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Introdução

A história não pertence aos profissionais que escrevem a escrevem. A história é

uma dimensão essencial da vida prática dos homens no mundo. A construção da história

se dá primeiramente no cotidiano, no “solo instável da convicção relativamente difusa,

pré-teórica e assistemática”, para citar Jorn Rüsen, no qual os homens pensam, agem,

perseguem seus objetivos. Ao agirem no mundo, e se expressarem através da

linguagem, interpretando e projetando seu mundo, os homens constroem visões da

história e do tempo, referem-se a fatos, criam concepções de causalidade e

continuidade, interpretações sobre o passado, o presente e o futuro.

A linguagem é, portanto, revestida de historicidade, especialmente a linguagem

política. Ela é uma expressão da consciência histórica das sociedades. Uma maneira de

abordar essa questão é investigar a história dos conceitos políticos: abordar a diacronia

das transformações na semântica dos conceitos fundamentais do vocabulário político

para revelar as mudanças na forma como os homens constroem o tempo, a história, o

passado e o futuro.

Apresentarei aqui uma investigação histórica sobre o conceito de povo no Brasil

entre 1750 e 1840, no debate político luso-brasileiro através de uma documentação que

inclui debates parlamentares, periódicos, textos doutrinários, e outros. Trata-se de um

período amplo em que a experiência histórica se acelerou em inúmeras mudanças. Foi o

momento do acirramento dos conflitos entre a coroa e os poderes locais do Império

colonial, da implementação do despotismo ilustrado, da crise do Antigo Regime luso

brasileiro, da emancipação política e dos embates políticos e sociais ocorridos na

construção e consolidação do Estado Imperial Brasileiro.

Para analisar os usos do conceito político de povo no período tratado, elegi para

análise o fenômeno da temporalidade na semântica política e o processo de


“historicização” que marcou a linguagem política entre os séculos XVIII e XIX no

Brasil e no mundo ocidental como um todo.

Com inspiração de autores como Reinhart koselleck, Marcel Gauchet, Pierre

Rosanvallon, entre outros, definimos como historicização conceitual dois fenômenos

correlacionados: primeiramente, a inserção dos conceitos em concepções processuais e

universais do tempo o que lhes confere uma profundidade histórico temporal que antes

não possuíam. Também definimos como historicização dos conceitos seu

contingenciamento, isto é, o fato de seus significados passarem a ser extraídos de

percepções, análises, diagnósticos e julgamentos da realidade empírica presente, sejam

quais forem os pontos de vista que os presidem. Podemos chamar este fenômeno,

correndo o risco do anacronismo, de “realismo sociologico”. Estes dois processos

constituídos no decorrer da segunda metade do século XVIII e especialmente no século

XIX afastaram cada vez mais a conceitualidade política de repertórios semânticos

estáticos e a-históricos característicos do Antigo Regime e da medievalidade.

Foi este processo que passou a me interessar no estudo do debate político no

Brasil, um conjunto de transformações semânticas que acompanhou e moldou a

evolução do conceito de povo e a própria criação da idéia moderna de povo-nação no

ocidente ao longo do século XIX. Cabe aqui uma explicação. Porque me dedicar a um

estudo sobre o conceito de povo e não ao de nação? Povo é um conceito político muito

mais antigo que o de nação na cultura luso-brasileira. Embora a idéia de nação seja

muito antiga também, não aparecia com a força semântico-política que o conceito de

povo sempre apresentou. A totalidade do corpo político eram no Antigo Regime e na

medievalidade ibérica os povos (os corpos do reino, a comunidade, as cidades e vilas do

reino e do Império português), entidades ligadas ao rei por um pacto especifico. Eram os

povos aqueles reunidos nas câmaras municipais, detentores do direito de “petição” e


muitas vezes de rebelião e insurreição. Considerei, portanto, particularmente

interessante entender a evolução deste conceito tão antigo e fundamental, até que sua

ligação ao conceito de nação se consolidasse ao longo do século XIX, quando se

tornaria a base física da “unidade espiritual” chamada nação moderna, para citar Ernest

Renan.

