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Introdução proposta um experimento acessível pa-

O
uso de experimentos para o ra o ensino de física que possa ser reali-
Marcelo Augusto Alves da Silva1 e zado em sala de aula. O conteúdo retra-
Thiago Alves de Sá Muniz Sampaio1# ensino de ciências é muito im-
portante para o processo de tado no experimento é o “famigerado”
1
Instituto Federal de Educação, Ciência aprendizagem, visto que concilia a teo- efeito Doppler, numa situação em que
e Tecnologia do Sertão ria estudada com a parte prática. A falta uma fonte sonora se aproxima de um
Pernambucano, Campus Salgueiro, de interesse do aluno pelo conteúdo es- observador em repouso.
Salgueiro, PE, Brasil. tudado se deve, em muitos casos, ao fa- 2. Efeito Doppler
to de que as aulas tradicionais não con-
RESUMO seguem capturar sua atenção. Além dis- Em 1942, um físico matemático
O efeito Doppler é um fenômeno bastante conhecido
so, não é comum nesse tipo de aulas austríaco chamado Johann Christian
e mencionado em aulas de ondulatória e acústica. Doppler (1803-1853), observando as co-
Porém, são poucas as tentativas de se realizar relacionar as matérias com atividades e
alguma demonstração prática desse efeito em sala conhecimentos do dia a dia do aluno. res da luz emitida por estrelas duplas,
de aula. Em virtude disso, este artigo propõe um Segundo Nardi [1]: previu um fenômeno que se aplica a to-
experimento de fácil acessibilidade para o ensino de dos os movimentos ondulatórios e pos-
física, analisando o fenômeno do efeito Doppler de A ciência é uma troca irredu- teriormente foi denominado efeito Dop-
forma qualitativa e quantitativa. O experimento
proposto baseia-se na utilização de uma fonte
tível entre o experimento e a pler-Fizeau. Tal efeito acontece quando
sonora programada inicialmente para emitir ondas teoria, e assim, a separação há uma velocidade relativa entre a fon-
sonoras senoidais audíveis de diferentes frequências. total entre o experimento e a te e o observador. Em relação às ondas
Com a utilização de alguns softwares como o teoria não é desejável e nem luminosas, o efeito se observa na altera-
Tracker e o Audacity, foi possível, ao realizar vários
possível. ção da visualização da cor da luz emiti-
arremessos da fonte sonora, medir sua velocidade e
a frequência do som observada por um detector da pela fonte.
durante a aproximação. Com isso, foi possível
Para Rosito [2], no ensino de ciênci- No som, tal efeito é observado, por
determinar a velocidade de propagação do som no as a experimentação e a teoria andam exemplo, quando uma ambulância com
ar e demonstrar que o resultado concorda com o lado a lado, e os resultados obtidos em a sirene ligada passa rapidamente por
esperado pela teoria. laboratório complementam o que foi nós: quando ela se aproxima, notamos
exposto em aula. O autor ainda destaca um som mais agudo, e quando ela vai
Palavras-chave:: experimentação; acústica; que: se afastando o som fica mais grave [3].
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efeito Doppler; velocidade do som
A experimentação é essencial Isso está relacionado diretamente com
para um bom ensino de ciên- a frequência de oscilação da onda sono-
cias. Em parte, isso se deve ao ra: quando uma fonte de som se aproxi-
fato que o uso de atividades ma de um detector, este perceberá uma
práticas permite maior intera- frequência sonora maior, acontecendo
ção entre o professor e os alu- o contrário quando a fonte se afasta do
nos, em muitas ocasiões, a detector. Nesse experimento, a fonte so-
oportunidade de um planeja- nora aproxima-se de um detector em
mento conjunto e o uso de es- repouso, e a equação do efeito Doppler
tratégias de ensino que po- nesse caso específico é dada por
dem levar à melhor compre- v
ensão dos processos de f' ¼ f ; (1)
v u
ciências.
onde f' é a frequência observada, f a fre-
Porém, essa prática na maioria das quência emitida pela fonte, ν é a veloci-
vezes não acontece nas escolas, pois es- dade do som no ar e u é a velocidade da
tas geralmente não possuem laborató- fonte em relação ao ar [4]. Com os valo-
#Autor de correspondência: thiago.muni- rios e acesso a materiais para práticas res das frequências e a velocidade da
z@ifsertao-pe.edu.br. experimentais. Este trabalho traz como fonte, é possível determinar a velocida-

