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24/09/2020 Quanto de religioso o Estado liberal tolera?

Artigo de Jürgen Habermas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU

Quanto de religioso o Estado liberal tolera?


Artigo de Jürgen Habermas


04 Dezembro 2012

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A resposta que o laicismo dá é
insatisfatória. As comunidades religiosas,
na medida em que desempenham um
papel vital na sociedade civil, não podem
ser banidas do âmbito político público e

forçadas à esfera privada, porque uma
política deliberativa depende do uso
público da razão, tanto pelos cidadãos
crentes quanto não crentes.

Publicamos aqui a versão escrita da conferência proferida pelo filósofo e sociólogo


alemão Jürgen Habermas, no contexto da série "Política e Religião", no dia 19
de julho de 2012, na Fundação Carl Friedrich von Siemens, em Munique,
Alemanha.

O artigo foi publicado no blog da Editora Queriniana, 27-11-2012. A tradução é de


Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Depois da eleição do primeiro presidente egípcio democraticamente eleito, o artigo de


primeira página do jornal Süddeutsche Zeitung do dia 26 de junho intitulava-se
assim: "Mohammed Mursi ajuda o Islã político a fazer o seu maior triunfo
rejeitando os valores ocidentais". Em que perspectiva se fala de "valores ocidentais"?
Uma cultura é portadora de valores como liberdade e paz, igualdade e temor de Deus
segundo uma ordem de prioridade diferente da de uma outra cultura.
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segundo uma ordem de prioridade diferente da de uma outra cultura.

Se Mursi irá seguir a linha dura dos Irmãos Muçulmanos ou, de fato, se será um
presidente de todos os egípcios, e portanto também dos xiitas, dos coptas e dos
seculares, dependerá, dentre outras coisas, do fato se ele considerará a liberdade
religiosa e os outros direitos fundamentais de uma constituição liberal somente como
valores ou também como princípios. Na realidade, é preciso admitir que os princípios
racionalmente fundamentados requerem uma sensibilidade para o contexto de
aplicação, mas, segundo a sua pretensão, eles valem para todos e, além disso, eles não
têm nem prima facie uma relação de tensão com os "valores" de outras culturas.

Também no Ocidente, as bases de legitimidade segundo o direto natural do poder


político se entrelaçaram inicialmente com a compreensão da estrutura do kósmos e
da pólis, com as revelações de um Deus que redime ou com os pensamentos de Deus
objetivados na criação. Só o direito moderno da razão removeu o peso das motivações
metafísicas e religiosas dessas concepções globais daqueles princípios que adquiriram
validade positiva nas revoluções constitucionais do século XVIII. A partir dessa visão
limitadamente antropocêntrica, a democracia e os direitos humanos são, para as
sociedades modernas, os dois pilares reciprocamente interconectados do poder
político.

O justo e o bom

Não posso entrar no mérito das tentativas de fundação do direito da razão, mas vou
me limitar ao tipo de raciocínio por ela seguido. Podemos distingui-la do contexto das
visões de mundo globais logo que se diferencie a ideia de justiça da de bem supremo.
A ordem justa, então, não se orienta mais por uma forma de vida exemplar,
solidamente ancorado no cosmos ou na história da salvação. Essa perspectiva de
justiça que adere ao bem concreto é substituída pela ideia de inclusão informal de
indivíduos livres e iguais, que podem dizer sim e não.

A esse respeito, é decisiva a reviravolta de uma concepção conteudística da vida boa à


ideia de um processo de comparação, segundo a qual os participantes constroem por
si mesmos um ordenamento justo. Ao londo de uma progressiva descentralização da
compreensão de si mesmos e do mundo, pessoas livres e iguais devem encontrar o
que também é igualmente bom para cada uma deles. Essa dissociação conceitual do
justo do bom tornou independentes os conceitos de legitimidade da construção do
mundo ou da história em seu conjunto, possibilitando, desse modo, a ideia de um
poder secularizado do Estado. No Ocidente, foi mais ou menos realizada uma
adequada separação institucional entre Estado e religião sob a forma de acordos
muito diferentes do direito canônico.

Sociedade civil não secularizada


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Sociedade civil não secularizada

Mas a secularização do poder do Estado não significa, por isso, secularização da


sociedade civil – nos Estados Unidos, desde o início, ela não tinha essa intenção.
Essa circunstância coloca os cidadãos crentes em uma situação paradoxal. As
constituições liberais garantem a todas as comunidades religiosas (levando em conta
a liberdade religiosa negativa) o mesmo espaço e, ao mesmo tempo, protegem as
entidades do Estado, que acolhem as decisões como coletivamente vinculantes, das
interferências políticas de comunidades religiosas individuais mais poderosas.

