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Fundamentos

Epistemológicos da
Geografia
Prof. Carlos Odilon da Costa

2019
2 Edição
a
Copyright © UNIASSELVI 2019

Elaboração:
Prof. Carlos Odilon da Costa

Revisão, Diagramação e Produção:


Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri


UNIASSELVI – Indaial.

C837f

Costa, Carlos Odilon da

Fundamentos epistemológicos da geografia. / Carlos Odilon da


Costa. – Indaial: UNIASSELVI, 2019.

217 p.; il.

ISBN 978-85-515-0255-6

1.Fundamentos da geografia – Brasil. II. Centro Universitário


Leonardo Da Vinci.

CDD 910.01

Impresso por:
Apresentação
Caro acadêmico, seja bem-vindo! Iniciaremos a disciplina de
Fundamentos Epistemológicos da Geografia. Você já venceu algumas etapas
de seu curso e chegou até aqui. Parabéns!

Ao receber este livro de estudos, folheie-o, verifique o sumário,


olhe as imagens, as sugestões; em um segundo momento, mergulhe
profundo, leia atentamente, faça relação com outras leituras. A partir daí
pergunte, compartilhe ideias. Nosso desejo é que você possa enriquecer
seu conhecimento sobre a temática estudada, fornecer-lhe subsídios para
uma boa discussão, para sua atuação docente, e contribuir para um olhar
aprofundado e renovado para a compreensão do mundo.

A disciplina apresenta um desafio: abrir discussões, reflexões em


torno dos fundamentos epistemológicos da Geografia, sobre aqueles autores
e obras correntes, já consolidados, e também possibilitar o entendimento
das novas formas de construção epistemológicas nascentes no âmbito da
Geografia. Que possamos realizar esses encontros, buscando aprender
novos conhecimentos que marcam de forma singular a presença deles
na vida humana planetária e local. Que estejamos todos receptivos ao
enfrentarmos e ao mirarmos as novas formas de compreender e conhecer a
realidade por meio da Geografia, considerando que aprender e ensinar são
atitudes de acolhimento e amorosidade. Que possamos ser, nesse estudo,
amorosos e respeitosos uns com os outros e assim tornar nossa jornada pelo
conhecimento proveitosa e vitoriosa, não permitindo que nenhum de nós se
perca nesse caminhar.

O livro de estudos está organizado em três unidades. A primeira


unidade aborda a Epistemologia, Fundamentos e a Institucionalização da
Geografia. A segunda unidade apresenta a epistemologia da geografia no
contexto moderno e a terceira unidade contempla as epistemologias da
geografia no contexto contemporâneo.

Pensamos que, além do texto em si, você poderá explorar as sugestões


aqui apresentadas em duas aulas. Foi organizado, no final de cada tópico das
unidades, uma sugestão de aula, uma questão ENADE, além das autoatividades.

Bom estudo e sucesso!

Cordialmente,

Prof. Dr. Carlos Odilon da Costa

III
NOTA

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para
você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há
novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é


o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um
formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova
diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também
contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente,


apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade
de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.
 
Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para
apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto
em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas
institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa
continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de


Desempenho de Estudantes – ENADE.
 
Bons estudos!

IV
V
VI
Sumário
UNIDADE 1 – EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO
DA GEOGRAFIA......................................................................................................... 1

TÓPICO 1 – A NATUREZA DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO............................................. 3


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 3
2 CONHECER E COMPREENDER..................................................................................................... 3
3 SENSO COMUM E CONHECIMENTO CIENTÍFICO................................................................ 6
4 CIÊNCIA MODERNA........................................................................................................................ 10
5 MÉTODOS CIENTÍFICOS................................................................................................................ 14
5.1 TIPOS DE MÉTODOS CIENTÍFICOS.......................................................................................... 14
LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................. 19
RESUMO DO TÓPICO 1...................................................................................................................... 22
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 24

TÓPICO 2 – EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO................ 27


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 27
2 EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS........................................................................ 27
3 CIÊNCIAS HUMANAS E ABORDAGENS EPISTEMOLÓGICAS.......................................... 30
4 EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO.............................................................................................. 32
5 EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA............................................................................................. 40
LEITURA COMPLEMENTAR.............................................................................................................. 51
RESUMO DO TÓPICO 2...................................................................................................................... 53
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 55

TÓPICO 3 – OS ANTECEDENTES DA GEOGRAFIA CIENTÍFICA.......................................... 57


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 57
2 O CONHECIMENTO GEOGRÁFICO DA ANTIGUIDADE..................................................... 57
3 O CONHECIMENTO GEOGRÁFICO DA IDADE MÉDIA....................................................... 60
4 O CONHECIMENTO GEOGRÁFICO, O RENASCIMENTO E A CIÊNCIA
MODERNA........................................................................................................................................... 61
LEITURA COMPLEMENTAR.............................................................................................................. 66
RESUMO DO TÓPICO 3...................................................................................................................... 70
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 72

UNIDADE 2 – EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO............. 75

TÓPICO 1 – GEOGRAFIA DO SÉCULO XIX................................................................................... 77


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 77
2 INÍCIO DO CAMINHO GEOGRÁFICO CIENTÍFICO.............................................................. 77
3 A GEOGRAFIA DO SÉCULO XIX: ALEXANDER HUMBOLDT E CARL RITTER.............. 83
4 RATZEL E O DETERMINISMO NA GEOGRAFIA..................................................................... 90
5 PAUL VIDAL DE LA BLACHE E AS MONOGRAFIAS REGIONAIS..................................... 94
LEITURA COMPLEMENTAR.............................................................................................................. 101
RESUMO DO TÓPICO 1...................................................................................................................... 105
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 107

VII
TÓPICO 2 – GEOGRAFIA – INÍCIO DO SÉCULO XX ................................................................. 109
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 109
2 A GEOGRAFIA EM RICHARD HARTSHORNE ........................................................................ 111
3 A GEOGRAFIA EM CARL SAUER.................................................................................................. 114
4 A GEOGRAFIA CULTURAL............................................................................................................. 116
LEITURA COMPLEMENTAR.............................................................................................................. 119
RESUMO DO TÓPICO 2...................................................................................................................... 122
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 123

TÓPICO 3 – CRÍTICAS FRENTE À GEOGRAFIA.......................................................................... 127


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 127
2 A CRÍTICA DA GEOGRAFIA TRADICIONAL .......................................................................... 127
3 O MOVIMENTO DE RENOVAÇÃO DA GEOGRAFIA............................................................. 129
4 A NOVA GEOGRAFIA....................................................................................................................... 132
LEITURA COMPLEMENTAR.............................................................................................................. 137
RESUMO DO TÓPICO 3...................................................................................................................... 139
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 140

UNIDADE 3 – EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – .


PÓS-MODERNO........................................................................................................... 143

TÓPICO 1 – GEOGRAFIA HUMANISTA E CONTEMPORÂNEA............................................. 145


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 145
2 A GEOGRAFIA HUMANISTA E O SER HUMANO INTEGRAL............................................ 146
3 A GEOGRAFIA CRÍTICA.................................................................................................................. 149
4 A FENOMENOLOGIA NA GEOGRAFIA...................................................................................... 155
LEITURA COMPLEMENTAR.............................................................................................................. 161
RESUMO DO TÓPICO 1...................................................................................................................... 164
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 166

TÓPICO 2 – PERSPECTIVAS HISTÓRICAS, AMBIENTAIS E PÓS-MODERNAS................ 167


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 167
2 A GEOGRAFIA HISTÓRICA............................................................................................................ 168
3 A GEOGRAFIA AMBIENTAL.......................................................................................................... 171
4 A GEOGRAFIA PÓS-MODERNA................................................................................................... 174
LEITURA COMPLEMENTAR.............................................................................................................. 182
RESUMO DO TÓPICO 2...................................................................................................................... 186
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 188

TÓPICO 3 – PERSPECTIVAS ATUAIS E A GEOGRAFIA NO BRASIL..................................... 191


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 191
2 A NOVA GEOGRAFIA CULTURAL .............................................................................................. 191
3 PERSPECTIVAS ATUAIS DA GEOGRAFIA................................................................................. 195
4 A GEOGRAFIA NO BRASIL............................................................................................................. 196
LEITURA COMPLEMENTAR.............................................................................................................. 205
RESUMO DO TÓPICO 3...................................................................................................................... 210
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 212

REFERÊNCIAS........................................................................................................................................ 213

VIII
UNIDADE 1

EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS
E A INSTITUCIONALIZAÇÃO
DA GEOGRAFIA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender a diferença entre conhecimento geográfico e ciência geográfica;

• identificar as principais abordagens epistemológicas das ciências e da educação;

• conhecer os principais períodos de construção do conhecimento


geográfico até a sua institucionalização;

• identificar os desafios e possibilidades da produção do conhecimento


geográfico enquanto ferramenta de análise para compreender a realidade
em determinados tempos históricos.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você
encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – A NATUREZA DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

TÓPICO 2 – EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS E DA


EDUCAÇÃO

TÓPICO 3 – OS ANTECEDENTES DA GEOGRAFIA CIENTÍFICA

1
2
UNIDADE 1
TÓPICO 1

A NATUREZA DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

1 INTRODUÇÃO
O ser humano, diferente de outros seres vivos, desenvolve para sua
sobrevivência faculdades específicas. Entre os animais, enquanto algumas espécies
correm, outras possuem a força. Comumente se diz que o ser humano possui a
inteligência como referência de poder para enfrentar seus inimigos naturais. São
poderes mentais para explicar, prever e manipular fatos e fenômenos de seu
ambiente de vida. Por isso mesmo, na história, esta espécie animal, o ser humano,
foi definido como um animal racional. Ele distingue-se dos outros seres do universo
pelo sentimento da descoberta, pela curiosidade, por possuir a capacidade de
conhecer o mundo em que vive e ter consciência de suas sensações e de seus desejos.

