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ESPAÇO E LIMITE:

A CLÍNICA DA TRANSICIONALIDADE

“... e como conheci um pouco Winnicott, não muito,


mas enfim, vi que tipo de homem era ele, imaginei
Winnicott na British Psycho-Analytical Society, com
Anna Freud à sua direita, o tempo todo insistindo no
objeto da realidade externa, e à sua esquerda
Melanie Klein (risos), que enchia os ouvidos de todo
o mundo com os objetos internos. Nisso Winnicott
disse: “Estou cheio destas mulheres! O externo, o
interno ... o interno, o externo... Não quero ter de
escolher. Então eu invento um terceiro campo: o
campo transicional. (risos)” .

André Green (1990)

“ A noção de objeto transicional é uma das mais


importantes descobertas em Psicanálise.”

Jacques Lacan (1967-1968). Seminário 15, “O ato


psicanalítico”.

“O objeto transicional teve como finalidade conferir


significação aos primeiros sinais de aceitação de um
símbolo pelo bebê em desenvolvimento. Este
precursor símbolo é, por sua vez, parte do bebê e
parte da mãe. Com freqüência , é de fato um objeto
e a adição da criança a este objeto real é admitida e
permitida pelos pais. Porém pode não ocorrer uma
materialização; observamos que certo fenômeno
tem a mesma significação; por exemplo, observar
atentamente, pensar, distinguir cores, exercitar
movimentos e sensações corporais, etc. A própria
mãe pode converte-se em objeto transicional, ou o
polegar da criança; formas degeneradas são, entre
outras, o balanceio, o bater com a cabeça contra
algo sólido, o chupar extremamente compulsivo,
etc., e mais tarde a pseudologia fantástica e o
roubo. Em condições favoráveis, este objeto cede
gradualmente seu lugar a uma gama cada vez mais
ampla de objetos e a toda vida cultural.”

Donald Winnicott. Idéias e definições


(provavelmente no começo da década de 50).

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Quero começar este nosso encontro com uma referência a Saint
Exupéry e ao seu livro “O Pequeno Príncipe”, conhecido de todos nós e
que fala de um menino.
Neste livro há a seguinte passagem:

“O Pequeno Príncipe“ está perdido numa encruzilhada, está só e é


noite no deserto e - de repente - ele encontra um homem. Pede-lhe,
então, que desenhe um carneiro.
“Monsieur s’il vous plait, dessine moi un mouton!”.
O homem assim o faz e o “Pequeno Príncipe” fica frustrado. Não é
esse o carneiro que deseja. Repete o pedido. O homem desenha um
novo carneiro. Novamente se frustra o menino. O caminhante resolve,
então, desenhar uma caixa com um buraco e explica que ali dentro há um
carneiro e que existe - inclusive - um buraco para ele respirar. O menino,
exultante, exclama:
“Sim, é este o carneiro!”.
Este trecho de Saint Exupéry introduz o nosso tema de hoje:
“Espaço e Limite: a Clínica da Transicionalidade”.

Uma das mais originais e difundidas concepções de Donald


Woods Winnicott (ou DWW, como o chamava Clare Winnicott), é o
conceito de objetos e fenômenos transicionais. Em um artigo intitulado
“Transitional Objects and Transitional Phenomena” (1951) e no livro
publicado vinte anos depois, “Playing and Reality”(1971), assim como de
uma forma não sistemática em inúmeros outros trabalhos, este conceito é
desenvolvido tanto em seu aspecto metapsicológico como clínico.
A concepção de DWW de objetos e fenômenos transicionais parte
do que ele considera a “hipótese original”:

“É sabido que os bebês, assim que nascem, tendem


a usar o punho, os dedos e os polegares em
estimulação da zona erógena oral, para a satisfação
dos instintos dessa zona... É igualmente sabido que,
após alguns meses, bebês de ambos os sexos
passam a gostar de brincar de bonecas e que a

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maioria das mães permite a seus bebês algum
objeto especial, esperando que eles se tornem, por
assim dizer, apegados a tais objetos”.

Aqueles que observam os bebês e suas mães terão notado que há


uma série de eventos que, continua ele, “...começam com as primeiras
atividades do punho na boca do bebê recém nascido e que acabam por
conduzir a uma ligação a um ursinho, uma boneca ou um brinquedo
macio ou, ainda, a um brinquedo duro” (Winnicott, 1971).
O uso destes objetos constitui, para DWW, “a primeira possessão
que seja não-eu”, o que nos dá uma idéia da importância destes
acontecimentos na vida do bebê. O que importa não é tanto o cobertor ou
o ursinho que o bebê usa mas o uso que o bebê faz do objeto (Winnicott,
1968).

Spinoza, em seu “Tratado de Grámatica Hebraica”, diz que


existem nomes que são destinos. Assim parece ter sido com DWW e o
objeto transicional. Collete Chiland (Chiland, 1990) comenta que viu
DWW, em 1969, em Londres, se divertir com o fato de que o “cot” de seu
nome significar berço em inglês, e ele comentava que via nisto uma
“predisposição” para ter desenvolvido a teoria do “holding”. Collete
Chiland faz, então, um jogo de palavras lembrando o personagem da
literatura inglesa “Winnie-the-Pooh”, criação de A. A. Milne (1882-1956),
publicado em 1926, e que é citado, como já vimos, diretamente por
Winnicott (Winnicott, 1971). “Winnie-the-Pooh” é um ursinho de pelúcia...
O nome Winnicott significaria então, um urso-de-pelúcia-em-um-berço ...