Procurei estudar o conceito de povo a partir de seus usos na linguagem política

cotidiana, procurando mapear as falas dos principais grupos políticos. Não busco definir

uma substância, no sentido de um caráter e peculiaridade do povo brasileiro, ambição

característica das construções discursivas da nacionalidade. Interessa-me justamente

investigar o processo cotidiano e conflituoso da vida da vida prática que ao longo do

século XIX moldou o conceito de povo-nação.

Minha hipótese geral é a seguinte: na década de 1830 no contexto da reação

conservadora às ameaças de rebelião popular e desmembramento territorial e político, o

processo de historicização do conceito de povo se aprofundou: o conceito foi percebido

como um processo de construção na história, afastando-se de concepções abstratas a-

históricas. Ao mesmo tempo, aprofundou-se a tendência a enraizar o conceito de povo

em diagnósticos da situação presente, em fatos empiricamente observáveis, através de

conceitos raciais e sócio-econômicos. Para usar as palavras de Marcel Gauchet, o “povo

empírico” se sobrepôs definitivamente ao “povo jurídico-político” na linguagem política

daqueles que comandaram pelo alto a formação brasileira

Tenho duas hipóteses específicas:

1) Esta historicização não levou no período estudado a uma visão de

futuro. Ao se falar em povo no debate político entre 1750 e 1840, as

elites políticas não apontavam um futuro discernível. Estamos falando


de um povo na história, mas uma história latente, contínua e sem

futuro.

2) Esta historicização e sociologização do conceito de povo formou as

bases para a futura cristalização do conceito de povo-nação no Brasil,

calcado nas idéias de cultura, realidade étnica e natural, e menos

calcada no pertencimento cívico, à idéia de participação política. ; um

povo de caráter pacifico e ordeiro, ligado mais aos dons da natureza, à

raça, às artes e ao folclore, longe da idéia de ação política e

revolucionária. Essa idéia se perpetuou na interpretação acadêmica

sobre as características do povo brasileiro.

*****************************************************

Meu trabalho parte da segunda metade do século XVIII na vasta colônia

portuguesa chamada Brasil. O conceito de povo, especialmente em seu plural “povos”,

era de grande importância na linguagem política e administrativa daquele momento. Os

povos eram considerados a base do corpo social e político: eram o conjunto hierárquico

dos corpos do reino português. Felicidade, conservação e sossego dos povos eram as

justificativas, por exemplo, das petições das câmaras municipais ao rei. Nos textos

legais de base do Império português, as Ordenações, o conceito aparece como o alicerce

do corpo político social que deveria ser conservado e protegido, mantendo-se a justiça,

isto é seus lugares sociais estabelecidos, com seus privilégios e jurisdições. Os povos,

junto ao rei eram os partícipes de uma eterna ordem mística: tinham lugares específicos,

direitos e deveres estabelecidos que deveriam ser respeitados e mantidos. Era muito

comum o uso de metáforas como a do corpo humano, na qual os povos eram os

membros, e o rei a cabeça; e a metáfora da família, em que os povos eram os filhos e o

rei o pai. Enquanto o rei tinha o dever de manter a harmonia e a justiça, os povos tinham
determinadas funções para garantir o “bom funcionamento” do corpo social. O que

importa destacar para os nossos fins é a a-historicidade destas concepções, seu caráter

estático, fora do tempo histórico, e sua importância nesta segunda metade do século

XVIII, de onde partimos. Vejamos alguns exemplos:

“assim se deve fazer o bom Príncipe, pois que por Deus foi dado
[seu poder] principalmente não para si, nem seu particular proveito, mas para
bem governar o seu povo, e aproveitar a seus súditos como a próprios filhos”
1
.
Se o povo forma o Corpo, o Rey Cabeça
Os sentidos trazer deve apurados
Para que pronto o sirva, e lhe obedeça
Por todos vele em fim com mil cuidados
Que só por que nenhum dos seus pereça,
É que tantos poderes lhe são dados 2

Este conceito de povo tradicional, de origem medieval, essencialmente a-

histórico, teve uma versão modernizada construída no século XVII. A razão natural

dizia que os povos eram os detentores originários do poder, dado a eles diretamente por

Deus, que apenas posteriormente teria sido passado ao reis sob condições estabelecidas

em um pacto. Nesta concepção, o retorno da soberania aos povos era uma possibilidade

em caso de tirania, o que seria um descumprimento do pacto originário da soberania

real. Os povos eram, junto ao rei, responsáveis por manter a justiça, conservando de

forma latente o poder dado por Deus. Poderiam tomá-lo de volta em caso de

arbitrariedade do detentor da soberania. Nos grandes movimentos de fins de século

XVIII e primeira metade dó século XIX essa idéia esteve amplamente presente,

somando-se às idéias da ilustração francesa.