A Física na Escola, v. 18, n. 2, 2020 Silva e cols. 3


de do som no ar. Isolando ν na Eq. (1), mento que será descrito a seguir, a tem-
obtém-se peratura média do local variou entre
30 °C e 35 °C. Assumindo um limite in-
f 0u ferior como 30 ºC, a velocidade do som
v¼ ; (2)
f0 f no ar calculada a partir da Eq. (4) é de
que será utilizada para obter a veloci- 349,17 m/s. Assumiremos tal valor co-
dade do som de modo experimental. mo um resultado teórico para fins de
comparação.
3. Velocidade de propagação do
som: modelo de gás ideal 4. Montagem e descrição do
A velocidade do som pode ser esti- experimento
mada por um modelo teórico simples se O experimento é formado por uma
considerarmos que o ar se comporta minicaixa de som com cartão de memó-
aproximadamente como um gás ideal, e ria, um fio de aço ou pesca de 2 a 4 m,
que a propagação do som, que consiste arame liso de aproximadamente 10 cm,
em rápidas mudanças de pressão e den- uma flanela, smartphone, notebook e
sidade do ar (compressão e rarefação), três carteiras. A montagem se deu da
pode ser aproximada como um proces- seguinte maneira: o arame foi manu-
so adiabático. Nesse tipo de modelo, a seado de forma que as duas extremida-
velocidade do som dependerá de alguns des se acoplassem à minicaixa de som
fatores, como da temperatura em que o em uma espécie de argola em formato Figura 1 - Minicaixa de som acoplada
ambiente se encontra [5], podendo ser de “v”; para fixá-lo, foi utilizada parte com o arame.
verificada por meio da equação do fio de aço, amarrado em várias vol-
rffiffiffiffiffiffiffiffiffi tas ao redor da caixinha, como mostra bastante utilizado para o ensino de físi-
γRT a Fig. 1. ca. Nele, podemos fazer diversos tipos
v¼ ; (3)
m Em seguida, o restante do fio foi de edições em diferentes formatos de
em que γ é o coeficiente de expansão amarrado em duas carteiras em linha arquivos de áudio. Ribeiro e cols. [6] uti-
adiabática, que representa a razão en- reta, de forma que lizaram o programa
tre as capacidades térmicas a pressão e ficasse bem tensio- Ondas senoidais de diferentes para o ensino de on-
volume constantes, R é a constante uni- nado. Após isso, a frequências foram geradas pelo das, ao passo que Pi-
versal dos gases ideais, T é a temperatu- caixinha com o ara- software Audacity e colocadas no eri e cols. [7] usaram
ra (em Kelvin) do ambiente onde o som me já acoplado foi cartão de memória da caixa de o software para o en-
está se propagando e m é a massa mole- pendurada no fio. A som (fonte sonora). Durante os sino de acústica. No
cular do gás considerado. flanela foi presa em arremessos, áudio e vídeo eram experimento pro-
A fim de reescrever a Eq. (3) em uma das extremida- capturados por instrumentos posto neste trabalho,
função da velocidade do som no ar a des do fio de aço, fixos, para analisar a frequência e o Audacity serviu
uma temperatura de 0 °C, que corres- com o objetivo de o movimento da fonte para diferentes fun-
ponde a 331,45 m/s, podemos elevar a amortecer o impacto ções: a partir dele fo-
Eq. (3) ao quadrado e multiplicar o nu- da caixinha na carteira. O notebook foi ram geradas frequências diferentes de
merador e denominador por T0 = posicionado de modo que o seu micro- ondas senoidais para a análise do efeito
273,16 K, que representa a temperatura fone interno ficasse voltado para a pas- Doppler. Inicialmente, a frequência ge-
em Kelvin equivalente a 0 °C, obtendo sagem da caixa de som, para que dessa rada foi de 3.000 Hz e exportada – em
assim: forma fosse possível capturar o áudio formato de áudio mp3 através de um
emitido pela caixa. O aparelho celular cartão de memória – para uma caixinha
γRT0 T foi usado para a filmagem. A Fig. 2 mos- de som recarregável. O mesmo procedi-
v2 ¼ ; (4)
m T0 tra como ficou a montagem final do ex- mento foi repetido para as outras fre-
perimento. quências geradas, que foram de 4.000
Fazendo T = θ + 273,16, onde θ é a tem- No experimento, a minicaixa de Hz, 5.000 Hz, 6.000 Hz, 7.000 Hz, 8.000
peratura em graus Celsius, a Eq. (4) tor- som faz o papel da fonte sonora e o no- Hz, 9.000 Hz, 10.000 Hz, 12.000 Hz,
na-se tebook, do detector (ou observador). O 13.000 Hz, 14.000 Hz e 15.000 Hz. Com
� � áudio de frequência conhecida é gera- o som sendo emitido pela caixinha, a
2 γRT0 θ
v ¼   þ1 : (5) do no software Audacity (onda senoidal) opção de gravação de áudio no Audaci-
m 273; 16
e então passado para o cartão de me- ty era acionada no notebook, que foi de-
É possível notar que γRT m é a velocidade
0
mória da caixa, que será a fonte sonora vidamente posicionado para poder cap-
do som ao quadrado a 0 °C. Dessa for- que irá se aproximar e afastar do detec- turar o áudio referente à frequência da
ma, tirando a raiz quadrada da Eq. (5), tor (em repouso), para se verificar se o fonte no momento da aproximação. Em
ficamos com uma expressão simplifica- efeito Doppler é percebido. Para obser- sequência, a caixinha era lançada rapi-
da que depende apenas da temperatura var e quantificar tal efeito, foi necessá- damente, com a mão, de uma das extre-
θ do ar em °C: ria a utilização dos softwares Audacity e midades do fio até a outra, sendo seu
sffiffiffiffiffiffiffiffiffiffiffiffiffiffiffiffiffiffiffiffiffiffiffiffi Tracker. impacto amortecido pela flanela.
θ Com o auxílio de um smartphone,
v ¼ 331; 45× þ 1: (6) 4.1. Uso dos softwares Audacity e foram filmados os deslocamentos da
273; 16
Tracker caixinha para cada frequência, a fim de
Durante toda a realização do experi- O Audacity é um software gratuito realizar a medição das suas velocidades