A capacidade de pensar permite que o ser humano não apenas conviva


com a realidade, como também permite conhecê-la. Conhecer a realidade significa
compreendê-la e explicá-la.

Partindo desta premissa é que pensamos na organização deste tópico.


Conhecer a natureza do conhecimento científico, sobretudo da Geografia, é
percorrer um caminho que colaborará, auxiliará na missão de melhor compreender
a realidade, o espaço em que os seres humanos habitam.

2 CONHECER E COMPREENDER
Tudo é conhecimento, e por meio dele buscamos respostas ao mundo que
nos cerca e explicações da realidade. Mas afinal, o que é conhecer?

De acordo com Santos (1996, p. 23):

O conhecimento humano tem dois elementos básicos: um sujeito e um


objeto. O sujeito é o homem, o ser racional que quer conhecer (sujeito
cognoscente). O objeto é a realidade (as coisas, os fatos, os fenômenos)
com que convivemos. O homem se torna sujeito do conhecimento
quando está diante do objeto a ser conhecido. A realidade só se torna
objeto do conhecimento perante um sujeito que queira conhecê-la. O
próprio ser homem pode ser objeto do conhecimento humano.

3
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

É por meio do conhecimento estudado, elaborado e construído, que o ser


humano penetra nas diversas áreas da realidade (economia, política, religião,
educação, cultura, entre outras). Ao penetrar nestas áreas, o fenômeno do
conhecimento é assim elaborado e construído.

O sujeito capta as características e propriedades dos objetos, formando


deles uma imagem mental. Por meio da imagem, o sujeito apodera-
se de propriedades que antes pertenciam apenas ao objeto. É a
posse das propriedades e características do objeto que nos permite o
entendimento e a explicação da realidade (SANTOS, 2002, p. 24).

Ao internalizar os modos de agir, pensar e falar, aos poucos as imagens


se tornam verbalizadas, simbólicos, organizados e socialmente transformados pela
linguagem, no caso a linguagem (diversidade de linguagens), produz conhecimento.
Dá-se também o nome de conhecimento o saber acumulado pelo ser humano por
meio das gerações, ou seja, um produto (cultural) que pode ser transmitido.

O ser humano possui maneiras básicas de conhecer os objetos estudados.


Alguns exemplos podem ser citados, como o Conhecimento Sensorial ou
Empírico, o primeiro contato do ser humano com a realidade se dá pelos
sentidos. O Conhecimento Lógico ou Intelectual, o ser humano tem a capacidade
de ultrapassar os dados recebidos pelos sentidos, ou seja, ele tem a capacidade
de abstrair, de conservar as imagens dos objetos que captou, mesmo sem tê-los
mais por perto; e o Conhecimento de Fé, que baseia-se na autoridade de terceiros,
constitui um voto de confiança no que os outros afirmam (autoridade religiosa);
Conhecimento Cultural/artístico; Conhecimento Prático/senso comum.

A realidade nem sempre é simples (visão senso comum), mas exige


formas distintas de apropriação, intervenção, reformulação de visão de mundo,
compreensão da realidade. A esse respeito, Cervo e Bervian (2010, p. 7) comentam:

[...] com relação ao ser humano, por exemplo, pode-se considerá-lo em seu
aspecto externo e aparente e dizer uma série de coisas que o bom senso dita
ou a experiência cotidiana ensinou. Pode-se também questioná-lo quanto
a sua origem, sua realidade e destino e, pode-se, ainda, investigar o que
foi dito por Deus por meio dos profetas e de seu filho Jesus. Finalmente,
pode-se estudá-lo com o propósito mais científico e objetivo, investigando
experimentalmente as relações entre órgãos e funções.

Os autores indicam quatro tipos de conhecimentos importantes para


desvelar a realidade. O conhecimento popular/senso comum, o espontâneo ou
empírico, o conhecimento do povo, do cotidiano. O conhecimento científico, que
vai além do empírico, envolve as relações de causa e efeitos entre os fenômenos
estudados. O conhecimento filosófico, o que ultrapassa os limites formais da
ciência. O conhecimento teológico ou religioso, revelado pela fé divina ou crença
religiosa (CERVO; BERVIAN, 2010).

4
TÓPICO 1 | A NATUREZA DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

Todos os tipos de conhecimento nos deixam muitas dúvidas, ao lado de


algumas certezas. Mesmo sendo bem aparelhado, o ser humano é limitado em sua
capacidade de captar as reais propriedades dos objetos estudados. Nas palavras
freirianas: Incompleto, inconcluso, inacabado, o ser humano e por extensão o
conhecimento por ele produzido, construído, elaborado.

O conhecimento dito científico diferencia-se do popular muito mais no


que se refere a seu contexto metodológico do que propriamente seu conteúdo,
diferença que ocorre entre todos os tipos de conhecimento. Para fins de
conhecimento e compreensão dos tipos de conhecimentos, Trujillo (1984, p. 11)
organizou suas características assim:

QUADRO 1 – CARACTERÍSTICAS DOS TIPOS DE CONHECIMENTOS


Conhecimento Conhecimento Conhecimento Conhecimento
Popular Científico Filosófico Religioso/Teológico
Valorativo Real/factual Valorativo Valorativo
Reflexivo Contingente Racional Inspiracional
Assistemático Sistemático Sistemático Sistemático
Verificável Verificável Não verificável Não verificável
Falível Falível Infalível Infalível
Inexato Aproximadamente Exato Exato
exato

FONTE: Trujillo (1984, p. 11)

Qual desses conhecimentos julgamos mais verdadeiros? Qual deles é


o mais verdadeiro? Não há um conhecimento mais importante que o outro,
pois conhecemos para sentir segurança, para satisfazer nossa curiosidade, para
compreender a realidade e, também, transformá-la. No entanto, para nossos estudos
se faz necessário distinguir claramente o conhecimento científico do popular, pois
ao mesmo tempo em que se aproximam, mantêm suas especificidades.

Você, acadêmico, futuro professor, certamente já se deparou com as


avaliações de nossa instituição. Realizadas por meio de questões dissertativas,
você expôs seu pensamento apoiado no conhecimento científico/acadêmico, ou
seja, você saiu de uma opinião e justificou de forma racional e acadêmica a sua
posição. Esse exemplo pode ser estendido à sala de aula, quando deparando-se
com o aluno e sua bagagem cultural frente à escola, com outro capital cultural,
você reconhece o saber de seu educando por meio de metodologias mais
participativas, em que o conhecimento científico possibilita ao educando que ele
mesmo perceba sua cultura, o seu saber, e que pode ir além desse conhecimento,
transpor o limite de sua existência ao assimilar e usar o conhecimento escolar em
seu dia a dia (você, na academia, também o faz, ou seja, os conhecimentos que
você estuda serão o conhecimento que fundamentará suas aulas).

5
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

3 SENSO COMUM E CONHECIMENTO CIENTÍFICO


O conhecimento vulgar, espontâneo ou popular, às vezes denominado
senso comum, se distingue do conhecimento científico pela forma, método e
instrumentos do conhecer. Como vimos anteriormente, o significado da palavra
conhecimento está ligado, em um primeiro momento, à experiência sensível,
portanto o conhecimento do senso comum se faz e refaz no cotidiano, em nosso dia
a dia, em que adquirimos um modo ou diversos modos de entender e atuar sobre
a realidade. Isso ocorre de forma espontânea, e há também os comportamentos
sociais que aprendemos desde criança.

De acordo com Neto (1986, p. 6):

É a forma de conhecer a realidade em que se vive, age, mora, fala,


integrando o homem ao seu meio. Para sobreviver, o homem teve
que resolver alguns problemas práticos, como os do frio, calor,
chuva, doença, sexo, amor, medo, morte. A experiência adquirida ao
enfrentar esses problemas produziu uma forma de conhecer o mundo,
e de enfrentá-lo, é o conhecimento empírico.

O conhecimento espontâneo, popular, empírico ou senso comum não se


explica o porquê das coisas, pois está ligado ao instinto de sobrevivência, basta
a si mesmo e tem fins práticos imediatos, não especula (filosofia) ou investiga
(ciência), baseado principalmente na memória e na associação de experiências
humanas (vividas) ou crenças (imaginadas).

