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Artigo original

Interferências de Línguas Moçambicanas em Português falado em


Moçambique
Armindo Ngunga
Centro Estudos Africanos, Universidade Eduardo Mondlane, Moçambique

RESUMO: Quando dois povos entram em contacto durante um período considerável, como é o caso dos
portugueses e moçambicanos, entre os vários aspectos, as suas línguas acabam por se influenciar mutuamente
(Sapir 1921) através de aparecimento de alguns traços de uma língua no discurso de falantes da outra língua. Em
literatura linguística, se o traço linguístico de uma língua que aparece na outra for generalizado, este fenómeno,
chama-se empréstimo, mas se for esporádico e (quase) individual, chama-se interferência (Ngunga 2009), pois o
processo de aquisição de uma língua não materna implica utilização dos órgãos do aparelho fonador e de
processos psicológicos formatados para uso na produção de sons e outras estruturas da língua materna. Este
exercício pode resultar no que os professores de línguas chamam de “erros” resultantes de transferência de
estruturas da língua materna para a língua alvo (Cardoso 2007). Baseado no método de observação que consistiu
na escuta, recolha e sistematização de enunciados produzidos por moçambicanos ao longo de cerca de três
décadas, este artigo visa estudar as interferências de línguas moçambicanas na língua portuguesa nas áreas
fonética, fonológica, sintáctica e semântica. Os resultados desta investigação mostram que o surgimento
inadvertido de traços das línguas moçambicanas no Português pode afectar o processo de comunicação nesta
língua. Por isso, o texto sugere algumas estratégias para ajudar o professor a encontrar possíveis exercícios para
minimizar as dificuldades de aprendizagem de Português como língua não materna por alunos moçambicanos.
Palavras-chave: interferência, aquisição de língua, língua materna, língua não materna, língua bantu, língua
portuguesa

Interferences of Mozambican Languages in Portuguese as spoken


in Mozambique
ABSTRACT: When two groups of people come into contact for a considerable period of time, as the case of
Portuguese and the Mozambican, among other things, their languages end up influencing one another (Sapir
1921) through the emergence of some features of either language in the spoken discourse of one of the
languages. In linguistics literature, when the linguistic feature of one language is generally present in the other
language, that phenomenon is called loan; yet when sporadic and (almost) individual, it is called interference
(Ngunga 2009), since the process of non-mother tongue acquisition implies using the phonic organs and
psychological processes shaped to produce mother tongue sounds and structures. This exercise may result in
what language teachers call “errors”, which result from the transfer of mother tongue structures to the target
language (Cardoso 2007). Based on the method of observation of over three decades, which consisted in
listening, collection and systematization of the utterances produced by Mozambicans, the present paper studies
the interferences of Mozambican languages onto the Portuguese language, namely in the following fields:
Phonetics, Phonology, Syntax and Semantics. The results of the study show that the sudden appearance of some
features of Mozambican languages in the Portuguese language may affect the communication process in the
latter. Therefore, the paper suggests some strategies to help the teacher in finding some exercises to minimize the
learning difficulties the Mozambican non-mother speakers of Portuguese encounter when attempting to learn this
language.
Keywords: interference, language acquisition, mother tongue, non-mother tongue, Bantu languages, Portuguese
language
______________________________
Correspondência para: (correspondence to:) atelela.ngunga@uem.mz

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INTRODUÇÃO as diferentes línguas influenciam-se


mutuamente das mais variadas formas.
Desde os tempos imomoriais, a história Para aquilo que interessa neste artigo, de
dos seres humanos tem-se caracterizado acordo com a língua materna bantu de
por contactos, longos ou breves, entre cada moçambicano, podem ouvir-se
diferentes povos. Quando dois povos muitas ou poucas interferências no
entram em contacto durante um período discurso em língua portuguesa. Por isso,
considerável, como é o caso dos não se pode prever o tipo de interferência
portugueses e moçambicanos, entre os enquanto não se conhecer a língua materna
vários aspectos, as suas línguas acabam do sujeito falante, pois as interferências
por se influenciar mutuamente (SAPIR, variam de região para região reflectindo
1921) através de aparecimento de alguns quase invariavelmente as diversas
traços de uma língua no discurso de características das línguas faladas nas
falantes da outra língua. Em literatura diferentes regiões. Por isso, enquanto os
linguística, se o traço linguístico de uma estrangeiros por vezes pensam que os
língua que aparece na outra for moçambicanos falam uma única variante
generalizado, este fenómeno, chama-se de Português, os moçambicanos com
empréstimo, mas se for esporádico e algum nível de instrução raramente se
(quase) individual, chama-se interferência enganam na identificação da origem de um
(NGUNGA, 2009), pois o processo de concidadão com base na forma de uso das
aquisição de uma língua não materna diferentes estruturas da língua oficial.
implica utilização dos órgãos do aparelho Portanto, com base no estudo de
fonador e de processos psicológicos interferências torna-se defensável a
formatados para uso na produção de sons e hipótese de que existe uma relação de um
outras estruturas da língua materna. para um entre o número de línguas
Geralmente, este exercício resulta no que moçambicanas tipologicamente
os professores de línguas chamam de semelhantes e as variantes moçambicanas da
“erros” resultantes de transferência de língua portuguesa, um facto que remete para
estruturas da língua materna para a língua uma abordagem cautelosa de ensino do
alvo (CARDOSO, 2007). Português como Ln1 em Moçambique.

