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O setting virtual visto como um Sonho

Guilherme Magnoler Guedes de Azevedo

O mundo caminha num processo dialético contínuo entre tradição e inovação. Não
é realmente possível inovar a não ser sobre a base daquilo que é tradicional e,
naturalmente, a tradição só tem sua existência devido à necessidade que o ser humano
tem de mudar. Me parecem mais equilibradas as culturas, ou famílias, grupos, etc., que
conseguem manter tradições sem perder a capacidade de inovar. O exemplo que me vem
à mente é o da Estônia, país Báltico que foi ocupado durante séculos por diferentes povos,
tendo sido parte da União Soviética. Nesse pequeno país de pouco mais de um milhão e
trezentos mil habitantes encontramos a cidade medieval mais preservada da Europa,
Tallinn. Além disso, a tradição dita a regra de diversos aspectos da cultura estoniana. Não
obstante, o país é um dos líderes mundiais em tecnologia, por exemplo: é o menos
burocrático do mundo (ou um dos) e o primeiro a colocar o acesso à internet como direito
humano, entre outros aspectos relacionados a tecnologias de ponta.
A dialética entre inovação e tradição é um dos temas mais interessantes da
experiência cultural. Como dito acima, penso que um bom equilíbrio entre o novo e o
tradicional é sinal de maturidade em uma cultura; e o mesmo vale para uma ciência. No
presente artigo, utilizarei a concepção de Winnicott da relação entre tradição e inovação
para argumentar sobre as consequências da pandemia da Covid 19 em nossa cultura, mais
especificamente na clínica psicanalítica e, em seguida, a partir da teoria dos Sonhos de
Freud, proporei a existência de um aspecto relevante dos atendimentos online. Para
finalizar, argumentarei que esse aspecto é um fator importante na defesa da possibilidade
de se fazer análise a distância. Em outras palavras, o assunto teórico / clínico para o qual
chamarei a atenção, e que me levará a comparar o setting analítico com um sonho, faz
parte do polo inovação do processo dialético de evolução, motivo pelo qual, penso, não
deve ser ignorado (tampouco deve ser supervalorizado).
Winnicott (2019) utiliza o termo “experiência cultural” “como extensão da ideia
de fenômenos transicionais e de brincadeira...” (p. 60). Penso que essa ideia é central para
se compreender as evoluções humanas em todos os seus âmbitos. Para Winnicott (2019,
p 156) “...a brincadeira não é nem uma questão de realidade psíquica interna nem de
realidade material externa.” (grifo do autor) Com isso ele quer dizer que o brincar não
se encontra nem dentro do indivíduo nem fora do mesmo, mas em uma zona
intermediária, na qual ocorrem fenômenos que o autor chamou de transicionais. Mas,
para apreciar o verdadeiro valor e importância dos fenômenos transicionais e sua relação
com a experiência cultural, precisamos voltar um pouco na linha do amadurecimento
pessoal e examinarmos a relação da transicionalidade com o conceito winnicottiano de
ilusão, pois está aí a base da dicotomia que envolve toda e qualquer experiência cultural:
estou criando algo ou estou descobrindo algo? Em outras palavras, a dialética entre
inovação e tradição.
Winnicott coloca da seguinte forma:
Portanto, desde o nascimento o ser humano se preocupa com o problema
da relação entre aquilo que é objetivamente percebido e o que é
subjetivamente concebido. E o ser humano só consegue encontrar uma
resolução saudável para esse problema se tiver começado bem, graças à
mãe. (2019, p. 30, meu grifo)
Sendo assim, a base de um bom equilíbrio entre o que vem do bebê e o que ele
descobre no ambiente é bastante primitiva (desde o nascimento). Winnicott se refere a
dois conceitos no parágrafo acima, embora os mesmos não apareçam explicitamente:
ilusão e criatividade originária. Portanto, a base da transicionalidade, ou, do equilíbrio
entre a criatividade e a descoberta do mundo, ou, entre inovação e tradição, ou, por fim,
da experiência cultural, está no bom começo da relação do bebê com sua criatividade, e
isso depende da mãe. Vejamos como o autor concebe esse movimento.
