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Cidade medieval e feudalismo – um balanco da


questao

Article · December 2008


DOI: 10.5212/PublicatioHum.v.16i2.289300

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José D Assunção Barros


Federal Rural University of Rio de Janeiro
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CIDADE MEDIEVAL E FEUDALISMO – UM BALANÇO DA QUESTÃO

MEDIEVAL CITIES AND FEUDALISM – A STUDY OF RELATED ISSUES


José D’Assunção Barros1

Recebido para publicação em 07/03/08


Aceito para publicação em 25/04/08

RESUMO

Este artigo busca desenvolver uma reexão sobre a Cidade Medieval em suas
relações com o sistema feudal, elaborando um sintético panorama de posiciona-
mentos historiográcos relacionados a algumas das grandes questões pertinentes à
História Urbana Medieval. Parte-se de uma discussão inicial acerca da dupla pers-
pectiva de acordo com a qual pode ser examinada a cidade enquanto forma social
especíca: como um sistema em si mesma (perspectiva interna), e como elemento
de um sistema mais abrangente (perspectiva externa). A ênfase, na seqüência do
texto, refere-se ao exame das várias análises historiográcas sobre a posição da
Cidade em relação ao sistema feudal.

Palavras-chave: Cidade medieval. Sistema feudal. História urbana.

ABSTRACT

This article attempts to discuss medieval cities and their relations with the
feudal system. The article provides a general historiographic view related to some
of the great issues concerning urban medieval history. The starting point is a dis-
cussion about the double perspective from which these cities can be examined as
particular social forms: as a system in themselves (internal perspective), and as an
element of a broader system (external perspective). The emphasis presented in
the text refers to the examination of the various historiographic analysis about the
position of cities in relation to the feudal system.

Keywords: Medieval cities. Feudal system. Urban history.

