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O Conceito de Povo No Braisl Imperial
O Conceito de Povo No Braisl Imperial
uma dimensão essencial da vida prática dos homens no mundo. A construção da história
pré-teórica e assistemática”, para citar Jorn Rüsen, no qual os homens pensam, agem,
política. Ela é uma expressão da consciência histórica das sociedades. Uma maneira de
abordar essa questão é investigar a história dos conceitos políticos: abordar a diacronia
passado e o futuro.
entre 1750 e 1840, no debate político luso-brasileiro através de uma documentação que
Para analisar os usos do conceito político de povo no período tratado, elegi para
universais do tempo o que lhes confere uma profundidade histórico temporal que antes
quais forem os pontos de vista que os presidem. Podemos chamar este fenômeno,
ocidente ao longo do século XIX. Cabe aqui uma explicação. Porque me dedicar a um
estudo sobre o conceito de povo e não ao de nação? Povo é um conceito político muito
mais antigo que o de nação na cultura luso-brasileira. Embora a idéia de nação seja
muito antiga também, não aparecia com a força semântico-política que o conceito de
reino e do Império português), entidades ligadas ao rei por um pacto especifico. Eram os
interessante entender a evolução deste conceito tão antigo e fundamental, até que sua
tornaria a base física da “unidade espiritual” chamada nação moderna, para citar Ernest
Renan.
cotidiana, procurando mapear as falas dos principais grupos políticos. Não busco definir
futuro.
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povos eram considerados a base do corpo social e político: eram o conjunto hierárquico
dos corpos do reino português. Felicidade, conservação e sossego dos povos eram as
justificativas, por exemplo, das petições das câmaras municipais ao rei. Nos textos
do corpo político social que deveria ser conservado e protegido, mantendo-se a justiça,
isto é seus lugares sociais estabelecidos, com seus privilégios e jurisdições. Os povos,
junto ao rei eram os partícipes de uma eterna ordem mística: tinham lugares específicos,
direitos e deveres estabelecidos que deveriam ser respeitados e mantidos. Era muito
rei o pai. Enquanto o rei tinha o dever de manter a harmonia e a justiça, os povos tinham
determinadas funções para garantir o “bom funcionamento” do corpo social. O que
importa destacar para os nossos fins é a a-historicidade destas concepções, seu caráter
estático, fora do tempo histórico, e sua importância nesta segunda metade do século
“assim se deve fazer o bom Príncipe, pois que por Deus foi dado
[seu poder] principalmente não para si, nem seu particular proveito, mas para
bem governar o seu povo, e aproveitar a seus súditos como a próprios filhos”
1
.
Se o povo forma o Corpo, o Rey Cabeça
Os sentidos trazer deve apurados
Para que pronto o sirva, e lhe obedeça
Por todos vele em fim com mil cuidados
Que só por que nenhum dos seus pereça,
É que tantos poderes lhe são dados 2
histórico, teve uma versão modernizada construída no século XVII. A razão natural
dizia que os povos eram os detentores originários do poder, dado a eles diretamente por
Deus, que apenas posteriormente teria sido passado ao reis sob condições estabelecidas
em um pacto. Nesta concepção, o retorno da soberania aos povos era uma possibilidade
real. Os povos eram, junto ao rei, responsáveis por manter a justiça, conservando de
forma latente o poder dado por Deus. Poderiam tomá-lo de volta em caso de
XVIII e primeira metade dó século XIX essa idéia esteve amplamente presente,
povos e o monarca, recordando que “a obrigação do rei e dos seus ministros é conservar
reinando de D. José Primeiro pelo Marquês de Pombal, que procurou, entre outras
povos como a base do corpo social e, em alguns casos mais radicais, como o
fundamento da soberania real. Tais concepções poderiam dar ensejo a pontos de vista
a crítica política ilustrada que entrava ainda timidamente no território colonial com suas
específicas dentro do Estado, os quais o rei deveria respeitar e manter. Trouxe também,
o que é central neste trabalho, a noção do povo como realidade natural a ser estudada,
do “estado civilizacional” do povo, o que seria definido por métodos das ciências
naturais.
que se agravou no século XVIII. A tripartição medieval entre clero, nobreza e povo
parecia fazer pouco sentido no mundo colonial americano. Além da imensa quantidade
de escravos, que sempre foi motivo de preocupação no que diz respeito à segurança dos
escravos libertos e mestiços sem lugar definido no sistema produtivo. Era a plebe
colonial. Fora muito comum a percepção de que na colônia não havia um verdadeiro
povo, mas sim uma vasta “plebe”, palavra correlata à palavra povo, que denota uma
parte considerada inferior da população. Quero destacar que até então, isto é, na
primeira metade do século XVIII, a plebe era percebida de maneira totalmente diferente
autoridade de autores clássicos. A plebe do século XVIII era tida como a mesma da
Antiguidade. Era como se o tempo não houvesse transcorrido. O mundo Antigo era um
constantes da natureza do homem e da vida social e política. O curso do tempo não era
ainda visto como produtor do novo, pois a natureza humana não sofria alteração
histórica.