O bebê, no início de seu desenvolvimento, sente necessidade de algo, digamos que
tem fome. Ele não desenvolveu ainda as noções de tempo e espaço, nem a capacidade de
perceber um objeto externo como estando separado de si, de modo que o objeto externo
é, de seu ponto de vista, parte de si mesmo (subjetivo, diz Winnicott). O bebê manifesta,
a seu modo, sua fome, por meio de um gesto que Winnicott chamou de espontâneo. Nesse
exato momento a mãe coloca o seio na posição de ser encontrado. Importante notar que
ela não dá o seio ao bebê, mas o torna disponível. Assim procedendo, permite que o
lactente encontre um seio que se encaixa em sua necessidade e, como foi ele que o
encontrou, vive a ilusão de que o criou. Essa ilusão alimenta e molda sua criatividade
originária. Viver a experiência de ilusão repetidas vezes seria “começar bem” o
desenvolvimento. Assim ficam assentadas as bases para o sentimento de ser. Será essa
sensação de que aquilo que se cria vem de dentro do indivíduo que trará a marca da
verdadeira criatividade, e não o aspecto externo e o resultado aparente daquilo que foi
feito ou alcançado. Mas qual a relação da ilusão com a transicionalidade e,
consequentemente, com a experiência cultural?
A ilusão se dá com um objeto que é vivenciado pelo bebê como subjetivo, ou seja,
não é externo, mas uma extensão do bebê. No outro extremo desse desenvolvimento
estará um objeto que pode ser usado, por estar separado do bebê (segundo Winnicott, fora
de sua área de onipotência). Mas antes de se chegar a isso, ou seja, entre o objeto subjetivo
e o objeto objetivamente percebido, existe uma etapa intermediária: a transicionalidade.
E esta depende e se ampara nos fenômenos de ilusão.
Winnicott diz:
Os objetos transicionais, assim como os fenômenos transicionais, fazem
parte do domínio da ilusão, que é a base do começo da experiência. Esse
estágio inicial do desenvolvimento é possibilitado pela capacidade
especial que a mãe tem de se adaptar às necessidades do bebê, permitindo,
assim, que ele tenha a ilusão de que aquilo que cria realmente existe.
(Winnicott, 2019, p. 34)
Portanto, com a transicionalidade...
...é dada uma forma para a área da ilusão, de modo a ilustrar o que
considero uma das primeiras funções do objeto transicional e dos
fenômenos transicionais. Os objetos transicionais e os fenômenos
transicionais iniciam os seres humanos naquilo que eles sempre
considerarão importante, ou seja, uma área neutra da experiência que não
será posta à prova. Pode-se dizer do objeto transicional que existe um
acordo entre nós e o bebê, de que nunca faremos a pergunta: “Você criou
isso ou apresentamos isso para você a partir do exterior?” O ponto mais
importante é que não há expectativa de uma resposta. A pergunta não deve
ser formulada. (Winnicott, 2019, p. 31)
Em seguida, o autor diz que o objeto transicional passa por um natural
desinvestimento, sendo deixado de lado com o tempo, após ter cumprido sua função de
criar (e ser criado) pela zona intermediária. A última sim será mantida. Winnicott diz que
ao longo da vida a área intermediária “...é mantida nas experiências intensas ligadas à
arte, à religião, à vida imaginativa e ao trabalho científico criativo”. (2019, p. 34) Mas se
a área intermediária é mantida, então todas possíveis oscilações entre os dois polos dela
serão possíveis nas experiências culturais. Quais são mesmo esses dois polos? O que
existe e o que é criado, ou seja, a tradição e a inovação.
Já disse, acima, que Winnicott considera a experiência cultural como “extensão
da ideia de fenômenos transicionais e de brincadeira...”. (2019, P. 60). Em outro momento
ele diz que o lugar onde a experiência cultural se localiza é “o espaço potencial entre o
indivíduo e o ambiente (originalmente o objeto)... Experiências culturais começam com
a vida criativa manifestada inicialmente na brincadeira.” (2019, p. 162) É por isso que,
para ele, em qualquer campo cultural “é impossível ser original, a não ser com base na
tradição” (2019, p. 160).
