oucas pessoas já ouviram falar tuito de promover o indivíduo, o livre mer- tal maneira que o público as percebe como de poder, as injustiças e as violências que

P dela, mas Ayn Rand (1905-1982) é


a autora de dois imensos best-sel-
lers nos Estados Unidos, The Foun-
tainhead (1943) e Atlas Shrugged
(1957). Este último, uma saga em que se
misturam grandes empresários, suspense
e utopia. Indivíduos ilustres desaparecem
cado e o exercício da razão como antídotos
ao multiculturalismo, às políticas ambien-
tais, à valorização do Estado e a outras “ma-
nifestações de irracionalidade”. Oitocentos
mil exemplares das obras de Ayn Rand são
vendidos todo ano.
The Fountainhead é seu outro gran-
um desenvolvimento natural. O criador
Roark segue o próprio rumo. Só o que conta
é seu trabalho: que ninguém se interponha
em seu caminho, nem mestre, nem Deus!
Na Europa, o gênio romântico é ilus-
trado na figura frágil de poetas, escritores
e músicos. Modernizado e americaniza-
envenenam a existência da humanidade e
contra as quais, na vida real, o apelo à ra-
zão se revela desgraçadamente ineficaz.
A ideologia de Ayn Rand dirige-se em
primeiro lugar aos “dominantes”. Ela os con-
forta na idéia vantajosa de que se fazem por
si mesmos e lhes permite pôr em segundo
misteriosamente, um depois do outro. Re- de best-seller, que também se refere à força do, o gênio criador não procura mais fu- plano o que são na realidade: pessoas para
sultado: a civilização norte-americana en- criadora que nasce no coração do indivíduo. gir do mundo material, mas transformá- quem o principal é pertencer a redes de po-
tra em colapso. A investigação gira em tor- É a história de um arquiteto genial e intran- lo. O arquiteto é um artista,