Essas informações (conhecimento espontâneo) costumam ser


naturalmente assimiladas e raramente questionadas. Isso porque, de alguma
forma, elas resolvem as questões práticas do cotidiano, auxiliam na condução das
rotinas diárias. É uma maneira encontrada para solucionar os problemas do dia
a dia. É fruto da prática social, construído historicamente e passado às gerações
mais novas. De acordo com Neto (1986), as suas características são as seguintes:
valorativo, pois se fundamenta em uma seleção operada com base em estados
de ânimo e emoções. Ele também é reflexivo em determinados momentos. É
assistemático, pois se baseia na organização particular do sujeito cognoscente e
não em uma sistematização de ideias. Verificável, está limitado no âmbito da vida
diária. Falível/inexato, se conforma com a aparência, não permite a formulação
de hipóteses sobre a existência de fenômenos situados além de suas percepções.

Por isso é conhecido como um conhecimento que preenche a vida diária


sem preocupação, com um método e sem haver profunda reflexão sobre algo. De
acordo com Chaves (2009, p. 14), subdivide-se em:

6
TÓPICO 1 | A NATUREZA DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

QUADRO 2 – TIPOS DE CONHECIMENTOS E EXEMPLO


Subdivisão Exemplo
Senso Comum A pressa é inimiga da perfeição.
Senso Prático Tampar as tomadas para que a criança não leve um choque.
Ceder o lugar no ônibus para uma pessoa mais velha ou
Bom Senso
uma mulher grávida.
Decidir o voto depois de analisar a vida pregressa dos
Senso Crítico
candidatos e suas promessas de trabalho.

FONTE: Chaves (2009, p. 14)

A vida humana desenvolve-se em torno do senso comum, que é


adquirido através de ações não planejadas, surge instintivo, espontâneo,
subjetivo, acrítico, permeado pelas opiniões, emoções e valores de quem o
produz. A cultura popular é baseada no senso comum. Representa um conjunto
de conhecimentos determinados pela interação dos sujeitos. Reúne elementos e
tradições culturais, os quais estão associados à linguagem popular e oral. Inclui
o folclore, o artesanato, as músicas, as danças, as festas, dentre outros, sendo
crescentemente reconhecida.

Para o ensino de Geografia configura-se como um conhecimento de porta


de entrada no processo de ensino-aprendizagem. É por meio dele que o aluno,
em sala, relata as primeiras experiências vividas ou suas crenças, referente ao
espaço em que vive e percebe. O conhecimento do cotidiano posteriormente será
comparado ao conhecimento elaborado da escola, e após a comparação poderá
ocorrer a ampliação de mundo, de visão do aluno no quesito Geografia.

Da mesma forma e princípio é o que ocorre nas salas de aula dos cursos
superiores em Geografia. O acadêmico, ao entrar no curso, traz com ele sua
bagagem cultural sobre o conhecimento geográfico, e com o desenvolvimento dos
estudos, o aprofundamento das teorias e as práticas pedagógicas nas aulas do curso
de Geografia, o acadêmico passa do senso comum para o conhecimento elaborado,
científico. Isso fica claro em seus artigos construídos, nas provas respondidas de
maneira dissertativa, entre outros métodos e instrumentos de avaliação. Por meio
dessas avaliações é que o tutor ou o docente poderão ver se houve aprendizagem
em termos de assimilação de novos e diferentes tipos de conhecimentos.

7
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

FIGURA 1 – TIRINHA

FONTE: <https://pedromotasite.files.wordpress.com/2014/04/92efc-mutum115.jpg>.
Acesso em: 17 set. 2018.

O conhecimento espontâneo, popular, tem seu valor enquanto processo


de construção de conhecimento, porém no âmbito da Ciência (curso superior)
deve ser superado pelo conhecimento científico. O conhecimento científico é uma
conquista recente da humanidade e surgiu com a revolução Galileana. De acordo
com Kestring (2004, p. 41):

[...] a característica básica do conhecimento científico é sua natureza


crítica, mas uma crítica voltada para a própria ciência, daí seu caráter
processual, pontual e sistemático e não somente progressivo [...] é um
conhecimento que se adquire pela leitura, meditação e reflexão, ou
seja, é um saber que tem método, disciplina e organização, não é um
tipo de conhecimento ocasional, mas intencional.

O conhecimento científico lida com ocorrências ou fatos envolvendo as


relações de causa e efeito, se objetiva formular, com linguagem rigorosa e apropriada,
leis que regem os fenômenos observados. Ele é fruto do questionamento de uma área;
de procedimentos passíveis de produção por outras pessoas; expõe-se à interlocução
da comunidade de pesquisadores da área de saber em questão (no caso, a Geografia);
trabalha com fenômenos regulares, em que as mesmas causas sucedem os mesmos
efeitos entre fenômenos e grupos de fenômenos. Segundo Demo (2008), ao analisar o
conhecimento científico é preciso compreender os critérios internos:

8
TÓPICO 1 | A NATUREZA DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

• Coerência: deve ter suas partes articuladas e com sentido.


• Consistência: resistir às argumentações, pelo rigor teórico e metodológico.
• Originalidade: uma pesquisa original que contribua com a produção de conhecimento.
• Objetivação: tentativa de descobrir a realidade social da mesma forma como
se apresenta.
• Externos: intersubjetividade, opinião da comunidade científica.

A produção do conhecimento científico pode ser destacada como resultado


de diferentes exercícios acadêmicos e pesquisas realizadas. Conforme Alves (2002),
duas características são essenciais: a primeira é a busca por um conhecimento
geral, universal, aplicável a todos os casos; a segunda é a falseabilidade, isto é, os
enunciados científicos podem ser testados para se confirmar se são verdadeiros
ou falsos. Uma proposição verificável é aquela sobre a qual, a partir de testes,
podemos tomar uma decisão sobre sua verdade ou falsidade.

Lembre-se de que todo conhecimento científico é fruto de pesquisas


científicas e acadêmicas, por isso é contradição imaginar que o aluno pesquisador
criativo é aquele que sabe sem estudar, sem pesquisar, ou seja, o conhecer por
meio científico se dá pela busca de ordem, a formulação de modelos e leis que
explicam o funcionamento dos fenômenos e da natureza, o abandono dos valores
e a busca de um saber objetivo, o uso de hipóteses e de experimentação que
permite medir os eventos com precisão e o rigor do pensamento com a utilização
do raciocínio lógico, também não deve ser visto como uma forma de conhecimento
completamente distante do fazer humano, dotada de autoridade inquestionável.

FIGURA 2 – CONHECIMENTOS

FONTE: <https://www.humorcomciencia.com/blog/175-metodo-cientifico/>.
Acesso em: 17 set. 2018.

DICAS

É importante que você reflita sobre os assuntos discutidos até o momento!


Para isso, verifique exemplos de conhecimentos de senso comum, teológicos, filosóficos e
científicos e a relação com o conhecimento geográfico, na casa, na família, no trabalho, na
leitura de jornais, revistas e na televisão. Discuta-os com seus colegas.

9
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

O conhecimento pode ser obtido de diversas maneiras, segundo Alves


(2002), por imitação, pela experiência pessoal ou por outro conhecimento
adquirido pela educação informal, transmitida pelos antepassados, pela lógica,
pela fé e crença, e pela objetividade e evidência dos fatos.

4 CIÊNCIA MODERNA
O ser humano é um ser em constante processo de produzir; ao tentar
superar, pela ação coletiva, a contradição que a natureza lhe antepõe, torna o
mundo habitável e humaniza a si mesmo. Nas palavras de Neto (1986), existem
diferentes maneiras de explicar os fatos e fenômenos que envolvem o mundo
em que vivemos, e a Ciência é uma delas. A Ciência é, portanto, uma forma
de conhecimento, a atividade básica da ciência é a pesquisa. Por meio dela é
possível conhecer e compreender o mundo. Diversos autores tentaram definir o
que se entende por Ciência. Em sua obra Metodologia Científica, Lakatos e Marconi
(2000, p. 21) citam que pode ser conceituada da seguinte forma:

Acumulação de conhecimentos sistemáticos; atividade que se


propõe a demonstrar a verdade dos fatos e experimentar suas
práticas; caracteriza-se pelo conhecimento racional, sistemático,
exato, verificável, por conseguinte, falível; conhecimento certo do
real pelas suas causas; conhecimento sistemático dos fenômenos
da natureza e das leis que o regem, obtido pela investigação, pelo
raciocínio e pela experimentação intensiva; conjunto de enunciados
lógica e dedutivamente justificados por outros enunciados; conjunto
orgânico de conclusões certas e gerais, metodicamente demonstrada
e relacionadas com objeto determinado; corpo de conhecimento
consistindo em percepções, experiências, fatos certos e seguros;
estudo de problemas solúveis, mediante método científico, forma
sistematicamente organizada de pensamento objetivo.