Portanto, interferência linguística pode Prestando atenção para a natureza de


definir-se como fenómeno que consiste na interferências linguísticas de falantes
utilização numa língua de traços bilingues, Cardoso (2007) diz tratar-se de
característicos de uma outra língua devido transferência de traços de uma língua
a incapacidade de o sujeito falante materna para a língua não materna e
produzir correctamente um som, uma identifica dois tipos de transferência,
palavra, uma frase da língua não materna “positiva e negativa” (CARDOSO, 2007,
(Ln1), ou na atribuição a uma palavra, p. 5), sendo o primeiro tipo “um recurso
expressão ou frase, de um sentido que faz para o falante, particularmente quando as
lembrar a tradução literal de algo análogo línguas são aparentadas, podendo recorrer
na língua materna. Trata-se de um a ela para enriquecer o seu discurso” e o
fenómeno que tem eminentemente segundo uma “dificuldade a ser
motivações externas (HOCH, 1991), isto é, ultrapassada” (CARDOSO, op. cit.). Este
que ocorre em situações de contacto de segundo tipo, que é objecto do presente
línguas sobretudo na fase inicial da estudo, é também considerado desvio que
aquisição de uma língua não materna. acontece quando um falante, usando uma
língua, sofre influência de outra língua
No caso de Moçambique, um contexto (MELLO, 1999), seja materna ou não.
eminentemente multilíngue e multicultural,
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Interferências de Línguas Moçambicanas em Português falado em Moçambique

Weinreich (1953), que já se tinha referido surgimento inadvertido de traços das


também ao fenómeno de interferência línguas moçambicanas no Português pode
como uma situação de desvio das normas afectar o processo de comunicação nesta
de língua que ocorre na fala dos bilingues língua; (d) sugerir algumas estratégias que
enquanto consequência da sua podem ajudar o professor a encontrar
familiaridade com mais de uma língua, possíveis exercícios para minimizar o
propõe um novo entendimento de impacto pedagógico decorrente da
interferência antes visto como um dificuldade de produção estruturas da
fenómeno unidireccional. Para este autor, a língua portuguesa por alunos que não a
interferência pode acontecer tanto através têm como língua materna.
da presença de traços de língua materna
na língua não materna, como através da Para alcançar esses objectivos foram
presença de traços de língua não materna analisados dados de oito das pouco mais
na língua materna do falante. Esta de vinte línguas moçambicanas, a saber:
perspectiva já abre a possibilidade de se Yaawo, Makonde, Makhuwa, Nyanja,
reconhecer a relação entre o bilinguismo e Nyungwe, Ndau, Changana, Tonga. Em
a interferência. Isto é, basta ser bilingue literatura linguística Bantu (Bleek 1862),
para ser candidato a produtor a de estas línguas são conhecidas, segundo
interferência. Guthrie (1967-71), pelos seguintes
códigos, respectivamente: P21, P23, P31,
Apesar de, por um lado, se reconhecer que N31, N43, S15a, S53, S62. À excepção de
as interferências podem ser de L1 na Ln1 Nyungwe e Tonga, as restantes línguas são
ou vice-versa e, por outro, se saber da transfronteiriças, são partilhadas com os
existência de uma gama de interferências diferentes países limítrofes de
tais como de carácter fonético, fonológico, Moçambique tais como Tanzânia (Yaawo
semântico, sintáctico, morfológico e e Makonde, Makhuwa), Malawi (Yaawo,
dialectal (THOMASON e KAUFMAN, Makhuwa, Nyanja), Zimbabwe (Ndau,
1988), o presente trabalho vai limitar-se a Changana), África do Sul (Changana).
discutir a transferências negativas de Todavia, os dados estudados no presente
línguas maternas da maioria dos artigo provêm de Moçambique, único país
moçambicanos na língua portuguesa, onde as referidas línguas estão em contacto
enfatizando aquelas que envolvem os com a língua portuguesa. Na descrição dos
primeiros quatro aspectos. Ao discutir diferentes tipos de interferências das oito
estas matérias, o presente artigo pretende línguas moçambicanas na língua
reconhecer que apesar de se tratar de portuguesa, presta-se especial atenção às
transferências negativas, elas dão cor e interferências fonéticas, fonológicas,
beleza singular à língua oficial bem como sintácticas e semânticas.
permitem saber os diferentes níveis de
proficiência em Português, medida para se METODOLOGIA
saber os diferentes níveis de domínio que
os moçambicanos têm desta língua. A realização do estudo foi motivada pela
necessidade de se compreender e
Nesses termos, um estudo foi realizado sistematizar as razões que estão por detrás
com os seguintes objectivos: (a) identificar das dificuldades de os moçambicanos
algumas áreas de tensão entre as línguas produzirem enunciados correctos quando
moçambicanas e a língua portuguesa; (b) aprendem a língua portuguesa ou quando a
descrever os diferentes tipos de usam mesmo depois de atingirem um certo
interferência que se observam quando nível que se pode considerar o suficiente
muitos moçambicanos falam Português; para produzirem discurso aceitável nesta
(c) mostrar que em alguns casos, o língua. Sendo os “erros” do aprendente de

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A. Ngunga

Português Ln1 muitas vezes resultado de enkonomiya [ekonomija] ‘economia’