No movimento de 1817 na Província de Pernambuco essa concepção apareceu

de forma evidente. A nobreza pernambucana se referia à tradicional relação entre os

povos e o monarca, recordando que “a obrigação do rei e dos seus ministros é conservar

os vassalos e suditos em paz, fazendo observar a cada um os ditames da razão e justiça”.


1
Ordenações Manoelinas. Livro I. Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. p. 1.
2
No original: “Fe o Povo fórma o Corpo/ o Rey Cabeça/ Os fentidos trazer deve apurados/ Para q~
prompto o firva e lhe obedeça/ Por todos vêlle em fim com mil cuidados,/ Q’fó por q~ tantos poderes lhe
fão dados”. CAMPOS, F A de N. 1085. Op. Cit
Porém, continuava o documento, “como a justiça divina é só reta e igualmente

distributiva, permite algumas vezes superiormente, que os mesmos que reconhecem a

obediencia castiguem as tiranias, mostrando rebeldia (...)”. 3

Para além dessas concepções tradicionais e a-históricas sobre o povo no sistema

político, o mundo luso brasileiro viveu na segunda metade do século XVIII as

conseqüências de uma política que pretendeu “modernizar” o Império em crise através

de diversas reformas institucionais e econômicas. Era o despotismo ilustrado iniciado no

reinando de D. José Primeiro pelo Marquês de Pombal, que procurou, entre outras

coisas, combater as doutrinas e visões de mundo de origem medieval, que viam os

povos como a base do corpo social e, em alguns casos mais radicais, como o

fundamento da soberania real. Tais concepções poderiam dar ensejo a pontos de vista

revolucionários, especialmente a idéia de retorno da soberania aos povos em caso de

tirania. No mesmo movimento, o despotismo ilustrado luso também procurou combater

a crítica política ilustrada que entrava ainda timidamente no território colonial com suas

idéias dos direitos naturais e vontade geral.

O despotismo ilustrado pombalino buscou horizontalizar, igualar os povos como

“súditos” do monarca, enfraquecendo a idéia de que estes tinham direitos, jurisdições

específicas dentro do Estado, os quais o rei deveria respeitar e manter. Trouxe também,

o que é central neste trabalho, a noção do povo como realidade natural a ser estudada,

diagnosticada, disciplinada e tutelada pelo estado monárquico. Na visão do despotismo

ilustrado, os administradores do Estado deveriam basear sua ação política na apreciação

do “estado civilizacional” do povo, o que seria definido por métodos das ciências

naturais.

Neste contexto, o conceito de “população” teve grande importância contra o

perigo que o conceito povo representava enquanto sujeito de direitos, jurisdições, e


3
Idem. p. 139.
lugar de ação no mundo. Na linha da doutrina fisiocrata, os administradores coloniais

preocupavam-se com a falta de uma população na colônia, tanto no sentido quantitativo,

como qualitativo, e a necessidade de aumentá-la, conhecê-la e controlá-la. Nas

memórias da Academia de Ciências de Lisboa, essa temática é constante.

A população colonial sempre foi um problema para as elites dirigentes, questão

que se agravou no século XVIII. A tripartição medieval entre clero, nobreza e povo

parecia fazer pouco sentido no mundo colonial americano. Além da imensa quantidade

de escravos, que sempre foi motivo de preocupação no que diz respeito à segurança dos

proprietários rurais, as autoridades percebiam como muito problemática a existência de

um contingente humano etnicamente diverso, formado, por brancos pobres, índios,

escravos libertos e mestiços sem lugar definido no sistema produtivo. Era a plebe

colonial. Fora muito comum a percepção de que na colônia não havia um verdadeiro

povo, mas sim uma vasta “plebe”, palavra correlata à palavra povo, que denota uma

parte considerada inferior da população. Quero destacar que até então, isto é, na

primeira metade do século XVIII, a plebe era percebida de maneira totalmente diferente

do que foi feito na segunda metade. Ao se buscar compreender as características da

plebe, os administradores coloniais, via de regra, buscavam o exemplo histórico ou a

autoridade de autores clássicos. A plebe do século XVIII era tida como a mesma da

Antiguidade. Era como se o tempo não houvesse transcorrido. O mundo Antigo era um

repertório de exemplos e máximas edificantes capazes de apontar características

constantes da natureza do homem e da vida social e política. O curso do tempo não era

ainda visto como produtor do novo, pois a natureza humana não sofria alteração

histórica.