4 Um experimento simples para a exploração do efeito Doppler A Física na Escola, v. 18, n. 2, 2020
Figura 3 - Formato de onda capturado
do Audacity.

Como mencionado, as medições da


velocidade da fonte deram-se pelo pro-
grama Tracker. A Fig. 5 é uma captura
da análise do vídeo depois que a caixa
de som é lançada e se aproxima do no-
tebook. É possível verificar sua veloci-
dade em diferentes pontos, sendo que
era praticamente constante quando se
aproximava do microfone do notebook.
Como estamos interessados na de-
tecção da maior frequência, na aproxi-
mação da fonte sonora do observador
(e no ponto de maior amplitude), é inte-
Figura 2 - Montagem final do experimento e diagrama esquemático da montagem. ressante escolher um ponto em que a
caixinha de som esteja bem próxima do
por meio do software gratuito Tracker, Na área circulada em verde na figura, computador e, a partir desse ponto, de-
que permite analisar conceitos físicos temos um dos valores da frequência ob- terminar a velocidade da fonte.
por meio de vídeos. O papel principal servada e sua intensidade em decibéis. De posse das frequências emitidas e
desse software nesse experimento foi No experimento, foi possível verifi- observadas e da velocidade da fonte, foi
analisar as filmagens da aproximação car que, além do ruído do ambiente, há determinada a velocidade do som no ar
da fonte sonora do detector, verificando também o som provocado pelo atrito do a partir da Eq. (2). A Tabela 1 contém as
a velocidade com que a caixinha estava suporte da caixa de som com o fio de 12 frequências emitidas pela fonte, as
se movendo no decorrer do fio, que cor- aço. No entanto, como é possível ver pe- frequências detectadas pelo observa-
responde justamente à velocidade da la Fig. 4, todos esses sons têm maior am- dor, a velocidade da fonte e a velocida-
fonte na análise do efeito Doppler. plitude em frequências baixas e, por- de do som obtida para cada caso.
tanto, não se confundem com as fre- Analisando a tabela acima, pode-
5. Resultados e análise do quências superiores a 3.000 Hz que mos notar que o notebook (detector) ob-
experimento foram escolhidas para serem emitidas teve frequências maiores na aproxima-
A Fig. 3 mostra uma captura de tela pela caixa de som. ção da caixinha (fonte sonora), o que é
retirada do Audacity, correspondendo
ao formato de onda quando a fonte se
aproxima do notebook. Percebe-se que
na área vermelha em destaque a ampli-
tude da onda cresce ao se aproximar do
observador e decresce quando começa
a se afastar. Com base na análise da am-
plitude, é possível selecionar, para a
análise de frequências, apenas um pe-
queno trecho do áudio capturado, que
corresponde ao momento em que a fon-
te sonora está se aproximando e pas-
sando pelo ponto mais próximo do de-
tector.
Já na Fig. 4, temos o espectro de fre-
quências obtido por meio do Audacity
no momento da aproximação da fonte
do detector. A área circulada em verme-
lho são os picos de frequências detecta- Figura 4 - Espectro de frequência de uma onda sonora de 3.000 Hz ao se aproximar
das quando a fonte sonora se aproxima. da fonte.

