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1-Introdução
O presente artigo, dirigido a uma problemática histórica, apóia-se, ele mesmo,
em certas condições históricas de existência. Dentre elas, um longo trajeto docente como
professora, em cursos de graduação em Psicologia, da disciplina intitulada Dinâmica de
Grupo e Relações Humanas (DGRH).
O título oficial esboça o problema com que nos defrontamos. Sugere a existência
de um objeto dado – “o” grupo – , que possuiria movimentos previamente identificáveis
por parte de um saber, presumidamente científico – uma “dinâmica”–, aos quais se
agregariam, na forma de uma enigmática conjunção “e”, aparentemente óbvias
“relações” ditas “humanas” – levando a pensar que o antes abstrato “grupo” e sua nobre
“dinâmica” nada mais seriam, talvez, do que nossas tão conhecidas, embora
freqüentemente julgadas assustadoras, “relações entre homens” ( e mulheres, para ser
politicamente correta...).
Apressados estudiosos resolveriam facilmente esta questão mediante um simples
argumento: o título oficial identifica as práticas grupais a um modelo teórico específico –
as formulações de Kurt Lewin na década de 40, no contexto americano – , acoplado à
valorização emprestada aos grupos por formas de gestão empresarial que criticam o
“esquecimento” taylorista do “fator humano”– a “teoria das relações humanas” surgida,
ainda no contexto americano, nos anos 20. Discussão banal, portanto, a ser solucionado
com alguns rápidos esclarecimentos epistemológicos, teóricos, históricos... Caso,
preocupada, acrescentasse eu a inevitável presença, entre os alunos, nos primeiros
encontros do curso, de uma polêmica relativa à necessidade (ou não) de “vivências” para
“aprender a trabalhar com grupos” – sempre acompanhada, até entre os defensores, de
vagos temores quanto a “exposições pessoais”, “revelações da intimidade”,
“transformações em terapêutica” e “capacidade do coordenador (pressuposto como sendo
o professor) para segurar as coisas” – , nossos apressados estudiosos tampouco
identificariam aí conflitiva digna de reflexões maiores. Ora, diriam eles, “segundo a
melhor tradição lewiniana, aprende-se sobre os grupos...trabalhando com e em grupos! E,
caso não se seja um lewiniano estrito, basta desviar o curso para a teoria (e as técnicas)
de nosso agrado – as ementas das disciplinas são, em geral, bastante flexíveis e, afinal, a
conhecida DGRH costuma ser ministrada ao final do curso de Psicologia, quando os
alunos, já fazendo estágio, compreendem bem certas definições profissionais...”.
Jamais me satisfiz com estas respostas, embora não precisasse de interlocutores
concretos para sugeri-las; sempre as pude formular pinçando-as, aqui e ali, entre os
enunciados que hegemonicamente povoam nosso campo profissional, docente e teórico.
No entanto, aí está efetivamente o problema do professor de DGRH: nos enunciados –
esquemas discursivos – e diagramas – esquemas práticos ou não-discursivos –
paradigmáticos em nosso campo.
*
Professora do Departamento de Psicologia Social e Institucional da UERJ. Coordenadora do projeto História do
grupalismo-institucionalismo no Brasil. Doutoranda do programa de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento
Humano da USP.
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dos mesmos4. Arrastada pela segunda destas vias, apostei na historicização, recurso, em
princípio, de pouca originalidade: quase todos(as) os(as) programas, ementas, manuais e
coletâneas sobre o grupalismo incorporam ítens, artigos ou capítulos que se afirmam
históricos. Não obstante, se alguma singularidade marca minha tentativa, é a de
complexificar esta abordagem, analisando criticamente algumas histórias das práticas
grupais disponíveis, a fim de apreender, inclusive nelas, os limites – teoricistas,
tecnicistas-tecnocráticos, profissionalistas, reificadores, idealistas, legitimadores de
dominações instituídas – apontados no parágrafo anterior como típicos quanto à situação
do grupalismo na formação de psicólogos.
Se, como afirma Foucault (1980:75), “ficciona-se uma história partindo de uma
realidade política que a torna verdadeira”, é a experiência de determinado percurso
enquanto grupalista e docente – aquele voltado à ruptura de limites quanto a nosso
duradouro encargo social de “empresários morais”5 – o que me permite a análise crítica
das histórias das práticas grupais que nos são geralmente apresentadas. Porém a
afirmação de Foucault prossegue: “ficciona-se uma política que ainda não existe partindo
de uma verdade histórica”. Este artigo, portanto, pretende contribuir para a atualização
de uma política que ainda não existe: uma formação de psicólogos, no que se refere às
práticas grupais, apta a instaurar uma suspeita refletida quanto à aparente simplicidade
das histórias que nos contam. Pode parecer pouca coisa, em princípio. Mas talvez seja
decisivo se pretendemos abandonar nossos mortíferos especialismos e começar a
construir saberes e práticas muito especiais: aqueles que possam instaurar modos de
saber, fazer e ser....em favor da diferença e da vida.
4
- FOUCAULT (1984 e 1984a) contrapões duas tradições na filosofia moderna e contemporânea, ambas
entendendo a crítica como uma reflexão sobre limites. A primeira identifica os limites ou condições de
possibilidade de nosso saber e se apresenta, em decorrência do respeito aos mesmos, da renúncia à transgressão,
como filosofia analítica da verdade em geral, tornando-nos autores de uma segura caminhada racional. A
segunda, na qual Foucault se inclui ( e em que nos incluímos), radicaliza a dimensão crítica: indaga acerca do
lugar ocupado, naquilo que nos é dado como obrigatório, necessário e universal, pelo arbitrário, contingente e
singular (portanto, historicamente construído). Faz-nos, deste modo, elementos de um presente – historicamente
instituído – e atores do mesmo – virtualmente instituintes da transgressão de tais constrangimentos, embora sem
garantias transcendentais (originárias ou teleológicas) quanto à apreensão da verdade. Esta última tradição é
denominada “ontologia histórica do presente” ou “ontologia histórica de nós mesmos”.
5
- A expressão se deve ao sociólogo Howard BECKER (1966). Existem outras também deliciosamente terríveis:
“gurdiães da ordem” (COIMBRA, 1995); “moderno poder pastoral” (FOUCAULT, 1983); “fabricantes de
interiores” (BAPTISTA, 1987 ); “psico-tiras” ( movimento da contracultura), etc. Não as citamos por retórica,
mas por reconhecer a radicalidade das análises que a elas conduzem, as quais, lamentavelmente, parecem ainda
tímidas em seus efeitos transformadores sobre a formação (e ação) dos psi. Talvez porque se defrontem com
estratégias de conservação, senão tão rigorosas, certamente muito mais poderosas no cotidiano.
6
- O leitor perceberá que parte da bibliografia a ser analisada não se auto-define como histórica, característica
que poderia invalidar algumas de nossas análises. Todavia, a alternativa ao oferecimento de um histórico costuma
ser a apresentação de um panorama do grupalismo, mais descritivo ou mais analítico. Na medida em que sempre
excedem o aqui-e-agora imediato, incorporando razoáveis espessuras temporais, julgamos justificado atribuir-lhes
dimensões historicizadoras subjacentes e incluí-los como objetos de reflexão.
