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O ato de admirar-se (tò thaumázein) como condição

para a busca do conhecimento

Sérgio Oliveira

Há um verbo grego com que se nomeia a condição necessária a toda reflexão


filosófica: tò thaumázein. Refere-se este termo à ação de se deixar espantar pelo que
nossa forma instrumental de lidar com a vida já trivializou. Quer-se com ele fazer
referência a uma atitude vital para o pensamento: a de se voltar a ver o nosso mundo
com o frescor de quem desperta para o reconhecimento de sua estranheza ou com a
gravidade de alguém que está diante de algo que assombra. Entrar no domínio do
conhecimento é saber se manter como um eterno estrangeiro na sua própria terra. Você
já reparou como é nosso olhar quando visitamos um lugar distante? Um olhar de
assombro, que se volta maravilhado para tudo o quanto se nos mostra. Pois bem,
deveríamos nos manter assim no domínio do conhecimento: continuamente curiosos.
Aqui, não falamos de uma curiosidade pueril e passageira, mas de uma inquietação
cultivada. Seria possível uma nova pedagogia do espanto, uma pedagogia do thaûma,
que se contrapusesse à experiência de codificação do mundo que nossos olhares
treinados e nossos hábitos mortificadores justificam a todo o momento?

Hoje, como jovens e adultos socializados nas regras de um mundo burocrático e


imediatista e vigiados continuamente para nos mostrarmos eficientes na conquista de
metas já traçadas, este espanto, que se traduz pela curiosidade filosófica, soa deslocado:
perda de tempo ou coisa de quem não tem algo mais importante para fazer. A vida já foi
loteada e a nova ordem histericamente nos obriga a lutarmos por um espaço num
mercado cada vez mais agressivo. A filosofia insiste: o conhecimento pode ser
entendido como mais do que o domínio de uma técnica que nada tem a ver com nossas
vidas.

O ponto incontornável é o de que tanto o cientista quanto o filósofo necessitam


cultivar esse estado de abertura intelectual expresso no espanto diante do mundo. (Na
verdade, todos nós precisamos desse cultivo: afinal de contas, viver em um mundo sem
conhecer tal atitude é nele estar de maneira mutilada, é experimentá-lo de maneira
particularmente empobrecida.) Com a figura do cientista, esta curiosidade é bem vista
em nossa cultura. Uma vez que este consegue gerar, com seu saber, uma forma de
domínio sobre o mundo, a curiosidade que exprime por meio dos problemas que
formula consegue ainda se ver prestigiada.

Em nosso tempo, a razão operatória, aquela que submete o real aos propósitos
mais utilitários do homem, é continuamente elogiada. Mas o espanto do filósofo não
serve à técnica. Nem pode ou deve servir à mesma. O filósofo não pode se contentar em
ser um mero funcionário, sob condição de, em o fazendo, deixar de pensar
filosoficamente. Seu pensamento deve incomodar mais do que servir. Lembre-se, aqui,
da descrição de Sócrates, por si mesmo, na Apologia, de Platão, como um mosquito que
perturba a nossa tendência ao sono.

Tamanha a vitória da visão técnica do pensamento, que se tem não só perdido o


contato com esta experiência do espanto filosófico, mas passou-se também, com um
desdém indisfarçável, a dispensar esta forma de estar no mundo. O assombro de que
falamos aqui foi substituído não simplesmente por interesses práticos os mais rasos mas
principalmente por uma visão do mundo inteiramente modelada a partir do progresso da
técnica. É como se a técnica primeiro houvesse se autonomizado (como se ela tivesse se
transformado em algo que existe por si mesma) e depois tivesse passado a gerir nossa
maneira de pensar o mundo. Evidentemente, se nossas vidas se organizarem em torno
da técnica como um fim em si, a experiência humana do mundo como potencialidade de
problematizações soará mesmo um pouco estranha.

No entanto, não precisamos nos mostrar convencidos do esgotamento do sentido


de nosso pensamento em limites tão estreitos. Não necessitamos nos satisfazer com uma
noção de racionalidade tão pobre. Entre outras coisas, a filosofia serve para fazer frente
ao que tomamos como inevitável, serve para ampliar nosso sentido do possível, para
lembrar o caráter aberto da experiência humana. Podemos, como reação a tal
banalização de nosso estar no mundo, desejar saber como viemos a conceber nossas
vidas em termos de valores tão reduzidos. Podemos desejar saber a que forças serve
essa visão de mundo que se esgota na dimensão técnica do pensamento. Isto, é claro,
significará nos espantarmos diante do empobrecimento de nossos imaginários
contemporâneos. Significará retomar o espanto contra aquilo mesmo que não cessa de
tentar diminuí-lo.

Descobriremos, talvez, que a técnica, agora, pode estar sendo instrumentalizada


para consagrar continuamente um modelo de mundo e um modelo de sujeito. Estes
modelos tomam forma numa cultura de valores mercantilistas que, baseada numa
coercitiva moral do consumo de novidades implica um verdadeiro programa de
destruição da memória coletiva, nos alienando de obras de cultura e de tradições inteiras
de pensamento. O gozo com as novidades, a cuja produção contínua a técnica serve,
está nos alienando do próprio compromisso com o passado histórico, o qual não deveria
ser imaginado como dimensão com que deixamos de ter quaisquer laços orgânicos.

Defendemos aqui que o conhecimento de tais obras e tradições precisa ser


entendido e sentido, por todos nós, como necessário. E isto assim o teria de ser, não
porque tal conhecimento possa ajudar em nossas carreiras ou “agreguem valor” à nossa
formação profissional, mas porque é ele que nos permite o envolvimento num processo
de humanização mais amplo e abre caminho para uma contextualização mais elaborada
de nossa situação como seres pensantes.

Refletir sobre uma possível perda do sentimento de espanto por parte de um


homem tiranizado pelo gozo com a técnica e com o imediatismo dos objetivos cultuados
na sociedade de consumo só será possível quando aprendermos a estranhar de novo o
território em que nos encontramos na vida contemporânea.

É importante que se perceba um ponto: aqui não estamos a criticar a existência


ou a relevância da técnica, mas a sua elevação à condição de uma verdadeira visão de
mundo. Se, por um lado, é mesmo verdade que a evolução da técnica nos leva a um
crescente progresso na expansão de muitas de nossas potencialidades, por outro, não
deve ser tomada como verdadeira a afirmação de que, quando nos referimos ao
progresso técnico, estamos nos referindo a um concomitante aperfeiçoamento da
capacidade humana de pensar. É isto exatamente que desejamos sublinhar. À medida
que a racionalidade técnica se tornar sinônima do próprio ato humano de pensar, sua
única forma relevante de expressão, já teremos esquecido o quão ampla são as
possibilidades da reflexão.

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