Deste ponto de vista, tratando de uma revolta ocorrida na primeira metade do

século XVIII, um administrador colonial buscou Platão que comparava a plebe


“a um grande animal, do qual é preciso conhecer as manhas para
saber como há de ser tratado, que se não tem este animal quem o amanse,
faz-se furioso, se não o guiam, não sabe para onde anda, é terrível se não tem
medo, começando a temer se perturba e foge 4.

Retomando o argumento, na segunda metade do século XVIII, com o

despotismo ilustrado cientificista, entrou em cena outra forma de perceber a plebe

colonial por parte das elites coloniais. Através da idéia de “população”, a plebe passou

a ser objeto de observação, catalogação, análise, a partir dos parâmetros das ciências

naturais e econômicas do momento. Foi feito um novo esforço para perceber suas

características no presente histórico, através da observação, deixando em segundo

plano, o exemplo e a autoridade clássicas. Tratou-se de uma forma mais historicizada

em que o tempo histórico era capaz de produzir algo de novo, de diferente. Essa visão

naturalista do povo e da plebe servia aos propósitos políticos de alijá-las definitivamente

da ação no mundo político e social e foi um dos esteios de um projeto monárquico que

seria vitorioso mesmo após a independência.

Num segundo momento da minha pesquisa, busquei investigar o conceito

político de povo em uso no processo de Independência Brasileira, que se deu entre 1820

e 1823. Com o Rei português no Rio de Janeiro desde 1808, após a invasão napoleônica

na península ibérica, as elites portuguesas iniciaram um processo revolucionário, que

pedia a volta do rei à Portugal sob um sistema constitucional. No reino do Brasil, os

acontecimentos em Portugal tiveram repercussões que acabariam em 1822 levando à

emancipação política, haja vista a intenção dos liberais portugueses de recolonizar o

Brasil. É preciso ter em mente que desde 1808, o Brasil fora elevado à Reino Unido,

deixando de ser uma colônia em termos jurídicos, uma vez que era então a sede da

monarquia.

4
COUTO, Domingos de Loreto. Op. Cit.
Nos anos de efervescência revolucionária do constitucionalismo do início dos

anos 1820, o conceito de povo passou por um intenso processo de politização, isto é

passou a ser objeto de controvérsia e disputa política. A tônica da utilização do conceito

foi dada pela idéia de regeneração política, que tanto se referia a volta a um estado de

respeito aos direitos dos povos de acordo com a tradição luso-brasileira de origem

medieval, quanto o respeito aos direitos naturais de viés moderno. Era uma consciência

do tempo como retorno a um momento ou estado considerado áureo que dominava a

semântica do conceito: a regeneração era um processo em que os povos estavam

acordando de um profundo sono; voltando a um estado originário em que seus direitos

naturais haviam sido respeitados plenamente. Tal estado originário era freqüentemente

representado pelo passado medieval português, anterior ao absolutismo monárquico.

Ao se falar em povo ao longo do movimento, os diversos grupos tendiam a

perceber o conceito como algo estático, a histórico, uma consciência histórica típica do

século XVIII, marcada pela idéia de natureza humana, leis universais e estados

originários: os povos eram então um conjunto de indivíduos com direitos naturais que

deveriam ser satisfeitos. Independente e soberano – para os grupos de viés republicano;

já para os monarquistas constitucionais, o povo seria indissoluvelmente vinculado à

figura real, numa concepção que mantinha fortes vínculos com a idéia dos povos como

os filhos ou corpos em relação com a figura real, mas agora reelaborada pelas teorias

monárquicas da restauração francesa. A soberania do povo, portanto, não eliminava em

absoluto o lugar fundamental do rei e o tipo de relação que tradicionalmente era

esperado que mantivesse com seus povos: este continuava sendo “a cabeça e parte

essencial desse corpo moral” 5, como era concebido o corpo social na tradição

portuguesa. O periódico baiano O bem da ordem exigia que o rei continuasse a ser um