Com a citação abaixo chegamos ao ponto central de meu argumento:
O interjogo entre a originalidade e a aceitação da tradição como base para
a criatividade me parece ser apenas mais um exemplo - um exemplo muito
empolgante por sinal - do interjogo entre separação e união. (Winnicott,
2019, p. 161)
Podemos resumir a concepção apresentada acima da seguinte forma: em toda
experiência cultural está em jogo a dialética entre criar e descobrir. Criar está ligado à
inovação, descobrir à tradição (descubro o que já existe). O autor diz que o interjogo entre
originalidade e tradição é uma repetição do interjogo entre separação e união, e isso é
muito compreensível, uma vez que, para Winnicott, em última instância, tudo gira em
torno do amadurecimento individual, que vai de um indivíduo que sente o mundo como
subjetivo, ou seja, como uma extensão de si, até a capacidade de perceber o outro e,
segundo ainda o autor, usar o objeto (não entrarei nos detalhes do uso do objeto, pois não
é o tema do presente artigo).
Mas isso é simplesmente muito bonito e fundamental! E assim o é pelo fato de
estarmos todos muito cientes de que a separação / união, ou, colocando em outras
palavras, separação ou confusão entre sujeito e objeto, é o que determina o destino da
capacidade de perceber o mundo de forma equilibrada. É só por meio de um equilíbrio
entre as demandas de dois indivíduos que uma relação pode ser saudável. Da mesma
forma, é só por meio de um bom equilíbrio entre inovação e tradição que a evolução pode
ser saudável e, sendo assim, estamos diante de uma obrigação, para o bem de nossa
ciência: diante das novidades trazidas pela pandemia da Covid 19, temos que manter
ambos os polos da dialética inovação / tradição em equilíbrio, e isso significa que nenhum
deles pode ser ignorado ou supervalorizado.
Ou seja, tratar a análise online como algo que serviu apenas como um recurso
paliativo para um momento de exceção e tentar negar suas vantagens e seu aspecto
revolucionário seria uma atitude imatura, uma vez que romperia o equilíbrio da dialética
das experiências culturais. Ao mesmo tempo, declarar a análise a distância, que mal
começamos a conhecer, como já consagrada e concluir sobre sua eficácia a ponto de
compará-la com a presencial seria, também, uma atitude imatura, pois, novamente, estaria
no âmbito do rompimento do equilíbrio na dialética criativa que, como vimos, nada mais
é do que uma confusão entre sujeito e objeto (o interjogo entre separação e união que
apontou Winnicott).
A questão é relevante, pois é imensamente tentador romper esse equilíbrio, e a
história está repleta de momentos dessa natureza, nos quais um dos polos dessa dialética
prevalece sobre o outro, como por exemplo, nos longos dez séculos da Idade Média,
durante os quais as tradições prevaleceram sobre as inovações, ou, naquela que é
considerada uma das manifestações sociais mais incríveis de toda história da
Humanidade, a Revolução Francesa, período durante o qual algumas inovações se
instalaram à força e à custa de muito sangue. Ao analisarmos a Idade Média e a Revolução
Francesa, sentimos falta de algo em ambas. Penso que o que faltou à primeira foi o polo
inovador, e à segunda o polo da tradição da dialética evolutiva, ou seja, houve um
desequilíbrio nesse delicado movimento bilateral, base de toda e qualquer evolução
humana.
A Revolução Francesa marcou de forma definitiva e irrevogável a Sociedade
moderna. Todo movimento social que busque por mais justiça aos desfavorecidos tem em
sua raiz essa Revolução. Contudo, jamais deixaremos de olhar para o ano de 1893 com
estupefação, e a história, diante de tanto sangue e de tantas cabeças roladas na guilhotina
(que símbolo maior do que o de um Rei decapitado?), nunca deixará de se questionar:
precisava ter sido assim? Essa é uma pergunta difícil de ser respondida, pois se por um
lado parece evidente que não deveria ter sido assim, por outro, pode-se dizer que se assim
foi é porque não poderia ter sido evitado; mas é certo que mudanças equilibradas são mais
saudáveis.