Segue-se daí que as mesmas pessoas que são expressamente autorizadas a praticar a
sua religião e a levar uma vida piedosa, no seu papel de cidadãs do Estado, devem
participar de um processo democrático, cujo resultado deve ser mantido livre de
qualquer aditivo religioso.

A resposta que o laicismo dá é insatisfatória. As comunidades religiosas, na medida


em que desempenham um papel vital na sociedade civil, não podem ser banidas do
âmbito político público e forçadas à esfera privada, porque uma política deliberativa
depende do uso público da razão, tanto pelos cidadãos crentes quanto não crentes. Se
a estridente polifonia das opiniões sinceras não deve ser ser suprimida, as
contribuições religiosas para questões moralmente complexas, como o aborto, a
eutanásia, a intervenção pré-natal na composição genética etc. não devem ser

cortadas pela raiz do processo de decisão democrático. Cidadãos e comunidades
religiosas devem permanecer livres para ser representadas como tais no âmbito
público, para fazer uso de uma linguagem religiosa e para usar argumentos
correspondentes.

Em um Estado secular, eles também devem aceitar que o conteúdo politicamente


relevantes das suas contribuições seja traduzido em um discurso acessível a todos e
independente das autoridades religiosas, antes de poder encontrar o acesso às
agendas dos órgãos decisionais do Estado. Deve ser introduzido, em certo sentido,
um filtro entre as correntes de comunicação selvagens da opinião pública, por um
lado, e as deliberações formais que levam a decisões coletivamente vinculantes, por
outro. E as decisões aprovadas pelo Estado também devem ser formuladas em uma
linguagem acessível igualmente a todos os cidadãos e devem poder ser justificadas.

Mas em que condições sobretudo os crentes, cujas ideias normativas, em última


análise, se enraizam nas convicções fundamentais da fé, podem aceitar as
consequências de uma tal cláusula de tradução da mensagem? Especialmente nas
religiões vitais, muitas vezes é latente um potencial de violência, que não pode
acender as faíscas de uma dinâmica da compreensão do mundo que livremente corre
na sociedade civil. Se o ordenamento constitucional liberal sobre um simples modus
i di d d i i di l iti id d t d id dã
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vivendi deve poder reivindicar uma legitimidade, todos os cidadãos, mesmo os
crentes, devem poder se convencer fundamentalmente da razoabilidade dos
princípios constitucionais. Os conflitos religiosos só não comprometerão essa base
comum se as convicções de fé não entrarem em conflito com a lealdade aos princípios
constitucionais fundamentais.

Expectativas

Segundo John Rawls, o Estado liberal deve, portanto, esperar dos seus cidadãos
crentes que eles fundamentem, a partir de sua própria fé, aquelas afirmações
seculares – segundo a sua própria opinião – apoiadas somente pela razão
democrática e do Estado de direito, respectivamente, e que as insiram como
"módulos" no contexto das suas convicções religiosas de fundo.

A Igreja Católica, por exemplo, realizou tal adaptação dogmática no Concílio Vaticano
II, portanto somente nos anos 1960. A imagem do módulo ilustra bem como os
cidadãos crentes podem apoiar, com relação às próprias ideias religiosas, a prioridade
objetiva e as decisões políticas em casos individuais e harmonizar estas com a
prioridade subjetiva das suas convicções de fé existenciais e, em última análise,
decisivas.

O Estado liberal, portanto, é incompatível com o fundamentalismo religioso. Nesse



conflito, uma figura da modernidade se confronta com outra forma moderna, que
surgiu como reação ao processo de modernização que suplanta todas as coisas. O
Estado liberal pode garantir aos seus cidadãos as mesmas liberdades religiosas – e,
em geral, iguais direitos culturais – somente com a condição de que eles, em certo
sentido, saiam para o ar livre de uma sociedade civil comum, deixando os mundos de
vida integrais das suas comunidades religiosas e de suas próprias subculturas.

Ao mesmo tempo, a cultura majoritária também não pode manter como prisioneiros
os seus membros no conceito estreito de uma cultura dominante, que reivindica um
poder definidor exclusivo sobre a cultura política do país. Na sentença sobre a
admissibilidade da prática da circuncisão de muçulmanos (e judeus), o tribunal do
distrito de Colônia é injusto ao julgar, afirmando que, juntamente com os
muçulmanos naturalizados, "o Islã também faz parte da Alemanha".

No papel de "colegisladores" democráticos, todos os cidadãos do Estado garantem


uns com relação aos outros a tutela dos direitos fundamentais e, como cidadãos da
sociedade civil, podem expressar verdadeira e livremente a sua identidade cultural e
ideológica. Essa relação entre Estado democrático, sociedade civil e autonomia
subcultural é a chave para compreender os dois motivos complementares entre si,
que secularistas e multiculturalistas erroneamente consideram incompatíveis. As
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demandas universalistas do Iluminismo político só encontram a sua resposta no


justo reconhecimento das afirmações particularistas de autoafirmação das minorias
religiosas e culturais.