© GETTY IMAGES / Leonard Mccombe/Time Life Pictures


no de um engenheiro, John Galt, que tam- sigente exposto à incompreensão e ao con- mas também um constru-
bém desapareceu. Galt, ficamos sabendo, formismo. No fim do romance, o arquiteto, tor, um realizador de obras,
retirou-se voluntariamente da sociedade. Howard Roark, comparece perante um tri- um Stakhanov americano. O
Ele considera, na verdade, que seus mem- bunal, acusado de ter dinamitado uma série homem se afirma diante do
bros improdutivos sugam o sangue dos in- de construções recém-terminadas. Por que mundo material com maes-
divíduos que criam e produzem – poder destruiu sua obra? Porque ela foi pervertida, tria, força e virilidade. Des-
abusivo assumido pelo Estado. Os outros adulterada: a despeito da garantia formal de de a primeira página do ro-
desaparecimentos são explicados: Galt que seria realizada tal como fora concebida, mance, Ayn Rand mostra
convenceu um determinado número de o aspecto dos imóveis foi modificado a fim suas cartas: Howard Roark se
espíritos superiores a segui-lo para uma de adaptá-la ao gosto do público. dirige, nu, ao topo de um ro-
região isolada e montanhosa, onde podem O leitor acompanha uma cena de tribu- chedo. A escritora acredita,
expressar com toda liberdade a capacida- nal tão comum nas ficções norte-america- como Nietzsche, que a hu-
de de criar. Um filme com o título de Atlas nas. Howard Roark cuida, ele mesmo, de sua manidade é justificada por
Shrugged está atualmente sendo produzi- defesa. E assim começa seu arrazoado: “Há seus grandes homens. Ela
do, com a participação, nos papéis princi- milhares de anos, um homem fez fogo pela compartilha sua crítica da fi-
pais, de Brad Pitt e Angelina Jolie, notória primeira vez. Provavelmente, foi queimado lantropia, seu desdém pela
admiradora de Ayn Rand. vivo na fogueira que acendeu. Foi conside- multidão e, principalmente,
Nos Estados Unidos, a popularidade de rado um criminoso que havia roubado de al- sua fé no indivíduo que exis-
Ayn Rand é comparável à de Ron Hubbard, o gum demônio um segredo temido pela hu- te por si mesmo, que não tem
fundador da Igreja da Cientologia. Não é de manidade. Mas, graças a ele, os homens pu- necessidade dos outros e que
espantar, portanto, que um grupo de discí- deram se aquecer, cozinhar os alimentos, extrai o que cria de seus pró-
pulos tenha desejado realizar sua utopia. Em iluminar as cavernas. […] Esse homem, o prios recursos.
1995, 13 anos após a morte da escritora, apa- pioneiro, o precursor, é encontrado em todas A defesa de Roark é na re-
receu em The Economist e Time Magazine as lendas que o ser humano imaginou para alidade um longo elogio de si
uma mensagem publicitária de página intei- explicar o começo de todas as coisas. […] Os mesmo: “O criador não serve
ra, anunciando a criação de uma nova cida- grandes criadores – pensadores, artistas, sá- a ninguém. Vive apenas para
de: Laissez Faire City. Voluntários do mundo bios, inventores – sempre se ergueram, soli- si mesmo. E é apenas viven-
todo eram convidados a se juntar a ela. Em tários, contra os homens de seu tempo”. do para si mesmo que o ho-
1998, os membros da Laissez Faire City pla- A destruição das construções, alega mem é capaz de realizar as Ayn Rand: exaltação dos “dominantes”
nejaram comprar terras na Costa Rica. De- Howard Roark, não é um delito: o artista, obras que fazem o orgulho
pois, diante das dificuldades, partiram para mestre de sua obra, tem o direito de derru- da humanidade. [...] O homem que se es- der e que se esforçam para achar seu lugar
a idéia de um território virtual na internet. bá-la quando não corresponde a seu ideal força por viver para os outros é um homem nelas. Mas tal ideologia se dissemina igual-
Finalmente, como no fundo se trata de não criativo. É precisamente sua recusa em se dependente. É um parasita e transforma mente bem – e eis sua grande força – entre
pagar impostos (prerrogativa imoral, segun- conformar às exigências da sociedade que os demais em parasitas. […] O objetivo do os que ocupam posições mais modestas.
do Ayn Rand, pela qual o Estado se apossa do acarreta para esta os maiores benefícios. criador é a conquista dos elementos; o ob- Estes estão provavelmente mais isolados, o
dinheiro dos particulares), os promotores da Howard Roark, novo Prometeu, defende os jetivo do parasita é a conquista dos outros que constitui para eles causa de dificulda-
utopia acabaram compreendendo que ela já valores do indivíduo; e os valores do indi- homens”. des, mas o modelo proposto por Howard Ro-
fora concretizada, sob uma forma sem dú- víduo são os valores da América. O júri dá O padeiro, segundo Adam Smith, não ark ou John Galt lhes propicia, na medida em
vida menos empolgante, mas cada vez mais seu veredicto: inocente! fabrica seu pão por filantropia, mas por que se identifiquem com ele, uma compen-
próspera: os paraísos fiscais. Em 1949, King Vidor levou às telas The interesse. Ao viver exclusivamente para si sação imaginária. E lhes permite serem fiéis
O itinerário de Ayn Rand explica prova- Fountainhead, com Gary Cooper no papel mesmo, ao se realizar enquanto indivíduo, ao que, na realidade, constitui sua fraque-
velmente sua ideologia. Nascida na Rússia do arquiteto2. A própria Ayn Rand escreveu cada um contribui involuntariamente, de za. Pois, como a fé no indivíduo se baseia no
no início do século XX, sob o nome de Alice o roteiro. Se alguém, zapeando a televisão, forma cumulativa, para o bem geral. Esse exemplo dos que são bem-sucedidos, para
Rosenbaum, ela fugiu da União Soviética em deparar com ele por acaso vai achar que otimismo se baseia, por sua vez, na cren- aqueles que permanecem na base da pirâ-
1926 para conquistar os Estados Unidos. Ora, não passa de mais um filme no velho estilo ça de que a interdependência não é de mide social, o fracasso é sempre atribuído a
cada uma a seu modo, a ideologia comunista hollywoodiano. Está tudo ali: o herói solitá- modo algum um traço constitutivo da con- uma falta de qualidades pessoais.
e a doutrina que lhe faz oposição são tributá- rio e indomável em meio ao conformismo dição humana, mas somente uma patolo-
rias do mito prometéico. Ao emigrar, ela pas- geral ou diante de homens poderosos e cí- gia, sem dúvida disseminada, mas que faz * François Flahault é antropólogo cultural, dire-
sou de um país que pervertia a ambição pro- nicos; as viradas do destino, do êxito à der- vir à tona, por contraste, a verdadeira natu- tor de pesquisa do Centre de Recherches sur les
metéica e a utopia para outro que, segundo rocada e da derrocada ao êxito; a heroína, reza do homem são. Desse modo, a única Arts et le Langage e autor, entre outros livros, de
sua opinião, encarnava seu êxito. Ativa até o sedutora e independente, mas finalmente forma de relação existente entre seres in- La mechanceté (Paris, Descartes&Cia, 1998).
final dos anos 1970, a escritora exerceu influ- conquistada. Para o espectador desatento dependentes é, segundo Ayn Rand, o livre-
ência considerável na vida intelectual e po- pode não saltar aos olhos a dimensão pro- comércio 3. 1 www.aynrand.org
lítica norte-americana, notadamente nos al- pagandística que permeia o filme. Foi desse Ayn Rand justifica assim uma ética no- 2 O filme foi distribuído no Brasil sob o título
tos escalões da administração republicana: modo que, nas telas, Ayn Rand inseriu dissi- tável por não implicar nenhum dever para Vontade indômita.
Ronald Reagan se incluía entre seus discípu- muladamente uma mensagem política que, com o outro, mas apenas com respeito a si 3 “A ética objetivista”, palestra ministrada na
los mais fervorosos. em seu romance, é formulada às claras. Ela mesmo. Desse modo desaparecem, como Universidade de Wisconsin em 1961 e repro-
Um Ayn Rand Institute1 se dedica a di- não procura passar adiante suas idéias, por magia, as múltiplas formas de interde- duzida em La vertu d’égoïsme (Paris, Les
fundir sua “filosofia objetivista”, com o in- mas, habilidosamente, constrói a trama de pendência, as relações de forças, os abusos Belles Lettres, 2008).

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