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A escrita política e o pensamento dos

Guarani em tempos de autogoverno (c.1753)


The political writing and the Guarani
thinking in times of self-government (c.1753)

Eduardo Santos Neumann*


Capucine Boidin**

Resumo Abstract
Em meados do século XVIII os Guarani By the middle of eighteen century, the
das reduções escreveram com frequên- Guarani from the reductions frequently
cia, documentos em que expressam um wrote their own documents in which
pensamento político próprio. Nesses were expressed their very political
textos é possível observar sua capacida- thoughts. Through these texts it is pos-
de de agir, mas também sua percepção sible to observe not only their action ca-
dos acontecimentos em curso por meio pacity but also their perception of the
de um pensamento em guarani. Essa au- events in progress by a Guarani way of
tonomia indígena, em um momento de thinking. This indigenous autonomy, in
contestação política, estava embasada a moment of political contestation, was
nas teorias que pautaram a sua instru- based upon the theories which they
ção e que paradoxalmente serviram pa- were taught and which paradoxically
ra justificar ações em defesa dos seus served to justify their actions on defend-
interesses, devidamente amparados nos ing their interests, properly supported
valores da monarquia católica. on the catholic monarchy values.
Palavras-chave: escrita indígena; Redu- Keywords: Indigenous writing; Guarani
ções Guaranis; pensamento político. Reductions; political thought.

Os historiadores vêm dedicando atenção crescente aos textos redigidos


pelos indígenas em línguas ameríndias, documentos analisados com base em
um diálogo com a antropologia.1 A valorização dessas fontes, testemunhos
singulares dessa época, despertou nos últimos anos a atenção dos

* Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGHIS/


UFRGS). Porto Alegre, RS, Brasil. eduardosneumann@gmail.com
** Université Sorbonne Nouvelle Paris 3 – Institut des Hautes Études d’Amerique Latine (IHEAL-
INALCO). Paris, France. capucine.boidin@gmail.com

Revista Brasileira de História. São Paulo, 2017


http://dx.doi.org/10.1590/1806-93472017v37n75-04
Eduardo Santos Neumann e Capucine Boidin

pesquisadores interessados na história das reduções guaranis do Paraguai.2


Nesses documentos com “letra de índios” podemos observar uma concepção
dos eventos (do passado) narrados pela ótica dos Guarani, mas conhecemos
pouco das implicações da escrita política e dos pensamentos expressos em
língua indígena (Neumann, 2015).
Durante um período de conflito agudo nas reduções, em meados do sé-
culo XVIII, os Guarani escreveram intensamente, e os documentos produzidos
por eles permitem repensar as relações estabelecidas com o território missio-
neiro e, especialmente, suas formas de ação política. Esse conjunto de docu-
mentos indica uma discussão pouco referida pela historiografia dedicada ao
tema, ou seja, a existência da defesa por escrito de um direito a resistir a uma
ordem real injusta dos Guarani em redução. Esses textos em língua guarani, e
mesmo suas traduções, podem ser novamente analisados tanto pelos aportes
da história da cultura escrita como pelos da história dos conceitos políticos.3
A expressiva produção de documentos dos índios dessas reduções decorre
da assinatura do Tratado de Madri em 1750, entre as monarquias ibéricas, o
qual estabelecia a troca da Colônia do Sacramento, de domínio português, na
margem setentrional do rio da Prata, por sete reduções localizadas na margem
oriental do rio Uruguai. A disputa pelas fronteiras na América do Sul, resul-
tado da rivalidade entre as duas monarquias ibéricas, esteve caracterizada por
uma ativa participação dos agentes locais.4 Diante das implicações dessa per-
muta, a elite indígena procurou estabelecer negociações que lhe garantissem o
controle das terras orientais.
Assim, o “ponto de vista indígena” a que nos referimos não deve ser en-
tendido apenas no sentido de um comportamento padrão, abrangente, que
recaiu sobre toda a população missioneira, perspectiva esta que transformaria
os Guarani em um coletivo homogêneo.5 É uma maneira de nos referirmos a
um determinado momento de enfrentamento em que uma elite letrada se co-
loca ora como porta-voz, ora como responsável por uma versão escrita dessa
coletividade. Não podemos pressupor que essa competência alfabética deter-
minasse um distanciamento dos demais indígenas, mas uma mediação dife-
renciada com as hierarquias da sociedade e as suas interações possíveis.
Quanto aos manuscritos escritos pelos Guarani rebelados, estavam esque-
cidos em alguns arquivos e bibliotecas de diferentes países,6 motivo pelo qual
é importante interpretá-los no contexto de sua produção. Esse desafio nos
remete às dificuldades da análise histórica e à hermenêutica de suas próprias
condições de escrita.7 Nesses textos, os índios recordam constantemente às
autoridades reais todo o empenho da população missioneira em assegurar esses

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A escrita política e o pensamento dos Guarani em tempos de autogoverno (c.1753)

domínios ao monarca de Espanha, recordando a ação indígena nas fronteiras


americanas, mas também uma capacidade de argumentar em guarani pautada
em conceitos da teoria política neoescolástica. Recorriam ao direito natural e
a uma interpretação contratual do pacto monárquico, ou seja, da relação de
vassalagem que os vinculava ao rei por sua condição de sujeitos cristãos, jus-
tificando dessa maneira o seu direito de não acatar a ordem de mudança
(Quarleri, 2009, p.195-200).
Diante da contrariedade por parte da população das reduções orientais à
ordem de transmigração estipulada pelo Tratado de Madri e o posterior desa-
cato às determinações dos jesuítas, ocorre um estremecimento das relações
entre indígenas e missionários. Apesar dos esforços empreendidos desde 1752,
no sentido de colocar em prática a mudança desses Guarani (aproximadamen-
te 30 mil), não foi possível convencê-los a executar a nova medida. No ano
seguinte, com a chegada dos comissários demarcadores enviados pelas monar-
quias ibéricas ao território implicado nessa permuta, inicia-se um longo pe-
ríodo de polêmicas e controvérsias na América meridional.

O protagonismo indígena e as comissões demarcadoras

A tentativa de definir a fronteira meridional detonou a suspeita sobre o


envolvimento dos jesuítas (ou de alguns deles) acusados de responsáveis por
incitarem os Guarani das reduções à rebelião. Essa controvérsia sempre ocu-
pou lugar central no debate historiográfico sobre a “guerra guaranítica”, em
que se atribuiu aos jesuítas grande influência no desfecho desses acontecimen-
tos, minimizado o poder de decisão dos indígenas. Entretanto, o principal
óbice à execução da demarcação dos novos limites foi a negativa indígena de
abandonar as reduções. De fato, essa oposição rapidamente transformou-se
em uma rebelião que, apesar de não ter sido estimulada abertamente pelos
jesuítas missioneiros, estes quase nada puderam fazer para impedi-la.
Atualmente, a perspectiva que se tem adotado ao interpretar o passado
missioneiro é a de conceber maior centralidade aos indígenas na organização
social, nas atividades cotidianas e nos rumos dos conflitos na região. Segundo
Guillermo Wilde (2003, p.28) o liderazgo indígena apresentou grande relevân-
cia na organização interna, pois “conservó autonomía a los cacicazgos que se
integraron a las reducciones, desarrollo un lenguaje político que permitió ima-
ginar la nueva comunidad y estandarizó el ritual y la guerra como prácticas
aglutinantes de la población indígena”. Essa autonomia dos “cacicazgos” é
ainda mais visível com a crise geopolítica criada pelo tratado de Madri.