7
- Podemos citar, a princípio, os seguintes trabalhos: SAIDÓN,O. et allii - Práticas grupais; ANZIEU,D. e
MARTIN,J.-Y. - La dinámica de los grupos pequeños; AMADO,G. e GUITTET,A. - A dinâmica da comunicação
nos grupos; PY,L.A. et allii - Grupo sobre grupo; LUCHINS,A.S. - Psicoterapia de grupo; OSÓRIO,L.C.(org). -
Grupoterapia hoje. Estão desigualmente marcados pelos aspectos a serem destacados no texto; eventuais
diferenças serão assinaladas.
4
tempo (1)
(2)
Descendências dos
antecedentes TELOS
ORIGEM identificados ou
a partir do FINALIDADE
presente naturalizado
(3)
8
- Hagiografia: biografia de santos; escritos acerca dos santos.
5
desconsiderando as relações entre produção de conhecimentos e práticas sociais. A este respeito, pode-se consultar
CANGUILHEM ( 1972 ) e FOUCAULT (1996 )
11
- Movimento iniciado na França, nos anos 60, originalmente nos campos pedagógico, sociológico e
psicossociológico, mas logo estendido à análise de todas as instituições em jogo nos processos sociais, incluindo-
se aí a epistemologia, os modos de comunicação científica, a escritura científico-acadêmica, etc. Da primeira
geração da Análise Institucional Socioanalítica fazem parte G.Lapassade e R.Lourau, cujo artigo A educação
libertária consta deste volume.
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- Bem se vê por esta observação que as duas características analisadas em separado – especialismo acrítico e
teoricismo hipertrofiado – mantêm forte interdependência. Cada uma delas chega a funcionar enquanto condição
para a existência da outra. Sua combinação, praticamente inevitável, redunda em tecnicismo ( ou tecnocratismo!)
triunfante...
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- Supostos básicos: estados afetivos inconscientes e arcaicos que emergem, por combinação instantânea e
involuntária, quando indivíduos são reunidos em um grupo.
14
- Em síntese, são os seguintes os argumentos (inconscientes) subjacentes à ação dos supostos básicos.
Dependência: o grupo está reunido para que alguém, de quem se depende de forma absoluta, forneça a satisfação
de necessidades e desejos. Ataque e fuga: há um inimigo contra o qual as únicas defesas posíveis são a destruição
(ataque) ou a evitação (fuga). Acasalamento ou messianismo: um fato futuro, ou um ser ainda não nascido,
resolverá os problemas grupais, insolúveis no presente.
15
- Trata-se aqui do estatuto de verdade de qualquer proposição assertiva, mesmo que tão simples quanto "o céu é
azul". Se A dirige a B tal afirmação, a questão a ser colocada não é simplesmente a de perguntar se a proposição é
verdadeira ou falsa. O que A faz não consiste meramente em informar a B sobre o estado do céu; ele faz algo mais
do que simplesmente falar, informar ou constatar. Acompanhando a leitura que Foucault faz de AUSTIN (1990),
LARRAURI (1994) conclui que toda proposição, inclusive as aparentemente mais constatativas, possui efeitos
performativos, ou melhor, faz ver, fazer, dizer e ser de certo modo, pondo em cena um jogo de verdade.
7
a Análise Institucional na França jamais foi “técnica de grupo”, pois teve início,
exatamente, ao pôr em cena a dimensão institucional até então não analisada da
psicossociologia, etc... etc... nada disso parece ser tão importante, afinal, para a nossa
formação enquanto grupalistas (menos ainda, suponho, enquanto psicólogos!).
Por consideramos, ao contrário, que tudo isto, ou predominantemente isto, cobra
a maior importância, é que a seguir nos dedicaremos a analisar algumas agradáveis
exceções, em ruptura, ao menos parcial, com as características de especialismo acrítico e
teoricismo triunfante que até aqui vimos examinando.
Marcuse, Fanon, etc. Independentemente da seleção efetuada, com a qual se pode ou não
concordar inteiramente – principalmente nestes tempos, os nossos, tão pós-marxistas ( ou
anti-marxistas!) – , os argumentos de Bauleo fazem emergir novas figurações para a
verdade: “Através de uma recolocação histórica a partir da demanda e da oferta 25,
observamos claramente as vicissitudes sofridas pela Psicologia Social e nos aparecem
duas linhas. Podemos hoje afirmar que há uma Psicologia Social oficial e
institucionalizada e outra que sofreu todos os destroçamentos impostos pela ideologia
através de sua desaparição, sua depredação, sua desvalorização ou simplesmente pela
acusação de ‘não-científica’.”. (BAULEO, 1977: 31) Apoiada neste trabalho, Fernández
(1992: 49) enfatiza o espaço ético-político ( em necessário acréscimo ao teórico-técnico)
que se descortina quando são incorporadas, à formação dos grupalistas, as reflexões de
que os grupos foram objeto a partir do plano político ( da “Psicologia Social não-
oficial”, no dizer de Bauleo): debates sobre a capacidade autogestiva, a eficácia
comparada de estímulos morais e materiais, os valores diferenciais da organização e do
espontaneísmo, o papel liberador ou subjugador das vanguardas e, de forma
generalizada, acerca da contraposição entre gestão/produção coletiva e
manipulação/sugestão de coletivos.
Finalmente, vale ressaltar a relação estabelecida por Barros entre modo-grupo e
escritura. Afirma a autora que embora os grupos possam ser formas de resistência a
outros modos – individualizantes – , os quais recusam a processualidade e a
transformação, o mero ato de sobre eles escrever ou de os utilizar tecnicamente nada
garante no que toca à invenção de vias singulares de existência: o ato de tomá-los como
objetos-já-dados aos quais algo acontece, ou melhor, como entidades a-históricas
originárias que, elas mesmas, não acontecem 26 – porque já estão postas desde o início –
redunda em idêntica recusa do devir. Sendo assim, ao escrever sobre os grupos, Barros
conclui pela impossibilidade de recorrer a uma entrada única: fazê-lo seria tomá-los
como objetos já constituídos sobre os quais meramente se aplicariam teorias. A este
respeito, comenta: “Em minhas andanças pelos grupos (...) havia um excesso que não se
encaixava nas postulações existentes. Também na escrita há muito mais do que a
comunicação de idéias, hipóteses e conclusões. (...) A escrita tem também várias entradas
(...) passa pelas forças, sempre em contato com outras forças (...) é pensar pela diferença,
(...) sempre múltipla.”(BARROS, 1994: 6) (grifos nossos)
Neste sentido, tomando modo-grupo e escritura enquanto marcados pelo excesso,
a diferença e o múltiplo, constrói-se um texto desejavelmente descontínuo, com
heterogeneidade de entradas. Na primeira delas se elabora uma genealogia, de inspiração
nietzscheano-foucaultiana, relativa à proveniência/emergência de três modos de
subjetivação: modo-indivíduo ( séculos XVII-XVIII) , modo-sociedade (séculos XVIII-
XIX) e modo-grupo (séculos XIX-XX) – este último com a tarefa de apaziguar as
diferenças entre os anteriores e, mais ainda, de “delimitar territórios, incluindo o seu
próprio (ibidem: 10). Neste processo, o objeto grupo ganha as características de seus
antecessores – as formas do um e do todo (o “indivíduo” lhe garante a idéia de indiviso,
25
- Utilizando-se dos conceitos de demanda e oferta, Bauleo politiza o tema da formação de psicólogos sociais ( e
grupalistas) , relacionando-o ao espaço da leitura: à demanda de formação responde-se dominantemente com uma
oferta bibliográfica circunscrita que a institucionaliza, excluindo outras virtualidades e transformando a demanda
em encomenda oficial e do oficial.