A CLÍNICA DA TRANSICIONALIDADE

“Responda “sim” ou “não” ! Winnicott diz: Eu


não respondo nem sim nem não: o objeto
transicional é e não é o seio”. (Green, 1990)

DWW escreve:

“Introduzi os termos ‘objetos transicionais’ e


‘fenômenos transicionais’ para designar a área

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intermediária da experiência, entre o polegar e o
ursinho, entre o erotismo oral e a verdadeira relação
de objeto, entre a atividade criativa primária e a
projeção do que já foi introjetado, entre o
desconhecimento primário da dívida e o
reconhecimento desta (diga ‘bigado’)”. (Winnicot,
1971)

Estes conceitos introduzidos por DWW na Psicanálise, são


conhecidos da literatura, da filosofia, das artes em geral, como ele próprio
escreve. Fernando Pessoa, o poeta, costumava dizer que quem aprecia
uma paisagem está vendo, na verdade, duas: a paisagem verdadeira e
uma outra, interna, e que a arte nasce da sobreposição destas duas
imagens.
André Green, em seu livro “Conferências Brasileiras:
Metapsicologia dos limites” (Green, 1990) nos fala de uma “lei geral”:
sempre que dividimos um espaço em dois, atribuindo a cada um destes
dois espaços propriedades contrárias, criamos um terceiro espaço na
intersecção dos dois, que é a formação de compromisso da divisão entre
os dois espaços anteriores. Este terceiro espaço comportará atributos
dos dois espaços separados.

Ele escreve:

“... é sempre assim em Psicanálise: a partir do


momento em que há dois termos antinômicos, duas
estruturas opostas por diferenças radicais, vocês
acharão lugar para um terceiro espaço, que é um
espaço de compromisso, que combina as
características de ambos. A simbolização é isto: é a
reunião de duas partes separadas que, reunidas,
formam uma totalidade, na qual cada um dos dois
espaços conserva suas características, enquanto
uma terceira estrutura é criada pela reunião dos
dois, tendo esta terceira estrutura características
diferentes de cada uma das metades.”

Foi a partir da observação do que DWW chamou de “uma espécie


de intimidade”, da relação em que mãe e filho “vivem juntos uma
experiência” e onde se cria “um momento de ilusão”, é que ele deu o
passo inicial para estabelecer o conceito de objeto transicional e

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fenômenos transicionais, elementos básicos da clínica da
transicionalidade.
DWW considera que é necessário uma mãe “suficientemente boa”
para que o bebê possa evoluir do Princípio do Prazer para o Princípio de
Realidade (ou no sentido , e para além dela, da identificação primária
(Freud, 1923)). Esta mãe “começa com uma adaptação quase completa
às necessidades do bebê e, à medida que o tempo passa, adapta-se
cada vez menos completamente, de modo gradativo, segundo a
crescente capacidade do bebê em lidar com o fracasso dela” (Winnicott,
1971, 1975). A “mãe suficientemente boa” propicia, desta forma, a ilusão
de que o seio dela faz parte do bebê e, principalmente, é criado por ele,
“de que ela está, por assim dizer, sob o controle mágico do bebê”
(Winnicott, 1971). A onipotência é uma experiência necessária ao bebê
nesta “vivência de ilusão”, que é criada de início pela mãe, a qual deverá,
também, desiludir gradativamente seu bebê. Esta desilusão necessária
só será possível se a mãe propiciou momentos suficientes de “ilusão”.
Green (Green, 1988), em seu livro “Sobre a Loucura Pessoal”, comenta
que “... o objeto transicional ganha existência e entra em função no
começo da separação entre a mãe e o bebê.”

DWW escreve:

“... em outra linguagem, o seio é criado pelo bebê


repetidas vezes, pela capacidade que tem de amar
ou (pode-se dizer) pela necessidade. Desenvolve-se
nele um fenômeno subjetivo que chamamos seio da
mãe. A mãe coloca o seio real exatamente onde o
bebê está pronto para criá-lo, e no momento exato.
Desde o nascimento, portanto, o ser humano está
envolvido com o problema da relação entre aquilo
que é objetivamente percebido e aquilo que é
subjetivamente concebido e, na solução desse
problema, não existe saúde para o ser humano que
não tenha sido iniciado suficientemente bem pela
mãe. A área intermediária a que me refiro é a área
que é concedida ao bebê, entre a criatividade
primária e a percepção objetiva baseada no teste de
realidade.” (Winnicott, 1971)

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Os objetos e os fenômenos transicionais têm sua base nesta
experiência de “ilusão”. Este momento inicial do desenvolvimento do
bebê é possível pela capacidade da mãe “suficientemente boa” de se
adaptar às necessidades de seu bebê (possibilitando a “ilusão” de que
aquilo que ele cria existe realmente) e, ao mesmo tempo e
gradativamente, oferecendo a vivência de “desilusão”. Esta teoria da
“ilusão-desilusão”, assim como a noção de que o objeto transicional não
é externo e tampouco interno, introduz a importância do conceito de
“paradoxo”, presente em várias outras concepções de DWW. É
importante que o “paradoxo” seja aceito, tolerado e respeitado e não
“resolvido”, o que somente será possível pela fuga para o funcionamento
em nível puramente intelectual (através da cisão) e o indivíduo pagará
um alto preço por isto em termos de saúde mental.
Deixando um espaço temporal para amplas variações, DWW
sugere que os fenômenos transicionais começam a surgir por volta dos
quatro ou seis meses até oito ou doze meses de idade.
Em “Playing and Reality” (1971), DWW especifica e resume as
qualidades especiais de relacionamento do bebê com o objeto
transicional.