Por sua vez, Ander-Egg (1978, p. 15) apresenta que “a ciência é


um conjunto de conhecimentos racionais, certos ou prováveis, obtidos
metodicamente sistematizados e verificáveis, que fazem referência a objetos
de uma mesma natureza”. O autor ainda complementa, dizendo que a Ciência
produz determinado tipo de conhecimento, e que em suas características possui:
conhecimento racional, isto é, que tem exigências de método e está constituída
por uma série de elementos básicos, tais como sistema conceitual, hipóteses,
definições. Certo ou provável, já que não se pode atribuir à ciência a certeza
indiscutível de todo saber que a compõe. Obtidos metodicamente, pois não se
adquire ao acaso. Sistematizadores, não se trata de um conhecimento desconexo
e disperso. Verificáveis, necessita de afirmações/hipóteses comprovadas pela
observação. Relativos a objetos de uma mesma natureza, ou seja, objetos
pertencentes à determinada realidade, que guardam entre si certos caracteres de
homogeneidade (ANDER-EGG, 1978).

10
TÓPICO 1 | A NATUREZA DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

Outra forma de conceituar Ciência como uma sistematização de


conhecimentos, um conjunto de proposições logicamente correlacionadas
sobre o comportamento de certos fenômenos que se deseja estudar é realizada
por Trujillo (1984, p. 8): “A ciência é todo um conjunto de atitudes e atividades
racionais, dirigidas ao sistemático conhecimento com objeto limitado, capaz de
ser submetido à verificação”.

Acrescentamos, também, o pensamento de Fonseca (2002, p. 11-12) sobre


o assunto:

É o saber produzido através do raciocínio lógico associado à


experimentação prática. Caracteriza-se por um conjunto de modelos
de observação, identificação, descrição, investigação experimental e
explanação teórica de fenômenos. O método científico envolve técnicas
exatas, objetivas e sistemáticas. Regras fixas para a formação de conceitos,
para a condução de observações, para a realização de experimentos e
para a validação de hipóteses explicativas. O objetivo básico da ciência
não é o de descobrir verdades ou de se constituir como uma compreensão
plena da realidade. Deseja fornecer um conhecimento provisório, que
facilite a interação com o mundo, possibilitando previsões confiáveis
sobre acontecimentos futuros e indicar mecanismos de controle que
possibilitem uma intervenção sobre eles.

A Ciência teve sua origem quando os seres humanos organizaram de


forma cumulativa os conhecimentos adquiridos sobre a realidade existente.
Com o fim do período nômade na Terra, surgem as necessidades de se construir
instrumentos e técnicas apropriadas. A cerâmica, a metalurgia, o vestuário e a
habitação passaram a exigir conhecimentos adequados. Assim, os babilônicos se
especializaram na Astronomia, os egípcios nos conhecimentos da Geometria, e
os hititas na Metalurgia. Durante a Idade Média, os árabes contribuíram com
muitos progressos na Matemática e na Álgebra. O monge Francis Bacon defendeu
e organizou um novo comportamento de cientistas, fazendo experimentos.
Na Idade Moderna aconteceu a Revolução Científica. De René Descartes e seu
Discurso do Método até a Revolução Tecnológica (ocorrida após a Segunda Guerra
Mundial), milhares de pessoas dedicaram suas vidas ao progresso científico.

Para interpretar as origens e o desenvolvimento da Revolução Científica,


Prade (2004) cita que há três tradições ou mentalidades claramente definidas
referentes ao fazer ciência no mundo e à busca de interpretação da realidade:

a) A organicista: explicava-se o universo material mediante analogias tomadas do


mundo biológico; em tudo se observa crescimento e decadência. Ela se fundamenta
nos tratados biológicos de Aristóteles, nas observações médicas de Galeano e no
Almagesto de Ptolomeu, que representavam uma vasta lista de dados empíricos e
proporcionava aos cientistas uma confiança acima de qualquer dúvida.

11
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

b) A tradição mágica: a natureza vem descrita como uma obra de arte. Intérprete
da natureza, o cientista era visto como um mago cujo poder derivava do fato
de possuir os segredos naturais. O ideal do cientista era se tornar um místico a
fim de ouvir a música mágica do universo. A inspiração que dera origem a essa
atitude era atribuída a Hermes Trismegisto e sua obra Os escritos herméticos e
a sabedoria egípcia. Os outros escritos herméticos continham a cabala judaica.
Dentre muitos segredos dessa tradição, encontrava-se a doutrina neoplatônica
da criação do mundo por meio de emanações do ser divino. A visão neoplatônica
provocou um grande impacto no mundo intelectual do século XVI, a Utopia
de Morus, os escritos de Copérnico e de Kepler. Convém ressaltar que entre os
neoplatônicos, a alquimia gozou de uma reputação quase religiosa. Paracelso
aplicou as teorias neoplatônicas à alquimia.
c) A tradição mecanicista: se a tradição organicista viu o mundo como um
organismo, e a tradição mágica como um mistério, a terceira, a mecanicista, o viu
como uma máquina. Impressionados pela regularidade, fixidez e previsibilidade
dos fenômenos, seus seguidores definiram os planetas em termos mecânicos,
assim como o corpo humano e o reino animal. O Deus cristão foi adquirindo as
características de um engenheiro. Na origem da visão mecanicista do universo
se encontra a transformação econômica da época. A tarefa principal de um
cientista era a de estudar a relação recíproca entre as distintas partes do universo,
sistematizando-as como as várias peças de uma máquina.

Outro olhar para os modelos de se fazer Ciência é descrito por Chaui


(1997), quando diz que, historicamente, três são as principais concepções de
Ciência ou ideias de cientificidade.

• Racionalista: afirma que a Ciência é um conhecimento racional dedutivo


e demonstrativo.
• Empirista: afirma que a Ciência é uma interpretação dos fatos baseados em
observação e experimentos que permitem estabelecer induções.
• Construtivista: a Ciência é uma construção de modelos explicativos para a
realidade e não uma representação da própria realidade.

Por sua vez, Boaventura de Souza Santos (1987), no livro Um discurso sobre
as ciências, enquadra a ciência moderna em três momentos:

• Paradigma da modernidade: é o dominante hoje em dia. Substancia-se nas


ideias de Copérnico, Kepler, Galileu, Newton, Bacon e Descartes. Construído
com base no modelo das ciências naturais, apresenta uma e só uma forma de
conhecimento verdadeiro e uma racionalidade experimental, quantitativa e
neutra. Essa racionalidade é mecanicista, pois considera o homem e o universo
como máquinas; é reducionista, pois reduz o todo às partes e é cartesiano, pois
separa o mundo natural-empírico dos outros mundos não verificáveis, como
o espiritual-simbólico. Outros pormenores do paradigma: a) a distinção entre
conhecimento científico e conhecimento do senso comum, entre natureza e
pessoa humana, corpo e mente, corpo e espírito; b) a certeza da experiência
ordenada; c) a linguagem matemática como o modelo de representação; d) a

12
TÓPICO 1 | A NATUREZA DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

medição dos dados coletados; e) a análise que decompõe o todo em partes;


f) a busca de causas que aspira à formulação de leis, à luz de regularidades
observadas, com vista a prever o comportamento futuro dos fenômenos; g)
a expulsão da intenção; h) a ideia do mundo máquina; i) a possibilidade de
descobrir as leis da sociedade.
• Crise do paradigma dominante: tem como referências as ideias de Einstein
e os conceitos de relatividade e simultaneidade, que colocaram o tempo e o
espaço absolutos de Newton em debate; Heisenberg e Bohr, cujos conceitos
de incerteza e continuum abalaram o rigor da medição; Gödel, que provou a
impossibilidade da completa medição e defendeu que o rigor da matemática
carece ele próprio de fundamento; Ilya Prigogine, que propôs uma nova visão
de matéria e natureza. O homem encontra-se num momento de revisão sobre
o rigor científico pautado no rigor matemático e de construção de novos
paradigmas: em vez de eternidade, a história; em vez do determinismo,
a impossibilidade; em vez do mecanicismo, a espontaneidade e a auto-
organização; em vez da reversibilidade, a irreversibilidade e a evolução; em
vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente.
• O paradigma emergente: deve se alicerçar nas premissas de que todo o
conhecimento científico-natural é científico-social, todo conhecimento é local e
total (o conhecimento pode ser utilizado fora do seu contexto de origem), todo
conhecimento é autoconhecimento (o conhecimento analisado sob um prisma mais
contemplativo que ativo), todo conhecimento científico visa constituir-se em senso
comum (o conhecimento científico dialoga com outras formas de conhecimento
deixando-se penetrar por elas). A ciência encontra-se num movimento de transição
de uma racionalidade ordenada, previsível, quantificável e testável, para uma
outra que enquadra o acaso, a desordem, o imprevisível, o interpenetrável e o
interpretável. Um novo paradigma que se aproxima do senso comum e do local,
sem perder de vista o discurso científico e o global.

A palavra Ciência pode ser entendida enquanto simplesmente o


significado de conhecimento; no singular somente. Não se refere a um
conhecimento qualquer, mas àquele que além de aprender e registrar fatos os
demonstra por suas causas constitutivas ou determinantes. No plural refere-se às
diferentes formas de realização do ideal de cientificidade, segundo os diferentes
fatos estudados, investigados e os diferentes métodos e tecnologias empregados.