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Eduardo Santos Neumann e Capucine Boidin

Sabemos que a chegada das primeiras equipes de funcionários encarregados


da demarcação de limites na América meridional gerou manifestações de hos-
tilidade dos índios à presença dessas autoridades.8 Os episódios relacionados
à definição dos novos limites determinaram outra correlação de forças no in-
terior das reduções orientais. A autoridade dos jesuítas foi rapidamente con-
frontada pelas lideranças indígenas.
O poder temporal dos jesuítas, já contestado em outros momentos, foi
desconsiderado por uma parcela da população contrária à aplicação das cláu-
sulas presentes ao Tratado de Limites. Nas reduções, o relacionamento entre
os missionários e as lideranças guaranis foi de constante negociação
(Avellaneda, 1999). Por vezes, os índios demonstraram interesse em arbitrar
nos temas relativos ao “governo político”, conflitando com a autoridade dos
padres.
A documentação de circulação interna, de caráter reservado, enviada pe-
los jesuítas missioneiros aos seus superiores, permite acompanhar o papel de-
sempenhado por determinadas lideranças durante o período de demarcação.
Muitos Guarani, por sua condição de elite indígena, estavam exercendo ativi-
dades administrativas e assumem posições de destaque nesse momento de
redefinição dos espaços coloniais. A leitura e o cruzamento das informações
históricas têm revelado a presença de distintos indígenas envolvidos nesse
alvoroto missioneiro. Alguns nomes como Alexandro Mbaruari, Cristoval
Paica, Rafael Paracatu, Miguel Mayra, Pasqual Yaguapo, Primo Ybarenda,
Hilário Yrama e Valentin Ybarigua, entre outros, não eram considerados na
historiografia como sujeitos dignos de menção.9
No período de demarcação houve a preocupação, principalmente dos je-
suítas, em registrar certos traços de caráter individual de alguns indivíduos,
além das referências genéricas com as quais costumavam descrever seus fiéis.
Dada a atuação desses índios principais, há nas fontes históricas a descrição de
características mais particulares, visto que, em alguns momentos, foi necessário
denunciar ou mesmo alertar quanto ao possível grau de “periculosidade” de
alguns insurretos.
Assim, em janeiro de 1753, Lorenzo Balda, em carta ao comissário Lope
Luiz Altamirano – plenipotenciário da Companhia de Jesus nos trabalhos de
demarcação –, informou a respeito da ação de alguns indígenas. Segundo esse
jesuíta, três deles já deviam ter sido desterrados: “Pedro Payca, Miguel Mayra,
Agustin Mayra que se hace cacique sin serlo. Estos han pervertido a los caci-
ques siguientes, Alexandro Guaytipoi, que tiene 9 vasallos. Clemente Tariuma,

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A escrita política e o pensamento dos Guarani em tempos de autogoverno (c.1753)

que tiene 89. Bernabé Payare que tiene 53. Mariano Payca 44. Feray 106. Yarui
82 y otros que handan a sombra detexado”.10
É evidente na mensagem a importância dos caciques, explicitada diante
da informação do número de vassalos que cada um comandava. Nesse contex-
to de crise novas lideranças estavam se destacando e angariando prestígio, além
daquelas autorizadas pelos jesuítas. Como se pode observar nos informes de
alguns missionários, surgem nomes e sobrenomes dos principais Guarani re-
belados. Frente a esse protesto generalizado o proprio Balda recomendava,
nessa carta, que “a los tres primeros después de bien sobados los destierre,
adonde nunca se vean y a los otros que se buelvan después de bien sobados, y
tambien si fuere entre ellos uno llamado Felipe Zubai, que es gran revolvedor
que sea desterrado por algun tiempo”.
A sugestão de medidas dessa natureza é uma prova do quanto os índios
que ocupavam os cargos nos cabildos missioneiros – modalidade de conselho
municipal – estavam agindo por motivação própria, como agentes políticos
autônomos e, sobretudo, em oposição frontal às orientações dos jesuítas.
Manifestações dessa natureza indicam não ter havido passividade guarani e
que tampouco eles foram manipulados pelos jesuítas: as atitudes estiveram
motivadas por lógicas próprias, resultado da interação de autoridades nativas
com a sociedade colonial (Wilde, 2009). Graças à carta de Lorenzo Balda sa-
bemos que Felipe Zubay, secretário de São Miguel, com Sepé Tiarayú e o al-
caide maior dessa redução, manteve contato com a primeira partida
demarcadora, em fevereiro de 1753. Nesses encontros, os secretários foram
figuras-chaves por suas habilidades letradas e, provavelmente, por apresenta-
rem algum conhecimento do idioma espanhol. Igualmente, sempre estiveram
presentes em situações solenes, em momentos de tomada de decisão para os
rumos da vida em redução. Afinal, eles eram os sujeitos responsáveis pela
memória escrita e, portanto, indivíduos capazes de atuar de maneira próxima
à lógica ocidental. Outros secretários também participaram em momentos de
contato com os demarcadores, demonstrando as relações existentes entre es-
crita e poder nos cabildos missioneiros.
Entre os líderes indígenas que se destacaram nesse período, foram os ca-
ciques os principais responsáveis pela oposição à ordem de mudança, e diver-
sos episódios ocorreram nas reduções orientais diante da cizânia entre eles e
os corregedores, que se posicionaram, inicialmente, de maneira favorável à
mudança, em desacordo frontal com a decisão dos caciques e demais integran-
tes dos cabildos. O padre Luis Charlet, responsável pela redução de São
Lourenço, em carta a Altamirano datada de 27 de março de 1753, expressava

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com clareza essa nova realidade: “Los caciques sin que lo sepamos, si(n) hacer
caso de nosotros, envían su gente, se avisan con sus papeles de día, y de noche,
y dicen que si los españoles vienen a ayudar los portugueses que irán, que
harán...”.11
Por sua vez, a tentativa empreendida pelos jesuítas no sentido de cooptar
os corregedores – conhecidos por serem homens de confiança dos missioná-
rios e desempenharem o papel de mediadores entre a massa indígena e os re-
ligiosos – resultou em reações violentas por parte dos caciques. Alguns
corregedores correram risco de morte ou foram afastados das suas funções
porque procuravam convencer os demais da necessidade da transmigração.12
E o padre Luis Charlet, ao tentar novamente convencer um cacique a respeito
da ordem de mudança, por exemplo, recebeu esta resposta: “dexate desto pa-
dre, y no nos moleste mas sobre ello”.13