“1) O bebê assume direitos sobre o objeto e desenvolve uma


experiência de onipotência que deve ser aceita pela mãe;

2) O objeto é afetuosamente acariciado, bem como excitadamente


amado e mutilado;

3) Ele nunca deve mudar, a menos que seja mudado pelo bebê;

4) Deve sobreviver ao amor pulsional, ao ódio e também à


agressividade pura, se esta for uma característica;

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5) Contudo, deve parecer ao bebê que lhe dá calor, ou que se
move, ou que possui textura, ou que faz algo que pareça mostrar que tem
vitalidade ou realidade próprias;

6) Ele é oriundo de exterior, segundo o nosso ponto de vista, mas


não o é , segundo o ponto de vista do bebê. Tampouco provém de dentro
(não é alucinação);

7) Seu destino é permitir que seja gradativamente “descatexizado”,


de maneira que, com o passar dos anos, se torne não tanto esquecido,
mas “relegado ao limbo”. Com isso quero dizer que, na saúde, o objeto
transicional não vai para “dentro” e tampouco o sentimento a seu respeito
sofre repressão. Não é esquecido e não é pranteado. Perde o significado
e isso se deve ao fato de que os fenômenos transicionais se tornam
difusos, se espalham por todo o território intermediário entre a “realidade
psíquica interna e o mundo externo”, tal como é percebido pelas pessoas
comuns, isto é, por todo o campo cultural” (Winnicott, 1971).

Este conceito de “área de ilusão”, de objeto e de fenômenos


transicionais tem grande importância para a compreensão da criatividade
e da cultura em todas as suas formas. Masud Khan, no prefácio que
escreveu para o livro de DWW, “Collected Papers: Thorough Paedriatrics
to Psycho-Analysis”, comenta que “... o conceito de objeto transicional
ajudou o pensamento psicanalítico a reavaliar o papel da cultura como
um incremento positivo e construtivo na experiência humana e não como
causa de descontentamento”.
O desenvolvimento posterior nesta área do conhecimento levou
DWW a fazer a diferenciação entre a relação objetal e o uso de um
objeto. Em seu trabalho “The Use of na Object” (Winnicott, 1968),
publicado como parte de “Psycho-Analytic Explorations” (Winnicott, 1989),
ele descreve resumidamente suas concepções, o que coloca importantes
questões para a psicopatologia e para a teoria da técnica psicanalítica
(Outeiral, 1993). DWW escreve:

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“Apresento como tema para discussão os motivos
pelos quais, na minha opinião, a capacidade para
usar um objeto é mais elaborada que a capacidade
para relacionar-se com objetos; o relacionar-se pode
ser com o objeto subjetivo, ao passo que o usar
implica que o objeto faz parte da realidade externa.
Pode-se observar a seguinte seqüência : 1) o sujeito
se relaciona com o objeto; 2) o objeto está em
processo de ser colocado no mundo pelo sujeito; 3)
o sujeito destrói o objeto; 4) o sujeito sobrevive à
destruição; e 5) 0 sujeito pode usar o objeto.
O objeto está sempre sendo destruído. A destruição
passa a ser o inconsciente pano de fundo do amor
por um objeto real, isto é, um objeto fora da área de
controle onipotente do sujeito.
O estudo deste problema envolve uma afirmação do
valor positivo da destrutividade. A destrutividade,
acrescida da sobrevivência do objeto à destruição,
coloca o objeto fora da área dos objetos criados
pelos mecanismos mentais projetivos do sujeito.
Desse modo, nasce um mundo de realidade
partilhada, que o sujeito pode usar, e a qual pode
enriquecer o sujeito com uma substância-outra-que-
não-eu (“other-than-me-substance”)”. (Winnicott,
1968)

Em um trabalho apresentado em 1959, intitulado “The Fate of the


Transitional Object” (Winnicott, 1989), DWW escreveu que os objetos
transicionais se encontram em diversos processos de transiçãao: um
deles se vincula com as relações de objeto, outro com a passagem de um
objeto que é subjetivo para o bebê a outro que é objetivamente percebido
ou externo, etc., ocorrendo aquilo que Sechehaye chamou de “realização
simbólica”.
Ao comentar o destino do objeto transicional, DWW considera que
há dois enfoques:
1) Ele escreve que os “velhos soldados nunca morrem, somente
desaparecem”, e assim seria com o objeto transicional, que ficaria
relegado ao “limbo”. Ele poderia ser, então, segundo DWW:
- ser suplantado, porém conservado
- gasto
- entregue (o que não resulta satisfatório)

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- ser conservado pela mãe (como “relíquia” de uma preciosa época
de sua vida)
- etc.

2) DWW correlaciona o objeto transicional como a base do


simbolismo e considera que um destino do objeto transicional seja
possibilitar uma terceira zona (dos objetos e fenômenos transicionais)
como a área de vida criativa e cultural do indivíduo. A primeira zona
corresponde ao mundo interno do indivíduo e a segunda é a da realidade
externa.

DWW escreve (Winnicott, 1989):

“Sem dúvida vocês apreciarão o que quero dizer.


Brincando um pouco: vamos a um concerto e escutamos
um dos últimos quartetos de corda de Beethoven (como
vêem, sou uma pessoa refinada...). Este quarteto não é
um mero fato externo produzido por Beethoven e
executado pelos músicos; nem tampouco é um sonho
meu, que na verdade jamais teria sido tão bom. A
experiência, somada à minha maneira de preparar-me
para ela, me permite criar um fato glorioso. Disfruto-o
porque, como digo, eu o criei, eu o alucinei e é real e
estaria, de todos os modos, ali, embora eu não
houvesse sido concebido. Isto é louco. Entretanto, em
nossa vida cultural aceitamos a loucura, exatamente
como aceitamos a loucura da criança que afirma
(embora não possa expressá-lo com seus balbuceios)
sobre o seio: Eu o alucinei e é parte de minha mãe, que
estava ai antes de que eu viesse ao mundo”.