E
IMPORTANT

A atividade científica não é tão neutra como se poderia pensar. Os cientistas


sãos seres humanos sensíveis às tendências gerais da sociedade. Por sua vez, a Ciência não
pode responder a todas as dúvidas e que é incapaz de oferecer uma verdade totalmente
indiscutível. Referente à questão Ética e Ciência, hoje podemos manipular a vida e mudar
a face do planeta. Estamos dispostos a continuar nesse sentido, embora saibamos que nos
expomos a riscos ainda desconhecidos? Debata com seus colegas de sala.

13
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

5 MÉTODOS CIENTÍFICOS
Para que um campo do conhecimento seja considerado científico
são necessários dois requisitos: que o campo do conhecimento possua, bem
delimitados e caracterizados, os assuntos que pretende estudar/investigar e que o
estudo/investigação desse assunto possua métodos próprios. Portanto, qualquer
que seja a atividade científica é necessário um método ou um conjunto de métodos
para que se possa realizar uma investigação sistematizada dos fenômenos
pesquisados, procurando acumular maior número de informações sobre ele.

O método pode ser definido como sendo os procedimentos do pesquisador


ou o caminho que se estabelece para realizar a pesquisa científica. De acordo com
Ruiz (2002, p. 137), “a palavra método é de origem grega e significa o conjunto
de etapas e processos a serem vencidos ordenadamente na investigação dos fatos
ou na procura da verdade”. Da mesma forma, Aranha (1991, p. 149) descreve que
“etimologicamente, método vem de meta, ao longo de, e hodós, via caminho, [...]
no estudo feito por uma ciência”.

É possível investigar a realidade a partir dos mais variados aspectos em níveis


diversos de profundidade e intenções (objetivos) diferentes, é por isso que existem
muitos tipos de métodos. De acordo com Andery et al. (1996, p. 4), “o método não
é único e nem sempre o mesmo para o estudo deste ou daquele objeto e/ou para
este ou para aquele quadro da Ciência, uma vez que reflete as condições históricas
do momento em que o conhecimento é construído”. Partindo desta premissa, o
pesquisador compreenderá o processo histórico do conhecimento científico.

Ao longo da história da Ciência criaram-se diferentes métodos. O


desenvolvimento do pensamento racional feito na Antiguidade e na Idade Média
foi uma preparação do terreno para instalar a modernidade e a Revolução Científica.
Para os antigos, e também os medievos, o método era puramente racional, ligado
à Filosofia e à Teologia. No período moderno ampliaram-se os métodos para as
experiências dos laboratórios e as pesquisas de campo. A Revolução Científica não
abandonou o método anterior, ao contrário, aprimorou-o, usando-o como ferramenta.
A racionalidade com o uso da lógica simbólica, da dialética e da estatística, passou a
ter novas fundamentações para determinar o que era e o que não era científico.

5.1 TIPOS DE MÉTODOS CIENTÍFICOS


Método e métodos situam-se em níveis claramente distintos, e de acordo
com Lakatos e Marconi (2000), no que se refere a sua  inspiração filosófica, ao
seu grau de abstração, a sua finalidade mais ou menos explicativa,  a sua ação
nas etapas mais ou menos concretas da investigação e ao momento em  que se
situam. Com uma contribuição às tentativas de fazer distinção entre os termos,
diríamos que o método se caracteriza por uma abordagem mais ampla, em nível
de abstração mais elevado, dos fenômenos da natureza e da sociedade.

14
TÓPICO 1 | A NATUREZA DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

a) Método indutivo

Conforme Lakatos e Marconi (2000), indução é um processo mental por


intermédio do qual, partindo de dados particulares, suficientemente constatados. A
indução realiza-se em três etapas: Observação dos fenômenos, descobrir as causas
das manifestações; Descoberta das relações entre eles, por meio de comparação,
encontrar a relação constante existente entre os fatos e fenômenos pesquisados;
Generalizações da relação, entre os fatos e fenômenos semelhantes. Observação,
classificação/agrupamentos por meio da relação constante, classificação por meio
da generalização da relação observada. O conhecimento científico é o único caminho
seguro para a verdade dos fatos. O conhecimento é fundamentado exclusivamente
na experiência, sem levar em consideração princípios preestabelecidos.

b) Método dedutivo

Gil (1999) cita que o método dedutivo foi usado por Descartes a partir
da matemática e de suas regras de evidência, análise, síntese e enumeração.
Esse método parte do geral e, a seguir, desce para o particular. O protótipo do
raciocínio dedutivo é o silogismo, que, a partir de duas proposições chamadas
premissas, retira uma terceira chamada conclusão.

c) Método hipotético-dedutivo

Este método foi definido por Karl Popper a partir de suas críticas
ao método indutivo. Para ele, o método indutivo não se justifica, pois, o salto
indutivo de alguns, para todos exigiria que a observação de fatos isolados fosse
infinita. Pode ser explicado a partir do seguinte esquema:

FIGURA 3 – MÉTODO POPPER

FONTE: O autor

15
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

d) Método dialético

Pensa a realidade não como algo dado e estabilizado, mas procura identificar
o processo, os conflitos existentes e as contradições envolvidas na análise de um
problema de pesquisa. No método dialético, é preciso identificar pares dialéticos
que estão em distintos polos da relação dialética. Dada uma tese, é necessário
identificar sua antítese, para, ao analisar suas relações e interpenetrações, chegar a
uma nova compreensão da realidade, a que o método chama de síntese.

e) Método sistêmico

É um conjunto de passos sistematizados que nos leva a aplicar o


Pensamento Sistêmico de maneira organizada, de modo que a cada passo se
atinjam resultados que servem como entradas nos passos subsequentes. Este
método trabalha o objeto que se pretende analisar inserindo-o como elemento de
um sistema ou assumindo o próprio objeto como um sistema, que interage com
o meio através de processos de trocas dinâmicas, já que o sistema é considerado
aberto. Este método procura compreender a complexidade da realidade, bem
como suas transformações, através dos processos sistêmicos e do feedback que
acontece permanentemente entre o sistema e seu meio externo.

f) Método histórico

No método histórico, conforme Lakatos e Marconi (2000), a investigação


inicia-se a partir do estudo de acontecimentos, processos e instituições do passado,
procurando explicar sua influência na vida social contemporânea. No método
histórico o fenômeno é estudado numa perspectiva histórica. A partir da coleta,
sistematização, análise e interpretação de dados pode-se compreender a origem
histórica do fenômeno. O método histórico consiste em investigar acontecimentos,
processos e instituições do passado para verificar a sua influência na sociedade de hoje,
pois as instituições alcançaram sua forma atual através de alterações de suas partes
componentes, ao longo do tempo, influenciadas pelo contexto cultural  particular
de cada época. O método histórico preenche os vazios dos fatos e acontecimentos,
apoiando-se em um tempo, mesmo que artificialmente reconstruído, que assegura a
percepção da continuidade e do entrelaçamento dos fenômenos.

g) Método comparativo

No método comparativo, segundo Lakatos e Marconi (2000), ele investiga


coisas ou fatos e explicá-los segundo suas semelhanças e suas diferenças. O método
comparativo é usado tanto para comparações de grupos no presente, no passado,
quanto entre sociedades de iguais ou de diferentes estágios de desenvolvimento.

16
TÓPICO 1 | A NATUREZA DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

h) Método monográfico ou Estudo de caso

Lakatos e Marconi (2000) citam que, partindo do princípio de que qualquer


caso que se estude em profundidade, pode ser considerado  representativo
de muitos outros ou até de todos os casos semelhantes. Consiste no estudo
de determinados indivíduos, profissões, condições, instituições,  grupos ou
comunidades, com a finalidade de obter generalizações.

i) Método estatístico

Lakatos e Marconi (2000) comentam que, neste método, os procedimentos


estão pautados nas Teorias das Probabilidades, que estabelecem relações de causa
e efeito de diferentes situações da sociedade, ou de uma população qualquer,
registrando possíveis variações e probabilidades de ocorrência de certos eventos.
Assim, coletam-se dados que representam uma população, e, a partir desta amostra,
são obtidos resultados e possíveis variações de resultados que passam por análises.

j) Método tipológico

De acordo com Lakatos e Marconi (2000), é utilizado para a elaboração


de modelos ideais. O pesquisador, ao comparar fenômenos sociais complexos da
realidade, elabora tipos ou modelos ideais, a partir de características essenciais
dos fenômenos. Apresenta certas semelhanças com o método comparativo. Ao
comparar fenômenos sociais complexos, o pesquisador cria tipos  ou modelos
ideais, construídos a partir da análise de aspectos essenciais do fenômeno.  A
característica principal do tipo ideal é não existir na realidade, mas servir de
modelo para a análise e compreensão de casos concretos, realmente existentes.

k) Método funcionalista

Segundo Lakatos e Marconi (2000), estuda os fenômenos a partir de suas


funções. Assim, as partes são mais bem entendidas compreendendo-se as funções que
desempenham no todo. Segundo os autores, é o método de interpretação que, levando-
se em consideração que a sociedade é formada por partes componentes, diferenciadas,
inter-relacionadas e interdependentes, satisfazendo, cada uma, funções essenciais da
vida social, e que as partes são mais bem entendidas compreendendo-se as funções
que desempenham no todo, o método funcionalista estuda a sociedade do ponto de
vista da função de suas unidades, isto é, como um sistema, organizado de atividades.

l) Método estruturalista

Para Lakatos e Marconi (2000), é utilizado para o estudo de culturas,


linguagens etc., como um sistema em que os elementos constituintes mantêm
entre si relações estruturais. Pode-se dizer que há no fenômeno uma estrutura
comum invariante que pode ser revelada e ser construído um modelo que a
represente. O método parte da investigação de um fenômeno concreto, eleva-se
a seguir ao nível do abstrato, por intermédio da constituição de um modelo que
represente o objeto de estudo, retomando, por fim, ao concreto, dessa vez como
uma realidade estruturada e relacionada com a experiência do sujeito social.

