Você está na página 1de 4

See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.

net/publication/263847551

Megafauna: O fim dos grandes semeadores

Article · July 2014

CITATIONS READS

0 1,539

1 author:

Mauro Galetti
University of Miami
368 PUBLICATIONS   18,789 CITATIONS   

SEE PROFILE

Some of the authors of this publication are also working on these related projects:

Reducing the Impacts of Massive ‘Development Corridors’ on Africa’s Equatorial Forests View project

Conservation of threatened mammals in the Biodiversity Corridor of the 'Serra do Mar': integrating ecology, human dimensions, and conservation planning View
project

All content following this page was uploaded by Mauro Galetti on 11 July 2014.

The user has requested enhancement of the downloaded file.


ecologia

O fim dos grandes


semeadores
Mamíferos enormes, alguns pesando mais
de uma tonelada, ajudaram a formar os
biomas do Brasil. Pesquisadores de Rio
Claro estudam como nossos ecossistemas
sobreviveram ao sumiço daqueles gigantes

texto Guilherme Rosa

O
valor simbólico que a fauna de pé sobre as patas traseiras, atingia até
ocupa no imaginário dos bra- seis metros de altura. Também havia tatus
sileiros pode ser inferido pelo do tamanho de fuscas (o Glyptodon), ele-
nosso dinheiro. Não é à toa que espécies fantes de seis toneladas (Stegomastodon),
como a arara, o mico-leão-dourado e a antas de até 150 quilos e Macrauchenias,
onça enfeitam as notas de R$ 10, R$ 20 e animais de uma tonelada cuja ordem já
R$ 50, ressaltando a riqueza e diversidade está extinta, mas que se assemelhavam a
da vida selvagem com que os humanos camelos com trombas (ver boxe).
compartilham estas terras. Porém, se um Hoje, essa megafauna desapareceu, e
brasileiro conseguisse voltar ao passado – os cientistas só sabem de sua existência
digamos, uns 14 mil anos – e percorresse a partir das descobertas de ossadas pelos
este mesmo território, talvez se sentisse paleontólogos. Para um bom observador,
tão estrangeiro quanto um polonês que no entanto, suas marcas estão espalhadas
visita hoje a Amazônia. pela paisagem. “Olhe para as plantas do
Esse viajante do tempo certamente se Cerrado. Muitas têm casca lenhosa, folha
surpreenderia ao constatar como, no pas- dura, espinhos. É para se protegerem de
Imagem: Jaime Chirinos/Latinstock

sado, viveram por aqui mamíferos muito serem devoradas pela megafauna”, diz
maiores que os atuais, em números supe- Mauro Galetti, professor do Departamento
riores até aos que hoje habitam as savanas de Ecologia da Unesp de Rio Claro.
africanas. Ele encontraria animais como Nos últimos anos, ecólogos de todo o
o Megatherium (cujo nome significa besta planeta têm travado um controverso de-
gigante), uma preguiça colossal, que che- bate sobre a influência que esses gigantes
gava a pesar mais de seis toneladas e que, do passado podem ter exercido sobre a

30 unespciência .:. julho de 2014 julho de 2014 .:. unespciência


ecologia

foram as consequências para a ecologia escala mundial, e seus trabalhos com a Brasil: terra de gigantes
das plantas“, diz Galetti. megafauna são uma referência importan-
te. Comecei a trabalhar com esses animais Megatherium
A ecologia de hoje e de ontem depois dessa parceria”, diz Jordano. A preguiça-gigante podia pesar até seis
Desde sua graduação, Galetti estuda co- O primeiro passo dos pesquisadores foi toneladas e atingir seis metros de altura ao se
mo a interação entre animais e plantas identificar quais seriam os frutos que pode- elevar sobre as patas traseiras. Assim, podia
moldou a paisagem brasileira. Também riam ter sido dispersados pela megafauna. alcançar a copa das árvores mais altas.
pesquisa as mudanças que estão ocorrendo Uma vez que os animais do Pleistoceno
nessa relação delicada. “Trabalho com as não existem mais, o recurso é estudar as
consequências do desaparecimento das espécies de megafauna que ainda estão
Foto: Mauro Galetti

espécies que consomem frutos, como tu- por aí, como os elefantes africanos. A
canos, antas, catetos e queixadas, para a equipe vasculhou a literatura científica
dispersão de sementes na natureza”, diz. para determinar, por exemplo, quais ti-
Dispersar as sementes é uma questão pos de fruto os elefantes comem na Áfri- Macrauchenias
crucial para a sobrevivência das plantas. ca. Depois, procuraram por frutos com Animal que se assemelhava a um
Se uma semente cair perto da árvore mãe, características semelhantes no Brasil. camelo, sem as corcovas, e com
defesa contra gigantes
Apesar de extinta, a megafauna deixou marcas pelo Cerrado. Árvores como a
terá de disputar nutrientes e água, será alvo Assim, os pesquisadores descobriram uma tromba semelhante à da anta.