A Física na Escola, v. 18, n. 2, 2020 Silva e cols. 5


te entre 30 °C e 35 °C teve média de
352,57 ± 6,25 m/s. Esse valor, dentro da
incerteza estipulada no experimento,
corresponde ao valor teórico obtido pe-
la Eq. (6) da velocidade do som no ar a
uma temperatura de 30 °C, que é de
349,17 m/s.

6. Considerações finais
O efeito Doppler é um fenômeno
bastante conhecido e muito discutido
em livros didáticos do Ensino Médio.
Trabalhar com o conteúdo de forma ex-
perimental trará ótimos benefícios para
os alunos. Um deles é poder ver na prá-
tica como tal fenômeno acontece. Outro
aspecto relevante diz respeito à análise
experimental com o uso de softwares,
que pode ser realizada em grupos com
os alunos. Os recursos utilizados per-
tencem de modo geral ao cotidiano dos
Figura 5 - Captura da tela do Tracker na análise de vídeo. alunos, o que torna o trabalho relativa-
mente fácil de ser elaborado e realizado
Tabela 1: Frequências emitidas e observadas, velocidade da fonte e do som corre- em salas de aula.
spondentes. É interessante destacar que, dife-
rentemente do experimento realizado
f (Hz) f' (Hz) u (m/s) v (m/s) por Lüker e cols. [8], que utilizou uma
3000 3031 3,770 368,61 ± 21,65 fonte sonora que atingia baixas veloci-
4000 4058 5,200 363,82 ± 21,65 dades e, desse modo, teve que utilizar
5000 5084 5,543 335,48 ± 21,65 frequências de ultrassom para produzir
6000 6089 5,094 348,51 ± 21,65 uma diferença significativa nas fre-
7000 7120 6,050 358,97 ± 21,65 quências observadas, as frequências so-
8000 8127 4,790 306,52 ± 21,65 noras geradas pela fonte sonora neste
9000 9111 4,010 328,32 ± 21,65 trabalho encontram-se dentro do inter-
10000 10152 5,225 348,97 ± 21,65 valo audível, o que também permite a
12000 12159 4,580 350,24 ± 21,65 identificação do fenômeno de modo
13000 13148 4,362 387,51 ± 21,65 qualitativo por parte dos alunos.
14000 14217 5,685 372,46 ± 21,65 Em relação aos resultados, é notó-
15000 15189 4,498 361,48 ± 21,65 rio ver como tal experimento pode se
Média 352,57 ± 6,25 mostrar eficaz para o ensino de física,
Desvio Padrão (DP) 21,65 visto que foi possível explorar de forma
DP da média 6,25 didática o efeito Doppler e, além disso,
calcular a velocidade do som com uma
precisão razoável, dadas as condições
previsto pelo efeito Doppler. No experi- que a velocidade do som depende da do experimento. Em suma, acredita-se
mento, tal efeito também pode ser veri- temperatura do ambiente onde o som que o uso do experimento seja muito
ficado de forma qualitativa: se uma pes- se propaga, logo teremos velocidades relevante para a compreensão do efeito
soa fizer o papel de detector, perceberá distintas em temperaturas diferentes. Doppler e de suas aplicações, tanto para
um som mais agudo quando a fonte se No experimento, a velocidade do som o Ensino Médio como para o ensino su-
aproxima. Foi visto, a partir da Eq. (4), no ar obtida com temperatura ambien- perior.

References
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[7] H.G. Pieri, G. Dionisio, R. Caporal Filho, Qualidades Fisiológicas do Som: Potencialidades da Aplicação de Softwares de Áudio no Ensino de
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[8] E. Ludke, P.J. Cauduro, A.M. Vieira, R.B. Adornes, Revista Brasileira de Ensino de Física, 34, 1702 (2012).

6 Um experimento simples para a exploração do efeito Doppler A Física na Escola, v. 18, n. 2, 2020

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