Em sentido amplo, é considerada Revolução qualquer mudança radical que
envolva uma sociedade em sua estrutura, principalmente nos âmbitos sociais, culturais,
econômicos e políticos. Foi devido a isso que as intensas mudanças nas relações de
trabalho e nos meios de produção do século XVIII ganharam o nome de Revolução
Industrial. Tendo se iniciado na Inglaterra, a Revolução Industrial, com todos seus
avanços tecnológicos, se espalhou pelo mundo, mudando também suas bases econômicas,
sociais e culturais. O mundo nunca mais foi o mesmo após a guilhotina (Revolução
Francesa) e a máquina a vapor (Revolução Industrial). De nada adianta lamentar; diante
de eventos colossais como esses temos que depor nossas armas e aceitar que nada será
como antes. Contudo, dizer que nada será como antes não significa que a inovação deve
abandonar a tradição. Passado o furacão revolucionário, chega o momento de se buscar
novamente um equilíbrio, não igual o anterior, naturalmente, mas, ainda assim, um
equilíbrio. Não é possível evoluir com maturidade sem o respeito à tradição.
As Revoluções francesa e industrial foram obras do homem, de seus anseios, de
sua busca incessante pelo novo. Mas podemos citar a extinção dos dinossauros e a era do
gelo como exemplos, muito mais radicais, de situações que revolucionaram o planeta
terra. No caso, não exatamente sua política e economia, mas as condições climáticas,
biodiversidade, etc. Não estou propondo comparações, mesmo porque as mesmas não se
sustentariam, mas chamar a atenção para o fato de que eventos transformadores
(revolucionários) podem ser causados pelo homem ou independentemente dele. A
questão que quero levantar é: teria o Corona vírus transformado o Zoom em nossa
locomotiva a vapor?
A pergunta principal é simples: será o mesmo mundo que iremos habitar após a
pandemia da Covid 19? É praticamente impossível que seja. E a mudança, penso, não
será daquelas as quais estamos acostumados ano a ano, não; a mudança será maior, pois
fomos atingidos de forma ampla, profunda, traumática, inesperada, rápida, intensa; a
pandemia abalou os próprios alicerces de nossa sociedade, suas estruturas básicas, como
a economia, a cultura, a política, as relações diplomáticas. Um exemplo marcante é o
“êxodo urbano”, se assim me permitem chamar esse fenômeno no qual os indivíduos
voltam a trabalhar em casa e não nas sedes das empresas, num movimento contrário
àquele observado nos tecelões do século XVIII, que deixavam de trabalhar em casa e se
dirigiam à fábrica. Recentemente, um canal humorístico criou um ambiente de reunião
virtual (Zoom) no qual o chefe de uma empresa informava aos funcionários que na
semana seguinte voltariam ao trabalho presencial. O anúncio causou indignação,
incômodo e uma chuva de perguntas, como as seguintes (não as lembro exatamente, mas
eram mais ou menos assim): “Mas como assim? Teremos que nos vestir por inteiro, com
calças de trabalho e tudo?” “Mas e o transporte? Eu vendi meu carro.” “Só uma pergunta,
terei que dividir o banheiro com todo mundo?” “Eu até posso ir, mas estou tendo
dificuldade de entender o motivo.”
Mas, sejamos mais modestos, e em vez de nos ocuparmos da sociedade como um
todo, foquemos nossa atenção em nossa ciência. Será a psicanálise a mesma após a
pandemia da Covid 19? Se, de maneira geral, é praticamente impossível voltarmos a
habitar o mesmo mundo de antes da pandemia, no caso específico da psicanálise a
resposta é ainda mais evidente: é quase impossível que ela seja a mesma. Fechar os olhos
para esse fato (uma vez que todos nós (ou praticamente todos)) fomos salvos pelo Zoom,
seria promover uma cisão grave em nossa percepção da realidade.
A finalidade deste artigo é apontar uma vantagem da terapia online em relação à
tradicional, não para sugerir que a primeira seja melhor do que a segunda, ou que funcione
tão bem quanto, ou em tantos casos quantos aqueles que podem ser beneficiados por uma
análise presencial, ou, ainda, para negar os problemas e defeitos da análise online, etc;
mas unicamente para propor que sigamos o exemplo dos estonianos e consigamos, de
forma madura, unir tradição e inovação.
Em outras palavras, estou isolando um único aspecto do atendimento online para
iluminá-lo e inseri-lo no debate sobre o destino das análises virtuais. Isso significa que
fiz uma escolha arbitrária, e não que me esqueci de todos os demais aspectos desse
complexo tema. A ciência se constrói a partir da soma de diversas contribuições, em busca
de maior compreensão de um fenômeno. Espero estar fazendo uma contribuição que
possa ser inserida no todo das discussões sobre o assunto.