bocaiúva desenvolveram espinhos nos troncos para se proteger desses animais mais fácil de fungos e roedores e morrerá que a megafauna de hoje consome prin- Sua ordem está completamente extinta
antes de se tornar adulta. Se um animal cipalmente frutos grandes, que carregam
ingere seus frutos, porém, poderá trans- em seu interior sementes de maior porte.
formação de biomas, assim como sobre os maior diversidade de grandes mamíferos, portar as sementes e dispersá-las em suas O levantamento possibilitou a identifica-
impactos gerados pelo desaparecimento com mais de dez espécies que pesavam fezes. Em florestas tropicais, entre 70% e ção de mais de cem espécies semelhantes
dessas espécies. Mauro Galetti estuda as acima de uma tonelada. Hoje, no entan- 90% das árvores dependem dos animais que existem em território brasileiro, entre Glyptodon
consequências da extinção da megafauna to, nossos maiores mamíferos pesam, no para dispersarem suas sementes. elas jatobá, cacau, abacate, baru e pequi. O tatu-gigante podia medir

Imagens: Carl Buell; Natural History Museum, London/SPL DC/Latinstock; Ralf Juergen Kraft/Shutterstock; Jaime Chirinos/SPL DC/Latinstock
no Brasil, principalmente para as plantas máximo, 300 quilos, muito abaixo do que Durante suas pesquisas sobre a dispersão “Vários desses frutos são consumidos pe- até três metros e pesar duas
das quais ela se alimentava. uma preguiça-gigante de seis toneladas. de sementes brasileiras, Galetti se deparou los seres humanos até hoje”, diz Galetti, toneladas, lembrando o
Desde os anos 1980, os cientistas sabem Hoje, a megafauna é encontrada apenas com uma classe diferente de plantas: os que publicou o resultado em um artigo formato de um fusca.
que existe uma série de frutos na América na África e no sul da Ásia, onde habitam frutos de megafauna. Um artigo de 1982 na revista científica Plos One em 2008.
do Sul que dependeram da megafauna no elefantes, rinocerontes, hipopótamos e do ecólogo costa-riquenho Daniel Jansen
passado para que suas sementes fossem girafas. O motivo do seu sumiço nos ou- apontou sua existência, afirmando que só Dos gigantes à cutia
dispersadas e conseguissem se reproduzir tros continentes é desconhecido. Há quem animais gigantes poderiam fazer a tarefa A pesquisa localizou frutos de megafauna
com sucesso. Essa constatação gerou um culpe os caçadores pré-históricos. Outros de transportá-los. Mas o já mencionado em todos os biomas brasileiros, da Ama-
questionamento: embora os dispersores apostam nas mudanças climáticas que paradoxo que envolve o sumiço daqueles zônia à Caatinga, mas a maior parte se Toxodon
desses frutos tenham desaparecido há deram fim às eras glaciais. Uma terceira animais e a permanência destas plantas concentra no Cerrado. Segundo os pes- Mamífero que lembrava
milênios, tais espécies de plantas conti- vertente crê numa mistura dos dois fa- gerou uma avalanche de críticas ao tra- quisadores, isso mostra que, no passado, um grande rinoceronte sem
nuam vivas. “Queremos entender como tores. “Todo mês é publicado um artigo balho de Jansen. a região teria sido a mais rica em mega- chifres. Fósseis do animal
esses frutos sobreviveram sem os grandes novo apoiando uma dessas hipóteses. fauna. Os campos abertos favoreciam a ajudaram Charles Darwin a
mamíferos. Normalmente, a falta de um Para nós, pouco importa o culpado pela Comida de gigantes vida dos grandes animais do mesmo modo formular a teoria da evolução
dispersor é perigosa para uma espécie, extinção: o que eu quero é saber quais A polêmica já durava duas décadas quando como a savana africana faz hoje em dia.
mas essas persistiram até hoje. Por que Galetti se decidiu a procurar uma resposta, Mas, segundo esta visão, a extinção dos
as plantas de megafauna não se extin- investigando o que pode ter acontecido no grandes animais, capazes de carregar es-
guiram junto com a megafauna? E o que passado por aqui. Para isso, associou-se a sas frutas em seu estômago, deveria resul- Stegomastodon
isso significa para o funcionamento dos Paulo Guimarães, professor do Departa- tar no desaparecimento dessas espécies Espécie de grande
ecossistemas atuais?”, questiona Galetti. mento de Ecologia da USP e especialista vegetais. Para entender como as plantas elefante que habitou a
Hoje, a megafauna é na análise de redes de interação entre conseguiram contornar o fim de seus an- América e podia pesar
Por onde andaram os gigantes encontrada apenas na África animais e plantas, e ao pesquisador espa- tigos dispersores, os pesquisadores foram até seis toneladas
A questão referente à extinção da me- e na Ásia, sob a forma de nhol Pedro Jordano, professor do Consejo estudá-las em seu território natural. Infeliz-
elefantes, rinocerontes,
gafauna é bastante antiga e controver- Superior de Investigaciones Cientificas, da mente, o Cerrado se tornou celeiro agrícola
hipopótamos e girafas.
sa. Esses animais dominaram todos os O motivo do seu sumiço Espanha. Jordano colabora com o curso e perdeu boa parte de sua fauna original.
cantos do planeta durante o Pleistoceno, nos outros continentes de pós-graduação em Ecologia e Biodi- Mas foi possível viabilizar esta etapa dos
a chamada Era do Gelo, que durou entre é desconhecido. Alguns versidade da Unesp e é uma autoridade estudos recorrendo-se a um sítio da ONG
2,5 milhões de anos e 10 mil anos atrás. cientistas culpam o mundial em dispersão de sementes. “A Conservação Internacional no Pantanal.
A América do Sul era o continente com a homem. Outros, o clima. ecologia brasileira tem um impacto em “Esse era o cenário ideal para estudarmos.