1
Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF); Professor da Universidade Severino Sombra (USS) de Vassouras, nos Cursos de
Mestrado e Graduação em História, onde leciona disciplinas ligadas ao campo da Teoria e Metodologia da História e onde desenvolve pesquisas no campo
da História Urbana, entre outras áreas historiográcas. Relativamente aos estudos de História Urbana, publicou o livro Cidade e História (Petrópolis: Vozes,
2007).
290
A posição da Cidade Medieval dentro de fatores e motivações igualmente importantes para
um universo mais amplo o urbanismo medieval.
Algumas cidades específicas mostram-se
Quando se estuda a Cidade em qualquer época como peças importantes dentro do Imaginário Cris-
histórica, é possível pensar em duas perspectivas tão − como Roma ou Jerusalém − e podem se alinhar
distintas (e eventualmente complementares). Por em um ‘sistema imaginário’ com cidades bíblicas
um lado, a Cidade pode ser abordada do ponto de do passado ou até mesmo com cidades inteiramente
vista de sua organização interna – seja no que con- imaginadas e sem existência real. Já no que se refere
cerne aos seus aspectos demográcos, econômicos, mais propriamente ao campo eclesiástico e à reali-
políticos, institucionais, morfológicos, culturais ou dade concreta, um determinado circuito dentro da
imaginários. Em uma palavra, a Cidade seria trata- Igreja pode estabelecer entre uma série de cidades
da aqui como um sistema em si mesmo. Por outro elos passíveis de se converterem em um sistema
lado, as formações urbanas podem ser estudadas para a análise historiográca. A implantação, em
relativamente ao papel que desempenham em um um território mais ou menos vasto, de um circuito de
universo ou em um sistema mais amplo. ordens mendicantes − estas que no período medie-
Há múltiplas aplicações para esta segun- val sempre estiveram fortemente associadas à vida
da perspectiva. A cidade pode ser avaliada, por urbana − pode se converter desta forma em critério
exemplo, em sua articulação com outras cidades, do historiador para abordar uma série urbana como
formando todas elas uma espécie de ‘rede urbana’ sistema (LE GOFF, 1970, p.939-940).
que também é passível de ser encarada como um Finalmente, podem ainda as formações ur-
sistema. Tornam-se aqui instrumentalizáveis os banas ser examinadas na sua integração ao âmbito
conceitos de ‘rede urbana’, ‘retículo urbano’, ‘ar- condal ou nacional ao qual estão adstritas, neste
madura urbana’, bem como outros desenvolvidos caso formando-se um sistema que não exclui tensões
mais recentemente pela sociologia urbana e pela entre o poder central e os poderes municipais.
economia espacial. Para já introduzirmos a tem- Conforme se nota, uma mesma cidade pode
poralidade que estaremos abordando neste ensaio, se mostrar simultaneamente como componente de
uma grande metrópole medieval podia se apresentar vários sistemas diferenciados. Participar do circuito
como a ‘localidade central’ de todo um conjunto imaginário cristão não exclui a possibilidade de
urbano circundante que ela articula e organiza; ou, participação no circuito comercial hanseático, ou
de maneira bem distinta, cidades como aquelas no quadro de organização territorial gerido pelo
pertencentes à liga hanseática podiam formar uma condado ou pelo reino. Em cada um destes casos,
rede bastante especíca − verdadeiro o condutor a cidade desempenhará um papel e uma função
para as atividades mercantis − da mesma forma que diferente. Quem constrói o sistema, em alguns
uma série de cidades forticadas podiam compor destes casos, é o próprio historiador, que examina
um limes para a defesa de um território nacional ou a Cidade genericamente tratada em relação a
mais vasto. um universo mais amplo, ou então a interação entre
Outra possibilidade para o tratamento ana- várias cidades integrantes de uma série (ou rede)
lítico da cidade como parte de algo maior está em examinada − esta devendo ser constituída, natural-
enquadrar o fenômeno urbano dentro do sistema mente, a partir de certos critérios metodológicos.
comercial. Particularmente para o caso das cida- Por outro lado, alguns sistemas, como o reino ou a
des medievais, boa parte delas era tão integrada ao ‘liga hanseática’, já pré-existem à análise do histo-
circuito comercial de sua época, que alguns autores riador como realidade institucional.
como Henri Pirenne (1925) julgaram ser possível À parte estas múltiplas abordagens, a Cidade
associar linearmente crescimento comercial e pode ser examinada dentro do seu próprio ‘sistema
crescimento urbano, no que foram posteriormente de civilização’. Sobretudo para o caso do fenômeno
criticados por historiadores que examinaram outros urbano da Idade Média Central (séculos XI-XIV)2,
2
Estabelecemos como corte o marco da Peste Negra, ruptura particularmente
291
os historiadores têm se interrogado a respeito das tratou a Sociedade Feudal em sua obra, hoje já um
relações da Cidade com o Mundo Feudal. Que tipo clássico dos estudos medievais (1987)3. A ‘socieda-
de interações articula o Mundo Urbano Medieval e de feudal’ corresponderia aqui àquilo que podería-
o Mundo Feudal? Formarão estes dois universos um mos tratar como um “sistema de civilização”4 – no
sistema único, dois sistemas aliados, dois sistemas caso correspondente a um amplo território dentro
concorrentes, ou estaria a Cidade Medieval intei- do Ocidente Cristão da Idade Média central (séculos
ramente integrada ao universo das práticas feudais, XI-XIV) que esteve associado a um determinado
assimilada por exemplo a uma senhoria coletiva? modo de vida, a um imaginário comum, a certas
Que transições possíveis podem ser pensadas entre alternativas religiosas e a determinadas práticas
estas quatro posições fundamentais combinadas aos comuns, que incluem o próprio “feudalismo” en-
pares? Pode-se pensar, por exemplo, que a Cidade quanto um sub-sistema sócio-econômico especíco.
Medieval principia como mero desdobramento Este ‘mundo feudal’ abrangia territórios e nações
feudal e que, a certa altura, passa a concorrer com bem diferenciados, e só pode ser satisfatoriamente
o sistema feudal propriamente dito? Quem sabe ao delineado a partir de uma série de fatores interre-
inverso – poder-se-á propor que o fenômeno urbano lacionados.
medieval inicia-se a partir de uma excitação exter- É ainda o próprio Marc Bloch quem recupera