transferência negativa das estruturas da sua enzagero [enzaeru] ‘exagero’
L1, a motivação primeira do presente enzame [enzame] ‘exame’
estudo foi tentar sistematizar alguns desses enzixte [enzite] ‘existe’
“erros” para se compreender a sua natureza enzerisisiyu [enzerisisiju] ‘exercício’
com vista a produzir uma explicação narinxi [narini].‘nariz’
científica. Portanto, em termos de método
utilizado nesta pesquisa, pode-se apontar o 2a. Fricativização do som líquido palatal:
de observação. Isto é, ao longo de cerca de [- -alt]
três décadas de actividade docente de
Língua Portuguesa no ensino secundário, fahla [faa] ‘falha’
de Linguística no ensino superior e de muhleri [mueri] ‘mulher’
investigação das línguas bantu, foi trabahlo [trabau] ‘trabalho’
possível observar e recolher os dados que
finalmente são aqui discutidos, 2b. Alveolarização do som líquido palatal:
sistematizados e colocados à disposição do [-cor, +alt]  [+cor]
público que poderá avaliar o seu valor no
processo de construção da fala [fala] ‘falha’
moçambicanidade plural. Por isso, nas muleri [muleri] ‘mulher’
secções que se seguem, serão apresentados trabalo [trabalu] ‘trabalho’
e discutidos exemplos concretos de
transferência negativa de formas Os dados em (1) ilustram a inserção de
linguísticas apenas das línguas maternas uma nasal em posição entre uma vogal e
eleitas para fazerem parte do presente uma consoante em certas palavras. Esta
estudo. Os casos de interferências interferência não tem nenhuma relação
negativas do Português nas línguas directa particular com algo que acontece
moçambicanas, que também existem, na língua, mas é comum em quase todos os
ficam para um outro estudo. falantes da língua changana, língua
predominante em duas das três províncias
INTERFERÊNCIA DE LÍNGUAS do sul do país, Gaza e Maputo. Esta
MOÇAMBICANAS EM PORTUGUÊS interferência não conhece o grau
académico do falante. É uma das
O tipo de transferência negativa mais características mais marcantes do
comum quando uma pessoa aprende uma Português falado por locutores falantes de
língua não materna é o fonético, sobretudo Changana como língua materna. A
aquele que se relaciona com a produção de dificuldade de evitar a inserção desta nasal
sons quando alguém tenta pronunciar
começa nos primeiros dias em que o
palavras isoladas. A presente secção vai aprendente entra em contacto com a língua
começar por abordar este tipo de erros para portuguesa e pode continuar e,
compreender a sua génese como condição normalmente, continua até à vida laboral
para se perceber a sua razão de ser. Assim: depois de concluídos todos os graus
académicos que a sorte lhe reservar.
Interferências Fonéticas
Contudo, apesar de constituir um forte
Os efeitos dos erros de carácter fonético na ruído para o ouvinte, este “erro”
comunicação podem ser diversos, como se geralmente não afecta a comunicação, pois
pode ver nos seguintes exemplos: as formas lexicais daí resultantes não
Changana coincidem com nenhumas outras existentes
na língua portuguesa. Mas o mesmo não se
1. Inserção de nasal: [nas] pode dizer de outros tipos de interferências
convinte [konvi nte] ‘convite’ que resultam das dificuldade de o falante
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produzir o som lateral palatal, como se todos os falantes da língua portuguesa, não
pode ver em (2). Não existindo o som apenas os que a têm como língua materna,
líquido palatal [] no repertório fonético mas incluindo os que a falam como língua
da língua changana, da primeira tentativa não materna (39% da população
de produção deste som acaba produzindo moçambicana (FIRMINO, 2000). A língua
um som semelhante, mas que não existe na makhuwa coexiste, não só com a língua
língua alvo, o som lateral fricativo palatal portuguesa, como também com outras
[] no lugar do lateral palatal [] (2a). línguas em quatro províncias de
Todavia, uma vez que este som é moçambicanas, a saber, Cabo Delgado,
totalmente inexistente na língua alvo, a Nampula, Niassa e Zambézia. Vejam-se
palavra em que este toma parte fica tão alguns exemplos de transferência negativa
estranha ao sistema que deixa o falante predominante na língua portuguesa falada
numa situação de desconforto tão grande por moçambicanos cuja L1 é Makhuwa:
que se vê obrigado a encontrar na língua- Makhuwa: Desvozeamento dos sons
alvo uma solução foneticamente plausível, consonânticos: [+voz, -sil] [-voz]
socorrendo-se s do som lateral alveolar [l]
existente também na língua materna para o a.coku [coku] ‘jogo’
lugar dos “estranhos” [] e []. kasa [kasa] ‘caça’
Inexplicavelmente, a primeira solução (2a) kasa [kasa] ‘casa’
é mais frequente em pessoas de nível de kasa [kasa] ‘Gaza (nome de uma
escolaridade elementar-médio e a solução província moçambicana)’
(2b) é “preferida” por pessoas com nível
teto [tetu] ‘dedo’
de escolaridade mais alto, com bom
tuwaci [tuwaci] ‘duas’
domínio da língua portuguesa. Seria
interessante realizar estudos
b.kalinya [kalia] ‘galinha’
psicolinguísticos para se saber se esta
escolha é consciente ou inconsciente. patata [patata] ‘batata’
Pode-se especular que sendo o som lateral Peturu [peturu] ‘Pedro’
palatal vozeado preferido por falantes de
nível elementar-médio de escolaridade, os Como ilustram os exemplos acima, o não
de nível médio-alto procuram não se vozeamento de consoantes é a
confundir com aqueles optando por um característica fonética fundamental do
som diferente no lugar daquele que não Português falado pelos falantes de
existe na L1. Seja qual for a explicação, Makhuwa como L1. Sabendo-se que
uma coisa parece certa, a ambiguidade Português é uma língua em que o traço voz
semântica é tida como menos nociva à (das consoantes) é contrastivo, a
comunicação do que um som estranho ao transferência negativa da função deste
sistema fonético da língua alvo. O sentido traço de Makhuwa para a língua alvo pode
de uma forma ambígua pode ser trazer consequências negativas à
recuperado sempre. Mas um som estranho comunicação, como se pode observar em
numa língua não tem reparação possível. (a). Pelo que um verbo como [cokari]
(/chocari/, para os leitores não
Outro caso de interferência fonética que familiarizados com os símbolos fonéticos)
pode afectar a semântica das palavras em pode significar tanto o que as galinhas
entram os sons visados acontece em fazem aos ovos como o que os humanos
Makhuwa, por sinal a língua cujo número fazem à bola num campo de futebol. Para
de falantes (mais de 40% da população o ouvinte não familiarizado com este
moçambicana) ultrapassa o número de fenómeno, pode pensar que os makhuwas
falantes de qualquer outra língua do país. fazem à bola aquilo que as galinhas fazem
Esta percentagem ultrapassa de longe a de aos ovos. Isto pode ser suficiente para
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deixar um falante nativo de Português sem Outra língua escolhida para este estudo é o
entender o que o interlocutor pretende de Yaawo, falado nas províncias
facto dizer. Outra consequência desta moçambicanas de Niassa e Cabo Delgado,
transferência negativa é a produção de e em algumas regiões de Malawi,
enunciados que um interlocutor falante de Tanzânia, Zâmbia e Zimbabwe. A questão
língua portuguesa língua materna, pode interessante aqui é “como é que os yaawos
não conseguir descodificar. Mas, como se se arranjam para aprender o Português?” A
observou no caso dos exemplos em (2), a resposta, talvez não interessante, mas
ambiguidade semântica é mais aceitável do verdadeira, é que os yaawos sofrem tanto
que o som estranho ao sistema da língua como os falantes de outras línguas na
alvo. Provavelmente por isso os makhuwas mesma situação. Vejam-se alguns
pensem que, pelo contexto, qualquer exemplos:
falante de há-de sempre perceber que eles Yaawo: Desvibração do som líquido:
não “chocam” a bola embora digam [no [+ant, -lat]  [+lat]
cokamo a pola].
a. lapaaci [lapa:ci] ‘rapaz’
Tal como nos exemplos analisados da
língua changana, o fenómeno de laatu [la:tu] ‘rato’
transferência do traço [-voz] de Makhuwa leemu [le:mu] ‘remo’
para o Português pode acompanhar um
liiyu [li:ju] ‘rio’
Makkuwa desde os primeiros dias da
escolarização na língua alvo até ao oosa [lo:sa] ‘Rosa’
doutoramento. E não tem nada a ver com a
b. luuwa [lu:wa] ‘rua’
competência linguística, pois pode-se
ultrapassar a nível da escrita, mas kaalo [ka:lo] ‘calo’
continuar a fazer-se presente na oralidade.
kaalo [ka:lo] ‘caro’
A título de exemplo, uma vez um sujeito
fazendo doutoramento em Linguística kaalo [ka:lo] ‘carro’
escreveu para um amigo uma carta que laalo [la:lu] ‘ralo’
continha a seguinte passagem: laalo [la:lu] ‘raro’