O discurso intercultural

Com essa autocompreensão do Estado secular, o Ocidente se diferencia de outras


regiões do mundo. Enquanto isso, a situação pós-colonial e o deslocamento das
relações de poder da política mundial nos obrigam a levar a sério as considerações
que as outras culturas nos dirigem. Elas trazem à consciência do Ocidente os traços
provinciais das globalizações eurocêntricas, lembrando-nos as conquistas
imperialistas e as atrocidades coloniais, os crimes que foram cometidos também em
nome das nossas nobres normas.

A partir do seu contexto de formação europeia, somos capazes de compreender a


secularização do poder do Estado como resposta pacificadora à violência religiosa das
guerras confessionais. Por outro lado, em outras partes do mundo, a constituição do
Estado-nação levou somente a uma confessionalização, ou seja, à mútua exclusão e
opressão das comunidades religiosas que até agora viviam lado a lado mais ou menos
pacífica e amigavelmente.

Além disso, as obscuras formas híbridos e as duvidosas simbioses do poder estatal e
religioso, que deploramos em outras partes, nos lembram a tenaz resistência das
Igrejas cristãs ao Estado liberal, e a longa luta pela emancipação da educação pública
e do direito da família das garras da Igreja.

Por outro lado, o relativismo é a falaciosa consequência da autocrítica pedida. Não


por acaso os dissidentes de todo o mundo fazem uso da linguagem da democracia e
dos direitos humanos. Como parte dos debates interculturais, o Ocidente agora é
apenas uma das muitas partes. Nesse papel, devemos nos acostumar a ter uma
relação não dogmática e disposta a aprender com as civilizações que se
desenvolveram em caminhos muito diferentes até se tornarem contemporâneas de
uma sociedade mundial formadas por múltiplas modernidades.

Mas é só na base de uma defesa autoconsciente de pretensões universalistas que nos


deixaremos instruir pelos argumentos dos outros sobre os nossos pontos cegos na
compreensão e na aplicação dos nossos próprios princípios.

A isso pertence aquela leitura com um olho só e secularista do poder pelo Estado
secularizado, que edifica falsas fachadas. Como cidadãos seculares, não podemos
saber se o processo no nível da história do mundo de verbalização do sagrado foi
completado. Isso já havia começado com os primeiros mitos, isto é, com o surgimento
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narrativo dos significados encapsulados performaticamente na atitude ritual.

No berço do cristianismo, esse processo foi continuado pelo trabalho sobre os


conceitos por parte dos Padres da Igreja. No intercâmbio com a culta elite grega do
Império Romano, esses teólogos insistiram em uma tradução impermeável às
influências dos seus conteúdos de fé mais estimulantes na linguagem da metafísica.
Assim, eles, que também eram filósofos, redespertaram uma sensibilidade totalmente
não grega pela peculiaridade dessas experiências históricas e comunicativas para
além dos conceitos ontológicos de uma metafísica da substância.

Relação com a herança

Em primeiro lugar, a filosofia só teve uma muda participação nesse processo de


tradução. Foi ao menos a partir do século XVIII que ela continuou isso por conta
própria, absorvendo os conteúdos teológicos nos seus conceitos fundamentais de
ética e de filosofia da história. Kant e Hegel quiseram ainda reportar ao conceito o
conteúdo de verdade da tradição religiosa. Nos diagnósticos de crise e de alienação
dos jovens hegelianos, esse processo de tradução continuou involuntariamente, ao
invés. E, na mudança de perspectiva que a filosofia da existência e o pragmatismo
empreendem do "quê" do objeto ao "como" da relação performativa com o mundo,
trai-se tal osmose semântica. Os seminários conjuntos de Heidegger e Bultmann 
ou as experiências religiosas de William James são sintomáticos disso.

Ao mesmo tempo, os autores religiosos, de Kierkegaard a Walter Benjamin,


Emmanuel Lévinas ou Martin Buber, passando por Josiah Royce, estimularam,
por outro lado, os conteúdo das tradições confessionais através de um filtro
conceitual filosófico. A partir da retrospectiva do desiludido pensamento pós-
metafísico sobre essa relação com a herança, podemos aprender uma certa reserva
para uma autocompreensão secular: não podemos saber se o processo em curso até
agora – até as criações conceituais de Jacques Derrida – de uma tradução não
resvolida do potencial religioso de significado foi esgotado.

Portanto, o Estado liberal não deve somente pedir aos cidadãos seculares que levem a
sério como pessoas os cidadãos crentes que encontram no espaço político. Pode-se
até esperar deles que não deixem de reconhecer nos conteúdos articulados dos
posicionamentos e das declarações religiosas, se necessário, intuições reprimidas –
isto é, os potenciais conteúdos de verdade que podem ser introduzidos em uma
argumentação público não vinculada religiosamente.

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