na, para só depois encontrar seu lugar no sistema a evolução das palavras relacionadas a ‘feudalismo’.
feudal? Ou ainda, será possível discriminar dentro Até o início do século XVIII, ‘feudal’ − palavra
do conjunto de cidades medievais algumas que que na sua forma latina remontava à própria Idade
funcionam como desdobramentos feudais e outras Média − conservava um valor estritamente jurídico.
que atuam sistemas concorrentes? O feudo era um “modo de posse de bens reais”, e
Temos aqui posições diversas dentro do qua- ‘feudal’ relacionava-se não apenas ao feudo pro-
dro das historiograas possíveis, e confrontá-las priamente dito como também aos encargos próprios
pode não apenas contribuir para a sua iluminação deste tipo de posse. Em determinado momento – que
recíproca, como também trazer mais visibilidade Bloch localiza mais especicamente nas Lettres
ao atual estado da questão no que concerne aos Historiques sur les Parlements de Boulanvilliers
estudos urbanos relativos à Idade Média. Em vista (1727) – o sentido destes vocábulos parece alargar-
disto, a estas questões retornaremos, assim que se para passar a designar um “estado de civilização”
delinearmos melhor o campo em que elas podem (BLOCH, 1987, p.11). Logo depois, Montesquieu,
ser formuladas. e mais tarde a ‘Assembléia Nacional’ da Revolução
Francesa (agosto de 1789), consolidam a referência
de ‘feudal’ a um regime social que acabava de ser
Sociedade Feudal, Feudalismo e Sistema superado.
Senhorial: uma digressão necessária. De maneira bastante arguta, Marc Bloch ob-
serva que tanto Boulanvilliers como Montesquieu
Abordar o papel da Cidade dentro do mundo eram contemporâneos da Monarquia Absoluta,
feudal, ou mais especicamente dentro do feu- e que por isto o uso da expressão ‘feudal’ como
dalismo enquanto um sistema sócio-econômico um ‘regime social’ especíco esteve associado, a
especíco, implica em denir de maneira mais princípio, àquilo que mais impressionara aqueles
precisa cada um destes campos. Temos aqui duas autores na Sociedade Medieval: a ‘fragmentação da
coisas distintas. ‘Mundo feudal’, ou “sociedade
feudal”, deve ser entendido em uma acepção mais 3
A edição original de La société feodale é de 1930. Tornou-se célebre a
proposta de Marc Bloch para a utilização da expressão “sociedade feudal” de
ampla do que “feudalismo”, esta expressão que logo forma mais ampla, evitando a interminável querela em torno de uma noção
veremos referir-se mais propriamente a um aspecto mais precisa de feudalismo e empregando mesmo esta expressão mais espe-
cíca “sem mais remorsos que os que sente o físico quando, com desprezo
econômico-social da sociedade feudal. pelo grego, persiste em denominar ‘átomo’ uma realidade que ele passa o
Foi de forma mais ampla que Marc Bloch seu tempo a decompor” (Marc BLOCH, op.cit, p.12).
4
A expressão “sistema de civilização” é empregada por Pierre CHAUNU
sensível para os seus próprios contemporâneos. (1975) em O Tempo das Reformas (1993, p.39).
292
soberania’ entre uma multidão de senhores (BLO- belecidas entre os homens pertencentes às classes
CH, 1987, p.12). Desta forma, aquela expressão em dominantes, mas também à própria maneira como
cujo uso predominava o aspecto jurídico, passa a estes homens sujeitavam uma população mais am-
incorporar agora claramente um conteúdo político. pla para a organização de uma produção agrícola
Com isto, passam a se enfatizar como características da qual todos dependiam para a sua subsistência.
mais importantes vinculadas ao âmbito feudal os vá- Assim, as relações verticais entre senhores e ser-
rios aspectos relativos à fragmentação medieval da vos (o que não devia desconsiderar os enclaves de
soberania – inclusive todo um conjunto de relações camponeses livres que ainda subsistiam), e todo
entre os homens pertencentes às classes dominantes, um complexo sistema de trabalho e propriedade,
e que constituem as chamadas práticas e instituições passavam a gurar no ‘modo de produção feudal’
‘feudo-vassálicas’. ao lado das relações de suserania e vassalagem
Daqui em diante abandonaremos a linha de mediante às quais se relacionavam os membros da
raciocínio seguida por Marc Bloch e retroagiremos nobreza. Uma vez que o ‘feudo’ − freqüentemente
ao momento signicativo em que se constitui o cor- a posse de uma terra produtiva com os trabalha-
pus teórico do ‘Materialismo Histórico’ – instante dores correspondentes − constituía um benefício
reconhecidamente decisivo para a historiograa predominante que era concedido pelo suserano ao
ocidental, não importa a que correntes hoje se vassalo e através do qual uía a parcelarização do
liem os historiadores. A referência é o famoso poder (sobretudo através de uma série de direitos
texto elaborado conjuntamente por Karl Marx e senhoriais que incluíam o ban), era possível entre-
Friedrich Engels entre 1845 e 1846 −A Ideologia ver aí um sistema que abrangia simultaneamente os
Alemã (1993)5 − onde já se esboça um conceito que aspectos econômicos, sociais e políticos.
será denitivo para a historiograa marxista: o de O ‘modo de produção feudal’ incluía, desta
“modo de produção”. forma, tanto um sistema senhorial de exploração
Elaborado com maior clareza em textos pos- econômico-social, como o conjunto de mecanismos
teriores, o conceito de ‘modo de produção’ refere-se feudo-vassálicos através do qual se organizava e
à base material através da qual o homem produz as se hierarquizava a parcelarização do poder. A pró-
condições de sua sobrevivência. O ‘modo de pro- pria realeza, situada no ápice da pirâmide feudal,
dução’ conjuga o que os fundadores do marxismo seria um elemento a mais deste complexo sistema
denominaram “forças de produção” e “relações de econômico-social. Cumpre notar que a idéia de
produção” − estas últimas correspondendo à manei- ‘modo de produção’ pressupõe uma superestrutura
ra como os homens organizam os seus processos de na qual se situam, entre outros, os mecanismos
produção e os relacionamentos sociais daí decor- ideológicos que dão suporte à exploração social6.
rentes. Desta forma, o ‘modo de produção’ remete Desta forma, o papel da Igreja e da organização
ao que também se poderia designar por um sistema clerical pode ser considerado como parte integrante
econômico-social. A história poderia ser descrita, do sistema global.