26
- Recordemos o esquema com o qual ilustramos o especialismo acrítico de alguns historiadores das práticas
grupais: ali, se chamarmos “x” a grupalidade colocada como origem, poderemos dizer que “algo acontece a x, mas
o próprio x não acontece”. Logo, x está colocado fora da história.
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particular; a “sociedade” a de todo, universal 27). Esta é uma das principais teses
apresentadas: a de que quando tal processo é naturalizado – tomando a forma “se assim
é, assim deve ser...”–, o objeto grupo passa a obedecer à mesma lógica totalizadora e
identitária dos antecedentes, permanecendo efeito do modo de produção de subjetividade
individualizante28.
O estudo de Barros realiza uma crítica em ato das histórias das práticas grupais
marcadas pelo especialismo acrítico, isto é, pelo desconhecimento (ativo) das condições
de existência de seu objeto – o grupo um-todo. Trazendo-as à cena, cria-se a
possibilidade de análise dos diversos saberes, técnicas e movimentos grupalistas
enquanto instituições, ou melhor, fixações, em formas, das forças instituintes29. Isto se
faz através de outra das entradas do texto, em que se especificam “linhas” e “diagramas”:
vão surgindo as mais variadas formas de teorização e intervenção – Lewin, Mayo,
Moreno, Bion, Anzieu, Kaës, Pichon Rivière, Análise Institucional, etc. –, apresentadas
sem pretensões de neutralidade ou assepsia, pois a dimensão ético-estético-política dos
modos de subjetivação por elas instaurados é critério imanente e onipresente de
apreciação.
Mesmo através de apresentações sintéticas, os escritos expostos nesta seção fazem
suspeitar que o escape às flechas envenenadas do especialismo acrítico quanto aos
históricos do grupalismo demanda um trabalho30 simultâneo...de ruptura com o
especialismo psi ( igualmente acrítico, decerto!). As presenças, nas exceções analisadas,
das abordagens históricas descontinuístas31 e de determinadas filosofias (enfáticas
quanto às positividades, a diferença, o múltiplo, as gêneses heteróclitas, os devires); em
síntese, de saberes transdisciplinares/transversalizantes32 , sugere que se nosso leitor não
deve, como se via tentado a princípio, abandonar toda a literatura psicossociológica,
tampouco deve, pois tal atitude teria efeitos provavelmente mais desastrosos, restringir-
se a ela. Textos de psis como Baremblitt, Bauleo e Barros convidam-nos a ler Marx, os
anarquistas e libertários, antropólogos e historiadores diversos ( nossos ou de outras
plagas), Nietzsche, Deleuze, os analistas institucionais, Guattari, Castoriadis e
pensadores políticos, na qualidade de ferramentas fundamentais para nossa formação (ou
trans-formação), caso estejamos empenhados em ser algo distinto de meros
consumidores em um mercado de bens (“grupais”, que sejam...) de salvação. Talvez
Ewald (1991: 90) o tenha formulado com a precisão que desejaríamos: “Você quer fazer
psicologia? (...) aprenda história (...), espolie a biblioteca do arqueólogo, do etnólogo, do
economista, empanturre-se de literatura e de arte, estão aí as disciplinas do desejo...”.
27
- Pode-se conhecer, em síntese, a tese que ora apresentamos, consultando BARROS, 1994a.
28
- Assim como COSTA (op.cit.), Barros insiste em frisar que não podemos apreender os grupos como
antecedentes às práticas que os constituem. Diferentemente daquele, no entanto, aplica o mesmo raciocínio a
indivíduo e sociedade, evitando naturalizações impensadas.
29
- Utilizamos aqui uma síntese da definição deleuziana de instituições: “...não são fontes ou essências, e não têm
essência ou interioridade. São práticas, mecanismos operatórios que não explicam o poder, já que supõem as
relações e se contentam em fixá-las sob uma função reprodutora e não produtora”. (DELEUZE, 1988: 83)
30
- Por trabalho entendemos “aquilo que é suscetível de introduzir uma diferença significativa no campo do
saber, ao custo de um certo esforço para o autor e o leitor, e com a eventual recompensa de um certo prazer, quer
dizer, de um acesso a uma outra imagem da verdade “. (FOUCAULT, WAHL e VEYNE – apresentação da
coleção Des Travaux, Editora Seuil)
31
- Aquelas que buscam, no tempo, os cortes, as invenções, os começos, os acontecimentos que promovem
inversões de forças (presentes em alguns marxistas, na Nova História, na obra de Michel Foucault).
32
- Saberes que não se contentam com a obviedade dos campos instituídos e, na criação de singularidades quanto
ao conhecer/agir, efetuam simultaneamente a análise histórico-crítica das compartimentalizações existentes.
12
43
- Embora a categoria “corte” ou “ruptura epistemológica” seja própria à epistemologia descontinuísta, ao usar
tal expressão tomamos liberdades de sentido. Em função do internalismo normativo, todo enfoque epistemológico,
por mais histórico que ele próprio se afirme, porta uma espécie de arma de corte desenraizante.
44
- Por esta expressão aponta-se a regularidades próprias dos dizeres e fazeres de determinado momento que,
conquanto não instaladas em qualquer plenitude da Razão – sendo, ao contrário, casuais e bélicas –, instauram,
contingentemente, jurisdições e normatividades.
45
- Foucault (1979 : 172 ) aborda este problema de forma extremamente direta: "As questões a colocar são: que
tipo de saber vocês querem desqualificar no momento em que vocês dizem "é uma ciência"? (...) Qual vanguarda
teórico-política vocês querem entronizar para separá-la de todas as numerosas circulantes e descontínuas formas
de saber?"