32 unespciência .:. julho de 2014 julho de 2014 .:. unespciência


ecologia

Tinha a mata nativa em alta densidade, primeiros resultados dessa pesquisa na


ainda com a fauna preservada, e também revista Ecology Letters em 2011.
animais exóticos, como cavalo, vaca e
porco monteiro”, diz Galetti. Ilhas de DNA
O estudo está em andamento desde Em um novo estudo, publicado em junho
2008. Nesse tempo, os cientistas acompa- deste ano, os pesquisadores refizeram a
nharam o ciclo de vida de diversas plan- rede ecológica do Pantanal ao longo do
tas, espalharam câmeras pelo território tempo, do final do Pleistoceno até os dias
e analisaram as fezes dos animais, em de hoje, mostrando quando e onde as novas
busca de sinais de quais seriam os novos espécies substituíram os antigos semea-
Foto: Mauro Galetti

Foto: Mauro Galetti


dispersores das sementes. dores. “Esse trabalho é uma tentativa de
Descobriram, assim, que cada espécie estimar como as redes mudaram. Nossa
encontrou uma estratégia diferente para hipótese é que a introdução de animais
sobreviver aos novos tempos. Algumas exóticos trouxe de volta processos ecoló-
passaram a ser consumidas por animais gicos que eram comuns antes da extinção
menores, como antas e queixadas. Outras da megafauna”, diz Paulo Guimarães, da
de olho no presente para entender o passado câmera escondida
Mauro Galetti estuda o efeito do desaparecimento de animais sobre a dispersão
foram salvas da extinção pelo consumo USP. Com essa etapa concluída, o próxi- Os cientistas espalharam câmeras pelo Pantanal para descobrir quais animais
de sementes. Para isso, estuda desde os ainda vivos, como a anta, até os já extintos do próprio homem. “Analisando dados de mo passo dos cientistas é investigar quais substituíram a megafauna na dispersão de sementes. Na foto, uma anta é flagrada
antropólogos e fósseis de sítios arqueo- seriam as consequências exatas dessas
lógicos, nós descobrimos que os antigos mudanças na rede ecológica.
índios também se alimentavam de pequi Ao levar uma semente para longe da viveram ali há dez mil anos. Obviamen- O mesmo poderia ser feito para garan-
e umbu, por exemplo. Foram eles que planta mãe, o dispersor permite que po- te, não foi só no Brasil que a extinção da tir a saúde das plantas de megafauna no
passaram a dispersar as sementes dessas pulações distantes troquem genes entre si. megafauna afetou a paisagem, mas em Brasil? Galetti pensa que sim, afinal de
frutas”, diz Galetti. Isto aumenta a variabilidade genética das todo o globo, de desertos a florestas. Na contas, seus estudos mostraram que espé-
Mas nenhum outro animal colaborou plantas, o que favorece a sobrevivência da Sibéria, por exemplo, a extinção de mamu- cies exóticas já estão servindo para manter
tanto com a sobrevivência das plantas espécie. Um elefante, por exemplo, pode tes, cavalos e bisões fez com que musgos algumas delas vivas ao longo do tempo.
de megafauna quanto a minúscula cutia, carregar sementes em seu estômago por se tornassem dominantes na paisagem. Um projeto desse tamanho, no entanto,
de pouco mais de três quilos. A pesquisa até 25 quilômetros. “Já uma cutia chega a Por isso, alguns pesquisadores acre- seria inviável no Brasil. Pensando nisso,
mostrou que 70% das plantas sobrevi- 50 metros. Com isso, as plantas perdem a ditam que a reintrodução controlada de o pesquisador está conversando com a
ventes passaram a depender dela para se troca genética entre populações distantes”, animais extintos, ou mesmo exóticos, ONG Elephant Voices, que pretende criar
perpetuar, adotando uma estratégia com- diz Galetti. Estudos genéticos já consta- possa ajudar a recuperar a paisagem ori- um santuário no Pantanal para abrigar
Fotos: Marcelo Kuhlmann/Livro Frutos e Sementes do Cerrado Atrativos para Fauna