consoante os preceitos propostos pelo Materialismo O conceito de ‘modo de produção’, às ve-
Histórico, como uma sucessão dialética de ‘modos zes camuado em alguma outra noção substituta,
de produção’. expandiu-se logo para setores historiográcos não
Para o período medieval, os historiadores necessariamente marxistas. Jacques Le Goff e Ge-
marxistas passaram a utilizar a expressão “modo orges Duby, medievalistas liados à História Nova,
de produção feudal”. Ora, isto implicava em que não hesitam em empregá-lo (LE GOFF, 1992, p.55).
a expressão “feudal” incorporasse também um Mas cedo surgiu, conforme o objeto historiográco
conteúdo econômico, referindo-se não apenas à que se constituía nesta ou naquela investigação, a
organização política e às relações pessoais esta- 6
Não poderemos adentrar aqui, por razões de síntese, qualquer discussão
5
A Ideologia Alemã é consensualmente apontada como o texto fundador do sobre novas noções envolvendo a dicotomia infra-estrutura / superestrutura.
Materialismo Histórico. Althusser o aponta mesmo como um “corte episte- Gramsci e Thompson são alguns dos teóricos marxistas que reexaminaram
mológico” entre as fases pré-marxista e marxista do pensamento de Marx e este conceito, propondo também novas conceitualizações que incluem a
Engels (ALTHUSSER, 1967). própria denição de ‘modo de produção’.
293
necessidade de separar mais claramente o que era laboratore, oratore), o modo de exploração do
sistema de exploração da propriedade e do traba- trabalho e da propriedade, e a interação dinâmica
lho e o que era sistema de suserania e vassalagem entre campo e cidade. Mas reconheçamos que a
envolvendo os homens pertencentes à nobreza. expressão é demasiado longa, e aceitemos “Socie-
Por isto Georges Duby propõe chamar ‘modo de dade Feudal” para o sistema de civilização mais
produção senhorial’ a este sistema de exploração amplo, “Feudalismo” para o conjunto das práticas
da terra que enquadra camponeses submetidos a feudo-vassálicas e senhoriais, e “Modo de pro-
um senhor que exerce sobre eles um conjunto de dução senhorial” para este sistema de exploração
poderes e direitos, independente da questão feudal. da propriedade e do trabalho que está incluído no
Quanto às relações de suserania e vassalagem, cam universo anterior.
melhor enquadradas no conjunto de ‘instituições Delineado o universo conceitual de base,
feudo-vassálicas’. Obviamente que os dois âmbitos estamos agora aptos para avaliar as várias posições
continuam interrelacionados, mas a utilização de historiográcas que examinam o fenômeno urbano
expressões diferenciadas torna-se aqui uma questão na sua relação com a Sociedade Feudal, com o Feu-
de maior precisão metodológica. dalismo, e com o Modo de Produção Senhorial.
Por outro lado, tal como já havia assinalado
Marc Bloch, “as palavras são como moedas muito
usadas que, à força de circularem de mão em mão, A interação entre Cidade e Feudalismo
perdem o seu relevo etimológico” (BLOCH, 1987,
p.12). ‘Sociedade Feudal’ já se havia tornado o de- Jacques Le Goff, em O Apogeu da Cidade
signante de um ‘sistema de civilização’ mais amplo, Medieval (1980), assim resume as quatro posições
que abarcava inclusive o ‘feudalismo’ propriamente fundamentais relativas à questão do relacionamento
dito, ou o ‘modo de produção senhorial’ ainda mais entre Cidade e Feudalismo. Uma primeira posição
especicamente. A palavra continua e continuará assimila a cidade diretamente a uma senhoria, ou
sendo empregada neste sentido mais amplo, que a um poder feudal. No pólo oposto, existem os
coincide de uma maneira ou de outra com o próprio que vêem na cidade um fenômeno essencialmente
sistema de civilização cristã do Ocidente Europeu “anti-feudal”. Mais interessante, embora também
entre os séculos XI e XIII. rejeitada pelo autor, é a posição que considera a
Alguns autores, preocupados com o risco de cidade como um “enclave territorial” no sistema
que esta expressão deixasse de fora outros aspectos feudal e o “sistema urbano como sistema aliado
igualmente importantes da sociedade ocidental-eu- ao feudalismo”. Por m, há os que consideram,
ropéia, que não apenas o universo feudo-senhorial, como o próprio Le Goff, que Cidade e Feudalismo
propuseram ajustes vários. “Feudo-clericalismo”, formam um ‘sistema integrado’, ou o que José Luís
por exemplo, procura chamar atenção para a im- Romero denominou “sistema feudo-burguês” (LE
portância primordial da Religião nesta sociedade GOFF, 1992, p.57).
medieval tão singular. “Sistema feudo-burguês” pre- As duas primeiras posições quase já não são
tende enfatizar, ao lado do âmbito agrário, o papel defendidas pela historiograa moderna. A idéia de
proeminente das cidades e da burguesia na expansão uma cidade medieval linearmente assimilada a um
feudal, integrando campo e cidade em uma única poder feudal esteve bastante em voga no século XIX
realidade dinamicamente interrelacionada. e no princípio do século XX, e isto de diversas ma-
Seria talvez mais preciso utilizar uma expres- neiras. A cidade, como se verá adiante, pode possuir
são quádrupla, remetendo aos aspectos primordiais senhores urbanos (nobres ou eclesiásticos) a que
da sociedade ocidental-européia na Idade Média se sujeita a sua burguesia, havendo inclusive um
central: “Sistema Feudo-Senhorial-Burguês-Cleri- certo número de terras enfeudadas em solo urbano
cal” – expressão múltipla que abarcaria simultanea- (Reims). Os próprios burgueses ricos podem, em
mente o universo ideológico trifuncional (bellatore, alguns destes casos, conseguir adquirir terras urba-
294
nas enfeudadas e reverter elementos do feudalismo citar como exemplo o problema da assimilação da
a seu favor (Metz, século XIII). lealdade urbana ao compromisso vassálico entre
Até aqui, o solo urbano foi visto como objeto conselho e senhor, existem diferenças óbvias entre
de feudalização ou de senhoria. Mas, em um pólo o ‘vassalo indivíduo’ e a coletividade urbana que
oposto, pode se dar que − uma vez conquistada a presta homenagem ao rei ou ao senhor. Ou seja, a
sua franquia − a comunidade dos habitantes de uma mera utilização de uma imagem comum não iguala
cidade alcance uma ascendência jurídica sobre re- duas situações tão diferenciadas.
giões do campo circundante (o banlieu), chegando No que se refere à segunda posição historio-
a dominá-lo à maneira senhorial (Besançon a partir gráca acerca das relações entre Cidade e Feuda-
