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“O lugar do índio no Antigo Regime e no século XIX: Cultura Política e História

Indígena”
Autora: Roberta de S. Campos
Orientadora: Vânia M. Moreira Losada
e-mail: betascampos@gmail.com
Telefone: (21) 96341496

I. Introdução

O descobrir inaugura a história do Brasil. Da mesma maneira o encontro impõe ao


índio entrada na História. Há, ainda, um movimento duplo, a história européia também se
modifica. Este encontro entre culturas, que concebem a história de jeito diverso, traz à tona
uma pergunta: Como enquadrar os índios na história do gênero humano?1
A história indígena tem progredido em estudos de caso, mas ainda há lacunas.2 Não
sabemos o que aconteceu em passados remotos, no entanto temos feito esforço para saber que
idéias e práticas, este encontro entre histórias distintas suscitou. Os trabalhos consagrados da
historiografia indígena têm demonstrado as relações travadas entre o contato índio-europeu.
Este texto possui o mesmo intento.
Nossa proposta consiste num exercício reflexivo. Pretendemos vincular idéias
européias de concepção de mundo às praticas em relação aos índios no Brasil. Isto é, a partir
de uma “história social das idéias” 3 queremos saber que tipo de relações existiu.
Nesse sentido, nosso objetivo é claro: entender a escravidão indígena pelo prisma do
Antigo Regime e a expropriação de terras indígenas pelo prisma do individualismo. Assim,
dentro da sociedade colonial brasileira desvelamos o índio (grupo, coletivo, um todo) como
corpo social e na sociedade imperial brasileira encontramos um índio-indivíduo. Isto é, a
maneira de lidar com os ameríndios estava ligada a uma concepção de mundo bem específica.
No entanto, há uma ressalva. Estas formas de conceber o índio (seja no direito, seja na justiça,

1
CUNHA. Págs. 9-10.
2
Id. Pág. 11.
3
Entendemos como história das idéias o que Darnton definiu como: “Num dos extremos, eles [os historiadores das idéias]
analisam os sistemas dos filósofos; no outro, examinam os rituais dos iletrados. Mas suas perspectivas podem ser
classificadas de ‘cima’ para ‘baixo’, e poderíamos imaginar um espectro vertical onde os temas se transformam
gradualmente entre si, passando por quatro categorias principais: a história das idéias (o estudo do pensamento sistemático,
geralmente em tratados filosóficos), a história intelectual propriamente dita (o estudo do pensamento informal, os climas de
opinião e os movimentos literários), a história social das idéias (o estudo das ideologias e da difusão das idéias) e a história
cultural (o estudo da cultura no sentido antropológico, incluindo concepções de mundo e mentalités coletivas).” Página 188.
seja no cotidiano informal) não foram estáticas e marcadas. Há pedaços do Antigo Regime
por todo o século XIX.4
O que queremos argumentar é que dentro dessas culturas políticas distintas – a de
Antigo Regime e a que surge em oposição desta (a partir de discursos revolucionários e
rupturas bruscas) – o lugar do índio era definido por usos políticos em consonância com sua
época. Este texto é, antes de tudo, um apelo a considerar as coisas dentro de seu tempo
histórico.

II. Desenvolvimento
“(...) Desde o século XIX, o individualismo tem proposto uma imagem de
sociedade centrada no indivíduo, na irredutibilidade da sua natureza ontológica e
dos seus fins. Toda a teoria social se tem baseado numa análise das características
do ser humano individual, como toda a política social se orientou para a satisfação
dos interesses e finalidades dos indivíduos, senão de todos, pelo menos do maior
número.
Não era assim para o pensamento social medieval que, ao contrário do
pensamento individualista, era dominado pela idéia de ‘corpo’, ou seja, de
organização supra-individual, dotada de entidade diferente das partes prosseguindo
fins próprios e auto-organizada ou auto-regida em função desses fins.” 5

Sendo tautológica, este trabalho observará o contexto de Antigo Regime e o conceito


de individualismo no Brasil. Assim, temos como problema conectar o índio a tais perspectivas
de conceber a sociedade.

a. O Antigo Regime e as indefinições da escravidão indígena:


Para compreender o mundo colonial brasileiro é necessário saber que esta sociedade é
6
“(...) marcada por regras econômicas, políticas e simbólicas de Antigo Regime.” Dessa
forma, seria relevante conhecer idéias e práticas de Antigo Regime. Segundo Antonio M.
Hespanha, a mentalidade de Antigo Regime pauta-se na concepção de uma sociedade
corporativa, isto é, há uma metáfora com o corpo humano, onde cada órgão desempenha uma
função com certa autonomia.7

4
Cf. HESPANHA. As Vésperas do Leviathan. Mas não nos ocuparemos desta análise.
5
HESPANHA. Páginas 297-8.
6
FRAGOSO; BICALHO; e GOUVÊA. Pág. 21.
7
HESPANHA. Pág. 300-1.
“(...) cada corpo social, cada órgão corporal, tem a sua própria função
(officium), de modo que a cada corpo deve ser conferida a autonomia necessária
para que a possa desempenhar. A esta ideia de autonomia funcional dos corpos
anda ligada, como se vê, a ideia de auto-governo que o pensamento jurídico
medieval designou por iurisdictio (...).
(...) A primeira novidade foi a construção dogmática da personalidade
colectiva. Com ela, o direito pode, pela primeira vez, lidar adequadamente com as
formas grupais de organização social – cidades e vilas, corporações, comunidades
religiosas, etc. – justificando sua autonomia política e sua capacidade de auto-
organização.”8
Interpretando as propostas de Hespanha, percebe-se que uma sociedade corporativa
(como a medieval, como a portuguesa do século XVII, como a do Império ultramarino
português) engendra determinadas concepções, são elas: pessoas como coletivo, auto-
organização, tradição e costume. Dessa maneira, introduzimos nossa preocupação, como o
índio era visto por essa sociedade? Afirmamos que, a visão que tinham dos índios estava em
aquiescência com as características de uma sociedade corporativa. Logo, o índio era mesmo
esta categoria genérica: índio.
A questão da escravidão indígena foi intensamente debatida pelo período colonial.9
Sabe-se que o trabalho compulsório indígena desenvolveu-se, em determinadas localidades,
de forma semelhante à escravidão negra. Porém havia “restrições morais e legais”, ou seja, a
defesa jesuítica e as oscilações da coroa portuguesa.10 Interessa-nos saber como a escravidão
indígena foi possível apesar das constantes proibições, tanto da Igreja Católica como da coroa
portuguesa além-mar.
“(...) Apesar da legislação contrária ao trabalho forçado dos povos nativos,
os paulistas conseguiram contornar os obstáculos jurídicos e moldar um arranjo
institucional que permitiu a manutenção e reprodução de relações escravistas.
Assumindo o papel de administradores particulares dos índios – considerados
como incapazes de administrar a si mesmos –, os colonos produziram um artifício
no qual se apropriaram do direito de exercer pleno controle sobre a pessoa e
propriedade dos mesmos sem que isso fosse caracterizado juridicamente como
escravidão.” 11
John Monteiro em seu trabalho Negros da Terra argumenta que a postura da coroa em
relação à escravidão indígena de São Paulo pode ser caracterizada como “ineficácia da

8
Id. Ibidem.
9
A escravidão indígena somente era permitida mediante guerra justa. Cf. MONTEIRO.
10
Id. Pág. 130.
11
Id. Pág. 137.
autoridade régia”, segundo ele, há uma contradição entre a ilegalidade e a prática
corriqueira.12 No entanto, nós entendemos que a volubilidades das decisões da coroa eram
compatíveis aos usos do Antigo Regime, afinal as cidades e vilas possuíam certa autonomia.
E isto fica mais claro quando examinamos o discurso dos colonos, justificavam a
administração particular como “uso e costume da terra”, ou seja, apelavam para a cultura
política e jurídica do Antigo Regime. Mas em que momento os índios são vistos como
categoria? Nas visões que os encaravam como infiéis (movia-se a guerra justa) ou como
órfãos (baseavam a administração particular).

b. A individualização dos índios e a expropriação de terras:


O século XIX conjuga os ideais liberais e as noções de progresso e civilização como
paradigmas para interpretar os povos não europeus. “De um lado ficaram os povos
(europeus), politicamente organizados em Estados, cuja subsistência era garantida por
actividades económicas que rentabilizavam os recursos naturais, como a agricultura, a
indústria e o comércio. Do outro, povos que viviam estádios atrasados da sua evolução
histórica, política e socialmente desorganizados, economicamente dependentes de actividades
13
predadoras e pouco rentáveis, como a recolecção, a pesca ou a pastorícia.”
Cristina Nogueira da Silva nos fala do Direito das gentes ou do Direito das nações
veiculado pela literatura do século XIX, segundo a autora esta temática consistia em discutir a
relação das nações civilizadas com as colônias recém-libertas. Mas estas idéias não discutiam
os direitos e os territórios dos povos originais anteriores a conquista européia.
“(...) Quando estes povos emergiam, era geralmente apenas para se deduzir
do seu modo ‘incivilizado’ de viver a ausência de certos direitos, nomeadamente de
direitos de propriedade.”14
O discurso sobre os povos autóctones transcorria no sentido de condenar a relação
destes com a terra. Argumentava-se que não faziam uso apropriado e não maximizavam seus
recursos para aproveitá-la de forma mais racional, assim negavam a eles a propriedade de suas
terras, estas teriam de ser administradas pelo Estado.15 A Lei de Terras de 1850 no Brasil é
exemplo de como as terras de aldeamentos e as sesmarias foram expropriadas dos índios em

12
Id. Pág. 138.
13
Cf. SILVA, Ana Cristina Nogueira da. Pág. 15
14
Id. Pág. 37.
15
Id. Pág. 39.
favor do Estado, ou seja, transformaram terras oriundas do direito natural em terras devolutas
colocadas à venda.16
A lei de terras e sua relação com os índios são capazes de revelar o que nos propomos:
o índio-indivíduo. “A decisão mandou incorporar aos próprios nacionais as terras de
descendentes de índios que estivessem ‘confundidos na massa da população civilizada’.”17
Nesse sentido, quando os índios tornam-se “civilizados e catequizados”, ganham o estatuto de
caboclos sem propriedade. Aqui os índios não são mais vistos como um grupo original da
terra, mas indivíduos que como quaisquer outros que para possuir o direito a terra tem de
comprá-la.

III. Conclusão:

Gostaríamos de ressaltar que este pequeno texto é a introdução de uma pesquisa que
será desenvolvida numa outra oportunidade. Aqui, apenas nos preocupamos em esboçar suas
implicações, que se mostram, a partir de agora, mais claras.
Mediante o que foi apresentado, percebemos que a cultura política de Antigo Regime e
o tipo de sociedade que surge a partir do século XIX deram ao índio classificações
diametralmente opostas. Primeiro, o classificam como coletivo, ao longo do período colonial,
e depois começam a vê-lo como indivíduo no oitocentos. Vimos que tais maneiras de
conceber os índios acarretaram em práticas que os espoliaram ao longo dessa história.
Principalmente quando consideramos a escravidão e a questão das terras. Entretanto, não
queremos, de forma alguma, vitimizar os grupos indígenas.
“A percepção de uma política e de uma consciência histórica em que os
índios são sujeitos e não apenas vítimas, só é nova eventualmente para nós. Para
os índios, ela parece ser costumeira.”18
Esta reflexão está de acordo com as novas posturas da historiografia que reconhece os
homens e as mulheres na história enquanto seres ativos.19 Assim, considerá-los como atores
históricos é reconhecer a dívida histórica do Estado e da própria disciplina histórica. Nesse
sentido, anunciamos a relevância social deste estudo.

16
Cf. MOREIRA.
17
Id.
18
CUNHA. Pág. 18.
19
Cf. FRAGOSO.
IV. Referências Bibliográficas

CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org.) História dos índios no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992.
DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; e GOUVÊA, Maria de Fátima. O Antigo
Regime nos Trópicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
HESPANHA, Antonio. M., As Vésperas do Leviathan. Coimbra, Almedina, 1995.
MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
MOREIRA, Vânia M. Losada. Terras Indígenas do Espírito Santo sob o Regime Territorial
de 1850. São Paulo: Rev. bras. Hist.(vol.22, nº. 43), 2002.
SILVA, Cristina Nogueira da. Liberalismo, Progresso e Civilização: Povos não
europeus no Discurso liberal oitocentista. In Estudos Comemorativos dos 10
anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Almedina: S/ed. 2008,
vol. 1.

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