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em seus deslocamentos, cria os vazios a serem atualizados pelos demais 46. Mas tudo isto
é do real social, pois não se lança mão de transcendências glorificadas como infra-
estrutura ou primeiro motor. Isso significa correr o risco de engendrar o rosto histórico
de qualquer domínio de saber como “prática em relação a outras práticas”, sem
privilegiar a priori nenhuma delas, assinalando eventuais continuidades e
descontinuidades – conceituais, de modo de intervenção e de produção de subjetividade –
quanto a outros rostos históricos distintos. Significa tentar ser historiador materialista,
ao invés de epistemólogo-juiz ou messias dos povos. É por este motivo que assim como
Castel pode assinalar continuidades entre psicanálise e “complexo alternativo”, Coimbra
é capaz de visualizar descontinuidades entre gerações de argentinos. Tais continuidades e
descontinuidades são bem pouco epistemológico-normativas; tampoco apelam para
seguros caminhos de revelação/revolução. Falam de conservações e/ou transformações
em regimes de verdade, prática, subjetivação e, por isso, do que fomos (ou ainda somos);
de nosso presente, ou de nós mesmos, enquanto campos atuais (e virtuais) de experiência
(ou transgressão) possível.
4- Da tipologia às cartografias
Dedicar-nos-emos, a partir de agora, à tarefa de estabelecer uma tipologia dos
panoramas e históricos mais difundidos. Adotando este procedimento, incorporamos uma
estratégia sugerida por Feyerabend (1977: 44): proceder como um “agente secreto” que
participa do jogo da Razão para solapar-lhe o jogo. Melhor dizendo, em nossa proposta
de classificação estará em cena menos uma necessidade representativa fundada em
ordem e medida do que um esforço de elucidação das conseqüências implicadas no ato
de partilhar cada um dos caminhos. Na impossibilidade – assumida, e inclusive desejada
– de realizar uma aproximação meramente descritiva, o leitor se verá permanentemente
instado a distinguir entre o que é próprio a cada enfoque abordado e o que advém da
análise do mesmo.
Tomando por objeto de investigação as linhagens argumentativas utilizadas,
podem-se discernir quatro tipos principais de históricos e/ou panoramas: (1) cronológicos
ou geográfico-cronológicos; (2) teórico-reconstrutivos; (3) modelístico-reconstrutivos;
(4) sócio-institucionais.
4.1- Cronológicos ou geográfico-cronológicos
Estamos, neste caso, diante da “história oficial” da psicossociologia: aquela que
nos brinda com nomes e datas encadeados, em uma espécie de jornalismo onisciente, a
noticiar “fatos” grupalistas de variada dimensão – de manchetes de primeira página a
quase inapreensíveis notas escondidas em anúncios classificados; de simplórios eventos
regionais a graves acontecimentos de repercussão mundial.
Um primeiro problema assedia este tipo de formação discursiva: onde, ou
quando, começar o relato? Seria em pleno séc. XIX, adotando o libertário utopista
Fourier como fundador de todo o imaginário da microssociologia; ao seu final, tendo por
marco as incursões de Le Bon na Psychologie des foules47; ou, recuando no tempo, nos
espetáculos oitocentistas de Mesmer em torno do magnetismo animal? Podemos também
iniciar nossa exposição de “precursores” adentrando o séc. XX. Porque não evidenciá-los
46
- A comparação do processo histórico com os movimentos de um caleidoscópio se deve a VEYNE (1982 ).
47
- Quanto à relação entre os textos sobre a psicologia das multidões publicados na França ao final do século XIX
e a situação política da época (Comuna de Paris, em especial), ver COCHARD (1990). Para uma comparação entre
as abordagens de Le Bon, Tarde e Freud do fenômeno das massas, consultar MOSCOVICI (1993)
16
em 1905, com as ações do antes obscuro Pratt; nas décadas de 30 e 40, com a criação de
sociedades de grupo e cunhagem da expressão “psicoterapia de grupo”; em meados dos
anos 20, quando as ações grupais são, nos EUA, incorporadas à gestão das empresas?...
Por mais que variem as soluções segundo a composição da caixa de ferramentas do
compilador, uma forma geral costuma ver-se afirmada: a do culto a espécies de heróis,
santos e/ou patriarcas. Neste sentido, é quase onipresente a divisão do percurso
histórico em dois períodos seqüenciados: o dos “pioneiros” ( até a década de 30) –
começando a desbravar sendas aparentemente inexploradas – e o dos “continuadores” –
já apoiados em uma institucionalização propiciadora de monopólios de legitimidade.
Examinemos circunstâncias e personagens desta aventura48.
No período dos pioneiros reluz, como inúmeras vezes assinalamos, o nome de
J.H.Pratt49. Médico de um dispensário para tuberculosos na cidade de Boston, introduz o
sistema apelidado de “classes coletivas”, a fim de acelerar a recuperação dos enfermos.
Estas classes ou sessões, freqüentadas por mais de 50 pacientes50, consistem em uma
breve conferência do terapeuta sobre higiene e cuidados a serem tomados no tratamento,
seguida de perguntas e debates. À medida que os encontros se sucedem, os doentes mais
interessados e/ou que melhor obedeçam ao regime de vida sugerido passam a ocupar as
primeiras fileiras da sala, aproximando-se do líder (médico, mas igualmente mestre e
mentor...). Os bons resultados relatados por Pratt quanto ao abreviamento do processo de
cura fizeram com que seu procedimento fosse adotado como modelo em algumas outras
ações de saúde pública. Segundo Grinberg, Langer e Rodrigué (1976: 31), “o mérito de
Pratt foi o de utilizar, de forma sistemática e deliberada, as emoções coletivas, em busca
de uma finalidade terapêutica (...). O método estimula a identificação do paciente com o
médico. O sistema de promoções, que recompensa o “bom paciente”, aproximando-o do
terapeuta, ilustra graficamente tal propósito”.
Luchins (1970: 30-31), por seu turno, inclui as estratégias de Pratt no conjunto de
“métodos orientados para a palestra” e, em seqüência, menciona os nomes de
L.C.Marsch e E.W. Lazell. Enquanto Pratt atuava com pacientes orgânicos, Marsch, no
Kings Park State Hospital de Nova York, tinha a seu cargo sujeitos rotulados como
doentes mentais. Seus procedimentos, datados do fim dos anos 20, compunham-se de
aulas (sobre psicopatologia, ajustamento à vida hospitalar, crescimento, problemas de
religião e filosofia, assuntos de interesse geral, etc.), canto conjunto, recitação, orações,
discussão em grupo, dança, etc...procurando envolver os pacientes tanto verticalmente
(com o terapeuta, a disciplina hospitalar, o Senhor...) como horizontalmente (com os
demais pacientes e outros membros da comunidade). Uma de suas frases, reproduzida
por Camara (1987: 23), sintetiza concepção e método: “Pelo grupo-multidão eles foram
adoecidos; pelo grupo-multidão devem ser curados”. Já Lazell, no St. Elizabeth’s
Hospital, proferia palestras semanais para pacientes diagnosticados como
esquizofrênicos. A princípio, durante os anos 20, versavam sobre psicopatologia e
desenvolvimento psicossexual segundo a perspectiva freudiana, sendo complementadas
48
- Tomamos o termo em sua polissemia: aventura conota simultaneamente “o que advém” e “o que se inventa”.