do nal do século XIII). Neste último caso, a co- lismo (a da “cidade anti-feudal”), com menos razão
munidade urbana de burgueses torna-se agente de ainda ela poderia ser defendida nos dias de hoje. A
um processo de domínio senhorial sobre o campo idéia de uma cidade medieval radicalmente separada
a ela adstrito, em situação inversa às anteriormente do mundo feudal já não encontra qualquer suporte
descritas. nos vários estudos de caso desenvolvidos a partir
Por m, e isto já constitui um terceiro caso, de 1950. Basta examinar alguns dos elementos que
são conhecidas também as assimilações do voca- foram perlados nos parágrafos anteriores para se
bulário vassálico ao vínculo contratual entre um se- perceber que, embora eles não sirvam para explicar
nhor e uma cidade − esta lhe prestando homenagem a totalidade do fenômeno urbano e nem para atrelar
através de seu conselho como se fosse um “vassalo linearmente cidade e feudalismo, encontram-se ali
coletivo”. Os reis utilizaram freqüentemente estes práticas feudais que interagem efetivamente com o
contratos vassálicos com concelhos urbanos no fenômeno urbano medieval.
seu caminho para o fortalecimento das monarquias Mesmo as cidades-estados italianas, que
feudais. constituem um caso especial por suas articulações
Existe, portanto, uma gama bastante diver- comerciais especícas, foram elas mesmas insti-
sicada de assimilações de elementos senhoriais e tuidoras de relações feudais em regiões que estive-
feudais − e até vassálicos − às cidades medievais. ram sob o seu domínio − como no caso da cidade
Abordaremos mais adiante alguns destes casos, com de Veneza nas terras que controlou após a Quarta
exemplos especícos. Por ora, gostaríamos apenas Cruzada. Cada vez ca mais claro que o feudalismo
de mencionar o fato de que alguns historiadores, so- contribuiu, de diversas maneiras, para as alternati-
brevalorizando um ou outro destes aspectos feudais, vas urbanas da Idade Média, tanto no âmbito das
perderam de vista a complexidade do fenômeno práticas, como no âmbito das representações. Assim
urbano e deixaram de examinar algumas das outras mesmo, a tese da cidade “anti-feudal” conseguiu
facetas da Cidade Medieval. Giry (1907), por exem- defensores neste século. Um deles foi o historiador
plo, na sua análise da formação feudal das cidades Postam, que chegou a armar que as cidades me-
medievais, exagera a assimilação entre “comuna” dievais são “ilhas não-feudais nos mares feudais”
e “vassalo”. Luchaire costumava denir a cidade (POSTAM, 1972. p.212).
como uma “senhoria coletiva popular”. De maneira A tendência historiográfica atual fica por
similar, Petit-Dutaillis descrevia as comunas como conta das duas últimas posições atrás mencionadas.
“senhorias coletivas” (PETIT-DUTAILIIS, 1970). Considera-se hoje em dia uma relação dinâmica
Sem ignorar as recorrentes assimilações da entre a cidade e o feudalismo propriamente dito.
comunidade urbana a diversas práticas feudais, a Se a cidade e o mundo da produção feudal serão
verdade é que a Cidade Medieval – formação so- colocados como parte de um único sistema, ou
cial complexa que desempenha múltiplas funções se serão tratados como dois sistemas aliados ou
e se vê interferida por uma variedade de fatores complementares, esta já é uma opção que deverá
– dicilmente poderia ser reduzida a qualquer des- assumir o historiador. Yves BAREL (1975) optou
tes aspectos tomados isoladamente. Assim, para por tratar cidade e feudalismo como dois sistemas
295
aliados. Foi sua perspectiva voltada em um primeiro com parceiros diferentes, porquanto as operações
momento para o tratamento da cidade como um eram pontuais) e de famílias que se extinguiam
sistema em si mesmo, e só no segundo momento com bastante rapidez, não se engajando em um
da análise como parte de um universo mais amplo processo de acumulação. Mas a verdade é que
onde se vê delineada a relação cidade-feudalismo, a cidade medieval – por sua lógica econômica
fundada mais no dinheiro do que na terra, por
o que o conduziu a esta opção metodológica.
seu sistema de valores no qual, em face do ideal
Jacques Le Goff, por outro lado, apropria-se aristocrático de hierarquia vertical, de duração,
da noção de “Sistema Feudo-Burguês” para situar de ociosidade e de largueza (desperdício), impu-
a cidade e o feudalismo dentro de um sistema único nha a si mesma outra concepção, outro ideal de
e integrado. Para o historiador francês, a cidade hierarquia horizontal, do tempo, do trabalho e do
medieval teria encontrado o seu lugar no sistema cálculo – podia minar por dentro o sistema feudal
feudal e formado com ele, “não como aliada mas para transformá-lo em um sistema capitalista.
como parte integrante”, o que José Luís Romero Foi preciso, entretanto, esperar pela revolução
denominou “sistema feudo-burguês” (LE GOFF, industrial (LE GOFF, 1992, p.58).
1992, p.57). Essa passagem pede alguns esclare- A percepção de que a Cidade Medieval é
cimentos. parte integrante de um ‘sistema de civilização’ que
O conceito de “sistema feudo-burguês” é aqui inclui o universo feudal mais tradicional, e que, por
tomado de José Luís Romero (1967), embora Le outro lado, esta mesma cidade constitui também um
Goff o utilize para limites temporais ligeiramente mundo à parte, freqüentemente cria tensões não-
diferenciados. Assim, enquanto Romero situa o pe- resolvidas no discurso dos historiadores que preten-
ríodo feudo-burguês entre os séculos XIII e XVIII, dem se denir por uma ou outra posição. O Mate-
Le Goff atém-se na análise de uma realidade urbana rialismo Histórico resolve esta contradição através
que ele mesmo situa entre 1150 e 1330 (LE GOFF, da concepção dialética: um ‘modo de produção’ já
1992, p.11). Neste momento, diga-se de passagem, carrega dentro de si as contradições fundamentais
o historiador francês não está preocupado em exa- que, desenvolvidas para além de determinado ponto
minar as origens do movimento urbano (o que ele crítico, produzirão a sua própria superação através
faz em outro momento, assinalando que a população de uma revolução estrutural. Yves Barel (que, aliás,
fundadora das novas cidades medievais provém também é um historiador marxista), prefere pensar
dos campos limítrofes, e não signicativamente do em dois sistemas aliados – com o que, reserva-se