O setting analítico visto como um sonho
Em 1897 (Masson, 1986), mais especificamente no dia 21 de setembro desse ano,
Freud diz a seu amigo Fliess que não acredita mais em sua teoria das neuroses. Ele se
referia àquela que ficou conhecida como a Teoria da Sedução, que continha em si o
argumento de que toda paciente histérica teria sido abusada sexualmente na infância. A
teoria não se sustentou (embora a ideia de trauma tenha se mantido), de modo que Freud
a abandonou, mas não sem tirar dessa experiência importantes conclusões, sendo as
principais as seguintes: a descoberta da sexualidade infantil; a descoberta das fantasias
inconscientes; o surgimento do Édipo (o termo aparece pela primeira vez na obra de Freud
em uma carta a Fliess menos de um mês após o abandono da teoria da sedução, e
intimamente ligada a ela (Guedes de Azevedo & Amaral, 2021).
Na mesma carta a Fliess, na qual diz não acreditar mais na Teoria da Sedução,
Freud diz ao amigo:
Neste colapso de tudo o que é valioso, apenas o psicólogo permaneceu inalterado.
O [livro sobre o] sonho continua inteiramente seguro e meus primórdios do
trabalho metapsicológico só fizeram crescer em meu apreço. É uma pena que não
se possa ganhar a vida, por exemplo, com a interpretação de sonhos! (p. 267).

De fato, entre o segundo semestre de 1897 e o final de 1899 Freud trabalhou


arduamente em seu livro dos sonhos, que permaneceu sendo seu mais precioso trabalho.
A Interpretação dos Sonhos (1900) é um marco histórico no desenvolvimento das ciências
humanas.
A tese central da obra é a de que os sonhos possuem sentido. Esse estaria ligado
invariavelmente a desejos inconscientes (uma concessão a essa tese é feita em relação aos
sonhos de pacientes traumatizados, após a introdução da compulsão à repetição, que
estaria além do princípio do prazer (Freud, 1920)). Uma vez que, para Freud, só o desejo
pode colocar a mente em movimento, todo sonho é a realização de um desejo. No caso
de crianças muito pequenas, ou seja, antes da instauração da instância crítica e da divisão
da mente entre consciente e inconsciente, os sonhos são realizações indisfarçadas de
desejos conscientes do dia anterior. Em crianças mais velhas e adultos, nos quais a
instância crítica (em 1923 chamada de superego (Freud, 1923)) já está atuante, os sonhos
são a realização de desejos inconscientes. Contudo, uma vez que esses desejos são
inconscientes, não podem ser representados diretamente nos sonhos, mas precisam ser
disfarçados; Freud chamou esse processo de distorção onírica (1900, 1915).
Quem faz com que o trabalho do sonho tenha que lançar mão da distorção onírica?
A censura, naturalmente, a mesma que fez com que o impulso tivesse que ter sido
reprimido em primeiro lugar. Entretanto, há uma diferença entre o funcionamento da
censura durante o dia e durante a noite. A diferença é que durante a noite ela se abranda.
Quando o ego se põe a dormir, uma parte significativa da censura, a ele ligada, vai dormir
junto. Mas ela não se desliga por completo, uma vez que ainda é responsável pela
distorção onírica, ou seja, por fazer com que os impulsos desejantes que dão origem ao
sonho sejam disfarçados, principalmente via deslocamento, mas se aproveitando também
da condensação. Freud dizia que os sonhos eram a via régia ao inconsciente. Ou seja, por
meio da interpretação, que desfaz o trabalho do sonho, podemos acessar os conteúdos
reprimidos. Concluímos, assim, que esses conteúdos possuem mais liberdade nos sonhos
do que na vida de vigília. Aqui, uma pergunta é fundamental para a ideia que vou
desenvolver: por que motivo a censura se desliga à noite, ou melhor, diminui sua
intensidade? Pode-se dizer que isso acontece pois o ego vai dormir e, assim, permite uma
diminuição da censura. Isso é verdade, mas tem outro motivo, de alta importância, e que
é consequência direta do estado de sono.