“pai no meio dos seus filhos”, amplamente acessível às demandas de seus povos. O
5
Idem. p 50
respeito e o amor permaneceriam o fulcro desta relação e o dever real era cultivar a

harmonia social administrando a justiça, isto é, mantendo “o merecimento premiado, os

ricos mantidos no gozo de seus bens, os pobres protegidos contra as pretensões

daqueles” 6. Neste sentido, segundo O Espelho, a Constituição a ser feita em Lisboa não

seria “um acto de hostilidade”, mas “um acto de união” que fixava as “relações

recíprocas do Monarca, e do Povo”, e lhes indicava “os meios de sustentar-se, de

apoyar-se e de ajudar-se mutuamente" 7. Trata-se, esta última, de uma citação de

Benjamin Constant muito em voga nos jornais vintistas 8.

A facção monarquista constitucional predominou no movimento que realizou a

independência a partir do Rio de Janeiro. Veio à tona também o conceito criado pelo

despotismo ilustrado do século XVIII, reatualizado pelo liberalismo conservador do

século XIX, que punha em relevo o “estado de civilização” do povo e a conseqüente

necessidade da tutela estatal e monárquica de um povo ainda em estado embrionário de

civilização. Este viés sobrepujou o conceito político-revolucionário de povo posto em

relevo por republicanos – entendida esta palavra na sua acepção mais larga. Não

podemos esquecer, que, embora os grupos políticos não se assumissem como

republicanos, e mesmo essa palavra fosse pouco utilizada, havia concepções

republicanas em cena. Nelas, o povo era considerado um ente separado e independente

da figura real, cujos direitos políticos são parte da natureza humana.

– o que he Povo? – Ah! Nós já somos em tempo de podermos responder, que


os seus Direitos vem de Deos e que os dos Governos vem dos Povos; esta
doctrina não he dos impios da França, mas sim dos grandes Philosophos que
tem seriamente estudado a natureza do homem; não he moderna, como
pretendem os amantes do Servilismo” 9

6
Idem. p 49
7
O Espelho 1 Outubro de 1821
8
Por exemplo, o tópico foi expresso também no folheto Constituição Explicada publicado em 1821,
dedicado à esclarecer o que significa uma constituição nos moldes definidos por Benjamin Constant. Ver
Constituição Explicada. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1821.
9
Revérbero Constitucional Fluminense. 27 de Agosto de 1822. p. 173
Cabe ressaltar, citando os trabalhos de Valdei Lopes Araújo, que este conceito

de civilização que circulou entre a segunda metade do século XVIII até os anos 1820

não tinha toda a carga histórica que ganharia mais tarde: significava antes o grau de

aproximação ou “atualização” em relação à natureza racional do homem e não tanto um

movimento ou curso da história. Era algo mais sincrônico, que diacrônico, eram os

povos tomando consciência, ficando mais racionais, vencendo os obstáculos para a

execução de seus direitos no mundo, acercando-se da realização prática de sua natureza,

e não ainda propriamente um marcha universal da história.

Nos debates a respeito do poder provincial da primeira assembléia constituinte

brasileira, aberta em 1823, percebemos nas falas de deputados de todas as vertentes usos

do conceito que remetem a uma estabilidade e a-historicidade. Em geral, o conceito

apresentou significados estáveis, estáticos e permanentes. Na fala de membros de

diversas tendências políticas o povo é “sempre falto de luzes”, o povo é “sempre

incapaz”, o que mostra que a constância e estabilidade ainda era a marca do uso do

conceito. O deputado Andrada Machado argumentou que “o povo em regra não conhece

a causa do mal; e muitas tentativas são precisas para que elle por fim acerte com o

remédio verdadeiro (...)” 10. Em outros termos, o povo era sempre o mesmo, a causa do

mal é sempre conhecida, como disse Bonifácio, logo, caberia administrar prontamente o

remédio conhecido, no caso, o fim das juntas provinciais criadas nas províncias em

apoio ao movimento constitucional em Portugal. Tratava-se de um povo visto numa

perspectiva em grande medida ainda a-histórica, própria deste contexto. O povo das

províncias era um ente de características estáveis e invariavelmente negativas, incapaz

de agir politicamente, logo, cabia ao governo do Rio de Janeiro agir para o seu bem,

“dar-lhe o pronto remédio”, a partir do reconhecimento de desta realidade.