17
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

DICAS

SUGESTÃO DE AULA

Aula referente a Conhecimentos, Métodos e o ensino de Geografia.


Ano escolar: pode ser aplicada para qualquer idade.
Procedimentos: levar os alunos para fora da sala de aula, com seus cadernos e canetas para
anotações. O professor conduzirá a atividade da seguinte forma:

a) Solicitar que os alunos anotem em seus cadernos a data, local, espaço da observação.
b) Anotar as condições do tempo/clima.
c) Propor atividades em que o aluno use os sentidos para observação. Exemplo: olfato, visão,
tato, audição. Solicitar que os alunos toquem em uma árvore e que descrevam a sensação
deste toque na árvore, anotando em seguida o ocorrido. Solicite que os alunos fiquem
em silêncio e escutem os sons, após, anotar no caderno. Solicitar que anotem também as
paisagens que estão vendo (você cria as atividades e elementos para observar e anotar).
d) Socialização (escolher alguns alunos para relatarem o que eles anotaram).
e) Escolher alguma categoria para análise, por exemplo, solo, paisagem. Comparar o
conceito deste elemento com o que foi anotado pelo aluno: o que se distancia, o que se
aproxima, o que faltou, o que foi além do conceito básico.
f) Finalizar tecendo comentários referentes à prática de observação e à importância de
se ter um método para observar. Também é interessante relacionar a produção do
conhecimento com os sentidos.

FONTE: O autor

18
TÓPICO 1 | A NATUREZA DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

LEITURA COMPLEMENTAR

A CIÊNCIA, PESQUISA CIENTÍFICA E A MOBILIDADE DE


FRONTEIRA NA GEOGRAFIA

Francisco Pereira da Silva Filho


Edvania Gomes de Assis Silva
Diego Silva de Oliveira
José Francisco de Araújo Silva
Bruno Tiago da Silva Pereira

Desde o princípio das civilizações, as sociedades de modo geral teriam


se preocupado em fazer investigações a respeito de certos acontecimentos/
fenômenos na Terra, principalmente no que ocorria ao seu redor, mesmo que de
forma rudimentar. Esta preocupação já fazia parte da sua sobrevivência, fazendo
surgir a partir daí os princípios da ciência, que nada mais é que a investigação de
fatos e fenômenos ocorridos no ambiente de forma sistemática, que auxiliaria no
entendimento e no desenvolvimento da humanidade no espaço geográfico, ou
seja, a busca do conhecimento.

Nesta perspectiva, Japiassú e Marcondes, em sentido mais amplo e clássico,


discorrem que “a ciência é um saber metódico e rigoroso, isto é, um conjunto
de conhecimentos metodicamente adquiridos, mais ou menos sistematicamente
organizados, e suscetíveis de serem transmitidos por um processo pedagógico
de ensino” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2006, p. 44). Assim, a ciência surge como
uma investigação organizada e coerente, que mesmo utilizando métodos simples
pode conseguir certos conhecimentos que podem passar para outros indivíduos
num processo de ensino pedagógico, desta forma, providenciando sua principal
essência, a melhoria de vida dos indivíduos e sua adaptação no ambiente
terrestre de forma mais harmônica. Entre diversos pesquisadores o conceito de
ciência não é unânime, do ponto de vista etimológico, significa “conhecimento”.
Mas devido ao estágio atual de desenvolvimento da ciência, essa definição
passou a ser considerada inadequada, uma vez que existem outras formas de
conhecimento que não são científicas. Nesta perspectiva, Gil (2006, p. 20) afirma
que ciência é entendida como “uma forma de conhecimento que tem por objetivo
formular, mediante linguagem rigorosa e apropriada – se possível com auxílio da
linguagem matemática – leis que regem os fenômenos”.

Desta forma, se pode observar que o termo ciência pode ser compreendido
em dois sentidos: o lato sensu, com a acepção de “conhecimento” e o stricto sensu,
aludido apenas ao conhecimento que se obtém através da “apreensão e do registro
dos fatos, com a demonstração de suas causas constitutivas ou determinantes”
(MARCONI; LAKATOS, 2007). Esta concepção de ciência e sua importância se
reforçaram com o passar dos anos, com as civilizações gregas e romanas, devido
às evidências físicas da natureza e das ações humanas e suas inter-relações,
assim havendo a necessidade de se realizar investigações que providenciasse

19
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

explicações mais condizentes com os acontecimentos provenientes da relação


homem/natureza de forma racional, na incansável busca pelo conhecimento.
Dentro desta linha, de forma mais moderna, segundo Japiassú e Marcondes
(2006, p. 44), a ciência passa a ser vista como:

A modalidade de saber constituída por um conjunto de aquisições


intelectuais que tem por finalidade propor uma explicação racional
e objetiva da realidade. Mais precisamente ainda: é a forma de
conhecimento que não somente pretende apropriar-se do real para
explicá-lo de modo racional e objetivo, mas procura estabelecer entre
os fenômenos observados relações universais e necessárias, o que
autoriza a previsão de resultados (efeitos) cujas causas podem ser
detectadas mediante procedimentos de controle experimental.

Nesta perspectiva, a ciência é vista como um importante instrumento de


investigação, que procura estabelecer a aquisição do conhecimento intelectual no
homem, através de procedimentos de controle experimental, para que ele possa
entender os fenômenos observados e seus efeitos de formas universais, para que
assim se possa chegar num conhecimento racional que auxilie no bem-estar da
sociedade e de todo o ambiente no qual está integrado de forma equilibrada.

Porém, para a construção desta ciência e seus estudos é preciso existir uma
comunicação científica, a partir do pesquisador e do seu projeto, para que haja diálogos
entre a busca de informações, a dispersão e o uso destas informações, com o intuito
de produzir os possíveis resultados a respeito da proposta da pesquisa, para assim
se conseguir obter o conhecimento científico, tão importante para o pesquisador e
ao mesmo tempo para a comunidade e área pesquisada (GIL, 2009). Estes estudos
hoje são estimulados em todos os níveis de educação, desde a educação básica até
os cursos de graduação e pós-graduação, principalmente no stricto sensu e no latos
sensu, com a produção de dissertações, teses e artigos científicos.

No entanto, é preciso tomar cuidado com o possível senso comum da


ciência, onde é apresentado como resultado, no cotidiano humano, de uma
generalização da construção/observação de fatos experienciados diariamente e
que sustentam, dessa forma, as opiniões e crenças que podem interferir direta ou
indiretamente no resultado da pesquisa. Este senso comum científico, segundo o
autor, é dotado de um baixo poder crítico, destituído de objetividade por estar preso
às convicções pessoais, por trabalhar com uma linguagem vaga e por não poder
submeter a um exame crítico sistemático. Tudo isso é fruto de um conhecimento
comum, referente às experiências imediatas sobre fatos e fenômenos observados,
que apesar de ser espontâneo, possui suas limitações (KOCHE, 2005).

Por outro lado, o conhecimento científico, aliado ao senso comum e com uma
investigação séria, pode ser visto como algo importante por ser bastante crítico, que
auxiliaria na construção do conhecimento, devido à utilização de uma linguagem mais
precisa e delimitada, que ajudaria a desenvolver os conceitos baseados na vivência
empírica, dessa forma, permitindo a realização de experimentos que auxiliem na sua
validade, possibilitando a discussão dos resultados, na comunidade científica, de
forma intersubjetiva, auxiliando na construção do conhecimento científico.

20
TÓPICO 1 | A NATUREZA DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

Esta constatação mostra, para os pesquisadores de forma geral, que o


conhecimento produzido no molde da ciência, através da teoria e experimentos,
é de fundamental importância para a discriminação dos resultados válidos na
construção do conhecimento científico. Isso mostra também, o sentimento de
necessidade do ser humano de conhecer, de compreender o mundo que o cerca, e
busca fazê-lo através de suas capacidades. Trata-se de uma relação que supõe três
elementos: o sujeito, o objeto e a imagem que se tem da realidade.