49
- Confessamos desconhecer o motivo pelo qual a maior parte da bibliografia elege Pratt como “autor
originário”. Influência dos livros americanos? Prestígio médico? Situação epidemiológica da tuberculose no início
do século? De preciso, sabemos apenas que Pratt publicou imediatamente seus resultados, em artigos datados de
1906 ( John Hopkins Hospital Bulletin) e 1907 (Journal of the American Medical Association).
50
- Aqui os números oscilam bastante, exibindo o caráter necessariamente ficcional dos históricos do grupalismo.
GRINBERG, LANGER e RODRIGUÉ (1976) – referencial que utilizamos – falam em mais de 50 pacientes;
LUCHINS (1970) reporta de 14 a 40; FERNÁNDEZ (1992) indica oscilações entre 30 e 100, segundo o autor
consultado. O único acordo é que se trata de grupos amplos, cujos participantes podem variar de um encontro para
outro.
17
por leituras de obras escolhidas. Mais tarde, ao início da década de 30, o ponto de vista
junguiano tomou o lugar de Freud nas preleções, que passaram a ter por acompanhantes
metodológicos, em adição às leituras, terapia ocupacional, vocacional e exercícios
físicos.
Na história oficial, são esses os desbravadores, conquistadores do Novo Mundo,
da Terra Prometida....Pouca coisa além de tal heroísmo costuma ser posta em destaque.
No entanto, talvez valesse a pena ressaltar certos aspectos singulares presentes em Pratt,
Marsch e Lazell: a disponibilidade para intervir em grupos amplos e de composição
mutante (circunstância que se verá imensamente problematizada após o acirramento do
processo de institucionalização); a produção e/ou reforçamento institucional da
idealização da figura do terapeuta (médico ou psiquiatra), que assume nítidos contornos
religiosos e/ou pedagógicos51; a presença de alguma liberalização nas relações com os
enfermos mentais, tanto em termos de ambiente terapêutico (inclusão de ex-pacientes,
familiares, membros da comunidade) como de recursos (palestras, aulas, dança, canto,
música, leitura, ginástica, etc.) 52. Ao deixar de lado estas nuances, os históricos
cronológicos exibem seu caráter paradoxal: ao mesmo tempo em que legitimam o mais
moderno como desdobramento do mais antigo, obscurecem, quanto a este, tudo aquilo
que nos poderia levar a estranhar o moderno...
O “elo perdido” entre os pioneiros e os continuadores, neste curioso continuísmo,
é geralmente localizado na trajetória de J.L.Moreno. Esta controvertida figura, ainda
jovem, em Viena, envolvera-se com variados trabalhos sociais e comunitários: entre
1908 e 1913, reunindo em grupo as crianças nos jardins Augarten, fundara o “reino das
crianças”; de 1915 a 1917, ocupara-se de um campo de refugiados de guerra tiroleses;
aproximadamente na mesma época, ajudara as prostitutas do bairro de Spittelberg a
fundar um clube autogestionário para assistência mútua. Após a formatura em medicina,
ocorrida em 1917, Moreno criou o teatro de improviso53, praticado sem texto prévio e
com a participação ativa dos espectadores. Conta a história (ou a lenda) que o acaso fez
deste teatro espontâneo um teatro terapêutico (ou Psicodrama): uma das atrizes,
chamada Barbara, “desempenhava com muita naturalidade o papel de ingênua, enquanto
na vida particular era uma megera. Moreno, que ouvira as confidências do noivo de
Barbara, perguntou à moça se não gostaria de substituir, em cena, seu papel habitual por
um oposto, totalmente vulgar e cínico; ela interpretou as situações num estilo
completamente novo com uma agressividade manifesta. E seu comportamento particular
mudou; as cenas que fazia com o noivo perderam a intensidade, seja porque as
interrompia, seja porque se punha a rir no momento em que ia dar início a elas: não
51
- Pastor antes de se tornar psiquiatra, Marsch dizia: “O doente mental não deve ser considerado como um
paciente, mas sim como um estudante que fracassou no grande objetivo da civilização” (apud CAMARA, 1987:
23). Observe-se a semelhança com o paradigma do tratamento moral dos primeiros alienistas, com ênfase análoga
nos “males da civilização”.
52
- As Ligas de Higiene Mental se desenvolveram nos EUA desde a primeira década deste século, denunciando o
papel iatrogênico do meio asilar e inspirando projetos de reorganização da assistência. Clifford Beers – um ex-
paciente psiquiátrico – e Adolf Meyer – diretor do Pathological Institute de Nova York – constituem, em 1909, o
Comitê Nacional de Higiene Mental, com a finalidade de promover a saúde mental com o auxílio dos modernos
saberes psi. Por conseguinte, por volta dos anos 20 já estão assentadas as bases para uma clínica psiquiátrico-
psicanalítica preocupada com uma abordagem dinâmica dos conflitos e questionadora do abismo absoluto entre
normal e patológico (embora sem jamais colocar a instituição psiquiatria em questão)
53
- A eventual relação entre o curso de medicina e o teatro de improviso – acontecimentos narrados em seqüência
na bibliografia historiográfica – permanece totalmente obscura. Tratar-se-á simplesmente de uma tentativa de dar
credibilidade universitária às práticas de Moreno? Ou, o que nos parece uma hipótese plausível, embora
brincalhona, se estará propondo uma continuidade entre os rituais – tão teatrais! – do ensino médico e seu
percurso?
18
sentia mais estímulo para isso. Inversamente, a vida agia sobre o teatro (...) Barbara
desempenhava seu próprio eu; o noivo entrou no jogo e os dois começaram a dar ao
público o espetáculo de suas vidas, (...), operando assim uma curiosa troca entre o real e
o imaginário.” (PONTALIS, 1972:179).
A partir de 1925, Moreno instala-se nos EUA. Após algum trabalho com o teatro
de improviso no Carnegie Hall, inicia a passagem do pioneirismo à institucionalização:
no Congresso da Associação Americana de Psiquiatria (1932), formula o conceito de
psicoterapia de grupo; no mesmo ano, leva a termo uma investigação no Instituto
Hudson, estabelecimento destinado a jovens delinqüentes. Havendo observado, ainda em
Viena, que a adaptação de pessoas exiladas tornava-se mais fácil quando lhes era
facultado agrupar-se segundo as próprias escolhas, sistematiza-as através do teste
sociométrico, que permite construir o Sociograma – espécie de foto sociológica de um
grupo num momento determinado. Apoiado neste procedimento, Moreno reorganiza os
pavilhões do Instituto, buscando facilitar a inserção dos internos. Em 1936 constrói o
primeiro teatro terapêutico em Beacon: alguns atores ali se vêm tratar ou lhe pedem
formação especializada. No ano seguinte, já é professor das Universidades de Columbia
e de Nova York e, em 1941, o Hospital Geral St. Elizabeth está convertido em centro de
formação em psicodrama, técnica onipresente no tratamento dos pacientes. Em 1942
fundam-se o Sociometric and Psychodhramatic Institute e a American Society of Group
Therapy and Psychodhrama (primeira sociedade oficial de grupoterapia). Desde o pós-
guerra, as idéias morenianas passam a ter enorme penetração na Europa e América
Latina: congressos internacionais de psicodramas são realizados em diversos países,
criando-se, paralelamente, sociedades e institutos de formação.