“Recebi as tuas duas (não me perguntes Em termos fonéticos, o som vibrante


qual destas duas palavras é pronome constitui o “carrasco” dos yaawos
possessivo e qual delas é numeral cardinal aprendendo a língua portuguesa. Tal como
porque quando eu pronuncio, as duas são em Makhuwa, há situações em que a
iguais!) cartas…” solução encontrada para resolver a
dificuldade de articular o som vibrante,
Esta passagem ilustra o facto de que o seu seja simples ou múltiplo, resulta na criação
autor sabia que entre as palavras “duas” e de dois tipos de sequências de sons. Por
“tuas”, uma era numeral e outra era um lado, podem produzir-se sequências de
pronome possessivo, mas oralmente, o sons que não existem na língua, tal como
mais provável seria que ambas fossem em (a), para cuja interpretação o ouvinte
pronunciadas como [tuwa]. Portanto, um precisa de se socorrer da sua criatividade
makhuwa pode ter toda a competência superior a de Chomsky (1965). Por outro
linguística em Português, e continuar a não lado podem ser produzidas sequências de
ser capaz de articular, na sua performance sons que coincidem com sequências
oral, aquilo que para falantes de algumas interpretáveis como palavras (b). Só que
outras línguas como o Português pode ser estas palavras podem, semanticamente,
óbvio. não ter nada a ver com o significado que o
contexto lhes atribui resultando em
enunciados cuja perceptibilidade só pode
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ser possível com recurso a um exercício sholidado [olidadu] ‘soldado’


aturado de negociação com o contexto. mashimu [maimu] ‘máximo’
Diferente dos casos estudados acima,
Em (i) são apresentados exemplos que
Changana e Makhuwa, e provavelmente de
ilustram a inexistência de som vibrante
outros por serem estudados, o assunto da
alveolar em Makonde, tal como acontece
vibrante para os yaawos é solúvel através
com o irmão tipológico Yaawo. Os
de exercícios práticos. Aparentemente,
exemplos em (ii) mostram que apesar de
todo o yaawo, depois de uma quarta classe
um pouco semelhante, o Maconde também
o mais tardar já não produz o [l] no lugar
é diferente de Yaawo. Ao contrário de
de [r]. Em parte, isto deve-se ao facto de
Yaawo que, entre outros, partilha com o
nesta língua existir o som [r] usado em
Português o som [s], o Makonde parece
ideofones e não em palavras de outras
não possuir este som, pelo menos em
categorias gramaticais. Pelo que, o
algumas variantes do Planalto que
sofrimento de transformar o [r] em som a
constitui o seu habitat natural principal.
ser usado na formação de palavras não
Isto faz com que os aprendentes da língua
ideofónicas dura algum tempo, mas é
portuguesa se socorram do som fricativo
ultrapassado. Vejam-se a seguir dados de
uma língua muito próxima de Yaawo, o palatal não vozeado [] para resolver as
Makonde. dificuldade de articulação de [s].
Aparentemente, este exercício não traz
A língua makonde falada na província de consequências graves à comunicação
Cabo Delgado e nalgumas zonas na região cabendo ao ouvinte reinterpretar o []
sul da Tanzania, que é classificada no como [s] em todos os contextos em que
mesmo grupo que a língua yaawo, tem aquele seja produzido no lugar deste.
algumas semelhanças fonéticas com esta. Aliás, há variantes de Português, em
Um exemplo destas semelhanças é o caso algumas zonas do Brasil, em que a
da ausência das vibrantes, o que obriga os palatalização de [s] é apenas uma das
falantes a, tal como os yaawos, se características fonológicas deste som em
socorrerem da lateral alveolar sempre que alguns contextos e não tem nada a ver com
as palavras da língua alvo contenham em o facto de os falantes terem o Português
algum momento o som vibrante, seja ele como língua não materna.
simples, seja ele múltiplo. Considerem-se
os exemplos que se seguem: Mas os problemas de interferência não
Makonde: terminam aqui. Muitas vezes, nota-se que
os traços que são eliminados por
i. Desvibração do som líquido: [+ant, - aprendentes de Ln1 falantes de uma certa
lat]  [+lat] L1, são precisamente os mesmos que são
acrescentados por falantes de uma outra L1
Maliya [mali:ya] ‘Maria’ aprendentes da mesma Ln1. Os exemplos
Malukuci [malukuci] ‘Marcos’ que se seguem ilustram dois casos opostos
kalabina [kalabina] ‘carabina (sp. a outros dois vistos acima. O primeiro
espingarda)’ refere-se a língua tonga, falada na
tilu [ti:lu] ‘tiro’ província de Inhambane, uma das poucas
línguas moçambicanas não partilhadas
ii. Palatalização do som alveolar som com outros países. O segundo caso é o da
fricativo não vozeado: [+cor, -alt]  [- língua ndau, falada nas províncias de
cor] Manica e Sofala bem como no vizinho
Zimbabwe. Vejam-se os exemplos de
shawude [awude] ‘saúde’ Tonga:
shigaro [iga:lo] ‘cigarro’
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Tonga: Desnasalização das vogais: Vejam-se a seguir os exemplos de Ndau:


[+nas]Ø
Ndau: Metátese dos sons líquido ou
a.sikweta [sikweta] ‘cinquenta’ lateralização do som vibrante?:
konosko [konoko] ‘connosco’
pito [pito] ‘pinta’ [ -lat] [+lat]/ _$[ +lat]  [ +lat]  [-lat]/
_$[ -lat] ou [+ant, -lat]  [+lat]?
b. kotas [kota]1 ‘contas’
plobrema [plobrema] ‘problema’
kasari [kasari] ‘cansar’ excralecimentu [ecralecimentu]
pote [pote] ‘ponte’ ‘esclarecimento’
exprikari [eprikari] ‘explicar’
Os exemplos acima ilustram casos de ereyitu [erejitu] ‘eleito
desnasalização de vogais, o que em bantu Flerimu [flerimo] ‘Frelimo’
significa elisão da nasal em posição pré-
consonântica. Este caso é oposto ao que se Este caso é um verdadeiro teste para a
viu em Changana onde os falantes têm a análise, pois aqui se está diante de uma
tendência de inserir a nasal em posição situação em que os falantes parecem estar
pré-consonântica ou simplesmente a a produzir intencionalmente o contrário do
nasalizar a vogal que precede uma que se deveriam. Por exemplo, em (a) o
consoante. Nestes exemplos, a som vibrante alveolar [r] da primeira sílaba
desnasalização da vogal (ou elisão da e o lateral alveolar [l] da segunda trocam
nasal) pode resultar em palavras não as posições. Em (b) o fenómeno repete-se,
existentes na língua, como em (a), ou em mas no sentido oposto. O [l] da segunda
palavras existentes. Nestes casos, se se sílaba e o [r] da terceira também trocam as
tratar de um texto escrito, pode-se pensar posições. Estes dois casos se poderiam
que se trata apenas de um mero lapso de chamar de metátese como está proposto
escrita, o que é menos grave, pois qualquer acima. Mas em (c) reporta-se uma situação
leitor atento minimamente informado pode de deslateralização de [l] que se articula
proceder à devida reparação. Se for como vibrante. Em (d) acontece, por um
ouvido, dá para se pensar que o falante lado, de novo a metátese ilustrada em (a) e
deve estar com uma espécie de gripe que (b), mas por outro lado, o contrário do que
bloqueia as vias respiratórias superiores acontece em (c). Isto é, enquanto em (c) o
obrigando o ar necessário à produção de [l] é articulado como [r] na primeira sílaba,
nasais a sair pela cavidade oral ao invés de em (d) o [r] da primeira sílaba é produzido
sair pela cavidade nasal. Esta pequena (e percebido) como [l].
alteração pode levar a um ligeiro distúrbio
na comunicação, embora facilmente Estes dados mostram uma alternância das
reparável. Nos exemplos em (b), o assunto consoantes líquidas nos mesmos contexto
é um pouco mais sério. O ouvinte sugerindo que nesta língua [l] e [r] não são
precisaria de pedir ao emissor para repetir dois sons fonémicos, isto é, não são
o enunciado ou precisaria de reler o contrastivos. Portanto, não são usados para
enunciado ele próprio para se esclarecer o distinguir palavras de sentidos diferentes.
significado da palavra que o contexto não São, sim, variações alofónicas (em
ajuda a esclarecer. Portanto, está-se diante distribuição livre) do mesmo fonema, o
de casos em que as palavras produzidas que é um problema para o aprendente de
com a desnasalização das vogais existem Portuguesa como língua segunda, onde os
na língua alvo, mas não têm os respectivos dois sons são contrastivos. Para ajudar o
significados nos contextos em que aprendente a ultrapassar esta dificuldade,
ocorrem. sugere-se que o professor de língua use