Portanto, o homem pode adquirir conhecimento por meio de sensações, da


percepção, da imaginação, da memória, da linguagem, do raciocínio e da intuição
e por meio dos diversos tipos de conhecimento, como o conhecimento popular, o
filosófico, o religioso e científico, mas para isso ele precisa usar métodos e técnicas
que o auxilie no ganho deste conhecimento, ou seja, a veracidade dos fatos de
forma organizada (GIL, 2006). Devido a esta discussão, e com o intuito de facilitar
a pesquisa científica, surge a metodologia, que nada mais é do que o estudo dos
métodos no campo científico, ou seja, selecionar os métodos empregados nos diversos
campos da ciência, assim procurando seus fundamentos e validade, e suas relações
com as teorias científicas, que auxiliam nos resultados das pesquisas (JAPIASSÚ;
MARCONDES, 2006). Estes métodos e sua precisa utilização são importantes para o
desenvolvimento de qualquer pesquisa, pois possibilita o caminho do pesquisador
no incremento do processo de investigação do qual está envolvido.

FONTE: <https://www.editorarealize.com.br/revistas/joinbr/trabalhos/TRABALHO_EV081_MD1_
SA142_ID2128_12092017151344.pdf>. Acesso em: 27 jun. 2018.

21
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• A capacidade de pensar permite que o ser humano não apenas conviva com
a realidade, como também pode conhecê-la. Conhecer a realidade significa
compreendê-la e explicá-la. Ao internalizar os modos de agir, pensar e falar,
aos poucos as imagens se tornam verbalizadas, simbólicos, organizados e
socialmente transformados pela linguagem, no caso a linguagem (diversidade
de linguagens), produz conhecimento. Portanto, dá-se também o nome de
conhecimento o saber acumulado pelo ser humano por meio das gerações, ou
seja, um produto (cultural) que pode ser transmitido.

• O conhecimento vulgar, espontâneo ou popular, às vezes denominado


senso comum, se distingue do conhecimento científico pela forma, método
e instrumentos do conhecer. O conhecimento dito popular para o ensino de
Geografia configura-se como um conhecimento de porta de entrada no processo
de ensino-aprendizagem.

• A produção do conhecimento científico pode ser destacada como resultado de


diferentes exercícios acadêmicos e pesquisas realizadas. Significa a necessidade
de levar a ciência para frente, de renová-la constantemente, de recuperar
interminavelmente a criatividade, de explorar todas as potencialidades
imagináveis, de inventar alternativas onde menos se espera.

• Existem diferentes maneiras de explicar os fatos e fenômenos que envolvem o


mundo em que vivemos, e a Ciência é uma delas. A Ciência é, portanto, uma
forma de conhecimento, a atividade básica da Ciência é a pesquisa. Por meio
dela é possível conhecer e compreender o mundo.

• A ciência é um conjunto de conhecimentos racionais, certos ou prováveis, obtidos


metodicamente sistematizados e verificáveis, que fazem referência a objetos
de uma mesma natureza, produz determinado tipo de conhecimento que em
suas características possui conhecimento racional, obtidos metodicamente,
sistematizadores, verificáveis, relativos a objetos de uma mesma natureza.

• Para interpretar as origens e o desenvolvimento da Revolução Científica, Prade


(2004) cita que há três tradições ou mentalidades claramente definidas referentes
ao fazer ciência no mundo e à busca de interpretação da realidade: Organicista,
Mágica e Mecanicista. Outro olhar para os modelos de se fazer Ciência é descrita
por Chaui (1997), quando diz que, historicamente, três são as principais concepções
de Ciência ou ideias de cientificidade: Racionalista, Empirista e Construtivista.
Por sua vez, Boaventura de Souza Santos (1987), no livro Um discurso sobre
as ciências, enquadra a ciência moderna em três momentos: Paradigma da
modernidade, Crise do modelo dominante, Paradigma emergente.

22
• O método pode ser definido como sendo os procedimentos do pesquisador
ou o caminho que se estabelece para realizar a pesquisa científica. A palavra
método é de origem grega e significa o conjunto de etapas e processos a serem
vencidos ordenadamente na investigação dos fatos ou na procura da verdade.
Etimologicamente, método vem de meta, ao longo de, e hodós, via caminho.

23
AUTOATIVIDADE

1 (ENADE, 2008 – Questão 20):

Neste ensaio, ‘ciência normal’ significa a pesquisa firmemente baseada em uma


ou mais realizações científicas passadas. Essas realizações são reconhecidas
durante algum tempo por alguma comunidade científica específica como
proporcionando os fundamentos para sua prática posterior. [...] Suponhamos
que as crises são uma pré-condição necessária para a emergência de novas
teorias e perguntemos então como os cientistas respondem a sua existência.
[...] De modo especial, a discussão precedente indicou que consideraremos
revoluções científicas aqueles episódios de desenvolvimento não cumulativo
nos quais um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por
um novo, incompatível com o anterior.

T. Kuhn. A estrutura das revoluções científicas. Editora Perspectiva.

Tendo o texto acima como referência inicial e considerando a filosofia da ciência


de Thomas Kuhn, assinale a opção incorreta.

a) ( ) A assunção de um paradigma ocorre depois que o fracasso persistente


na resolução de um problema dá origem a uma crise.
b) ( ) A atividade científica madura desenvolve-se por meio de fases de ciência
normal (paradigma), crise, revolução e novo paradigma.
c) ( ) A ciência normal é o período em que se desenvolve uma atividade
científica com base em um novo paradigma.
d) ( ) Paradigma é uma concepção teórica associada a aplicações-padrão que
são objetos de consenso em uma comunidade científica.
e) ( ) As revoluções científicas produzem efeitos desintegradores na tradição
à qual a atividade da ciência normal está ligada.

FONTE: ENADE/Filosofia 2008. Disponível em: <http://www.filosofia.com.br/vi_prova.


php?id=49>. Acesso em: 18 set. 2018.

2 O senhor X é analfabeto, trabalha no campo, recebeu informações e


conhecimentos de seu pai, sabe o momento certo de semear, colher. Ele tem
conhecimento de que o mesmo tipo de cultura, todos os anos, no mesmo
local, prejudica o solo. Estamos nos referindo ao conhecimento:

a) ( ) Hipotético.
b) ( ) Abstrato.
c) ( ) Popular/prático.
d) ( ) Matemático.

24
3 A palavra ciência é de origem latina “Scientia” que provém de “Scie” que significa
“aprender” ou “conhecer”. O conhecimento científico resulta da investigação
reflexiva, metódica e sistemática da realidade. O conhecimento científico é:

a) ( ) Dogmático.
b) ( ) Metafísico.
c) ( ) Provisório.
d) ( ) Popular.

4 Enquanto o método A parte de casos específicos para tentar chegar a uma


regra geral (o que, muitas vezes, leva a uma generalização indevida), o
método B parte da compreensão da regra geral para então compreender os
casos específicos. A sequência correta do método A e B é:

a) ( ) Indutivo-dedutivo.
b) ( ) Dedutivo-indutivo.
c) ( ) Histórico-dedutivo.
d) ( ) Histórico-indutivo.

25
26
UNIDADE 1
TÓPICO 2

EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO

1 INTRODUÇÃO
No tópico anterior, nosso estudo centralizou-se em saber o que é o
conhecimento, o conhecimento científico, a ciência e os métodos que usamos nas
pesquisas científicas, os quais contribuem com o conhecimento geográfico.

Passaremos a estudar agora as fontes, conceitos, possibilidades e limites


do conhecimento (questões epistemológicas). Para isso, organizamos o tópico em
três assuntos orientadores.

Começaremos com a Epistemologia das Ciências Sociais. Depois, a


Epistemologia da Educação, que compreende a discussão e reflexão em torno
da gênese e desenvolvimento do conceito epistemologia presente nas obras e
pensamentos de diversas correntes e autores na Educação.

E, por último, a Epistemologia e Pesquisa em Geografia, que apresenta o


caminho percorrido pela Ciência Geográfica e suas várias vertentes e abordagens
epistemológicas e como essas teorias se relacionam com o campo da pesquisa e
ensino de Geografia.

2 EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS


Quando na atualidade falamos da gênese, desenvolvimento, estruturação
e articulação da Ciência, dizemos que estamos tratando da Epistemologia, que
é em certo sentido a teoria do saber científico que tem por fim o estudo crítico
dos princípios, objetos, limites, relações e resultados das diversas ciências e/ou a
investigação de todo conhecimento enquanto tal. Em alguns países, e em dados
momentos históricos, a Epistemologia é sinônimo de Teoria do Conhecimento, ou
Gnosiologia, ou Filosofia da Ciência. Nas palavras de Keim e Lopes (2012, p. 21-22):

[...] Na França significa o estudo dos problemas filosóficos relativos à


Ciência. Contudo, em outros países, como nos EUA, tem significados
distintos. Epistemologia é o estudo acerca dos problemas gerais em
torno do conhecimento. Por exemplo, o que é o conhecimento? Como
justificamos nossas crenças? Quais são as fontes do conhecimento?
Quais os limites do conhecimento? Podemos conhecer algo?