colonial por parte das elites coloniais. Através da idéia de “população”, a plebe passou
a ser objeto de observação, catalogação, análise, a partir dos parâmetros das ciências
naturais e econômicas do momento. Foi feito um novo esforço para perceber suas
em que o tempo histórico era capaz de produzir algo de novo, de diferente. Essa visão
da ação no mundo político e social e foi um dos esteios de um projeto monárquico que
político de povo em uso no processo de Independência Brasileira, que se deu entre 1820
e 1823. Com o Rei português no Rio de Janeiro desde 1808, após a invasão napoleônica
Brasil. É preciso ter em mente que desde 1808, o Brasil fora elevado à Reino Unido,
deixando de ser uma colônia em termos jurídicos, uma vez que era então a sede da
monarquia.
4
COUTO, Domingos de Loreto. Op. Cit.
Nos anos de efervescência revolucionária do constitucionalismo do início dos
anos 1820, o conceito de povo passou por um intenso processo de politização, isto é
foi dada pela idéia de regeneração política, que tanto se referia a volta a um estado de
respeito aos direitos dos povos de acordo com a tradição luso-brasileira de origem
medieval, quanto o respeito aos direitos naturais de viés moderno. Era uma consciência
naturais haviam sido respeitados plenamente. Tal estado originário era freqüentemente
perceber o conceito como algo estático, a histórico, uma consciência histórica típica do
século XVIII, marcada pela idéia de natureza humana, leis universais e estados
originários: os povos eram então um conjunto de indivíduos com direitos naturais que
figura real, numa concepção que mantinha fortes vínculos com a idéia dos povos como
os filhos ou corpos em relação com a figura real, mas agora reelaborada pelas teorias
esperado que mantivesse com seus povos: este continuava sendo “a cabeça e parte
essencial desse corpo moral” 5, como era concebido o corpo social na tradição
portuguesa. O periódico baiano O bem da ordem exigia que o rei continuasse a ser um
“pai no meio dos seus filhos”, amplamente acessível às demandas de seus povos. O
5
Idem. p 50
respeito e o amor permaneceriam o fulcro desta relação e o dever real era cultivar a
daqueles” 6. Neste sentido, segundo O Espelho, a Constituição a ser feita em Lisboa não
seria “um acto de hostilidade”, mas “um acto de união” que fixava as “relações
independência a partir do Rio de Janeiro. Veio à tona também o conceito criado pelo
relevo por republicanos – entendida esta palavra na sua acepção mais larga. Não
6
Idem. p 49
7
O Espelho 1 Outubro de 1821
8
Por exemplo, o tópico foi expresso também no folheto Constituição Explicada publicado em 1821,
dedicado à esclarecer o que significa uma constituição nos moldes definidos por Benjamin Constant. Ver
Constituição Explicada. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1821.
9
Revérbero Constitucional Fluminense. 27 de Agosto de 1822. p. 173
Cabe ressaltar, citando os trabalhos de Valdei Lopes Araújo, que este conceito
de civilização que circulou entre a segunda metade do século XVIII até os anos 1820
não tinha toda a carga histórica que ganharia mais tarde: significava antes o grau de
movimento ou curso da história. Era algo mais sincrônico, que diacrônico, eram os
brasileira, aberta em 1823, percebemos nas falas de deputados de todas as vertentes usos
incapaz”, o que mostra que a constância e estabilidade ainda era a marca do uso do
conceito. O deputado Andrada Machado argumentou que “o povo em regra não conhece
a causa do mal; e muitas tentativas são precisas para que elle por fim acerte com o
remédio verdadeiro (...)” 10. Em outros termos, o povo era sempre o mesmo, a causa do
mal é sempre conhecida, como disse Bonifácio, logo, caberia administrar prontamente o
remédio conhecido, no caso, o fim das juntas provinciais criadas nas províncias em
perspectiva em grande medida ainda a-histórica, própria deste contexto. O povo das
de agir politicamente, logo, cabia ao governo do Rio de Janeiro agir para o seu bem,
10
Diários da Assembléia Geral Constituinte e legislativa do Império do Brasil (1823) IHGB. p 54.