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Interferências de Línguas Moçambicanas em Português falado em Moçambique

pares mínimos baseados no contraste entre Changana: *silaba fechada2


os sons ocorrendo no mesmo contexto para a. kuxatiyara (< chatear)
explicar a necessidade de articulação
correcta de cada som no respectivo b. kuvota (< votar)
contexto sob o risco de produzir c. manduwinya (< amendoim)
enunciados que nada têm a ver com o
sentido do que se pretende dizer. Mas isto Nos exemplos acima, além da uma robusta
tem de ser feito, sobretudo, com base em presença das marcas morfológicas de
muitos exercícios práticos sem enveredar bantu, os fenómenos de epêntese e de
pela via de explicações teóricas complexas elisão conspiram contra a presença de
a fim de permitir que o aprendente possa sílabas fechadas.
ter a oportunidade de associar o som a
palavra concreta criando condições para Assim, em (a), verifica-se que há inserção
que a articulação do som particular num de glide (/y/) para evitar o ditongo /ia/ para
determinado contexto dependa do contexto evitar a sequência de vogais (/ia/) e
geral de que o mesmo faz parte. epêntese da vogal baixa /a/ em posição
final para eliminar a sílaba fechada em
Depois desta breve digressão por alguns posição final da palavra. Acresce-se a
fenómenos de interferências fonéticas de informação segundo a qual, de uma forma
algumas línguas moçambicanas na língua geral, estas línguas têm duas as marcas do
portuguesa, passa-se a seguir a ver um infinito verbal, ku- (no início do verbo) e -
fenómeno de interferência fonológica a (no final). Em (b) a procura da sílaba
daquelas línguas nesta última. aberta consegue ser bem sucedida através
da elisão da vibrante final (marca do
Interferências Fonológicas: sílabas infinitivo na língua alvo). Em (c), também
ocorrem cinco fenómenos fonológicos
Fonologia é o estudo dos sons de uma visando acomodar alguns traços da língua
língua tendo em atenção o seu papel na materna na interlíngua. Assim, (i) elisão de
comunicação (NGUNGA, 2004; TRASK, /a-/ inicial, (ii) substituição de /e/ por /a/ na
1999). Nesta secção, o presente estudo vai primeira sílaba para fazer coincidir /ma-/
debruçar-se sobre um aspecto com um prefixo nominal comum nesta
particularmente contrastivo da fonologia língua, (iii) inserção da glide labiovelar
das línguas moçambicanas e a da língua para desfazer a sequência de vogais /oi/
portuguesa, a sílaba, definida como seguida de (iv) consequente desnasalização
“unidade de um ou mais sons que se fala de /ĩ/ e, finalmente, (v) epentização de /a/
com um impulso respiratório” (WEISS final. Todo este exercício só visa um
1988, p. 59). Os diferentes grupos
objectivo, garantir que as sílabas sejam
tipológicos de línguas têm sílabas de abertas, como se vê os exemplos acima.
diferentes estruturas. Nas línguas bantu,
por exemplo, a sílaba tem, geralmente, a Embora reconhecendo que haja mais
estrutura do tipo (V, CV(V)). Isto é, fenómenos fonológicos da língua materna
exceptuando a nasal silábica, a única não que os moçambicanos falantes do
aberta, a sílaba nas línguas bantu é aberta, Português como língua não materna
o que explica que os falantes destas transferem para esta, a sílaba foi aqui
línguas em geral e os das moçambicanas tratada porque a observância a
em particular, aprendendo a língua transferência das suas características para a
portuguesa, revelem tendência de produzir língua alvo envolve uma série de processos
sílabas abertas mesmos nos casos em que fonológicos. Esta estrutura da sílaba,
elas sejam fechadas na língua alvo. Vejam- sobretudo o seu carácter aberto, é
se os seguintes exemplos: transferida para a língua portuguesa da
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mesma maneira pelos falantes das entre os moçambicanos de nível elementar


diferentes línguas moçambicanas. e de nível intermédio, e às vezes mesmo de
nível avançado, de aprendizagem da língua
Posto isto, passa-se para a penúltima parte alvo. Como se vê, o verbo ‘nascer’ é um
desta discussão das interferências de verbo intransitivo, portanto, um verbo cuja
línguas moçambicanas na língua estrutura argumental só admite um
portuguesa, aspecto de sintaxe. argumento (externo) à esquerda e nenhum
argumento (interno) à direita. Nas línguas
Interferências sintácticas bantu, o verbo que corresponde a ‘nascer’
em Português tem dois lugares, isto é,
Depois dos sons que constituem as além do argumento externo (eu, alínea (a)),
palavras, a frase é o segundo espaço onde tem um argumento interno (duas crianças,
os aprendentes de línguas tipologicamente alínea (a)). Ou seja, nestas línguas o verbo
diferentes das suas se denunciam. Vejam- ‘nascer’ é transitivo. Daí que, quando
se a seguir alguns aspectos de interferência conjugado em Português de interlíngua
relacionados com a sintaxe, parte de (SELINKER 1972), ele apareça com um
linguística que “trata das relações que as argumento interno que, na voz passiva, se
unidades contraem no enunciado” movimenta para a posição inicial da frase
(BORBA, 2005, p. 181). Reconhecendo (c). Aquilo que é objecto da frase (b) passa
que a sucessão e a linearidade sejam dois a desempenhar a função de sujeito
dos princípios fundamentais que regem a gramatical da frase (c). Esta sintaxe aqui
combinação dos elementos na formação de descrita é absolutamente correcta na língua
enunciados, é correcto supor que diferentes materna de muitos moçambicanos sendo,
grupos de línguas tenham regras diferentes por isso, normal a sua transferência para a
com base nas quais esses princípios são língua portuguesa. Considere-se outro
observados. Portanto, é de supor que exemplo de interferência sintáctica das
línguas tipologicamente diferentes tenham línguas moçambicanas na língua
formas diferentes de reger as relações entre portuguesa:
os elementos que fazem parte do mesmo
enunciado e podem constituir fonte de Verbo ‘dar’: *Eu fui dado um livro
interferências em caso de as duas línguas cf. Foi-me dado um livro
serem usadas por um indivíduo bilingue.
Veja-se o que muitas vezes se ouve de O exemplo acima revela que ao contrário
enunciados produzidos por alguns do fenómeno que consiste na criação de
moçambicanos falantes de línguas bantu lugares na estrutura argumental do verbo,
como maternas: outros casos existem em que a
Verbo ‘nascer’: transferência negativa da estrutura
argumental da língua materna consiste na
a. *Eu nasci duas crianças, um rapaz e uma eliminação de um argumento do verbo cuja
menina. presença na língua alvo é obrigatória. Dito
cf. Eu dei à luz duas crianças doutra maneira, na língua portuguesa, o
verbo ‘dar’ tem três lugares, sendo um
b. *Esta é a minha mãe que me nasceu. externo (agente/sujeito) e dois internos
(paciente/objecto directo e oblíquo/objecto
cf. Esta é a minha mãe que meu à luz.
indirecto). Na língua materna do falante, o
c. *Eu fui nascido em Mwembe. verbo equivalente ao verbo ‘dar’ tem
também três argumentos. A diferença entre
cf. Eu nasci em Mwembe. as duas línguas está no facto de que a
ordem linear dos argumentos internos na
Nestes enunciados são apresentados L1 é inversa à ordem linear destes na
exemplos de enunciados muito comuns
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Interferências de Línguas Moçambicanas em Português falado em Moçambique