O princípio básico da teorização de Moreno – a espontaneidade –, a ser
desenvolvido no mundo “como cena” em contraposição à conserva cultural , aparece
com clareza em suas confissões de Psicoterapia de grupo e psicodrama: “Aqui se
encontra um homem que apresenta todos os sinais da paranóia e da megalomania, do
exibicionismo e da inadaptação social e que, contudo, pode ser muito bem controlado e
normal, e inclusive mais claramente capaz de criação, exteriorizando completamente
seus sintomas em vez de esforçar-se para restringi-los e resolvê-los.” (apud
SCHÜTZENBERGER e SAURET, 1986: 48)
Em que pese tal percurso, que deveria sugerir a necessidade de ser cuidadoso com
as naturalizações do especialismo e os distanciamentos quanto às práticas sociais –
Moreno começa nas ruas e praças, com habitantes da cidade, praticando o teatro da
espontaneidade –, raros são os autores que, ao apreciar seus trabalhos, estão atentos às
utopias sociais ativas que os animam. As histórias oficiais estão sobretudo preocupadas
em mostrar o papel de Moreno na institucionalização, quer dizer, na apropriação de um
tipo de objeto – a dramatização, em grupo, de relações e conflitos –, sobre o qual se
começa a poder reivindicar um monopólio de legitimidade54 – o dos “psicodramatistas”.
A partir de Moreno, as histórias são obrigadas a se fazerem igualmente
geografias, distinguindo minimamente os percursos estadunidense, europeu e latino-
americano. No contexto norte-americano costuma-se fazer referência aos nomes de P.
Schilder, L. Wender e S. P. Slavson, em acréscimo a uma nova figura-símbolo, Kurt
Lewin.
54
- Esta definição se inspira em GHILHON DE ALBUQUERQUE (1978) e nos ajuda a entender uma
conceituação em que se diferenciam estabelecimentos e instituições. Apelando à mesma se podem, por exemplo,
definir como instituições a medicina (monopólio das relações com o corpo), a escola (monopólio das relações
educativas) e a própria psicossociologia (monopólio das relações... grupais !).
19
56
-Trata-se de um seminário desenvolvido em New Britain (1946), com o objetivo de reforçar a ação local em
favor da legislação que promulgava a igualdade racial quanto ao emprego.
57
- Também chamado grupo de base, de evolução, de sensibilização e grupo centrado sobre o grupo.
58
Consciente das implicações ético-políticas da transformação introduzida no T-Group, Pagès (apud ANZIEU e
MARTIN, 1971: 87) o aparenta aos experimentos sociais dos socialistas utópicos franceses, especialmente Charles
Fourier: "... a pré-história fourierista da psicossociologia experimental oferece ao menos o modelo intencional de
uma auto-experimentação na qual os próprios sujeitos (...) contribuem para sua concepção, estão interessados nos
resultados e constituem, entre si, o aparelho de pesquisa"
21
59
Parece que Bion, ao contrário do comitê de Tavistok, não crê que pratique estritamente psicanálise com seus
grupos. Valeria a pena investigar melhor os determinantes institucionais de sua postura, em especial as
reprimendas que lhe foram, à época, dirigidas por Melanie Klein – influência básica quanto aos supostos básicos,
por sinal...
23
60
- Afirmar o caráter grupal do fantasma evita transformar a priori o grupo em sujeito coletivo, comunidade ou
entidade com fantasias prtóprias. Contudo, como bem assinala Fernández (1992: 122), “a utilização da palavra
‘individual’ junto a ‘fantasma’ parece esvaziar-se de sentido. Se o indivíduo é o sujeito indiviso da consciência, o
termo ‘individual’ deixa de ser pertinente ao campo psicanalítico e, conseqüentemente, às abordagens
psicanalíticas do campo grupal”.
61
- A respeito da diferença entre campo de intervenção e campo de análise e da crítica ao especialismo por ela
facultada, ver RODRIGUES e SOUZA (1992)
24
67
- Ver, a respeito da inquietação desencadeada por pensamentos que instauram a ausência desta possibilidade –
exemplificados por um conto de Borges –, FOUCAULT (1992: prefácio).
26
4.3- Modelístico-reconstrutivos
Ainda na tentativa de dar sentido ao agitado caleidoscópio da história das práticas
grupais, certos autores procuram modelos, paradigmas ou formas gerais que,
subjacentes a variadas teorias, possam reconhecer misturas sem renunciar à
68
- Sobre a comparação entre árvores e rizomas no pensamento e/ou ação, consultar DELEUZE e GUATTARI
(1995).
69
- Quanto à “reversão do platonismo” operada pela análise crítica da distinção entre boas cópias e simulacros,
ver Deleuze (1974: 259-272).
70
- Para uma atraente versão destas misturas, no trabalho grupal com psicóticos, consultar Lancetti (1994).
71
- Fernández (1992: 132-133) denuncia os reducionismos implicados na epistemologia das ciências positivas
em que ainda hoje, predominantemente, se fundamentam as ciências humanas. Esta epistemologia supõe um
objeto autônomo, reprodutível, não contraditório e unívoco, denominado, pela autora objeto discreto. Pensamos
que o adjetivo pode comportar, em acréscimo, o sentido de reservado, prudente, recatado, modesto... Nos
grupalistas que ora abordamos, os grupos são objetos nada discretos também neste segundo sentido. Fazem muito
barulho, são pouco obedientes, questionam os poderosos segredos implicados na separação público/privado e nem
sempre são indubitavelmente terapêuticos – o que poderia constituir sua glória, ao invés de sua perdição...
72
- Percia (1989: 66-68) diferencia duas correntes no grupalismo argentino: a de aplicação e a de ruptura ou
desvio. A primeira exerce o trabalho grupal na forma de psicanálise aplicada, em dois sentidos: saber psicanalítico
dirigido (aplicado) a outra coisa – os grupos – e saber psicanalítico bem comportado, boa psicanálise
(“aplicada”, como se diz de um aluno atento às reivindicações das autoridades).
27
73
- No caso dos A.A. e grupos homólogos, a idealização do terapeuta, característica dos trabalhos de Pratt, é
substituída por uma estimulação da fraternidade, minimizando-se a liderança ( terapias pelo grupo com estrutura
fraternal).