Autonomia e autogoverno

Assim que foram confirmadas as ordens de mudança, os Guarani coloca-


ram em prática seu autogoverno nas reduções. O estremecimento das relações
com os jesuítas determinou o uso frequente da comunicação escrita que aten-
dia à necessidade de diligência no repasse das informações. Por sua vez, os
indígenas que ainda se mantinham receptivos aos jesuítas foram comunicados
por escrito do risco que estavam correndo. O padre Luis Charlet, em 1753,
mencionou um papel interceptado cuja mensagem advertia os poucos Guarani
que seguiam apoiando os jesuítas: “Hemos sabido que vosotros contra nuestra
voluntad estáis obedeciendo al padre por tanto queremos ir allá; pero antes
que lleguemos tratad de irnos con el padre a donde quisierdes, porque si os
hallamos morrireis todos à nuestras manos”.14
Por meio desse bilhete, verificamos a manifestação da autonomia de um
grupo de indígenas frente ao poder que anteriormente era prerrogativa exclu-
siva dos missionários. Mesmo contando com algum apoio, os religiosos esta-
vam com sua capacidade de convencimento debilitada diante do autogoverno
guarani. A partir desse momento os integrantes dos cabildos missioneiros
começaram a trabalhar no sentido de congregar a população missioneira em
torno de uma postura comum. A escrita foi um instrumento político acionado
para a mobilização indígena e sinaliza a deterioração da relação com as auto-
ridades e, principalmente, a perda de confiança nos jesuítas encarregados de
administrar as reduções. A carta do missionário Lorenzo Balda ao comissário
Lope Luiz Altamirano, escrita em São Miguel no dia 19 de janeiro de 1753,

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A escrita política e o pensamento dos Guarani em tempos de autogoverno (c.1753)

evidencia essa tensão: “Dieronme palabra que no se haria daño pero que se les
quitase el Corregidor y que nadie les tocase mas punto de mudanza; y volvien-
dose a mi me dixeron que les mandasse cuanto yo quisiese, que me odebeze-
rian, pero que jamás le tocase dicho punto”.15
Sabemos que a desconfiança dos Guarani em relação aos missionários
agravou-se diante da insistência de alguns destes em defenderem a necessidade
da transmigração, despertando a suspeita quanto ao interesse dos jesuítas na
execução do tratado. Nesse contexto de enfrentamentos novas lideranças ha-
viam angariado evidência, sendo reconhecidos pelos demais indígenas, mas
desconsiderados como tal pelos jesuítas. Para coibir a ação dos insubmissos e
evitar uma propagação do alvoroto, os jesuítas procederam ao desterro de al-
guns indígenas. Contudo, a adoção de tais medidas não apresentou resultados
positivos, e a insubordinação alastrou-se a outras reduções, inclusive àquelas
que não estavam envolvidas diretamente na permuta. A tentativa dos jesuítas
de solucionar a negativa indígena com os métodos já conhecidos, como eram
os desterros, esbarrou na posição decidida dos índios principais, que se nega-
vam a aceitar qualquer tipo de argumento, mesmo quando mediados por suas
lideranças.
Quem ganhou destaque na condução da milícia indígena foi José Ventura
Tiarayu. Ele era conhecido pela alcunha de Sepé Tiarayu. Dispomos de algu-
mas informações a respeito da sua trajetória, principalmente a partir da sua
captura e posterior fuga do fortim português, nas imediações do rio Pardo.
Sabemos que era natural de São Luiz Gonzaga, mas os registros que mencio-
nam sua ação correspondem ao período em que já ocupava o cargo de alferez
(tenente) na redução de São Miguel. E a documentação indica que ele era al-
fabetizado e sabia expressar-se minimamente em língua castelhana. Segundo
a informação de Thadeo Henis, Sepé “sabia pronunciar algunas voces de la
lengua española”. Exatamente por sua trajetória, ele angariou autoridade e
prestígio e foi alçado à condição de liderança. Há muitas obras dedicadas a
Sepé Tiarayu, mas poucas pesquisas com bom embasamento histórico.
As referências a ele nas fontes se estendem de 1753 a 1756, ano de sua
morte. Durante aproximadamente 3 anos Sepé é mencionado com frequência
na documentação. Em certa ocasião, ele tentou acalmar os Guarani mais exal-
tados, solicitando que permitissem a saída dos padres que mantinham inco-
municáveis na estância onde estavam aquartelados. Porém, mesmo no intuito
de auxiliar os jesuítas, Sepé cobra uma atitude dos jesuítas, dizendo que os
padres “son los que tienen y enseñan las buenas costumbres: Mirad que no los

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perdaís dejandolos irse de con vosotros, ni vosotros los deseéis esto mismo
repetio otras tres veces San Miguel al Cacique Don Alonso Tapayu”.16
Nessa carta, Sepé ainda recordava a aparição de São Miguel, padroeiro da
guerra, e cobrava uma atitude coerente dos padres com os ensinamentos que
haviam pregado e ensinado aos Guarani. As seguidas tentativas dos jesuítas,
no sentido de facilitar aos demarcadores a execução de seus trabalhos, contri-
buíram para consumar o rompimento da aliança com os índios das reduções
que, a partir desse momento, destinaram à escrita uma finalidade política, ou
seja, de instrumento primordial de suas práticas de autogoverno, expressando
um pensamento político em guarani.

Fevereiro de 1753: A carta de Mbaruari

O envio de mensagens escritas sempre foi o meio de comunicação mais


eficiente para o gerenciamento das reduções, fazendo parte do cotidiano mis-
sioneiro e configurando a espinha dorsal de atuação da Companhia de Jesus.
Sem dúvida, o destino conferido pelos Guarani à escrita resulta do convívio
dessa elite letrada com os jesuítas. As correspondências escritas pelos índios
foram direcionadas aos comissários, aos padres missioneiros e aos demais
Guarani rebelados, comprovando o amplo uso de que a palavra escrita desfru-
tou como instrumento de comunicação estratégica entre a população das
reduções.
Nesse contexto, começaram a surgir escritos indígenas em grande quan-
tidade e com frequência pouco usual em relação aos períodos anteriores. No
final de fevereiro de 1753, pouco antes do encontro com a primeira comissão
demarcadora, o tenente guarani Alexandro Mbaruari, por exemplo, escreveu
ao corregedor de São Miguel, Pasqual Tirapare.17
Nessa carta, Mbaruari participava ao corregedor da sua redução o con-
teúdo da correspondência enviada pelo provincial e pelo superior dos jesuítas,
assim como pelo governador. Esclarecia que estas se referem às “intenciones
de los malos Portugueses” (Portugez vai jesaereko) e à necessidade de manter
o ânimo nas reduções e estâncias (toñemomburu katu), sem demonstrar preo-
cupação (porombopy’a e’ỹ), mas sem sair a caçar perto dos portugueses ou
pegar animais porque senão eles virão muito rápido (mymba gueropysy ramo
kuriteĩhápe ou voine).
Afirma que o provincial, em concordância com o superior e o governador,
dizem, em suas cartas (ojávo oñe’ẽkuatia pype), que “no son regalos de Dios
para los Portugueses estas tierras” (na portuges upe tupã remime’ẽngue ruguãi