É ao longo da década de 1830, que o conceito de povo ganhou maior
em 1831. A monarquia foi abolida, mas uma regência liberal tomou o poder, uma vez
que o herdeiro do trono era ainda uma criança. As elites liberais no poder tiveram que
instável política e socialmente fez com que os liberais conservadores que chegaram ao
poder construíssem um discurso político em que o conceito de povo apareceu cada vez
11
Relatório do Ministro da Justiça. 1830. Souza Franco p. 2 In. E-collections at the Center for Research
Libraries. Brazilian Government Document Digitization Project (http://www.crl.edu/content.asp?
l1=5&l2=24&l3=45)
A questão do “legítimo povo”, aquele que teria direito a se expressar na cena
conservadoras no poder procuraram mostrar que as revoltas das ruas não eram
e por traidores da pátria; já para os liberais de tendência mais radical, que foram alijados
do poder após a revolução, nos motins e revoluções por todo o Império, o povo que
protestava nas ruas era o sujeito do direito legítimo de petição e resistência. O conceito
1831 no Rio de Janeiro, que as revoltas não haviam sido perpetradas pelo povo, mas por
homens que se diziam representantes deste para levantar a frente seus interesses e
teve o povo, em cujo nome falam” 13. A soberania do povo entendida de modo abstrato e
teórico à moda ilustrada havia na visão do poder central levado ao caos do separatismo,
12
Aurora Fluminense. 10 de Outubro de 1831
13
MAGALHÃES, D. J. G. de. 2001 Op. Cit. p. 76
participação política e à insurreição, havia sido o impulsionador do “espírito de
A “soberania do povo” fora aceita como princípio, mas não implicava para as
decisões públicas. O lema destes políticos era o de que a política real não deveria ser
julgava-se, ainda inicial. Nas palavras do deputado Montezuma era preciso substituir a
“revolução dos homens” pela “revolução do tempo”, a única capaz de fazer marchar a
civilização:
debates do Império brasileiro – fica claro este caráter temporal do conceito de povo:
mundo, e não mais apenas como o trinfo da razão sobre as supertições e o despotismo,
conturbados e violentos anos de 1830. Esta idéia do povo em processo apareceu nos
14
Aurora Fluminense. 7 de Outubro de 1831
que o supunhão os que o tem julgado incapaz de sustentar suas Instituições
livres, sua Independência, e Dignidade”15
americano ao Brasil. A maior parte das vozes no Senado e na Câmara dos Deputados
experiência que nega tais saltos” sob pena de “em vez de produzir os efeitos que a
que o Brasil não estava em “civilização e luzes a par dos povos mais avançados em
civilização”. Logo, segundo Souza Martins “nem todos os povos devem de chofre
15
Relatório do Ministro da Justiça. Ministro Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho. p.5.
16
VASCONCELOS. 1999. Op Cit. p. 223
17
Anais da Câmara dos Deputados, 25 de junho de 1834 p. 173
18
Idem. p. 25
19
Idem p. 8
Formavam-se as bases da tradição imperial que sustentou o Império brasileiro
até sua queda em 1889: enquanto o povo estivesse seguindo o lento e gradual processo
de civilização, cabia à Coroa, auxiliada pelas elites na corte do Rio de Janeiro, ocupar-
se dos negócios políticos. Reatualizava-se sob bases renovadas o projeto ilustrado luso-
brasileiro iniciado pelo despotismo ilustrado pombalino que unia apreciação naturalista,
político monárquico-conservador.
Minha hipótese é a de que até a década de 1830, onde finalizamos nosso estudo,
discernível ainda não havia dominado as mentes das elites dirigentes brasileiras. Até
este momento, esta historicização conceitual não levou, como em outras experiências
assumiu um tom mais processual, mas que não implicava ainda um apontamento para
em povo: este permanecia numa eterna, lenta e latente trajetória histórica, necessitando
moderna ocidental. Uma história do conceito que permanece, portanto, ainda, sem final
e sem amanhã.
Foi apenas mais tarde, nas últimas décadas do século XIX, que este conceito de
povo eternamente “sem amanhã” dos anos 1830 foi posto em xeque. Novos grupos
futuro povo brasileiro. Este, entretanto, não seria um futuro de caráter político, mas
eminentemente sociológico: o Brasil seria um povo-nação mestiço, unido, não por laços
como meio, raça, natureza. Para pensar esse futuro, foi preciso desvencilhar as teorias
preciso criticar a escravidão, que no Brasil perdurou até 1888 e criar a possibilidade de
um novo povo no porvir. Tratava-se de um povo formado pela cultura, realidade étnica
vida dos povos. Este conceito sociológico, realista e naturalista foi o esteio em que se
considerado pelas elites que tomaram a direção do estado imperial muito perigoso por
hierarquia imperial.