“RABISCOS CLÍNICOS”

“Onde está o objeto analítico na sessão? Uns


dirão: ‘no paciente’. Outros dirão: ‘no analista’.
Pois ele não está nem no paciente, nem no
analista. Está no espaço de reunião das trocas
transferenciais e resulta das trocas entre o
analisando e o analista.” (Green, 1990)

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Existe uma série de situações psicopatológicas descritas por DWW
na área dos objetos e fenômenos transicionais. Nas situações de perda e
separação, por exemplo, podemos considerar a seguinte situação:

“... como exemplo do manejo pela criança da


separação e da perda, chamo a atenção para o
modo como a separação pode influenciar os
fenômenos transicionais. Como se sabe, quando a
mãe, ou alguma outra pessoa de quem o bebê
depende, está ausente, não há uma modificação
imediata, uma vez que o bebê possui uma
lembrança ou imagem mental da mãe, ou aquilo que
podemos chamar de uma representação mental
dela, a qual permanece viva durante certo tempo.
Se a mãe ficar longe por um período de tempo além
de certo limite medido em minutos, horas ou dias,
então a lembrança, ou a representação interna da
mãe, se esmaece. À medida que isto ocorre, os
fenômenos transicionais se tornam gradativamente
sem sentido e o bebê não pode experimentá-los.
Podemos observar o objeto sendo descatexizado.
Exatamente antes da perda podemos, às vezes,
perceber o exagero do uso de um objeto transicional
como parte da negação de que haja ameaça dele
se tornar sem sentido”. (Winnicott, 1971)

DWW cita um exemplo ilustrativo desta situação ao descrever o


uso de um cordão por um menino, onde há uma identificação materna
(baseada em sua própria insegurança em relação à mãe), que poderia
transformar-se em homossexualismo: da mesma maneira a preocupação
com cordões comportará um potencial para a perversão.

Júlio de Mello Filho, em seu trabalho “Donald Winnicott, 20 anos


depois” (Mello Filho, 1989), comenta como DWW referiu-se à patologia
da transicionalidade em situações como no mentir, no furtar, no
fetichismo, na drogadição e no uso do talismã nos rituais dos obsessivos.
É interessante ressaltar que o “menino do cordão” referido antes,
desenvolveu na adolescência um quadro de dependência de drogas. A
este respeito Eduardo Kalina escreveu um trabalho “A Incapacidade de
Estar Só e o Uso Abusivo de Drogas Psicotóxicas” (Outeiral, 1989), onde

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o autor estabelece uma correlação entre a patologia da transicionalidade
e o uso de drogas.

O próprio DWW escreve:

“A pergunta é: um pesquisador que efetuasse um


estudo desse caso de vício em drogas daria a
devida consideração à psicopatologia manifestada
na área dos fenômenos transicionais?” (Winnicott,
1971)

E ainda:

“O objeto transicional pode acabar por se


transformar num objeto de fetiche e assim persistir
como uma característica da vida sexual adulta.”
(Winnicott, 1975)

O livro “Between Reality and Phantasy”, com contribuições de


autores como Masud Khan, André Green, Pontalis e outros, abre uma
série de considerações sobre a relação entre o transicional e a patologia,
que o tempo disponível neste evento não permite discorrer como talvez
seria necessário. Gostaria de referir, ainda, um trabalho de Renata
Gadinni sobre os precursores dos aspectos transicionais que diferem dos
objetos transicionais, entre outros aspectos, por não serem separados
posteriormente da criança (como o polegar), nem criados por ela (como a
chupeta). (Mello Filho, 1989)

Em um livro publicado por Paul Horton e vários colaboradores, e


chamado “The Solace Paradigm; A Ecletic Search for Psychological
Immunity” (1988), os fenômenos transicionais são estudados sob vários
ângulos (antropologia, lingüística, educação, religião, filosofia, saúde
mental e patologia), e quanto a patologia Horton faz uma revisão de
várias entidades como Estados Borderline (Modell), Distúrbios de
Personalidade (Horton), Esquizofrenia (Searles), Doenças
Psicosomáticas (Gaddini), Homossexualidade (Maasterson), Fetichismo
(Sperling), Ideação Obsessiva (Solomon) e Retardo Mental (Sherman e
Hetzig). (Mello Filho, 1989)

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Para Paulina Kernberg (Outeiral, 1993), as observações clínicas
parecem indicar que os aspectos transicionais em crianças borderline
estão ausentes ou podem adquirir uma qualidade bizarra. Em
adolescentes borderline esta autora escreve que a história de aspectos
de transicionalidade é inexistente. O relato de um objeto transicional
pressupõe a aquisição de uma relação objetal positiva com a mãe que
possa ser internalizada; assim, a relação da criança com seu objeto
internalizado por ser reproduzida num mundo intermediário de
experiência.