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A escrita política e o pensamento dos Guarani em tempos de autogoverno (c.1753)

evokoi yvy), que “nuestros hijos deben enseñar su fuerza” (ñande ra’y reta
ombojekuaa katu ombaraete katu háva) para que os portugueses tenham medo
e não cheguem logo (ndoui(che) portuges voíne okyh(y)je ko’yténe). Repetem
com insistência as orientações contidas nas cartas: que devem estar preparados
em suas reduções (toñemombaraete katu táva rehe) pois assim nada de mal
acontecerá (ndoguatáiche teko marã amo).
Nesse texto, os Guarani mencionam ainda que o bom padre Tadeo Henis
(Pa’i Tadeo marangatu) os havia aconselhado a se comportarem com humil-
dade e generosidade ante o “padre cura” que lhes visitava (toñemomirĩ Pa’i
avare upe), de maneira que “Dios Nuestro Señor” (tupã ñande jára) tenha
piedade (peporiahuverekone) e os ajude contra todos os inimigos (pepytyvõne
p(o)romoatãre’ỹmba heguíne). Como parte de seus argumentos, recordam ain-
da um incidente que ocorreu em Montevidéu entre os “infiéis” (ikarai e’ỹ) e
os espanhóis e os portugueses conduzidos por seu chefe, o Marquês (Portuges
rehe Hae carai rubicha Marques Eha rehe): ocasião em que mataram e rouba-
ram seus animais.
Para finalizar, afirmam que esse fato era a prova de que “Dios nuestro
Señor tiene piedad de nosotros” (ñande poriahu vereko). Que convida a ter
lástima (poriahu toguereko) e a não empobrecer/enfraquecer (tomomboriahu
eme) aos “infieles” quando os escute/ouça. Essa atitude parece ser recomenda-
da pelo bom padre cura (provavelmente é o padre Tadeo Henis).
Estas três condutas – humilde com o padre comissário, forte com os por-
tugueses a compassiva com os infiéis –, ao que tudo indica, foram sugeridas pelo
governador, o superior e o provincial dos jesuítas (que escreveu e lhes escreve
cartas), e pelo padre Tadeo Henis, que está presente e conversa com eles.
Como podemos interpretar essa carta atualmente? Por acaso essa corres-
pondência seria apenas uma estratégia, um ardil dos indígenas diante da pres-
são das autoridades religiosas e das políticas coloniais? Pouco provável. Na
data em que ela foi escrita duvidamos muito que as autoridades da Companhia
de Jesus e o próprio governador de Buenos Aires tenham emitido conselhos
com esse teor aos indígenas. É mais provável que estivessem empenhados em
convencê-los da ordem de mudança e a obedecerem às decisões dos monarcas.
Ou seja: entregar as terras e as reduções orientais aos portugueses. Mas a carta
também expressa o esforço e empenho do tenente corregedor para justificar
sua própria posição frente às decisões adotadas. Em boa medida buscava um
equilíbrio, mesmo que frágil: afinal, como conservar o apoio dos padres e dos
índios não reduzidos, e ainda se impor ao inimigo histórico, o português.

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Eduardo Santos Neumann e Capucine Boidin

Como se pode constatar, as lideranças indígenas utilizaram a escrita como


recurso que visava aumentar as possibilidades de uma ação coordenada contra
a iminente chegada dos comissários demarcadores às suas terras. Essa carta
visava informar o corregedor de São Miguel sobre a aliança, pouco esperada,
estabelecida com as populações indígenas conhecidas como “índios infiéis”.
Por esse motivo, o tenente Mbaruari tratou de se antecipar aos fatos, procu-
rando assim evitar possíveis constrangimentos com potenciais aliados.
Quando, no final de fevereiro de 1753, concretizou-se o primeiro contato
com os comissários demarcadores, os Guarani recorreram à escrita como ins-
trumento de negociação. Após algumas tratativas somente consentiram no
avanço dos comissários espanhóis, barrando o caminho aos portugueses. Nesse
encontro estavam presentes os já mencionados Joseph Ventura Tiarayu, então
alferes de São Miguel, o alcaide maior Miguel Taisuicay e o secretário Felipe
Zubay. Os três enviaram uma carta em língua guarani a Echavarría, que logo
depois de traduzida foi respondida.18
Nessa carta, apresentam as razões pelas quais não abandonam as suas
reduções e o motivo pelo qual ainda seguem defendendo-as: “aun con todo eso
permitimos, que paséis por esta tierra, que vivimos; pero a los portugueses no
concedemos ni un poquito, que pasen por estas tierras ... agregando que ...
todos los Caziques se han jurado, y han determinado que no combiene entre-
garlas”. O principal óbice à passagem das comissões demarcadoras, como se
pode constatar, era a presença dos portugueses. O discernimento dos índios
miguelistas diferenciando o lusitano do espanhol, seja em função dos unifor-
mes seja pelo próprio conhecimento que tinham das línguas ibéricas, demons-
tra uma percepção aguçada daqueles que realmente eram os inimigos a serem
rechaçados.
Desse modo, comunicavam ao comissário Juan Echavarría a decisão de
não abandonarem as suas terras. Esse comissário, ao responder a carta dos
“três índios”, solicitou esclarecimentos quanto aos motivos que alegavam im-
pedir a execução das ordens reais. Echavarría, aliás, solicita na missiva “el favor
de su resposta por escrito, que no dudo tenga en su gente quien se la escriba a
cuio favor quedare obligado, y prompto a servirlos en quanto sea de su agra-
do”. Com esse pedido, o comissário estimulava o uso da comunicação episto-
lar, alegando que a medida visava isentá-lo de futuros “cargos que me puede
hacer el Rey” diante do não cumprimento da ordem de transmigração.19
Por conta dessa solicitação, iniciava uma troca sistemática de mensagens
entre os Guarani rebelados, as autoridades reais e os jesuítas, prática que ca-
racterizaria os demais momentos de conflito nas reduções. Em alguns desses

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A escrita política e o pensamento dos Guarani em tempos de autogoverno (c.1753)

escritos manifestavam seu entendimento a respeito dos acontecimentos em


curso, quando utilizavam um pensamento político elaborado no seu próprio
idioma.