74
- Como antídoto contra esta confusão entre produção grupal de subjetividade e coleção definida por
semelhança, consultar o posfácio de Deleuze a TOURNIER (1985)
28
Sociopsicanálise
Extremismo
Extremismo político-econômico-cultural
biopsicológico Movimentos
Antipsiquiatria
californianos Esquizoanálise
Pedagogia institucional
Análise institucional
4.4 - Sócio-institucionais
Primaríamos pela redundância se voltássemos a expor nesta seção aqueles
autores que têm estado presentes desde a primeira linha deste artigo, na qualidade de
ferramentas críticas. Os escritos de Bauleo, Baremblitt, Barros, Castel, Coimbra e
Fernández, para recordar apenas os referidos com maior freqüência, constituem valiosas
pistas para a elaboração de históricos que, trazendo à luz as condições institucionais de
existência das diferentes práticas grupais, iluminam os modos de pensar/agir/ser que
cada uma delas favorece, admite, tolera, repudia e/ou interdita. Dizemos modestamente
pistas porque os históricos sócio-institucionais são tarefas-descaminho a atualizar
permanentemente, ao invés de memória-tradição a conservar e respeitar. Consistem em
tentativas de elucidação do que pensamos/fazemos/somos enquanto presente,
facultando-nos pensar/fazer/ser diferentemente.
Se esta seção terminasse aqui, contudo, cometeríamos uma injustiça com o
autor, talvez, do primeiro histórico sócio-institucional com efeitos perceptíveis sobre os
grupalistas brasileiros. Refiro-me ao trabalho de Lapassade (1977), cuja publicação
francesa original data de 1966. O texto situa a emergência do “capitalismo de
organização” – trazendo, em seu bojo, os grupos e a psicossociologia – no conjunto do
movimento histórico. Adotando periodização sugerida por Touraine, configura três
etapas da sociedade capitalista: (1) a fase A, na qual, apesar do desenvolvimento do
trabalho parcelado, as organizações operárias ainda se fundam nos antigos ofícios e
predomina a ideologia anarco-sindicalista, com suas reivindicações de gestão direta,
coincide com a sociedade industrial do século XIX ; (2) a fase B, quando se
burocratizam75 tanto as empresas (trabalho mecanizado e aparecimento das teorias da
organização de Taylor e Fayol) como os sindicatos (aos quais se delega poder de
representação), equivale ao surgimento das grandes empresas industriais, a partir do
início do nosso século; (3) a fase C, na qual se modernizam as tecnologias (automação,
eletrônica, petroquímica, etc.) e as formas de gestão (perda da rigidez burocrática e
busca da participação operária, embora sempre controlada), inicia-se com os anos
50/60.
Na fase A, Lapassade enfatiza a emergência das primeiras grandes doutrinas
sociológicas e políticas da nova sociedade, examinando proposições de Fourier,
Proudhon, Saint-Simon, Comte e Marx. Considera o primeiro o “verdadeiro precursor
da psicossociologia (...) e mesmo das técnicas de grupo”, acentuando que o socialista
utópico, em consonância com seu tempo, formula um projeto de experiência sócio-
política – o falanstério76 – no nível em que ela se mostrava, então, possível – o dos
pequenos grupos e micro-organizações sociais. Na sociedade harmônica idealizada por
Fourier, em que pese sempre haver lugar para a satisfação das necessidades, nada é
75
- Por burocracia entende-se a propriedade privada dos meios de gestão e organização.
76
- Falanstério: lugar de vida e trabalho (geralmente agrícola) de comunidades compostas por 1620 pessoas, que
se associam livremente por similitudes e complementariedades de gostos, inscrevendo-se em séries de
trabalhadores. O número de integrantes decorre da teoria das paixões de Fourier: Combinadas de diferentes
maneiras em cada homem segundo suas intensidades, elas resultam em 810 espécies de pessoas matematicamente
possíveis. O falanstério deveria comportar um homem e uma mulher de cada uma dessas espécies.
32
deixado a cargo da improvisação: “Os grupos de base (...) são rigorosamente integrados
num sistema institucional que assegura sua coordenação e suas trocas (...). Já é a
ambição “sociocrática” (...) a Human engeneering, o psicossociólogo-rei.”
(LAPASSADE, 1977:42).
Passando brevemente por Proudhon, que coloca o problema da prioridade do
todo (corpo político) ou da parte (grupos de base), Lapassade chega às correntes
assumidamente tecnocráticas, representadas por Saint-Simon e, principalmente, August
Comte. Nelas identifica as fontes das modernas teorias das organizações, usando como
exemplo proposições do fundador do positivismo: os “sociocratas”, informados pela
sociologia nascente, deveriam educar o proletariado em seus pequenos grupos
espontâneos, de maneira a conduzi-los à participação hierarquizada, cooperação e
reorganização espiritual; com isso se destruiriam, simultaneamente, as perigosas utopias
sociais que “preferem recorrer aos meios políticos quando devem prevalecer os meios
morais” (apud LAPASSADE, 1977:45).
Concluindo a análise da fase A, o texto volta-se para Marx, dentro de cujo
projeto – derrubada da sociedade capitalista – os grupos ocupam lugar ambíguo: por um
lado, valoriza-se a discussão, a palavra pública, a formação da consciência social, a
crítica das ideologias; por outro, não há lugar para uma teoria positiva dos grupos e
organizações, pois o reino da burguesia dissolve quaisquer relações supostamente
humanas, em todas as esferas77; paralelamente, é esse própria dissolução que prepara as
formas futuras – “na história, assim como na natureza, a decomposição é o laboratório
da vida.” (apud LAPASSADE, 1977:46).
Passando-se à fase B, a ênfase recai sobre a burocracia emergente: “a separação
[planejadores e executores, nas empresas; aparelho e base, nas organizações operárias]
está em toda a parte”(ibidem:47). Enquanto no movimento marxista o problema da
burocracia se torna central quanto à organização e ao poder, no interior das ciências
sociais tem início a crítica das burocrracias industriais: “O nascimento da sociologia
industrial pode definir-se (...) como um manifesto anti-burocrático. A mesma
observação é válida para descrever e explicar o nascimento da psicossociologia na
indústria.” (LAPASSADE, 1977:46).
O marco inicial deste processo é situado no trabalho de Elton Mayo, chamado a
intervir, em 1924, pela direção da Western Eletric Company, preocupada com quedas
no rendimento. Durante dois anos, um assistente deste sociólogo acompanha o cotidiano
da produção, a fim de identificar os fatores capazes de influenciá-la. As operárias são
retiradas da oficina e destinadas a um local especialmente escolhido, onde, lançando
mão de procedimentos experimentais, obtêm-se resultados não muito originais: fatores
como a melhoria da iluminação, o aumento salarial e mesmo a introdução de uma pausa
para o café são avaliados como benéficos. No entanto, quando do retorno às condições
iniciais, algo de surpreendente está presente nos resultados: o rendimento se mantém
superior ao vigente antes das modificações, sugerindo a presença de um fator até ali não
identificado, logo hipotetizado como sendo o próprio grupo; ou melhor, as boas
relações informais que persistem mesmo quando retirados os benefícios formais ou
oficiais.
Durante as ações de Mayo, análises mais detalhadas permitiram apontar, no
interior das relações informais, a relevância da constituição de sub-grupos
diferenciados. Remetiam à possibilidade de obter ajudas recíprocas entre operários e
77
- Para Marx, a cooperação, por exemplo, tão enfatizada na empresa moderna, nada mais é que um produto da
divisão capitalista do trabalho e da concentração dos operários nas indústrias.