Paulina Kernberg escreve:

“Não é surpreendente que crianças borderline que


não desenvolveram um sentido positivo de SELF em
relação com um objeto positivo (no contexto de uma
experiência de conforto e prazer com a mãe) não
adotem um objeto transicional na fase dos 8 aos 24
meses, ou um de qualidade apropriada, isto é, um
objeto experimentado na gestalt da experiência
materna (como a ponta do lençol, fralda ou
brinquedo macio). Pelo contrário, estas crianças
tendem a continuar ‘penduradas’ na sua mãe,
procurando experiências simbióticas positivas ou
reabastecimentos positivos. Tendem também a
representar suas relações com a “mãe má da
separação”, vinculando-se a objetos inanimados,
como uma criança que tinha como objeto
transicional um telefone, que levava consigo aonde
quer que fosse. Além disso, os objetos transicionais
das crianças borderline reproduzem
caracteristicamente as imagens do SELF ou
imagens ideais semelhantes ao companheiro
imaginário, em contraste com os objetos
transicionais que refletem uma interação mãe-filho
positiva.” (Outeiral, 1993)

Masud Khan, talvez o único analista que se possa chamar de


“realmente” Winnicottiano, desenvolve um importante estudo sobre as
perversões, em um livro intitulado “Alienation in Pervertion” (Khan, 1979),
articulando o conceito e a Metapsicologia dos objetos transicionais com
estas patologias.

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Peter Giovacchini é outro autor que estudou os aspectos da
patologia dos fenômenos e dos objetos transicionais, particularmente em
um artigo sobre “O Adolescente Borderline como um Objeto Transicional”,
onde considera que, sendo a adolescência “uma fase transicional da
vida”, esta etapa, principalmente nas patologias borderline, nos ilustra
muito significativamente a respeito as contribuições de Winnicott sobre o
tema. Ele chama a atenção, em especial, para as mães que usam seus
filhos como “objetos transicionais”. Este estudo é uma continuidade do
trabalho de Lili Lobel sobre os Objetos Transicionais na história da
infância de adolescentes borderline (“Um Estudo dos Objetos
Transicionais no Começo da História de Vida de Adolescentes
Borderline”), onde a ausência destes objetos foi encontrada em dezoito
dos vinte adolescentes estudados. Os trabalhos de Pauline Kernberg,
Peter Giovacchini e Lili Lobel estão publicados no livro “O Adolescente
Borderline”, que tive a oportunidade de ser o editor (Outeiral, 1993).

Um importante estudo sobre o desenvolvimento da Psicose e do


Autismo na infância, bem como a existência de “barreiras autistas” nos
pacientes neuróticos, foi feito por Frances Tustin. Para esta autoria,
existem os objetos autistas, os objetos confusionais e os objetos
transicionais, e ela estabelecer as diferenças entre eles. Frances Tustin
considera que as crianças psicóticas, ao invés de desenvolverem objetos
e fenômenos transicionais, desenvolvem “objetos autísticos” (duros,
idiossincráticos) e objetos confusionais (macios e predominantemente
associados com sensações e fantasias rígidas, repetitivas e
compulsivas). Os objetos confusionais são uma amálgama do “eu” e do
“não-eu” e, porque são objetos macios, geralmente são tomados
erroneamente por objetos transicionais. Isto leva a uma má interpretação
dos estados mentais e ocasiona erros no tratamento. Assim, é importante
diferenciá-los uns dos outros: objetos autístico e confusional, por
exemplo, desviam a atenção da criança da tensão associada com
dolorosas situações “não-eu”. São “distrações” evasivas, ao invés de
auxiliar a criança a lidar e padronizar a tensão, como fazem objetos
transicionais. Outra contribuição importante de Frances Tustin é sobre a

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relação dos objetos autistas com os objetos fetichistas, considerando -
em discordância com Greenacre (1970) - que estes últimos têm mais a
ver com os objetos autistas do que com os objetos transicionais de DWW
(nota 1). Ela relaciona também os objetos autistas com suas qualidades
obsessivas, com as origens da neurose obsessiva. Em um trabalho
publicado em 1983, e intitulado “Mecanismos obsessivos e psicose
infantil: seguimento de um caso”, tive oportunidade de apresentar
material clínico ilustrando esta observação de Frances Tustin.

Feitas algumas considerações sobre a psicopatologia, podemos,


agora, fazer breves comentários acerca da contribuição da
transicionalidade para a técnica: gostaria de enfatizar - ao menos - um
elemento fundamental para DWW: a questão do setting.

TÉCNICA

Um dia, o olho viu - ao longe - uma montanha


com um céu azul e contou isto à mão, ao ouvido
e à boca.

Disse a mão:
- Estranho, não posso tocá-la!

Disse a boca:
- Engraçado, não consigo sentir o sabor!

Disse o ouvido:
- Esquisito, não consigo ouvi-la!

E, juntos, comentaram os três:


- Que estranha alucinação está tendo o olho!

( Conto do folclore árabe, Apud Alberto Abuchaim)

DWW considera que podemos nos defrontar, na experiência


clínica, com três categorias de pacientes:

1) O primeiro grupo atingiu a configuração triangular, edípica, e


possui um funcionamento mental em nível neurótico;

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2) O segundo grupo apresenta um predomínio dos elementos da
Posição depressiva, tal como descrita por Melanie Klein;

Estes dois primeiros grupos requerem, na opinião de DWW, um


tratamento psicanalítico “standard”, ou seja, segundo o modelo
psicanalítico desenvolvido por Sigmund Freud para o tratamento de
neuróticos.