comércio de longa distância, tal como propunha ao direito de também considerar a cidade como um
Henri Pirenne)7. Despreocupando-se em precisar os sistema à parte, com as suas próprias especicida-
momentos de formação do ‘sistema feudo-burguês’, des, em certos momentos de sua análise. Jacques
Jacques Le Goff contenta-se nesta passagem em LE GOFF, por m, refugia-se ora num vocabulário
partir da armação de que “a cidade encontrou seu tomado de empréstimo ao marxismo (“modo de
lugar no sistema feudal”. Quanto ao período de produção senhorial”), ora na percepção de que a
duração ou aos limites de esgotamento do ‘sistema cidade medieval já é, desde os primeiros tempos,
feudo-burguês’, o historiador é um pouco vago: um outro mundo que traz no seu próprio modo de
Este sistema durou enquanto o modo de pro- vida novas concepções e valores.
dução senhorial não entravou o funcionamento Cumpre lembrar sempre que um determinado
econômico do mercado nem freou em demasia elemento ou conjunto de elementos pode participar
as ambições da burguesia, e também enquanto simultaneamente de vários sistemas, e além disto
esta, renovando-se rapidamente pelo jogo de em- ser ele mesmo um sistema a ser examinado nas
preendimentos sem longa duração (os contratos suas várias reentrâncias. Lembremos o exemplo
de sociedade sucediam-se em cadência rápida das “estruturas de grelha” de Christopher Alexander
7
Em favor de sua tese, Jacques Le Goff incorpora alguns estudos sobre cidades
(1967), no sentido de evitar o hábito mental das
especícas, como o de Charles Edmond Perrin sobre a cidade de Metz ou o “estruturas de árvore”. A Cidade Medieval, apesar
de Pierre Desportes para Reims (PERRIN, 1924 e DESPORTES, 1983).
296
de sob certos aspectos poder ser considerada um seis escabinos, embora nomeados pelo abade. Con-
outro mundo em relação às propriedades senhoriais tudo, observa-se que a comunidade dos burgueses
circundantes e ao sistema feudo-vassálico, o que não tem representação permanente, só reunindo-se
a torna em certa medida passível de análise como com a autorização do abade. Da mesma forma, os
um sistema especíco, mantém com o campo uma direitos de ban são plenamente exercidos pelo aba-
relação dinâmica, com o sistema feudo-vassálico de-senhor por intermédio de dois ociais senhoriais.
mútuas assimilações, e além disto insere-se em um Este quadro geral levou Pierre Desportes a concluir
sistema territorial mais amplo que já prenuncia a que os burgueses de Sain-Remi estavam “submeti-
formação das monarquias feudais. Por m, algumas dos a um regime senhorial análogo ao das aldeias
cidades especícas inscrevem-se na rede urbana de do campo”, embora o abade tivesse concordado em
um comércio internacionalizado, novo sistema a ser abrir mão de qualquer arbitrariedade. A Cidade, no
considerado. caso do setor de Saint-Remi, encontrava-se desta
forma com as práticas senhoriais.
Situação distinta aparece na Chartres me-
Cidade: sujeito e objeto de práticas feudo- dieval. Conforme os estudos de André Chédevil-
senhoriais le, a maioria dos burgueses tinha ali o status de
servidores ociais do conde ou do bispo. Alguns
A interação entre Cidade e Mundo Feudal deles chegaram a enriquecer graças ao seu papel
pressupõe uma primeira ordem de questões que se de “intermediários entre os poderosos e o mundo
referem aos aspectos senhoriais e feudais propria- em evolução” – ora negociando os excedentes das
mente ditos. Que práticas senhoriais a cidade assi- granjas e dos celeiros senhoriais, ora beneciando-
mila, por um lado, e que práticas mais propriamente se de seus privilégios especiais como oficiais
feudais ela incorpora? Jacques Le Goff pontualiza condais ou episcopais9. Desta forma, a burguesia
alguns aspectos relacionados ao que ele chamou urbana destaca-se aqui na função de intermediar
de “simbiose entre cidade e feudalismo”. Os casos e administrar os excedentes oriundos da produção
examinados restringem-se aqui ao âmbito da França senhorial do campo. A Cidade, neste caso, encontra
urbana, objeto de O Apogeu da Cidade Medieval. o papel da grande intermediadora requerida pelos
A cidade será examinada aqui simultanea- novos tempos.
mente como ‘objeto’ e como ‘sujeito’ de poderes Por outro lado, ao mesmo tempo em que o
feudo-senhoriais. Em primeiro lugar, o historiador feudalismo marca uma relativa presença na cidade,
francês pontualiza a questão dos ‘senhores do solo os burgueses que escapam ao serviço de senhores ur-
urbano’. Apesar de limitações por vezes conside- banos não deixam de adquirir eventualmente terras
ráveis aos seus direitos e poderes, estes senhores enfeudadas em solo citadino. É o que Jean Schneider
conservam sempre uma parte de suas prerrogativas (1950) observa para a Metz do século XIII. Ainda
e uma posição proeminente na cidade a eles adstrita no nal deste século, os burgueses de Metz chegam
(LE GOFF, 1992, p.58). mesmo a possuir terras de tipo dominial no campo
Um exemplo inicial pode ser buscado na cida- circundante. A Cidade abre-se, desta forma, como
de de Reims, analisada em maior profundidade por um espaço de oportunidades especiais para que os
Pierre Desportes (1983), em sua História de Reims8. próprios burgueses passem a se apropriar de certos
Subdividida em quatro partes − cada uma com os elementos do feudalismo, embora observados de-
seus burgueses submetidos a um regime próprio − a terminados limites.
cidade conta com quatro senhores: o arcebispo, o Besançon, conforme as conclusões de Roland
capítulo da catedral, e as abadias de Saint-Remi e Fétier (1978), fornece por outro lado um exemplo de
de Saint-Nicaise. Os burgueses de Saint-Remi, por ascendência jurídica da comunidade urbana sobre
exemplo, contam com o privilégio de um corpo de o campo adjacente, convertendo-o em subúrbio
8 9
O autor é ainda responsável por uma abordagem mais especíca: Reims et Comentários sobre os estudois de CHÉDEVILLE sobre “Chartres” podem
les Remois aux XIII et XIV siècles. (DESPORTES, 1979). ser encontrados no estudos de LE GOFF (1997, p.60).
297
(banlieue). Este tipo de fenômeno está na base da andamento da sociedade rural. Tanto os senhores
generalização acerca das “senhorias coletivas” que como os camponeses de diversos estatutos sociais
alguns autores delinearam indevidamente para um necessitam do escoamento comercial e da inter-
conjunto maior de cidades medievais. Na verdade, mediação burguesa, de sorte que a burguesia não é