Julho de 1753: cartas guaranis ao governador


de Buenos Aires. Sua ratio e oratio

Em maio de 1753, o governador de Buenos Aires, José de Andonaegui,


diante da negativa indígena às ordens de transmigração, decidiu enviar por
intermédio do superior das missões, Mathias Strobel, uma carta de intimidação
aos Guarani rebeldes. Conforme Francisco Mateos (1951, p.246) historiador
da Companhia de Jesus, o efeito de tais “cartas fué desastroso en los indios y
los confirmó más en su obstinación de no entregar sus pueblos y responder
con la guerra a las amenazas de guerra que les hacia el gobernador”. Essa con-
clusão surpreende, principalmente pelo fato de reconhecer que as reações dos
indígenas resultaram dos próprios sinais emitidos pelos colonizadores.
Após tomarem conhecimento do conteúdo dessa carta, os índios realiza-
ram suas assembleias e decidiram aceitar a guerra. O provincial José Barreda,
em carta ao comissário Valdelirios, escrita em julho de 1753, de Córdoba, re-
conhecia a falta de autoridade reinante nas reduções: “ya sin respecto a los
Padres tumultuados en comun los privan de los oficios, y disponen por si sus
expediciones de guerra, embiando fuera del Pueblo tropas, cuando antes de
este caso no se atrevia ninguno à salir del Pueblo, sin pedir antes licencia à los
padres”.20
Dessa maneira, os integrantes dos cabildos responderam à ameaça de
Andonaegui em julho de 1753, quando foram enviadas sete cartas a Buenos
Aires.21 Segundo Bartomeu Melià (1997, p.297), essas cartas dos cabildos indí-
genas são as melhores páginas de literatura guarani, apresentando grande cria-
tividade expressiva “donde aun a partir de conceptos coloniales, de la vida
reduccional, se abre paso a un pensamiento guaraní que entronca con los dis-
cursos políticos de los jefes religiosos no colonizados”. Precisamente, a ratio
reporta a uma linguagem política própria da monarquia ibérica em meados do
século XVIII, enquanto a oratio se ajusta à arte de persuadir local. Arte verbal
no idioma guarani que tanto os padres missioneiros como os caciques e cabil-
dantes valorizavam – transformando-a – dentro das reduções (Boidin, 2016a).
Tais documentos em língua guarani são a expressão maior, mas não única,
da articulação política desses indígenas com o império. Há uma insistência,

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Eduardo Santos Neumann e Capucine Boidin

por parte de alguns pesquisadores, sobre a excepcionalidade do momento e


dessas cartas, mas elas devem ser analisadas como parte de um corpus, um
conjunto de documentos mais amplo.22 Ao que tudo indica, é a partir de 1752
que os índios exercem com frequência sua arte de persuadir, porém agora por
escrito. Nessas ocasiões demonstraram elegância e desenvoltura nos usos dos
valores da monarquia católica para justificar interesses próprios.
A comunicação epistolar entre Andonaegui e os cabildantes missioneiros
revela outro aspecto do valor conferido à palavra escrita pelos indígenas rebe-
lados, principalmente pelo aparato político-militar que a sustentava. Escrever
cartas requer dominar um conjunto de convenções que estava muito além da
mera alfabetização. Os Guarani letrados, por compartilharem dos valores cul-
turais subjacentes à escrita, responderam prontamente à carta enviada pelo
governador, informando a decisão adotada coletivamente. A comunicação
escrita também foi um recurso utilizado por outras populações ameríndias,
como nos Andes e no México, para manifestar sua insatisfação com as medidas
reformistas adotadas pela monarquia hispânica.23
Essas cartas em guarani também são consideradas como um brado auto-
nomista indígena, por apresentarem expressões menos submetidas ao controle
ou censura no período reducional. O conteúdo era muito similar, principal-
mente nos aspectos religiosos e políticos, o que indica a existência de muitas
conversas e discussões prévias à sua escrita. Argumentos que, por sua vez, são
o resultado das inquietações expostas nas assembleias, oscilando entre uma
linguagem de súplica (religiosa) e um tom ameaçador (belicoso). Ainda que as
cartas tenham sido remetidas ao governador e exibam conceitos políticos pró-
prios da teoria política neoescolástica, seu público implícito é a população
indígena de cada redução e responde aos cânones retóricos ameríndios. Por
suas características e estilo as cartas permitem supor que o texto em boa me-
dida é uma transcrição dos discursos orais memorizados, repetidos e comen-
tados ao longo das várias assembleias prévias. Em outras palavras: são textos
que procuram atender às normas de persuasão voltadas a dois públicos: os
habitantes das reduções e o governador.
A dificuldade em conversar sobre as ordens de mudança, mesmo com os
seus próprios subordinados, foi mencionada por Nicolas Ñenguiru. Ele era
descendente de uma família de renome, uma linhagem que remonta ao início
das reduções, no século XVII. Por sua trajetória, além do respeito e prestígio
de que desfrutava, atuava como liderança e manifestou em carta ao governador
de Buenos Aires que: “ya no está bien a nosotros hablarles una palabra sobre
esta mudanza (imosẽ)”.24

12
A escrita política e o pensamento dos Guarani em tempos de autogoverno (c.1753)

Podemos supor que a palavra que Nicolas Ñeenguiru não pode pronun-
ciar frente à sua gente deve ter sido jakaho, que quer dizer literalmente “des-
poblar una tierra, mudarse”. Pensamos ter sido esse o termo utilizado pelos
jesuítas para expressar a ordem expedida pelo rei. Igualmente sabemos que os
cabildantes de quatro reduções foram os mais decididos, manifestando de ma-
neira contundente sua opinião contrária à ordem de transmigração: “mudarse
(jakaho) no es muy difícil y la guerra también”, “este aviso tan difícil y desa-
gradable de mudarnos (jakaho) que nos saca de juicio” (São Luis, s. 5 y 25),
“no tenemos donde mudarnos (jakaho)” (São Lorenço, s. 65), “no nos quere-
mos mudar (jakaho)” (São João, s. 41), “ni un tantito hemos cuidado de mu-
darnos (jakaho)” (São Miguel, s. 42). Porém, na carta escrita pelos cabildantes
de São Miguel utilizaram-se outros verbos para dizer que não deixariam as suas
terras: syry (deslizar-se de algo, correr de, fugir), po’i (soltar) heja (dejar) (São
Miguel, s. 20 e 100). Por sua vez, a carta de São Nicolau e de Concepção (escrita
por Nicolas Ñeenguiru) menciona apenas que o rei e o padre comissário que-
rem mo-sẽ “hacer salir”. E na carta de São João os seus cabildantes indagavam:
“tambien nos quieren echar (oguerova) y apartar (ore pe’a) de esta nuestra
tierra?” (São João, s. 38).
Como se pode perceber, há uma sutil guerra de palavras. Pois os jesuítas
e o rei ordenaram aos índios “mudarse”, mas eles entendem que as ordens são
para “hacer salir, sacar, echar, dejar” as suas terras e assim “soltar, dejar, huir
de”. E a indagação frequente, ao longo dessas cartas, é: “nuestro Rey Santo
después que hemos cumplido muy bien sus mandatos, nos quiere sacar de
nuestra Tierra (oremosẽ), nos quiere perder (oremokañy) y nos quiere acabar
(momba)?” (São Luis, 1753, s. 26).
A carta de São Nicolau, cuja suposta tradução ao espanhol não correspon-
de ao texto original em guarani, permaneceu até há pouco tempo desconheci-
da. Redigida em uma das reduções que sempre manifestaram forte oposição à
transmigração, essa carta contém intensas expressões figurativas. Vamos a um
exemplo: “E agora, como nos querem fazer sair (oremosẽ) de valde desta terra
que é nossa carne mesma (ko yvy ore ro’o tee)?” (São Nicolau, s. 39). De fato,
eles ainda encontram uma resposta à sua pergunta retórica: o padre comissário
somente quer privá-los de seu modo de ser “urbano”, mandando irem para os
matos, fato que empobrece a sua existência, “ainda que sejamos nós, também,
cristãos”.25
O ambiente de tensão gerado pela demarcação de limites foi propício para
os índios gestarem ou registrarem expressões que refletem o seu pensamento
político. Em duas cartas utilizam um verbo muito expressivo para qualificar a