3) O terceiro grupo compreende indivíduos que experimentaram


falhas ambientais em fases muito iniciais do desenvolvimento (como, por
exemplo, falhas na função materna primária através de intrusões -
impingments). Estas situações determinam um “congelamento” (freezing)
da situação de fracasso e uma “esperança” (hope)de que em algum
momento de suas vidas possam retomar novamente o desenvolvimento
“comum” (going on being). Para que possam “descongelar” esta falha
ambiental necessitam de um setting cuja ênfase esteja centrada no
holding - e nas demais funções da preocupação materna primária - e
onde o trabalho analítico comum deve ficar suspenso por longos
períodos. Para que este processo analítico possa acontecer, o paciente
deve ter a “esperança” de um encontro em que possa “descongelar” a
situação de fracasso inicial e o analista “engenho e arte” para perceber
esta demanda, receber a projeção da necessidade do paciente e
possibilitar que ele introjete a experiência de cuidado que lhe é oferecido.
É oportuno esclarecer que DWW sempre deixou bem claro que o setting
proposto por ele para estes pacientes visava - apenas - possibilitar que
em algum momento eles pudessem se engajar em um tratamento
analítico “standard”. Uma ressalva: DWW também pensava que este
setting poderia ser útil em determinadas situações no tratamento dos
pacientes dos dois primeiros grupos, os “neuróticos comuns”.

André Green, em suas “Conferências Brasileiras” (1987), se refere


ao seguinte chiste: qual a diferença entre o psicanalista e o homem que
faz chaves? Ele diz que quando a chave não abre a fechadura, o

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psicanalista quer trocar a fechadura e o chaveiro, mais esperto,
experimenta outra chave. Com este chiste/exemplo Green introduz a
importância do setting se adequar às necessidades de cada paciente,
como um indivíduo em particular. O mesmo autor escreve em “O outro e
a experiência do self”, introdução do livro “The Privacy of the Self”, de
Masud Khan.

“A obra de Winnicott e o trabalho de Marion Milner,


“The Handles of Living Good”, nos ensinam que em
vez de rejeitar os pacientes cuja estrutura psíquica
não consegue se adaptar ao setting, cabe ao setting
modificar-se em função da estrutura do paciente.”

Neste sentido, o conceito de “idio” (Bollas, 1992) ou “idioma” do


paciente é muito interessante, Escreve C.Bollas:

“Idioma, uma peculiaridade, uma propriedade


específica, uma característica única.
Idiómai - fazer pertencer a si, apropriar-se.
Idios - próprio, pertencendo a si próprio, privado,
pessoal.
Tese:
O idioma humano é aquela peculiaridade da
pessoa/personalidade, que encontra sua própria
maneira de ser por meio da seleção e uso particular
do objeto. Neste sentido restrito, o ser e o apropriar-
se são uma coisa só.” (Bollas, C., Forças do
Destino. Psicanálise e Idioma Humano. Imago. Rio
de Janeiro, 1992)

No prefácio da Edição Inglesa de “The Piggle” (1977), Claire


Winnicott e R.Shepperd, do Winnicott Publications Comittee, escreveram
que “o Dr. Winnicott adaptava sua técnica às necessidades de cada caso
específico. Se a Psicanálise total era necessária e possível, ele fazia a
Análise. Do contrário, mudava sua técnica de sessões regulares em
sessões ‘de acordo com a demanda’, ou em consultas terapêuticas
isoladas ou prolongadas”. Um exemplo do método ‘de acordo com a
demanda’ é o caso da “Piggle” (1977) e os relatos de atendimento do
“Squiggle Game” (1971).

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Em “The Aims of Psycho-Analytical Treatment” (1965), DWW
escreve:

“Gosto muito de fazer análise e sempre aguardo


com expectativa o final de cada uma delas. A
análise pela análise não tem sentido para mim. Faço
análise porque é disso que o paciente precisa e
aceita. Se o paciente não precisa de análise, faço,
então, outra coisa. Na análise pergunta-se: quanto é
permitido fazer? Por contraste, em minha clínica, o
lema é: quão pouco precisa ser feito?”

Ele concluiu este trabalho afirmando:

“Em minha opinião, nossos objetivos no exercício da


técnica padrão não são alterados, no caso de
interpretarmos os mecanismos mentais que
pertencem aos tipos psicóticos de desordem e aos
estágios primitivos nas fases de desenvolvimento
emocional dos indivíduos. Se nosso objetivo
continua a ser o de verbalizar o consciente
incipiente em termos de transferências, então
estaremos fazendo análise; caso contrário, seremos
analistas fazendo outra coisa que consideramos
apropriada à ocasião. E porque não?”

Estas duas citações são exemplos da importância que DWW dá à


clínica e à escolha do instrumento técnico mais adequado, considerando
sempre que o paciente, com seu “idioma” (Bollas, 1992) próprio, é quem
deve orientar nossa atividade analítica. O trabalho “The Aims of Psycho-
Analytical Treatment” (1962) é um dos textos mais interessantes sobre o
tema que estamos abordando.

Quero, agora, fazer uma composição sobre três premissas


básicas: (1) o conceito de “idio” que cada paciente nos apresenta (Bollas,
1992); (2) a noção do setting como “metáfora de cuidados maternos”
(Green, 1990): e (3) a noção de “analista suficientemente bom” (“Good
Enough Analyst”, Martin Weich, 1990).

A noção de “analista suficientemente bom” está, evidentemente,


ligada ao conceito de “mãe suficientemente boa” (“Good Enough Mother”,
Winnicott, 1950).