os estudos de Fétier o levam a recuperar na trajetó- propriamente estranha ao feudalismo.
ria de Besançon um primeiro momento, em 1049, O senhor, por um lado, tem necessidades
em que o papa conrma ao arcebispo a senhoria de especícas de consumo, tanto as referentes à cres-
toda a cidade sob sua jurisdição, tanto no interior cente sosticação do equipamento militar, como as
quanto no exterior (LE GOFF, 1992, p.61). Mais referentes à gradual sosticação da vida na corte,
tarde, conquistando franquias no interior da cidade, particularmente a partir do século XII. Norbert Elias
a comunidade dos habitantes também conquista já abordou devidamente em O Processo Civilizador
uma jurisdição sobre o banlieue. É assim que (1990) as questões da multiplicação das necessi-
emerge aqui uma nova situação. A Cidade torna-se dades aristocráticas, da sosticação dos hábitos e
instrumento de dominação da comunidade de seus costumes, e de toda uma série de modicações nos
habitantes sobre o campo circundante. padrões comportamentais da nobreza, que passam
Vimos assim que, objeto de feudalização, su- a exigir dos senhores muito mais do que a partici-
jeito eventual de dominação senhorial, instrumento pação militar. Ao mesmo tempo, desde sempre os
para a exploração social do campo − as formações senhores necessitaram de um mercado para a venda
urbanas medievais são sucientemente diversi- de seus produtos excedentes. Quando o excedente
cadas e ricas em possibilidades, para que se possa agrícola multiplica-se a partir do século XI, esta
reduzir todas a um único modelo de relação com o necessidade torna-se ainda mais presente. Por m,
mundo feudal. os próprios mercados são fontes suplementares para
os senhores, na medida em que eles cobram taxas
sobre a circulação e venda de mercadorias nos seus
Os grupos sociais envolvidos no intercâm- domínios.
bio entre Cidade e Feudalismo Da mesma forma, uma vez que parte da renda
feudal exigida aos camponeses é (cada vez mais) em
As questões até aqui colocadas sugerem dinheiro, também o camponês necessita do merca-
indagações a respeito dos grupos sociais que esta- do para converter um percentual de sua produção
riam envolvidos nos processos de interação entre em valores monetários. Além disto, só ali pode o
cidade e feudalismo. Embora tenhamos reservado homem do campo obter de maneira segura os bens
um item posterior para as discussões acerca dos de uso que ele mesmo não produz.
grupos sociais urbanos, é necessário perguntar em Conforme se vê, o Mercado mostra-se aqui
que medida os burgueses, aqui entendidos como a como uma necessidade feudal, tanto para as classes
camada superior da sociedade citadina, resistem às dominantes como para as classes dominadas do
práticas feudais e ao domínio dos senhores urbanos. mundo rural. E a expansão comercial é uma neces-
Ou, ainda, em que medida esta burguesia citadina sidade (ou um desdobramento) da expansão feudal
se opõe ou tenta modicar este sistema global que (pelo menos consoante os autores que se opuseram
o Materialismo Histórico denominou ‘modo de às teses de Henri Pirenne). As formações urbanas,
produção feudal’ ou ‘modo de produção senhorial’. lugares privilegiados para o mercado, tornam-se
Estas questões foram fundamentais para a historio- neste sentido imprescindíveis para um feudalismo
graa do século XX sobre a cidade medieval. que não cessa de se expandir e de produzir exceden-
Em primeiro lugar deve-se entender, com Ja- tes agrícolas. Observados os devidos limites, não
cques Le Goff (1992, p.56), que o mercado urbano há nenhuma razão primordial para que os senhores
é indispensável ao mundo rural. Por extensão, a feudais lutem contra o seu desenvolvimento ou
burguesia é em boa medida indispensável ao bom contra a atuação da burguesia – senão nas ocasiões
298
em que os burgueses, individualmente. e as comuni- Jacques Le Goff (1992, p.57) quem assinala que “no
dades urbanas, coletivamente, passaram a disputar mais das vezes senhores e habitantes das cidades
espaços senhoriais no campo (respectivamente os chegaram a acordos que satisfaziam a ambas as
já citados casos de Metz e Besançon), ou então a partes, fossem eles mais ou menos voluntariamen-
privar os senhores urbanos da totalidade de seus te concedidos pelos senhores ou arrancados pelos
direitos na cidade. habitantes das cidades”. No mais das vezes, é so-
Quanto aos burgueses, tampouco eles têm bretudo contra os senhores eclesiásticos − bispos e
qualquer razão primordial para se opor ao desen- abades − que os citadinos são obrigados a se levan-
volvimento do feudalismo, uma vez que do modo tar. De resto, os acontecimentos costumam evoluir
de produção senhorial também eles se beneciam na direção de uma mútua adaptação entre cidades
como escoadores de excedentes e como intermedi- e forças senhoriais (é esta adaptação mútua, aliás,
ários em geral. Isto, naturalmente, sem falar daque- que constitui o ‘sistema feudo-burguês’ proposto por
les que se apropriam de elementos do feudalismo José Luís Romero e depois por Jacques Le Goff).
a seu favor, tal como no já mencionado caso dos
burgueses de Metz a partir de 1230. Em suma, é o
campo organizado senhorialmente que proporciona A Cidade Trifuncional
aos burgueses a matéria prima para o comércio e
para o artesanato. Acompanhando os comentários A Sociedade Feudal – tanto para sua sobrevi-
de Jacques Le Goff (1992, p.56), pode-se armar vência em um mundo maior que incluía as civiliza-
que, contanto que lhes seja assegurado o direito ções islâmica e bizantina, como para necessidades
de enriquecer, o direito de administrar tudo o que de sua própria organização interna – desenvolveu,
diz respeito aos seus negócios, e a possibilidade prioritariamente, entre outras, três funções primor-
de dispor facilmente de mão de obra, não há razão diais que acabou por repartir entre grupos sociais
para conitos maiores entre os burgueses e as forças especícos. Trabalho, Guerra, Religião eram suas
senhoriais. preocupações fundamentais e não é de se estranhar
É por isso que os confrontos entre burgueses que estas três preocupações tenham acompanhado
e senhores urbanos, ou entre cidades e grandes pro- um imaginário especíco que correspondia à própria
prietários feudais, surgem freqüentemente em três vida que se desenvolvia neste Ocidente Europeu.