13
Eduardo Santos Neumann e Capucine Boidin

brutal mudança de atitude dos padres para com eles: mbote, composto do
prefixo factitivo mbo- (fazer) e da raiz -te, cujos equivalentes em espanhol
propostos pelos jesuítas seriam “error, desigualdade, diferencia, otro, desfigu-
rado”.26 Com isso mbote é fazer com que alguém seja desfigurado. O respon-
sável por essa modificação é “el padre que se llama comisario”, “es el que
transforma (ombote) su comportamiento (de los jesuitas)” (São Nicolau, s. 55).
“El sí ha hecho que nuestros padres sean otros de los que eran (ombote).” Não
eram antes como são agora (Nicolas Ñeenguiru, s. 72).
Não é somente o teko (modo de ser) dos jesuítas que experimenta mudan-
ças drásticas, a palavra do rei também, pois ele se havia comprometido a tratar
bem os seus antepassados e a eles mesmos. Expressam assim em sua língua:
“Como somente agora de repente querem mudar (ombote) sua palavra?”
(Nicolas Ñeenguiru, s. 45). As cartas no seu conjunto revelam essa incompre-
ensão profunda. Como pode mudar a vontade do rei? Se a vontade do rei não
pode discrepar (joavy) da de Deus (Santo Angelo, s. 11), se a vontade do rei
está mesclada (jehe’a) com a vontade de Deus (São João, s. 22), e se a justiça de
Deus (tekojoja rerekua) é inalterável? (São Luis, s. 17 e São João, s. 43).
Afinal, como o rei pode mudar de decisão e com isso empobrecer-nos
(momboriahu) e ainda “fazer que desapareçamos” (mokañy)? Recordam que
os monarcas que antecederam a Fernando VI sempre haviam demonstrado
por eles amor (ayhu), compaixão (poriahu vereko) e proteção (ñangareko),
tendo tratado com atenção (porerekua), salvado (pyhyrõ) e ajudado (pytyvõ),
manifestando gratidão pelos serviços prestados (angapyhy). Ademais, também
foram fiéis e leais vassalos (voja) cristãos (karai), e sempre executaram (mbo-
aje) e reverenciaram (mbojerovia) suas ordens. Nunca erraram (javy), inco-
modaram (ñemoangata) ou demonstram soberba (ñemboete) contra os
espanhóis das cidades vizinhas, mesmo na época em que ainda viviam como
infiéis. Enfim, são bons cristãos. Por esse motivo, não é correto entrar em
guerra: “no es bien (ndikatúi) que nosotros todos christianos y pertenecientes
â Dios peleemos unos contra otros” (São Luis, s. 6). As autoridades indígenas
nas reduções ao que tudo indica conheciam os argumentos enunciados para
sustentar a “guerra justa” contra os infiéis (especialmente as profanações e
ataques aos estabelecimentos espanhóis).
Para tentar reverter a posição do governador Andonaegui e fundamentar
a legitimidade de sua resistência, os indígenas mobilizam argumentos teológi-
co-políticos de cuja construção e circulação, nos dois lados do Atlântico, os
jesuítas participavam (Eisenberg, 2000). Em sua maioria, as cartas demonstram
elevado grau de apropriação dos argumentos típicos da neoescolástica, como

14
A escrita política e o pensamento dos Guarani em tempos de autogoverno (c.1753)

destacou Lía Quarleri em sua análise feita sobre as traduções ao espanhol


(2009, p.195-199). A argumentação está embasada de maneira evidente nas
teorias do direito natural, elaboradas a partir do século XIII por Tomás de
Aquino: Deus dá razão a cada homem, para que possa conhecer a lei natural,
eterna e divina. Ou seja: todo homem é capaz de conhecer o que é naturalmen-
te justo. Por fim: pode julgar que o comportamento mundano do rei não se
ajusta ao que a lei de Deus lhe prescreve. O rei está obrigado a amar os habi-
tantes de suas terras como Deus ama o rei e os homens. Para um rei, amar seu
povo é conservá-lo, protegê-lo contra eventuais abusos do próprio rei, evitar
violências interiores e protegê-lo contra potências estrangeiras. De sua parte,
os vassalos têm que amar ao rei e cuidar de suas terras (Heusch, 1993, p.134).
Esse argumento combina em três cartas com uma interpretação pactual
da relação de vassalagem com o rei. Este havia dado sua palavra aos antepas-
sados dos Guarani, comprometendo-se a tratá-los bem. Eles mesmos se deram
(me’ẽ) ao rei como vassalos, e o escolheram (poravo) e colocaram suas terras
– presente de Deus – sob sua proteção. Mas alguns matizes não foram contem-
plados em certas traduções, os quais expressam toda indignação frente ao que
os Guarani consideram um engano, uma ruptura do seu pacto com o rei.
Vejamos dois exemplos: “Acaso el santo rey Fernando Sexto engaña (mbotavy)
a Dios nuestro Señor?, (por esto) nos dimos y ofrecimos la tierra donde esta-
mos?” (São Miguel, s. 76). O rei havia sido enganado pelos portugueses que
sabem mentir muito, porém “nosotros no nos dejamos engañar (ñembotavy)
en un instante”.27
A raiz -avy, muito presente em todos os textos dos Guarani, refere-se a
algo desigual, errado. Traduzida de maneiras diversas, essa noção é recorrente
nas cartas e indica o critério pelo qual eles estão avaliando as ações dos atores
presentes no drama: os portugueses “pecam” muito (javy), são “mentirosos”
(itavy), enganadores (ombotavy) do rei, que então engana (ombotavy) a Deus,
tomando decisões contrárias aos seus interesses e aos de seus vassalos e terri-
tórios. A vontade do rei não deveria discrepar da de Deus (joavy), a qual não é
mutável e não se equivoca (javy), nem sequer pode ser enganada (mbotavy).
A palavra e as obras do rei Fernando VI não são as mesmas (joavy) que
as dos seus predecessores, ao passo que os Guarani não cometeram nenhum
erro (javy), sendo sempre fiéis. “Pues no nos avia de engañar (mbotavy) di-
ciendo esto (que el Rey nos agradece) el que nos trae las palabras del Rey” (São
Miguel, s. 38). Então ameaçaram o governador: caso ele interpretasse mal as
palavras do rei, seria castigado por seus erros (hembiavy). “Como pues o de

15
Eduardo Santos Neumann e Capucine Boidin

que manera aora tu S.r Gov.or estas como que estas engañado (ñembotavy)?”
(São Miguel, s. 54).
Não aceitavam a ordem real de transmigração, fundamentando sua oposição
em uma linguagem política que recuperava o direito natural e a interpretação con-
tratual do pacto monárquico, expressos pelos valores da arte verbal guarani.