Freud dá a resposta no item Realização de Desejos, no capítulo sete de A
Interpretação dos Sonhos (1900). Ele começa a situar o assunto na seguinte passagem:
Não sei dizer que modificação é provocada no sistema Pcs pelo estado do
sono, mas não há dúvida de que as características psicológicas do sono
devem ser buscadas essencialmente nas modificações das catexias desse
sistema particular – um sistema que também controla o acesso ao poder de
movimento, que fica paralisado durante o sono. (p. 582)
Freud diz que as modificações provocadas no estado do sono no sistema Pcs estão
ligadas ao fato de que o acesso à motilidade fica impedido. Apesar de introduzir a questão
nesse parágrafo, ele ainda não liga diretamente esse fato com a diminuição da censura. A
resposta vem mais adiante:
É claro que as moções de desejo inconscientes tentam tornar-se eficazes
também durante o dia, e o fato da transferência, assim como as psicoses,
indicam-nos que elas lutam por irromper na consciência através do sistema
pré-consciente e por obter o controle do poder de movimento. Assim, a
censura entre o Ics e o Pcs, cuja existência os sonhos nos obrigam a supor,
merece ser reconhecida e respeitada como a guardiã de nossa saúde mental.
Contudo, acaso não devemos encarar como um ato de descuido por parte
dessa guardiã que ela relaxe suas atividades durante a noite, permita que
as moções suprimidas do inconsciente se expressem e possibilite à
regressão alucinatória voltar a ocorrer? Creio que não, pois muito embora
esse guardião crítico repouse – e temos provas de que seus cochilos não
são profundos – ele também fecha a porta à motilidade. Sejam quais forem
as moções do inconsciente, normalmente inibido, a entrarem saltitantes em
cena, não há porque nos preocuparmos; elas permanecem inofensivas, uma
vez que são incapazes de acionar o aparelho motor, o único pelo qual
poderiam modificar o mundo externo. O estado de sono garante a
segurança da cidadela a ser guardada. (pp. 594 – 595, meu grifo)
Ou seja, não temos que temer nossos impulsos pois eles não são capazes de
“acionar o aparelho motor”. Esse não é um aspecto acessório da teoria dos sonhos de
Freud, mas central, uma vez que todo impulso tende a ser descarregado no aparelho
motor, conforme fica claro no modelo que representa aquela que ficou conhecida como
primeira tópica. De fato, o modelo de aparelho psíquico de Freud é o do arco reflexo, no
qual um estímulo deflagra uma atividade motora. O primeiro modo de funcionamento do
aparelho psíquico é o de descarga direta, chamado por Freud de processo primário; com
a necessidade de adaptação à realidade, desenvolveu-se o processo secundário (Freud,
1911, 1920), que é um adiamento da ação, possível graças à atividade do pensamento.
Mas bem conhecemos os rompantes emocionais, os acting outs, perdas de controle, etc,
de modo que inúmeras vezes a descarga não pode ser evitada. Além disso, existe o medo
inconsciente de que a manifestação do impulso atinja a atividade motora. Sendo assim,
ter o acesso à motilidade extinguido é o mais curto processo de proteção contra o perigo
instintual. Haja vista as algemas e o sistema carcerário. Portanto, se fosse possível ao ser
humano estar totalmente protegido em relação à sua atividade motora, como acontece nos
sonhos, estaríamos mais livres para liberar nossos impulsos de amor e ódio sem medo.
Mas é exatamente isso que acontece num setting virtual! Estamos impossibilitados
de assassinar nosso analista, ou de atuar um desejo edípico, por mais intensos que possam
ser esses desejos. O fato de não termos acesso ao corpo do analista é um obstáculo
intransponível para todo e qualquer impulso, motivo pelo qual, penso, em muitas análises
virtuais os impulsos transferenciais se manifestam com maior liberdade. Nesse sentido, o
setting virtual se assemelha a um sonho e permite maior liberdade e acesso aos impulsos
reprimidos, tornando a análise de alguns tipos de pacientes mais potencializadas. Não é
o momento de entrar no mérito de que tipo específico de pacientes são ajudados por esse
fato, uma vez que nossas pesquisas em relação aos trabalhos virtuais ainda são muito
insipientes e, de qualquer forma, essa não é a finalidade do presente artigo.