língua alvo. Isto é, enquanto na língua um problema sério e por vezes ofensivo.
portuguesa a ordem não marcada dos Vejam-se os exemplos que se seguem:
sintagmas nominais objectos (directo e
indirecto) é do tipo objecto directo (OD) Verbo ‘dormir’: o carro dormiu lá fora
seguido de objecto indirecto (OI), nas cf.o carro ficou lá fora durante a noite
línguas bantu a ordem de co-ocorrência
dos objectos na frase é do tipo objecto Este é um exemplo de interferência
indirecto (OI) seguido de objecto directo semântica que consiste na atribuição de
(OD). Uma tentativa de abreviação dessas traço [+anim] a um ser inanimado, mas
sequências pode-se ver a seguir: comummente chamado personificação.
Mas é preciso esclarecer que o falante de
Ln1: SVODOI uma língua bantu não produz este
L1: SVOIOD enunciado com intenção estilística. Esta é
a forma como ele fala normalmente na sua
Onde S = sujeito, V = verbo, OD = objecto língua e, inadvertidamente, pode ser
directo, OI = objecto indirecto. transferida negativamente para a língua
alvo.
Daí que, na Ln1, o OD se movimente para
a posição de sujeito gramatical na frase Verbo ‘sentir’:
passiva enquanto na L1 é o OI que se
movimenta para aquela posição na frase (a) eu oiço o cheiro de comida podre
passiva o que, numa fase de aprendizagem cf. eu sinto cheiro de comida podre
da língua não materna pode traduzir-se na
transferência negativa da estrutura da L1 (b) eu vejo frio
para Ln1. De novo, a forma de solução das
dificuldades ocasionadas pelas diferenças cf. eu sinto frio
tipológicas são exercícios em que nomes
Em bantu parece não existir uma tradução
de diferentes classes nominais sejam
de ‘sentir’ (abstracto) que não passe por
usados como argumentos de frases a serem
verbos que traduzem as percepções
construídas. Aqui, o professor poderá
recebidas através de órgãos de sensoriais
explicar as funções de cada elemento da
de “confiança” tais como ouvir e ver.
frase e depois a sequência em que estes
Todavia, é preciso acrescentar que nem
devem aparecer na estrutura da frase.
todos os sentidos de ‘sentir’ são
Finalmente, uma área muito delicada e, percebidos por falantes de todas as línguas
quiçá, perigosa para os aprendentes de através dos mesmos órgãos de sentido. Isto
qualquer língua não materna, a semântica, é, aquilo que para uns é ‘sentir/ouvir’ para
ou “estudo do significado das línguas outros pode ser ‘sentir/ver’. É assim que
alguns ‘sentem/vêem’ cheiro enquanto
naturais” (MÜLLER e VIOTTI, 2003, p.
outros ‘sentem/ouvem’ cheiro.
137).
O género é outra fonte de tensão
Interferências semânticas linguística entre as línguas moçambicanas
e a língua portuguesa. Enquanto nesta
Uma das zonas onde mais se verifica
língua existe em alguns casos uma relação
transferências de traços de línguas
semântica entre o nome e o género
moçambicanas para a língua portuguesa é
a semântica. Aqui se vê que nas diferentes marcado biologicamente (sexo), nas
línguas bantu o género é apenas uma
línguas do mundo a tradução literal do
categoria gramatical que não tem nenhuma
significado de uma língua pode constituir
relação com sexo ou outra categoria

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semântica claramente definida. Para Verbo ‘chover’: Makhuwa: orupa ‘dormir,


indicar o género de um nome, o que em chover’
algumas línguas só acontece para seres
animados, existem dois termos que Yaawo: kunya ‘defecar, chover‘
significam macho e fêmea, como se pode
ver nos exemplos que se seguem: Estes aspectos semânticos de interpretação
relativamente simples podem ser
(a) cabrito fêmea acompanhados de formas mais complexas,
como se vê no exemplo que se segue:
cf. cabrita
eu tenho me sentido melhor estes
(b) cão fêmea dias, e hoje estou pior melhor
cf. cadela
Por ser semanticamente complexo, este
(c) galinha macho enunciado só pode ser percebido
correctamente por muito poucos falantes
cf. galo
de Português, pois a ocorrência de
(d) chuva masculina ‘chuva que cai sob o “melhor” depois de “pior” não é normal
brilhar do sol’ nesta língua. A explicação correcta deste
enunciado depende de como o ouvinte
(e) papaieira masculina ‘papaieira que só traduziu para a sua língua materna
cresce, mas não dá fruto’ diferente de Português, sugerindo que o
termo “pior” funciona como intensificador,
(f) cão mulher devendo por isso ser entendido como
significando “bem, muito”. Assim:
cf. cadela
“eu tenho me sentido melhor estes
(g) professor mulher
dias, e hoje estou bem/muito melhor”
cf. professora
Esta proposta, revela que nem sempre o
Em relação aos seres com traço [-anim], significado do enunciado de um
usam-se os mesmos termos que servem aprendente deve ser extraído ao pé da letra.
para designar “homem” (masculino) e O ouvinte nato deve ser condescendente e
“mulher” (feminino). Mas há línguas em paciente para procurar os vários matizes
que esta distinção entre seres [+anim] e [- semânticos que um termo pode encerrar
anim] só se usa para estabelecer a até encontrar (ou não encontrar) a mais
diferença entre os dois géneros. Daí que as apropriada.
forma X homem ou Y mulher passem para
a língua alvo como uma espécie de Chegados a este ponto é momento para se
interferência semântica. tirar algumas conclusões como se segue.