A título de conclusão

O contato frequente com a cultura escrita nas reduções proporcionou aos


Guarani uma experiência que lhes permitiu negociarem diretamente com a
administração colonial, e mesmo entre eles, em um período de agitação polí-
tica. A produção e circulação de correspondências entre indígenas nos permi-
tem duas considerações. Primeiro, os indígenas fazem uso das missivas como
maneira de comunicar às autoridades suas decisões, de acordo com as forma-
lidades próprias à diplomacia; segundo, como já demonstrado, há o uso pessoal
destinado à escrita pelos Guarani a partir de meados do século XVIII, que fa-
voreceu a emancipação “escriturária” estimulando a redação de formas textuais
pouco habituais na sociedade missioneira.
Enfim, foi pela troca de correspondência, da guerra de papel e de palavras,
que os índios defenderam sua posição contrária ao tratado em curso, rompendo
com décadas de “submissão” letrada e formularam argumentos justificando o
seu direito de resistir a uma ordem real, ao mesmo tempo que se organizam e se
preparam para uma guerra que avaliam como injusta. Entendiam seu pleito
como um direito histórico, especialmente na questão da terra e do suor empe-
nhado na sua defesa. Essa mobilização amparava-se nos usos de conceitos for-
mulados com base nos valores monárquicos e nas teorias políticas ensinadas
pelos jesuítas. As elites indígenas não desconsideravam as instituições missio-
neiras, muito pelo contrário, utilizavam-nas para legitimar suas demandas.
Valiam-se para tanto dos fundamentos teológicos e jurídicos para justificar a sua
oposição à ordem de transmigração. Seu autogoverno estava amparado em uma
linguagem política que reportava ao pacto monárquico que os Guarani haviam
estabelecido conjuntamente com os jesuítas no transcurso de um século e meio.

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NOTAS
1
Para uma discussão que destaca o lugar dos índios na História, ver MONTEIRO, 2001;
ALMEIDA, 2010; para uma reflexão teórica atualizada a respeito do uso do conceito de
“protagonismo” ameríndio, ver SANTOS; FELIPPE, 2016, p.13-52. Para um balanço da
historiografia sobre as línguas indígenas e a questão do letramento indígena, ver
DURSTON, 2015.

19
Eduardo Santos Neumann e Capucine Boidin

2
GANSON, 2003; WILDE, 2003 e 2009; NEUMANN, 2005, 2008 e 2015; QUARLERI,
2009; COUCHONNAL; WILDE, 2014. Quanto à tradução e edição dos textos em guarani,
MELIÀ, 2003 e 2005; CERNO; OBERMEIER, 2013; THUN; CERNO; OBERMEIER, 2015a
e 2015b; BOIDIN, 2014 e 2016a; ADOUE; ORANTIN; BOIDIN, 2014.
3
No momento, desenvolvemos uma história de discursos e pensamentos políticos em lín-
guas ameríndias, sob a égide do grupo denominado Iberconceitos. Ver, especialmente:
SEBASTIÁN, 2009. Esse grupo procura integrar aportes de distintas escolas, com ênfase
nas propostas de Reinhart Koselleck. Para uma história das ideias políticas de linhagem
francesa, ver: ROSANVALLON, 1986; GUILHAUMOU, 2000; para a chamada Escola de
Cambridge, que analisa ideias e linguagens políticas em seus contextos históricos, ver:
SKINNER, 1996; POCOCK, 2011; e para uma história dos conceitos de vertente alemã:
KOSELLECK, 2006. Uma aproximação a essa discussão em: PALTI, 2014, p.387-405.
4
A respeito dos antecedentes e circunstâncias desse tratado, ver: CORTESÃO, 2001. Para
uma leitura atualizada dessas negociações travadas nas fronteiras americanas, que envolve-
ram uma série de reivindicações pela ocupação desses territórios, ver: HERZOG, 2015.
5
Durante o período de demarcação de limites na América meridional as reações indígenas
foram diversas, e nem todos manifestaram oposição às novas medidas. Sabemos que uma
parcela da população foi transmigrada para outras reduções, localizadas na margem oci-
dental do rio Uruguai, e que outras famílias aceitaram acompanhar o general português
Gomes Freire de Andrade, passando a ocupar terras da América lusitana, convertendo-se
em súditos do Monarca português (GARCIA, 2009).
6
As fontes manuscritas sobre o conflito nas reduções apresentam grande variedade, seja na
forma de correspondência administrativa, de cartas escritas por jesuítas ou informes varia-
dos entre as autoridades. Os documentos localizados na península Ibérica são procedentes,
em sua maioria, de arquivos espanhóis, e os sul-americanos estão depositados em institui-
ções argentinas. No Arquivo Histórico Nacional (AHN/Madri), e no Arquivo General de
Simancas (AGS/Valladolid), estão depositados alguns manuscritos redigidos pelos guara-
nis, ou cópias de documentos indígenas traduzidos ao espanhol. A documentação indíge-
na localizada na América corresponde principalmente aos manuscritos guardados no
Arquivo General de la Nación (AGN/Buenos Aires), além de outros documentos deposita-
dos no Museu Mitre (MM/Buenos Aires).
7
Para uma aproximação à questão da escrita em línguas indígenas e à problemática das
traduções, ver o Projeto Línguas Gerais da América do Sul (Langas), coordenado por
Capucine Boidin e Cesar Itier. Disponível em: www.langas.cnrs.fr. Ver também: BOIDIN;
CHAMORRO; MÉRET, 2014.
8
Refiro-me aos incidentes registrados em Santa Tecla, na estância de São Miguel, em fevereiro
de 1753 (AGS: Secretaria de Estado, Legajo 7378, Doc. 89: Copia de la declaración de lo acaeci-
do con los Indios Tapes en la oposición que hicieron en no permitir el paso a la primera Partida
para la Demarcación de la Línea divisoria de esta America Meridional y las diligencias que se
practicaran para conseguir el fin de que se Combiniesen con las órdenes del Rey).