10
Diários da Assembléia Geral Constituinte e legislativa do Império do Brasil (1823) IHGB. p 54.
É ao longo da década de 1830, que o conceito de povo ganhou maior

historicidade, auferindo uma tonalidade historico-temporal nova, perdendo em parte a

estabilidade semântica do mundo do antigo regime luso-brasileiro. Foi uma década de

intensa e conflituosa experiência histórica. O primeiro reinado brasileiro, constituído

após a independência entrou em crise e foi deposto em um movimento revolucionário

em 1831. A monarquia foi abolida, mas uma regência liberal tomou o poder, uma vez

que o herdeiro do trono era ainda uma criança. As elites liberais no poder tiveram que

lidar com tentativas revolucionárias nas diversas províncias do Império, revoltas

escravas e populares de todo tipo.

Acreditamos que na experiência histórica da década de 1830, a historicização do

conceito se aprofundou: ao longo dessa década, a experiência histórica conflituosa e

instável política e socialmente fez com que os liberais conservadores que chegaram ao

poder construíssem um discurso político em que o conceito de povo apareceu cada vez

mais despido de seu caráter político revolucionário, caracterizado pela a-historicidade

típica do pensamento do Antigo Regime, e inserido em visões processuais do tempo e

sociologicamente fundadas em observações e diagnósticos do real.

Primeiramente, foi preciso combater o conceito revolucionário e abstrato de

povo que as revoltas, sedições e tentativas revolucionárias na capital e nas províncias

veiculavam. Contra este conceito, opuseram, num primeiro momento, o conceito

ordeiro, moderado, pacífico e disciplinado. Logo após a revolução que depôs o

Imperador em 1831, um ministro da justiça já esboçava essa idéia:

“He porém á moderação do bom Povo Fluminense, superior a todo o elogio,


que na realidade se deve a glória, que hoje nos cobre de não termos maculado
a terra de Santa Cruz com o sangue de nossos cidadãos nessa lucta terrível do
Poder abusivo contra os esforços da liberdade legal: exemplo raro na História
Política das nações civilizadas, e que devemos ter como feliz presságio da
nossa verdadeira regeneração” 11

11
Relatório do Ministro da Justiça. 1830. Souza Franco p. 2 In. E-collections at the Center for Research
Libraries. Brazilian Government Document Digitization Project (http://www.crl.edu/content.asp?
l1=5&l2=24&l3=45)
A questão do “legítimo povo”, aquele que teria direito a se expressar na cena

pública, foi intensamente debatida nos periodismo da época. As lideranças liberais

conservadoras no poder procuraram mostrar que as revoltas das ruas não eram

manifestações do verdadeiro povo, mas de facções de desordeiros compostos pela plebe

e por traidores da pátria; já para os liberais de tendência mais radical, que foram alijados

do poder após a revolução, nos motins e revoluções por todo o Império, o povo que

protestava nas ruas era o sujeito do direito legítimo de petição e resistência. O conceito

revolucionário de povo foi então identificado neste discurso liberal conservador ao de

“facção” amotinada insubordinada, apartada do “verdadeiro povo”, devendo ser

apagado. Atacando um jornal radical, o principal jornal liberal-moderado questionava:

“O povo!! Pois 20 ou 30 vadios sem moral, sem educação, sem respeito


alguns as leis constituem o povo para os redactores do Tempo!” 12

As autoridades procuraram mostrar, assim como por ocasião dos eventos de

1831 no Rio de Janeiro, que as revoltas não haviam sido perpetradas pelo povo, mas por

homens que se diziam representantes deste para levantar a frente seus interesses e

paixões particulares. Um exemplo desta postura pode ser encontrada na famosa

Memória histórica e documentada da Revolução da Província do Maranhão, onde,

anos depois, Domingos José Gonçalves de Magalhães, secretário de Governo do

Maranhão e participante na repressão, lamentou haver “nos governos livres certos

homens que se julgam os representantes, de fato e de direito, de vontades que nunca

teve o povo, em cujo nome falam” 13. A soberania do povo entendida de modo abstrato e

teórico à moda ilustrada havia na visão do poder central levado ao caos do separatismo,

da violência e da anarquia, ameaçando a unidade e paz do Império. O conceito de povo

generalista, abstrato e teórico exaltado, fundado em direitos naturais á liberdade, à

12
Aurora Fluminense. 10 de Outubro de 1831
13
MAGALHÃES, D. J. G. de. 2001 Op. Cit. p. 76
participação política e à insurreição, havia sido o impulsionador do “espírito de

sedição”, que havia dominado as províncias.