plementar de dispersão. Diferentemente taram esse efeito em frutos do Cerrado, ginal dessas regiões. Na Sibéria, a volta elefantes abandonados por zoológicos e
da preguiça-gigante, por exemplo, que en- como o pequi, por exemplo. de bisões e cavalos já permitiu o ressur- circos de todo o país. “Eu queria estudar
tortava as árvores com suas garras enormes Isso é perigoso pois as plantas de uma gimento de uma vegetação de gramíneas como esses animais afetam a paisagem.
e comia os frutos diretamente dos galhos, mesma população acabam ficando com e arbustos. “Existem parques do Pleisto- Nós poderíamos usar os elefantes para en-
a pequena cutia apenas pega aqueles que o DNA muito semelhante, e perdem re- ceno nos EUA, na Escócia, na Rússia e na tender como era a região há 10 mil anos.
caem no chão e os carrega para longe. Já cursos genéticos para lidar com situações Holanda. Mas são todos projetos novos, e Mas esse é um projeto a longo prazo“, diz.
distante da árvore original, ela enterra os imprevistas. “Isso diminui a capacidade de ainda não é possível ter certeza de seus No curto prazo, o principal impacto da
alimentos coletados, a fim de estocá-los. resposta das plantas a mudanças globais, resultados”, diz Galetti. pesquisa de Galetti é o alerta que traz. A
Eventualmente, eles acabam germinando. como o desmatamento ou a fragmentação extinção dos grandes mamíferos não pa-
Por fim, os pesquisadores constataram do habitat. As plantas não se deslocam rou há 10 mil anos: os maiores animais
que, nas últimas décadas, novos disperso- como os animais, seus movimentos só se de cada ecossistema continuam sendo ex-
res chegaram ao Pantanal, levados para a produzem pela dispersão do pólen e de se- terminados — e dessa vez existe a certeza
região pelo homem mas que escaparam mentes. Quando esses processos colapsam, de que o homem é o culpado. No Brasil,
de seu controle. São bichos como porcos, a regeneração natural da floresta também A reintrodução de grandes mesmo antas, queixadas e catetos correm
vacas e cavalos, que, ao adaptarem-se é afetada”, diz o espanhol Pedro Jordano. animais em regiões onde o risco de ter o mesmo destino que a pre-
ao ecosistema, passaram a comer tais eles já se extingüiram guiça-gigante. “A Terra está virando um
está sendo feita em vários
plantas e a espalhar seus frutos. “Todo Entre pequenos e gigantes planeta de nanicos, habitado por ratos,
lugares do mundo: são os
mundo costuma ver com maus olhos a Uma das áreas mais controversas da eco- esquilos e gambás“, diz Galetti. “A cada
parques do Pleistoceno.
introdução de espécies exóticas em um logia nos últimos anos tem sido a criação Todos os projetos são troca de espécie, nós empobrecemos o
menu da pré-história
Os pesquisadores identificaram mais de cem espécies dispersadas pela megafauna
ambiente. Mas, nesse caso, constatamos de parques do Pleistoceno, experimentos novos, e ainda não é ecossistema. Se não pararmos com isso,
no Brasil, entre elas o araticum (no alto à esquerda), o jatobá (à direita) e a lobeira que elas estão ajudando a dispersar espé- nos quais regiões selvagens são repo- possível saber quais serão a floresta do futuro, decididamente, não
cies nativas”, diz Galetti, que publicou os voadas com animais semelhantes aos que seus efeitos no ambiente será a mesma que a de hoje em dia”.

34 unespciência .:. julho de 2014 julho de 2014 .:. unespciência 35


View publication stats

Você também pode gostar