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No intitulado “Metapsychological and Clinical Aspects of
Regression Within the Psychoanalytic Set-Up” (1954), DWW descreveu
as três categorias de pacientes a que me referi antes, e que torno, agora
sinteticamente, a rememorar, particularmente em relação ao que
chamamos “a terceira categoria”:

“A terceira categoria compreende todos os pacientes


cuja análise deve lidar com sucessivas falhas no
desenvolvimento emocional em estados primitivos
anteriores e contemporâneos ao estabelecimento da
personalidade como uma entidade, e anteriores à
aquisição da unidade espaço-tempo e da realização
do “psique-soma” (“Mind and Its Relation to Psyche-
Soma”, 1949). Estas falhas determinam situações
de congelamento da(s) situação(ões) de fracasso
ambiental (Winnicott, 1954), requerendo uma
técnica cuja ênfase está centrada no “holding “,
praticado por “um analista suficientemente bom” que
se adapta ao “idioma” do paciente e onde, às vezes,
o trabalho analítico comum deve ficar suspenso por
longos períodos.”

A tarefa do “analista suficientemente bom” deve considerar, além


das funções descritas como da “mãe suficientemente boa” (holding,
handling e apresentação de objeto), os seguintes aspectos , entre outros:

1) A regressão, no sentido descrito por DWW, é compreendida


como um mecanismo de defesa do ego altamente organizado, que
envolve a existência de um “falso self” (“false self”) que, por sua vez,
protege o “verdadeiro self” (“true self”). A teoria da regressão como um
fenômeno normal e parte do processo de cura inclui a idéia de um ser
humano capaz de defender o seu self (“verdadeiro self”) contra o
fracasso ambiental específico (a depressão materna, por exemplo),
através de um “congelamento” da situação de fracasso. Ao mesmo tempo
há uma esperança inconsciente, que poderá se tornar consciente, de
mais tarde re-experimentar e “descongelar” a situação de fracasso num
estado regredido e num ambiente favorável, capaz de exercer a
“preocupação materna primária”. Esta função é o atributo básico do

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“analista suficientemente bom”. É fundamental, entretanto, compreender
que DWW refere-se a este ponto como um modelo tático e que DWW
(1989) diz textualmente:

“... estou sempre tentando compreender o que fazer


com o paciente para fazer progredir o processo
analítico, e situar-se de volta em minha posição
analisante clássica.”

2) Uma questão essencial é a noção de “regressão à


dependência”. DWW, em “Metapsychological and Clinical Aspects of
Regression Within the Psychological Set-Up” (1954), escreve:

“O setting da análise reproduz as mais antigas


técnicas de maternagem. Convida à regressão pela
confiança que inspira. A regressão de um paciente é
um retorno organizado à dependência inicial ou
dupla dependência. O paciente e o setting fundem-
se na situação de sucesso original do narcisismo
primário; o progresso para além do narcisismo
primário se inicia de novo, com o verdadeiro self
capaz de enfrentar situações de fracasso ambiental,
sem organizar defesas que envolvem a proteção do
verdadeiro self por um falso self.”

Assim, os pacientes descritos como pertencentes ao terceiro grupo


(Winnicott, 1954), somente poderão ter sua doença aliviada por uma
experiência que envolva a regressão e uma provisão ambiental especial.

DWW (Winnicott, 1954) descreve que, na prática, há um


desenvolvimento dos seguintes fatos:

1. o fornecimento de um setting que transmita esperança;


1. regressão do paciente à dependência com o devido senso do risco
envolvido;
1. a sensação, por parte do paciente, de um novo sentido de self, e o
self até então oculto rendendo-se ao ego total;
1. um descongelamento da situação de fracasso ambiental;

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1. a partir da nova posição de força do ego, o ódio relacionado ao
fracasso ambiental inicial é sentido no presente e expresso;
1. há um retorno da regressão à dependência em um progresso
ordenado em direção à independência;
1. necessidades e desejos pulsionais tornam-se realizáveis com uma
vitalidade e um vigor genuínos.

Outra questão importante na construção do setting pressupõe a


criação de uma concepção de espaço e limite. DWW comenta: “... a
expontaneidade só faz sentido num ambiente controlado. O conteúdo não
tem sentido sem forma”.

Júlio de Mello Filho (Mello, 1989), em seu excelente estudo sobre


DWW, considera:

“Deste modo, o mesmo Winnicott, que tanto


ampliou os horizontes psicanalíticos ao alcance de
um paciente (o verdadeiro ser, o sentido da vida, a
relação com a cultura e a criatividade) preocupava-
se em dar limites a este encontro consigo mesmo e
com o terapeuta, para que esta experiência não se
pusesse num sem fim de possibilidades, que
pudesse ter um sentido real e pragmático,
permitindo uma saída do caos no qual vivem tantos
de nossos pacientes...”.

A capacidade de simbolizar, tão prejudicada nos pacientes a que nos


referimos, é a reunião de duas partes separadas (interno e externo) que,
reunidas, formam uma totalidade, na qual cada um dos dois espaços
conserva suas características, enquanto uma terceira estrutura é criada pela
reunião dos dois, tendo esta terceira estrutura características diferentes de
cada uma das metades. Esta é, segundo André Green, a articulação a ser
feita entre a noção de espaço transicional e a formação de símbolos.

A propósito de André Green, penso que seria interessante e lúdico um


chiste que ele conta a propósito da criação da noção de objeto transicional:
ele diz que no auge das controvérsias na British Psychoanalytical Society,

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DWW coordenava uma reunião com Anna Freud à sua direita, o tempo todo
insistindo no objeto da realidade externa, e à sua esquerda Melanie Klein,
que enchia os ouvidos de todos com os objetos internos... O externo, o
interno... Nisto, Winnicott teria dito: Estou cheio destas mulheres! O externo,
o interno... não quero ter de escolher. Então, eu invento um terceiro objeto: o
objeto transicional”.