situações típicas: (1) quando ocorre o exercício de A ‘teoria da trifuncionalidade’ buscava
direitos senhoriais exorbitantes sobre o comércio e a repartir os homens em três ordens de atividades
produção artesanal: (2) quando se criam obstáculos essenciais: oratore, bellatore e laboratore. Fun-
para os burgueses exercerem a sua autonomia na cionando também como suporte ideológico de um
administração da cidade e no controle das ativi- sistema de exploração do trabalho e da propriedade,
dades comerciais; (3) quando se busca restringir a este imaginário tripartido esteve presente de uma
liberdade pessoal dos citadinos, mesmo nos casos maneira ou de outra no período que consideramos,
das camadas inferiores, já que estes constituem a mesmo nas situações em que estas atividades se
mão de obra necessária para os burgueses e mestres embaralhavam devido a uma diversicada prática
de corporação. Em cada um destes casos, o que cotidiana ou à intrusão de novas atividades que não
se ataca é respectivamente o direito burguês ao se enquadravam rigorosamente dentro do esquema
enriquecimento, o direito à autonomia administra- trifuncional.
tiva nas questões que lhes dizem respeito e a base Sabe-se que, para todos os tempos, a Cidade
necessária de mão de obra. deve ser entendida, no âmbito de sua totalidade, a
Admitindo que, sobretudo durante o período partir de uma multiplicidade de fatores. Isto tam-
de formação das comunidades urbanas, ocorreram bém não deixa de ocorrer para a Cidade Medieval,
eventualmente choques mais ou menos violentos tanto em decorrência de sua inserção nos sistemas
entre os interesses burgueses e senhoriais, é ainda complexos de que já tratamos, como devido à sua
299
própria organização como um sistema em si mes- siva’ da cidade, como se sempre, emerge ao lado
mo e como um modo de vida especíco. A cidade, das funções ‘econômica’ e ‘religiosa’ na dialética
desta forma, apresenta múltiplas funções, umas entre a Cidade e o mundo feudal.
voltadas para o seu exterior, outras voltadas para Por outro lado, a ‘função política’ propria-
o seu interior. mente arma-se de duas maneiras. Em primeiro
Por outro lado, é tarefa do próprio cientista lugar, quando perspectivamos a cidade como um
social selecionar, dentro de uma série de fatores, as universo em si mesmo que revela uma organização
funções predominantes que devem ser associadas municipal especíca e formas de sociabilidade que
à compreensão de um sistema tão complexo como lhe são próprias. Teremos ali a política voltada para
a Cidade. Tem sido grande, entre os historiadores, dentro, para a organização da própria sociedade
a tentação de estabelecer teorias explicativas so- e do espaço urbanos. Em segundo lugar, deve-se
bre aspectos da Idade Média evocando o próprio considerar uma função política que ainda uma vez
imaginário trifuncional, ele mesmo reconstruído se volta para fora, mas não propriamente para de-
pelos próprios homens medievais a partir de idéias sempenhar um papel no mundo feudal. A Cidade
já antigas10. Trata-se mais de um padrão de organi- tornar-se-á aqui a Capital de um reino. É pensando
zação de materiais do que de uma necessidade do nesta função que Georges Duby (1967) acrescenta
objeto de estudo. um traço a mais à cidade de Paris:
É talvez neste espírito que, retomando as Paris, cidade do rei, primeira cidade na Europa
três funções indo-européias de Georges Dumézil11, medieval a tornar-se verdadeiramente capital 
Jacques Le Goff (1980) propõe uma avaliação o que Roma desde há muito tempo tinha deixado
trifuncional da Cidade Medieval (LE GOFF, 1992, de ser. Capital não dum império, nem duma cris-
p.34). O historiador francês refere-se explicitamente tandade, mas dum reino, o Reino. A arte urbana
às funções ‘econômica’, ‘religiosa’, e ‘política’. que culmina em Paris nas formas a que chama-
Rigorosamente, a ‘função política’ por ele relacio- mos de góticas aparece como uma arte régia. Os
nada − que aparece representada sicamente pela seus temas principais celebram uma soberania, a
‘fortaleza senhorial’ que domina a cidade − é mais de Cristo e da Virgem. Na Europa das catedrais
arma-se o poder dos reis que se liberta da asxia
um poder que se exerce sobre a cidade, ou que
feudal e se impõe (DUBY, 1978, p.100)
a organiza internamente, do que uma função da
Cidade Medieval na sua inserção em um universo Assim, para celebrar um poder ainda mais
mais amplo (a não ser, é claro, o sempre relevante amplo que o feudal, unem-se as funções política
papel das cidades em uma rede política que, a partir e religiosa na arte das catedrais que, de resto, são
do século XIII, contribui cada vez mais para forta- construídas pela atividade dos laboratores, terceira
lecer o poder monárquico em sua contraposição à função no concerto régio. Conforme podemos ver,
pulverização de poderes feudo-senhoriais). De todo quando se trata das relações especícas entre a
o modo, para o papel de interação com o exterior Cidade e o Feudalismo, não se deve estranhar que,
feudal seria mais adequado enfocar um aspecto mais sobretudo aqui, sobressaiam precisamente aquelas
especíco da ‘política’: a função militar ou ‘defen- funções que sintonizam com o imaginário trifun-
cional da Sociedade Feudal. A cidade termina por
10
Para a compreensão de uma gênese da idéia da trifuncionalidade na Idade incorporar, enfaticamente, cada uma destas três fun-
Média veja-se o estudo de Georges DUBY (1982). Ver também o artigo de
Jacques LE GOFF intitulado “Note sur le societé tripartie, ideologie monar-
ções básicas: a Econômica, a Militar e a Religiosa.
chique et renouveau économique dans la chrétienté du IX au XII siècles” Metaforicamente, poderíamos propor a imagem de
(MANTEUFFEL, T. e GLEYSZTOR, A. 1968. p.63-71.
11
Segundo DUMÈZIL, o imaginário indo-europeu apresenta um vasto reper-
que a cidade ‘trabalha’, ‘guerreia’ e ‘ora’.
tório de símbolos e imagens distribuídos através de três funções primordiais
(“mediação sagrada, ímpeto guerreiro e fecundidade laboriosa”) – mesmo
que estes elementos tenham se revestido de formas diferenciadas consoante
as sociedades e as épocas. Para uma aproximação das idéias de Dumèzil,
considere-se as obras Essai de philologie comparative indo-européenne
(1947), e L’idéologie des trois functions dans les épopées des peuples indo-
européens (1968).
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