33
de entre base e aparelho. Nas empresas, a nova burocracia gestionária perde a rigidez:
integra os desviantes, pratica a dinâmica de grupo, busca a participação. Apesar disso,
organograma e sociograma não chegam a coincidir, como desejariam os bem instalados
profetas do fim da história. Escrito em 1966, o texto de Lapassade chama a atenção para
os protestos estudantis – e nós, pós-68, acrescentaríamos os dos operários massificados,
reduzidos ao gesto repetido do trabalho em cadeia –, prevendo que “a revolta não se
transforma necessariamente em adaptação ativa” (ibidem: 56) e que se descortina o
momento de opor, enfim, ao princípio do dirigismo burocrático o da não-diretividade,
ligado ao projeto de autogestão social. São essas as condições de emergência e
penetração, no panorama francês, das idéias de Carl Rogers.
Em 1962 foi difundida na França uma conferência em que este declarava:
"Chego atualmente a acreditar que os únicos conhecimentos capazes de influenciar o
comportamento de um indivíduo são aqueles que ele próprio descobre e dos quais se
apropria" (apud LAPASSADE,1977:57). É fácil detectar a semelhança entre estas
formulações e as desenvolvidas por Lapassade em seu livro A Entrada na Vida,
datado de 1953: ambas expressam confiança no pensamento inacabado e, mesmo, no
pensamento do inacabamento, tão caro aos renovadores pedagógicos inspirados na
educação negativa de Rousseau. Para Lapassade, porém, a aceitação incondicional e a
compreensão empática reclamadas por Rogers põem em jogo bem mais as relações de
poder do que qualquer espécie de bondade natural associada à natureza humana.
Conforme pontua, "a não-diretividade é uma política antes de ser uma psicologia
genética, um método terapêutico ou uma nova concepção da pedagogia" (ibidem: 59).
Rogers, ao contrário, assim como a maioria de seus seguidores, refugia-se em
certo psicologismo, atitude avaliada por Lapassade como forma de “desengajamento”
do homem de ciência, portadora de uma opção política não declarada. Neste último
caso, a não-diretividade individual ou social exime-se de pôr em questão a diretividade
constituinte das sociedades burocráticas. Sendo assim, a autoformação não-diretiva
jamais admite a autogestão da própria formação, contradição somente solucionável com
a reunião do que fora separado: a educação e a política80.
Sem eliminar em princípio a presença do psicossociólogo ou coordenador,
Lapassade adverte que o realmente não diretivo provavelmente seja “aquele que dá a
possibilidade ao grupo de autoformação – e não mais do “grupo de formação”– de
estruturar ele próprio as condições da pedagogia” (ibidem: 61). A partir deste momento,
somos convidados a penetrar nas reflexões relativas à autogestão educativa, exigindo
que se revelem, nos grupos, as instituições – política reprimida por todas as ideologias
psicossociológicas das “relações humanas”. E mais ainda, pois sendo possível, na
perspectiva lapassadeana, a autogestão do conjunto social, “é o desaparecimento do
Estado e sua substituição por uma auto-regulação não burocrática das relações entre os
grupos que constituem uma sociedade” (ibidem: 62).
Muito tempo se passou depois da publicação deste histórico sócio-institucional.
Vieram as reivindicações autogestionárias de maio de 68, a profusão de revoluções
moleculares dos 70, os “anos de inverno” – os 80, na expressão de Guattari – e, ao final
dos mesmos, a queda do muro de Berlim e dos chamados “socialismos reais” – que o
mesmo Guattari há muito incorporara à definição de Capitalismo Mundial Integrado.
Nosso presente, anos 90, faz pensar em pós-fordismo, pós-welfare state, neo-
liberalismo hegemônico. Exigem-se, por conseguinte, sempre novas construções
80
- A influência de Rousseau sobre Lapassade o faz ressaltar como fundamental a última etapa da formação de
Emílio: a experiência política.
35
5 -Conclusões
As proposições que se seguem retomam, de forma sintética, os debates abertos
por este artigo, na intenção de contribuir para alguma ruptura com os modos instituídos
de formação psi (e psicossociológica). Constituem, neste sentido, convites à
experimentação docente, política e vital.
1 - Os históricos e panoramas através dos quais o grupalismo costuma ser
apresentado aos agentes psi caracterizam-se, em sua maioria, pelo especialismo acrítico
e o teoricismo hipertrofiado.
2 - Existem agradáveis exceções a esta paisagem dominante que, tornando
visíveis as condições institucionais de existência das diferentes modalidades de práticas
grupais, abrem campos originais para a análise destas experiências.
3 - Os tipos de históricos existentes (cronológicos, teórico-reconstrutivos,
modelístico-reconstrutivos e sócio-institucionais) condicionam diferentes modos de
apreensão da grupalidade e possuem, quando adotados, efeitos diversos sobre a
condução e o desenrolar dos processos grupais.
4 - As posturas estritamente epistemológicas freqüentemente redudam em
julgamentos valorativos a priori que, enquanto menorizam ou invalidam o grupalismo,
legitimam outras teorias e modos de ação, os quais permanecem, em conseqüência, fora
do campo sócio-político de análise.
5 - As práticas grupais podem ser pensadas como dispositivos – combinações
singulares de componentes heterogêneos – que abrem determinados campos de
visibilidade e dizibilidade, ao mesmo tempo em que obscurecem campos análogos. A
teoria (e/ou modelo) adotada pelo coordenador é simplesmente mais um componente
deste dispositivo.
6 - As apreensões de tipo sócio-institucional trazem à cena condições de
produção da grupalidade que podem, e devem, ser incorporadas à análise coletiva
efetivada pelos grupos concretos acerca de seus processos.
7 - Não existe o objeto grupo, mas múltiplas práticas de grupalização que
incluem, como uma de suas dimensões de produção, os modos de ação e teorização do
psicossociólogo.
81
- Para uma exploração pioneira deste problema, trabalhando com as noções de poliverso psi e ecletismo
superior, ver BAREMBLITT, 1997.
36
Referências bibliográficas:
ALTHUSSER, L. - O futuro dura muito tempo, SP, Cia das Letras, 1992.
AMADO, G. e GUITTET, A. - A dinâmica da comunicação nos grupos, RJ, Zahar,
1978.
ANZIEU, D. e MARTIN, J.-Y. - La dinámica de los grupos pequeños, B.A., Kapelutz,
1971.
AUSTIN, J.P. - Quando dizer é fazer, P.A., Artes Médicas, 1990.
BALÁN, J. - Cuéntame tu vida: una biografía colectiva del psicoanálisis argentino,
B.A., Planeta, 1991.
BAPTISTA, L.A.S. - Algumas histórias sobre a fábrica de interiores, tese de
Doutorado, USP, 1987.
BAREMBLITT, G. - Notas estratégicas a respeito da orientação da dinâmica de
grupos na América Latina, in Grupos: teoria e técnica, RJ, Graal, 1982.
BAREMBLITT, G. - Ato psicanalítico e ato político, B.H., Segrac, 1987.
37