A “soberania do povo” fora aceita como princípio, mas não implicava para as

elites imperiais no poder a aceitação da participação popular irrestrita e direta nas

decisões públicas. O lema destes políticos era o de que a política real não deveria ser

fundada em perigosas teorias da soberania popular, mas na analise acurada das

circunstancias do tempo, capaz de apontar o estágio de civilização do povo, que,

julgava-se, ainda inicial. Nas palavras do deputado Montezuma era preciso substituir a

“revolução dos homens” pela “revolução do tempo”, a única capaz de fazer marchar a

civilização:

“Os excessos produzidos pela doutrina do direito recalcam os


povos nas desventuras que produz a doutrina da opressão. Então confirma-se
por novas demonstrações esta verdade – que o adiantamento da civilização
deve resultar de trabalhos tranqüilos, e que os esforços para substituir as
revoluções dos homens à revolução do tempo, são fecundos em desastres” 14

Nos debates na câmara e no senado em torno do federalismo – um dos grandes

debates do Império brasileiro – fica claro este caráter temporal do conceito de povo:

inserido na marcha temporal da civilização, agora entendida como processo histórico

universal de melhoramento, a própria dinâmica universal do tempo histórico. O conceito

de civilização, agora entendido como grande marcha porque passavam o Brasil e o

mundo, e não mais apenas como o trinfo da razão sobre as supertições e o despotismo,

foi o esteio da historicização do conceito de povo levado a cabo ao longo dos

conturbados e violentos anos de 1830. Esta idéia do povo em processo apareceu nos

debates parlamentares do período vinculada à idéia de um espírito progressivo de ordem

que estaria dominando o povo após as grandes revoluções provinciais:

“sejão quaesquer que forem as vistas políticas de inimigos internos, e


externos, que tem animado, e protegido semelhante núcleo de guerra civil,
elles terão de desanimar á vista do espírito progressivo de ordem que tem
desenvolvido a maioria do bom Povo Brasileiro, mais judicioso, e sensato, do

14
Aurora Fluminense. 7 de Outubro de 1831
que o supunhão os que o tem julgado incapaz de sustentar suas Instituições
livres, sua Independência, e Dignidade”15

Debatia-se fundamentalmente a adequação do sistema federalista norte-

americano ao Brasil. A maior parte das vozes no Senado e na Câmara dos Deputados

argumentou contra uma reforma descentralizadora aprofundada. Era preciso, segundo o

deputado Bernardo Pereira de Vasconcelos respeitar o ritmo da civilização e as

diferenças existentes entre o povo brasileiro e norte-americano. Era imperioso “seguir a

experiência que nega tais saltos” sob pena de “em vez de produzir os efeitos que a

civilização espera” 16, causar um retrocesso. O deputado Ferreira da Veiga argumentou

que o Brasil não estava em “civilização e luzes a par dos povos mais avançados em

civilização”. Logo, segundo Souza Martins “nem todos os povos devem de chofre

receber instituições para que não estavam preparados”. 17

O conceito de povo se inseriu na consciência “moderada” e posteriormente,

francamente conservadora, erguida nesses anos numa perspectiva temporal e

sociológica, herdada do despotismo ilustrado cientificista, que pretendia apontar as

características do povo no presente histórico. Ao falar em povo, os liberais

conservadores brasileiros realizavam analises sociológicas e históricas a respeito da

contingência do momento, do momento civilizacional do povo, com o intuito dar um

embasamento realista e factual ao projeto político centralizador, monárquico e

antidemocrático. Era preciso

“chamar a attenção sobre os factos, colhe-los, coordena-los, e derramar o seu


conhecimento, até mesmo para combater a declamação, o vago, o falto de
positivo, com que nos vastos domínios de imaginações, optimistas tanto a
Sciencia Social tem sido desvairada” 18
“estes phenômenos, são importantíssimos; convém que não sejam
esquecidos; derramão eles pois huma luz immensa sobre o estado do Povo;
convém que não passem desapercebidos quando se trata de avaliar o grão de
efficacia das nossas leis que tem por fim prevenir e reprimir os delictos” 19