3) Outra referência importante que nos trazem as estruturas clínicas a


que estamos nos referindo é o ódio. O que é necessário é compreender que
é inevitável experimentar com estes pacientes o ódio na contratransferência:
se determinado paciente sente o vazio, o caos e a destruição, ele não poderá
fazer outra coisa senão tentar fazer sofrer e destruir o analista. DWW, em
seu conhecido trabalho “Hate in the Countertransference” (1947), diz que o
paciente tem o direito de sentir ódio pelo analista. Se o ódio não se
manifestar na contratransferência, o paciente tem a sensação de falar no
vazio - não encontra ninguém. É importante entender que mesmo que
vivamos uma sessão catastrófica, não devem permanecer traços deste
acontecimento na sessão seguinte. “Na sessão seguinte recomeçaremos do
zero” (André Green, 1990).

Quando se revela o ódio, o importante é que o paciente tenha a


sensação que o analista “permanece vivo”; “o importante é que o paciente
sinta que o analista reage ao que ele diz e permanece em contato com ele”.

André Green (1990) escreve:

“Você começa a dar uma interpretação e ele já


pressente o perigo que ela representa para ele, se
for até o fim... Enquanto você fala, este tipo de
paciente já instalou o filtro, instalou desconexões,
instalou todos os dispositivos que lhe permitem ouvir
sem escutar. É o que Bion chamou de “fator K”... É
por isso que Bion diz que com este tipo de paciente
é mais vantajoso ouvir do que compreender”.

E, ainda, em outro trecho esclarecedor:

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“Bion nos disse que existem os ataques ao
vínculo - attack on linking - ou seja, tudo o que
começa a ligar-se, se desliga, por causa dos fatores
“menos K” (minus K); como conseqüência, no que
existe aí, o trabalho do analista é completamente
diferente. Aí, o trabalho do analista não pode
resumir-se em analisar, mas deve re-ligar. Eu diria
que, mais do que uma síntese, é uma análise ao
contrário; quer dizer, é a análise afetada por um
sinal de menos ( - ), de tal forma que não se trata de
decompor, mas de juntar, e juntar não é
inteiramente a mesma coisa que a síntese, pois a
síntese consiste em fazer uma totalidade, ao passo
que juntar consiste em criar uma nova religião ...
quando o psicótico tem um insight iluminado, trata-
se de um insight delirante. O caráter iluminador
corresponde ao que Bion diz quando se apóia na
citação de Freud, quando este diz: “Quando há
alguma coisa que eu não compreendo, eu me cego.”

4) Um último ponto (the last, but not the least) a fazer referência
corresponde ao que Green chama “vagamente” de estruturas não-
neuróticas. Para este autor nas estruturas neuróticas os pais lutar contra
suas próprias pulsões, permitindo à criança se haver com suas pulsões
internas, e existe “uma boa divisão de trabalho”: os pais ajudam a organizar
a satisfação das pulsões da criança, combinando as satisfações e as
inevitáveis frustrações em um equilíbrio. Nas estruturas não-neuróticas as
crianças, além de lutar contra suas próprias pulsões, têm de lutar contra as
pulsões do objeto (mãe/pai). As pulsões do objeto vão se manifestar
indiretamente sob a forma de sintomas: angústia da mãe, depressão da mãe,
ausência da função estruturante paterna, etc. A criança tem de se haver com
duas frentes: a interna e a externa. Esta observação se articula,
evidentemente, com a questão do ódio na contratransferência.

Em um trabalho intitulado “The Mirror-role of Mother and Family in


Child Development” (Winnicott, 1971), que tem seu ponto de partida no
estágio do espelho de Jacques Lacan, DWW diz que quando um bebê olha
para sua mãe podem ocorrer duas coisas: ou é a ele mesmo que ele vê no
olhar da mãe (objeto subjetivo), pois há harmonia entre seu estado interior e
o que ele vê na expressão olhar da mãe, ou o bebê não vê a si mesmo no

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olhar da mãe, vê a mãe. A criança (ou o paciente) torna-se, assim
(habilmente), dependente da percepção do olhar da mãe (ou do analista),
não podendo construir seu “objeto subjetivo”, tornando-se dependente do
objeto “objetivamente percebido”.

André Green (Green, 1990) escreve:

“Suponhamos que um bebê que gostaria de ser


acolhido por sua mãe com um sorriso, prazer e
entusiasmo, depara-se com o olhar de uma mãe
deprimida. Nesse caso não há mais concordância
entre seu estado interior e o olhar da mãe, não
havendo então construção de um verdadeiro self,
isto é, o bebê não pode expressar sua raiva
esperando que a resposta materna reconheça esta
raiva e lhe restitua não a raiva, mas uma boa
imagem ... se o bebê deixa-se levar por este conflito
torna-se “louco”...”.

Se, como vimos antes, o setting que pensamos mais adequado é


aquele que se estrutura como uma “metáfora de cuidados maternos”, estas
questões são extremamente relevantes, pois há com estes pacientes o risco
constante do desenvolvimento de “um falso self psicanalítico”.

Para concluir estas idéias, ou rabiscos, sobre o tema da correlação


entre “espaço e limite” e a “clínica da transicionalidade”, considero importante
que os que estão lendo este texto intervenham fazendo seus próprios
rabiscos para que, juntos, seguindo o modelo do “Squiggle Game”, sugerido
por DWW, possamos desenvolver um “brincar” criativo e expontâneo.

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BIBLIOGRAFIA

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de D.W.Winnicott. Imago. Rio de Janeiro. 1982.

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