A seguir são apresentados alguns tipos de CONCLUSÃO


interferências semânticas que se pode
esperar ouvir de um falante nato de uma Para concluir, importa lembrar que o
língua bantu aprendente de Português, estudo teve como objectivos: (a) descrever
como resultado do facto de algumas os diferentes tipos de interferência que se
palavras serem polissémicas na L1, mas observam quando muitos moçambicanos
não na Ln1, como ilustram os exemplos falam Português como Ln1. (b) mostrar
que se seguem: que em alguns casos, o surgimento
inadvertido de traços das línguas
moçambicanas pode afectar o processo de

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Interferências de Línguas Moçambicanas em Português falado em Moçambique

comunicação com recurso à língua alvo; encontrar um lugar ao sol através da língua
(c); finalmente, (d) sugerir algumas saídas que não conseguem “dominar”.
de apoio ao professor da língua portuguesa
visando minimizar o impacto pedagógico REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
decorrente da dificuldade de produção
BLEEK, W.H.I. A compartive grammar of
estruturas da língua alvo por alunos
south african languages. Cape Town: J. C.
aprendentes de Português como língua não Juta and Tübner, 1862. Part I: Phonology.
materna.
BORBA, F. S. Introdução aos estudos
No que tange às diferenças entre linguísticos. 14. Ed. São Paulo: Pontes, 2005.
empréstimos e interferências, é preciso
acrescentar que como recurso de CARDOSO, A. J. A importância do erro e as
desenvolvimento e enriquecimento lexical interferências linguísticas no processo de
das línguas usado por todas as pessoas aquisição de uma língua não Materna, 2007.
falantes da mesma língua, aqueles não Disponível em:
constituem problema pedagógico. As www.performar.org/revista/edição_22/import_
interferências constituem o problema erro. Acesso em: 12 de Março, 2008.
pedagógico que tem de ser resolvido CHOMSKY, N. Aspects of the theory of
através de estratégias de ensino de língua syntax. Massachussetts: The MIT Press, 1965.
adequadas com base no conhecimento pelo
docente de possíveis áreas de tensão entre FIRMINO, G. 2000. Situação Linguística de
a língua alvo e a língua materna. Isto pode Moçambique. Maputo: Instituto Nacional de
ser feito pelo professor preparando uma Estatística, 2000.
séria de exercícios, tal como se propõe
acima, visando resolver problemas GUTHRIE, M. Comparative Bantu.
específicos que ocorrem na interlíngua do Cambridge: Gregg International Publishers,
1991; 1971. Vol. 1-4.
aprendente aproveitando, às vezes, os
próprios “erros” deste. Portanto, diferente HOCK. H. H. Principles of Historical
dos empréstimos que não se corrigem, as Linguistics. 2nd Edition. Berlin: Mouton de
interferências (transferências negativas) Gruyter, 1991.
corrigem-se e podem ser ultrapassadas
como resultado de maturidade das MELLO, H. A. B. de. O falar bilingue.
competências linguística e comunicativa Goiania: Editora da UFG, 1999.
do aprendente na língua alvo. Isto é, com o
decorrer do tempo, algumas interferências MÜLLER, A. L DA P.; VIOTTI, E. de C.
Semântica formal. In: FIORIN, J. L. (Org.).
podem ser ultrapassadas, mas há outras
Introdução à linguística: II princípios de
que ficam fossilizadas ou são dificilmente análise. S. Paulo: Contexto, 2003. P. 137-159.
ultrapassadas, desafiando o tempo e as
metodologias mais avançadas de ensino de NGUNGA, A. Empréstimos nominais de
Ln1. Os empréstimos nunca são português em bantu: o caso da língua yao. In:
ultrapassados, e o seu processo de GALVES, C. ; GARMES, H.; RIBEIRO, F. R.
integração é tanto mais efectivo quanto (Org.). África-Brasil: caminhos da língua
mais tempo passar sobre o dia da sua portuguesa. S. Paulo: Editora da Unicamp,
aparição na língua alvo. 2009. P. 185-209.

AGRADECIMENTOS ____________. Introdução à Linguística


Bantu. Maputo: Imprensa Universitária, 2004.
Os meus alunos de todos os tempos e
todos os moçambicanos que lutam por SAPIR, Edward. Language: an introduction to
the study of speech. New York: Harcourt,
1921.
Rev. Cient. UEM, Ser: Letras e Ciências Sociais, Vol. 1, No 0, pp 7-20, 2012

19
A. Ngunga

SELINKER, L. 1972. Interlanguage. TRASK, R. L. A dictionary of phonetics and


International Review of Applied Linguistics, phonology. London: Routledge, 1996.
10. 209-241.
WEINREICH, U. Language in contect. The
THOMASON, S. G.; KAUFMAN, T. Hague: Mouton, 1953.
Language Contact, Creolization, and
WEISS, H. Fonética articulatória: guia de
Genetic Linguistics. Berkeley: University of exercícios. 3. ed. Brasília: Sommer Institute of
California Press, 1988. Linguistics, 1988.
1
Esta palavra é pronunciado como em caçar, em Português, isto é, perseguir ou procurar para capturar ou matar.
2
O asterisco indica que a sílaba fechada não é aceitável

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