15
Relatório do Ministro da Justiça. Ministro Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho. p.5.
16
VASCONCELOS. 1999. Op Cit. p. 223
17
Anais da Câmara dos Deputados, 25 de junho de 1834 p. 173
18
Idem. p. 25
19
Idem p. 8
Formavam-se as bases da tradição imperial que sustentou o Império brasileiro

até sua queda em 1889: enquanto o povo estivesse seguindo o lento e gradual processo

de civilização, cabia à Coroa, auxiliada pelas elites na corte do Rio de Janeiro, ocupar-

se dos negócios políticos. Reatualizava-se sob bases renovadas o projeto ilustrado luso-

brasileiro iniciado pelo despotismo ilustrado pombalino que unia apreciação naturalista,

sociológica e histórica da realidade contingente do povo e tradição monárquica com o

objetivo de fornecer subsídios para controle e disciplina em função de um projeto

político monárquico-conservador.

Minha hipótese é a de que até a década de 1830, onde finalizamos nosso estudo,

a idéia de que esta marcha civilizacional progressiva do povo levaria a um futuro

discernível ainda não havia dominado as mentes das elites dirigentes brasileiras. Até

este momento, esta historicização conceitual não levou, como em outras experiências

históricas, a uma visão futurista ou teleológica. Em outras palavras, o conceito de povo

assumiu um tom mais processual, mas que não implicava ainda um apontamento para

um futuro discernível. Até aquele momento, não se vislumbrava um futuro ao se falar

em povo: este permanecia numa eterna, lenta e latente trajetória histórica, necessitando

de uma perene tutela do Estado Monárquico. Os eternos diagnósticos sobre o estado

inicial de civilização do povo se encerravam em si mesmos, pois parecia ainda

impossível vislumbrar a constituição de um novo povo apto à vida numa sociedade

moderna ocidental. Uma história do conceito que permanece, portanto, ainda, sem final

e sem amanhã.

Foi apenas mais tarde, nas últimas décadas do século XIX, que este conceito de

povo eternamente “sem amanhã” dos anos 1830 foi posto em xeque. Novos grupos

políticos e de opinião criticaram a tradição política imperial trazendo a idéia de um

futuro povo brasileiro. Este, entretanto, não seria um futuro de caráter político, mas
eminentemente sociológico: o Brasil seria um povo-nação mestiço, unido, não por laços

políticos, de vontade e ação, mas por elementos naturais, “sociológicos” ou “empíricos”

como meio, raça, natureza. Para pensar esse futuro, foi preciso desvencilhar as teorias

raciais existentes no repertório científico das noções de degeneração do mestiço. Foi

preciso criticar a escravidão, que no Brasil perdurou até 1888 e criar a possibilidade de

um novo povo no porvir. Tratava-se de um povo formado pela cultura, realidade étnica

e natural, e menos calcado no pertencimento cívico e à idéia de participação política.

Este conceito de povo formou as bases para o conceito de nacionalidade brasileira.

Esta historia do conceito de povo revelou, portanto a disputa entre duas

linhagens conceituais: um conceito abstrato e teórico, fundado na idéia da critica ao

despotismo, aos direitos naturais e costumeiros, presente tanto na tradição política do

Antigo Regime luso, quanto na linguagem política dos projetos revolucionários

“ilustrados”. Contra este conceito essencialmente abstrato e a-histórico, um conceito

sociológico e naturalista, fundado na observação das especificidades, caráter e modo de

vida dos povos. Este conceito sociológico, realista e naturalista foi o esteio em que se

deu o projeto monárquico vitorioso no Império Brasileiro, especialmente após a

estabilização conservadora no segundo reinado. O conceito abstrato e teórico fora

considerado pelas elites que tomaram a direção do estado imperial muito perigoso por

conter em si o espírito da revolução, que podia enevoar as distinções sociais básicas

hierarquia imperial.

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