20
A escrita política e o pensamento dos Guarani em tempos de autogoverno (c.1753)

9
Para uma breve descrição da trajetória de alguns indígenas nas reduções durante a de-
marcação de limites e no período posterior à expulsão dos jesuítas, ver: NEUMANN, 2007
e 2015, NEUMANN; WILDE, 2014.
10
AGS: Secretaria de Estado. Legajo 7378. Doc. 38 (Copia): Carta de Lorenzo Balda al pa-
dre comisario Luis Altamirano. San Miguel y enero 18 de 1753.
AHN: Clero-Jesuitas. Legajo, Caja 1, Doc. 7. Breve resumen del Tratado entre España y
11

Portugal tocante a varias Provincias de la América Meridional, p.20.


12
Uma relação dos maus tratos aos corregedores é a carta de Luis Charlet, de 27 de março
de 1753. “A la vuelta flecharan al Corregidor le abrieron la cabeza, y les molieron a palos …
A el de Santo Angel según me escrivio el padre Piza lo quisieron matar de pesadumbre se
murió. A él de San Miguel por poco no lo mataron, y estuvo sacramentado. A el de San
Nicolas lo quisieron matar, y se huyo a la Concepción. A el corregedor de aquí, y de San
Miguel nos lo hicieron apear estando el Pueblo en tumultos…” (AHN: Clero-Jesuitas.
Legajo 120, Caja 1, Doc. 7. p.20).
13
Real Academia de la História/Madri (RAH): Fondo manuscrito. Colección Mutis. Carta
de Charlet a Altamirano. San Juan y noviembre 8 de 1752.
14
AHN: Clero-Jesuitas. Legajo 120, Caja 1, Doc. 7. p.26.
15
AGS: Secretaria de Estado, Legajo 7378. Doc. 37 (Copia).
16
RAH: Sobre el Tratado con Portugal en 1750. P. Manuel Quirino. Sig: 9/2279, nota 51.
17
AGS: Secretaria de Estado. Legajo 7433, Doc. 278 (carta em guarani, anexa ao processo).
Até o presente momento esta é a carta mais antiga escrita e assinada em guarani, por auto-
ridades indígenas das reduções, localizada nos arquivos. Ela evidencia o domínio dos pro-
tocolos epistolares típicos à época: menciona o destinatário (Corregidor Pazq.l Tirapare.),
começa com uma formulação cristã (Alabado sea el Santísimo sacramento), apresenta uma
saudação na abertura (Que Dios te guarde, Capitán, y que nuestros hijos también vuelvan
a vivir bien…) indica sua finalização (Pero esto no más te escribo un poco, corregidor) e
concluí indicando a data e local “Desde San Miguel y Febrero 20 de 1753” além de estar
assinada ao final: “El teniente que te quiere Alejandro Mbaruari”.
18
AGS: Secretaria de Estado. Legajo 7378, Doc. 91: Copia de una carta que entregaron los
Indios al Comisario de la primera Partida traducida de su Idioma Guarany al Castellano.
Para uma aproximação ao papel desempenhado pela cultura escrita na Espanha da Idade
19

Moderna, ver: BOUZA, 1992; CASTILLO, 1999 e 2006.


20
AGS: Secretaria de Estado, Legajo 7378, Doc. 103.
21
AHN: Clero-Jesuitas. Legajo 120, Caja 1, Doc. 31, 32, 33, 34, 36, 37, 38.
22
As cartas em guarani citadas neste artigo foram publicadas na base de dados www.langas.
cnrs.fr em julho de 2016. As transcrições paleográficas do guarani e do espanhol foram
realizadas por Cecilia Adoue, e as transliterações à grafia moderna e divisão em sessão das
versões em guarani e sua correspondência com as traduções ao espanhol ficaram aos cui-
dados de Capucine Boidin. As fontes localizadas contabilizam 248 documentos escritos em
guarani pelos próprios índios das reduções entre 1752 e 1832. Até o presente momento o

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Eduardo Santos Neumann e Capucine Boidin

projeto Langas analisou 178 cópias desses documentos. Em torno de 60% destes foram
localizados sem tradução ao espanhol. A equipe do projeto Langas se dedica a editar esses
documentos. Para a guerra guaranítica foram localizados 69 documentos, sendo 11 em
idioma guarani. Conforme o trabalho de arquivo avance, esse corpus poderá ser
ampliado.
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Em meados do século XVIII a elite indígena nos Andes também utilizou a escrita para
questionar as medidas modernizantes, pois avaliavam como mais adequado apresentar
suas insatisfações e desafiar a autoridade real nos tribunais. Ver: GARRETT, 2009. Para
Nueva España, ver: OWENSBY, 2011.
24
“ndaha’evéi oréve jepe peteĩ ñe’ẽ hesegua chupe imosẽ haguãma”. Literalmente: “Ya no
existe para nosotros ni una sola palabra a propósito de esto para hacerles salir” (Carta de
Nicolas Ñeenguiru, s. 30). Doravante nos referiremos apenas às versões em guarani trans-
literadas para a grafia moderna e às versões em espanhol paleografadas que constam na
base de dados online (www.langas.cnrs.fr), indicando o número da seção na qual se encon-
tra a frase ou a palavra citada.
25
“E quer tirar-nos (mo-sẽ) nosso modo de ser. Ao mato, desde nosso Povo. Ao campo,
longe quer mandar-nos. Não, isto, em verdade não o quer Deus. E nós também somos
cristãos. Só querem empobrecernos (momboriahu). Só querem nos perder parece
(mokañy) Que classe de Cura é este?” (Carta de São Nicolau, s. 39).
26
MONTOYA (1639), 2011, p.540.
27
A citação original da primeira carta é “Ma Ombotavy tepipo Rey Fernando Sexto maran-
gatu Tupã Ñande Jára upe orekuave’ẽ haguéra, yvy ore rekoha jepe, kuave’ẽ haguéra”, e foi
traduzida de maneira elegante por “Pues qe el avernos nros dado â D.s y aver ofrecido la
tierra donde estamos hade servir paraqe el S.to Rey Fern.do sexto sea malo? por ventura?
Traduzem como ‘ombotavy Tupã upe’ (engañar a Dios) por ‘ser malo’” (São Miguel, s. 76).
A segunda “Portugues niko itavy jeahose retei va’e, aipo rehe ndoroñembotavý jesapy’atei,
japura vai kuaapa rete nanga eguĩ Portugues”, que é, literalmente “Los Portugueses, por
cierto, que son errados en exceso, y por esto nosotros (exclusivo) no nos dejamos engañar
en un instante, ellos saben mentir mucho, esos Portugueses”, mas esta foi traduzida por
“Ciertamente esta es cosa de los Portugueses, que son muy malos, y saben mentir mucho”
(São João, 1752, s. 5).

Artigo recebido em 1º de maio de 2017. Aprovado em 14 de julho de 2017.

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