Exemplos clínicos
Vinheta 1
A primeira vez que um fato dessa natureza chamou minha atenção foi com M.,
um educador físico que tinha sérios problemas com autoridade. Achava que não era
amado por seu pai, que sempre o achou fraco. Com o tempo, passou a odiá-lo, o que lhe
rendia imensa culpa. Para se mostrar forte, a si mesmo e a seu pai, esculpiu um corpo que
considerava “assustador”. Sentia vontade de socar pessoas na rua com frequência. Esses
temas eram sempre trazidos em relação a pessoas de sua vida fora da análise, e jamais se
manifestavam no setting. Qualquer tentativa de ligar uma fala de ódio em relação a
alguém da vida do paciente ao analista era radicalmente negada.
M. estava contrariado e, caso se permitisse, estaria também com raiva do analista,
pelo fato deste não aceitar continuar as sessões presenciais após o início da quarentena da
Covid 19. A primeira consulta online transcorreu sem maiores novidades.
M. “chega” para a segunda consulta online diferente. Está no quintal de sua casa,
e não em seu escritório. Usa uma camiseta regata, exibindo seus músculos. Tem cara de
mau, que lembra um vilão de faroeste. Fico um pouco chocado com a cena (hoje em dia
nos habituamos mais a essas situações, mas era no início da pandemia e estávamos todos
muito confusos), mas resolvo não dizer nada e aguardar. M. fala de um bando de
“maricas” que treinam na academia que frequenta, e continua seu discurso de
inconformismo diante da quarentena. Em seguida me pergunta se tenho medo do vírus.
Digo que tenho um pouco de medo. Sem se dar conta, e de forma inédita (o ineditismo
estava no fato de o assunto estar tão intimamente relacionado a mim), começa a atacar
esse “povo” que se “caga” de medo de um vírus, etc. Escuto-o por um tempo sem me
manifestar. Em seguida, diz que tinha tentado ir até a academia, mas a mesma estava
fechada, o que o revoltou. Nessa hora, relatou, “tive vontade de socar o primeiro marica
que cruzasse minha frente”, e me mostra seu braço musculoso. Eu digo, “nós que temos
medo do vírus que nos cuidemos!”. M. responde, bravo, sem medo, sem pudor e de forma
totalmente inédita “fique tranquilo, não conseguiria te bater nem que eu quisesse, nem
isso essa porcaria de computador permite”; enquanto fala faz cara de bravo.
São muitos os temas relacionados ao fragmento citado acima. Um analista mais
inclinado pelas tradições poderia se apegar a esse caso como uma demonstração de que
não é o possível ter um verdadeiro setting num contexto virtual, argumento que deve ser
respeitado e considerado, e que daria margem para inúmeras discussões envolvendo o que
é um setting. Mas o aspecto para o qual quero chamar atenção, nesse momento, é a
manifestação de impulsos hostis até então radicalmente reprimidos, que, acredito eu,
puderam vir à tona devido à análise online, ou seja, à perda do acesso à motilidade: “não
conseguiria te bater nem que eu quisesse”. Esse caso específico, com todas as oscilações
do setting, ficou bastante enriquecido com o atendimento virtual, apesar das dificuldades.

Vinheta 2
L. é uma mulher de 45 anos que está em análise há 4. Por volta do segundo mês
de terapia online, devido à pandemia, pede ao analista se podem continuar as consultas
sem vídeo. O terapeuta consente. Na terceira sessão realizada dessa forma a paciente
relata um abuso sexual sofrido na infância, nunca narrado antes; o mesmo foi realizado
na região do ânus, segundo ela para não deixar marcas. Com bastante vergonha, conta
que só consegue ter relações sexuais se estiver sofrendo algum tipo de abuso físico ao
mesmo tempo, como por exemplo, sentindo dor; e só atinge o orgasmo com sexo anal.
O analista pergunta se ela havia percebido que só tinha conseguido falar disso
agora, que estavam muito distantes, fisicamente e sem vídeo. Ela diz que não tinha
percebido isso, mas concorda que esse fator deve ter sido fundamental. Por que será?
Pergunta o analista. A paciente diz que tinha medo de alguma coisa, embora não soubesse
nomear naquele momento do quê. Assim como na vinheta anterior, não analisarei os
desdobramentos dessas manifestações, por não ser o foco do presente artigo.

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