27
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

O termo Epistemologia vem do grego e pode ser traduzido como estudo


do conhecimento ou teoria do conhecimento. De acordo com Severino (2011),
em termos gerais, portanto, não há diferença entre Epistemologia e Teoria do
Conhecimento. É muito comum encontrarmos quem acredita que Epistemologia
(ou Teoria do Conhecimento) é a mesma coisa que Filosofia da Ciência. Isso
parece acontecer porque Epistemologia vem do termo grego episteme, que
podemos traduzir tanto como “conhecimento” quanto “ciência”. Todavia, o
termo “ciência”, tal como usamos hoje, tem outro significado. Usamos “ciência”
para designar um grande campo de estudo que trata de fenômenos naturais e
humanos, como a Física, Química, Biologia, História, Sociologia. Segundo Willians
(2001), a epistemologia entrou em línguas europeias em meados do século XIX.
Entretanto, como um assunto, já estava presente desde a Grécia Antiga, tanto nas
discussões de Platão acerca do conhecimento como na obra de Aristóteles sobre
a lógica do conhecimento científico, ou seja, o conhecimento disposto a partir
de princípios básicos, por meio dos quais outros conhecimentos podem derivar
ou vários fatos podem ser explicados. Posto isso, podemos afirmar que todos
os filósofos, desde o início da civilização, se destinaram em algum momento à
epistemologia. Em suas apreciações, os estudiosos tentam assinalar a verdade das
crenças e aparências. No princípio da era moderna, a teoria do conhecimento foi
avaliada em diversos contextos intelectuais que abarcavam discussões a respeito
dos métodos e estrutura que objetivavam prover uma base para o que se entendia
ser o verdadeiro conhecimento.

As tendências pioneiras dos filósofos gregos, como Platão, idealizam o


conhecimento como a consciência absoluta e universal, independentemente de
qualquer sujeito que tente apreendê-lo. Aristóteles buscou enfatizar os métodos
lógicos e empíricos para a constituição do conhecimento, acolhendo a perspectiva
de que tal conhecimento é uma apreensão de princípios universais.

De acordo com Seifert (2008, p. 10):

A palavra grega epistéme significa conhecimento, mas em um sentido


forte, como era usual para os gregos, mas não para nós, o que hoje
chamaríamos de conhecimento absoluto, os gregos usavam esse termo
para diferenciá-lo de outro tipo de saber, aquele que chamavam doxa,
termo cuja tradução apropriada é opinião. E justamente, desde lá,
consiste a tarefa fundamental da epistemologia, seja em determinar a
diferença entre conhecimento (epistéme) e opinião (doxa).

Os gregos perceberam que ter uma opinião que corresponde aos fatos não
é necessariamente conhecer os fatos. Para refletir sobre o que já estudamos, seria
pensar entre senso comum e conhecimento científico, informação e pesquisa, e
informação geográfica e conhecimento geográfico.

28
TÓPICO 2 | EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO

Já na era moderna, foram as duas vertentes epistemológicas que mantiveram


o domínio sobre o debate concernente ao conhecimento: o empirismo, que vê o
conhecimento como produto da percepção dos sentidos, e o racionalismo, que o vê
como o produto da reflexão racional. Sendo o objeto da epistemologia o conhecimento,
algumas questões básicas da teoria do conhecimento necessitam ser refletidas, então a
questão fundamental passa a ser: De onde vêm e quais são os limites do conhecimento
humano? Para elucidar a questão, Galliano (1999) cita sobre as duas correntes do
pensamento filosófico da era moderna: o racionalismo e o empirismo. Os pensadores
racionalistas pregavam que todo e qualquer conhecimento tem sua formação na
razão e tudo que diz respeito a ele é essencialmente racional. O ser humano só pode
conhecer por meio da mente humana. Os pensadores empiristas colocam, por outro
lado, que o verdadeiro conhecimento só pode ser alcançado por meio da experiência.
Assim, o conhecimento é alcançado a partir dos sentidos, nesse âmbito a verdade
é que nós conhecemos as coisas, seja esse conhecimento alcançado por meio de
nossas experiências sensoriais, seja através da razão, e a epistemologia compreende
justamente a relação entre a realidade e as verdades produzidas sobre ela.

Na visão do professor Severino (2011, p. 17):

A Epistemologia é aquela que estuda os processos do conhecimento


produzidos pelo ser humano, tanto do ponto de vista descritivo, como
do ponto de vista crítico. Trata-se de saber como se dá o conhecimento
humano, qual é o seu alcance e seu valor, até que ponto ele nos dá a
verdade, em todas as formas de manifestações.

A partir da história da epistemologia, pode-se perceber que as teorias


iniciais do conhecimento enfatizam o seu caráter constante e absoluto, ao passo que
as teorias seguintes ressaltam sua relatividade, seu sucessivo desenvolvimento e,
sobretudo, sua influência no mundo, assim como em seus sujeitos e objetos. O
movimento parte de uma visão estática e passiva do conhecimento rumo a uma
visão mais ativa e adaptável, dinâmica e provisória.

Por sua vez, no seu artigo referente à Epistemologia da Ancestralidade,


Oliveira (2018, p. 3) escreve:

[...] há uma epistéme universal ou haveria uma epistéme de acordo


com cada cultura? Sou daqueles que advogam que cada cultura produz
seu próprio regime de signo, e que eles podem ser mais ou menos
desterritorializados de acordo com o contexto em que surgiram e
multiplicaram-se. [...] A cultura se constitui no modo de apreensão do
real, e o real constitui-se como singularidade. Ora, o modo pelo qual
eu apreendo o real depende da percepção que tenho da singularidade.
Depende, sobremaneira, do observador que observa e não do que é
observado. Os objetos do mundo não são independentes do observador.
[...] A epistemologia necessita compreender as diferentes lógicas
que coabitam o planeta, muito embora a epistemologia eurocentrada
tenha propagado sua universalidade que não passa de uma operação
ideológica. As propostas epistemológicas estão semeadas nos territórios
de cultura. É mister, então, percorrer os caminhos da diversidade, e tecer
redes que deem conta de conectar os pontos comuns e diagramar os
pontos divergentes das epistemologias criadas e recriadas pelo mundo.

29
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

O mundo contemporâneo conheceu a crítica aos regimes únicos de


referência. Com o advento da pós-modernidade, caíram por terra as grandes
explicações ou compreensões ditas universais/gerais do mundo. Oliveira (2018)
comenta que em lugar do império da unidade descortinou-se a boa nova do
evangelho da diversidade, por isso ele não compreende a epistemologia como um
ramo da filosofia ocidental que se ocupa da questão do conhecimento, ele concebe
a epistemologia como fonte de produção de signos e significados concernentes ao
jogo de sedução que a cultura é capaz de promover.

3 CIÊNCIAS HUMANAS E ABORDAGENS EPISTEMOLÓGICAS


Embora seja evidente que toda a Ciência é Humana, pois resulta da
atividade humana do conhecimento, as ditas Ciências Humanas referem-se
àquelas que têm como objetivo o estudo do homem como ser social, elas reúnem
criteriosamente conhecimentos organizados sobre a produção humana e do
conhecimento, realizadas a partir de discursos específicos. De acordo com Chaui
(1997), a situação da Ciência Humana é muito especial devido a três fatores. Seu
objeto de estudo é recente, o ser humano como objeto científico é uma ideia surgida
apenas no século XIX. Elas surgem após a consolidação das Ciências Matemáticas
e Naturais, de modo que elas imitaram no início e copiaram o que aquelas ciências
haviam estabelecido tratando o homem como uma coisa natural matematizável, ou
seja, surge no período em que prevalecia a concepção empirista e determinista da
Ciência. As Ciências Humanas acabaram trabalhando por analogias com as Ciências
Naturais e seus resultados tornaram-se muito contestáveis e pouco confiáveis.

A complexidade de se estudar e pesquisar os atos humanos oferece


algumas dificuldades. Martins (1999) cita que, como o objeto de conhecimento é
o próprio ser humano, torna-se difícil manter distanciamento dele para se obter
um saber imparcial. Quanto à experimentação é difícil identificar os diversos
aspectos que influenciam os atos humanos. Quanto à matematização, não é
possível identificar todos os dados. Quanto ao determinismo, o comportamento
humano não é previsível. As dificuldades a respeito dos métodos das Ciências
Humanas são inúmeras e as discussões ainda estão abertas.

Embora as Ciências Humanas sejam recentes, do século XV até o início


do século XX, a investigação do ser humano realizou-se de três abordagens
diferentes. Conforme Chaui (1997), o período do humanismo inicia-se no século
XV com a ideia renascentista da dignidade humana como centro do universo,
percorre os séculos XVI e XVII, com o pensamento do ser humano como agente
político, moral e técnico-artístico, destinado a controlar a natureza e a sociedade.
No século XVIII aparece a ideia de civilização, o ser humano por meio da razão se
desenvolve e progride temporariamente através das instituições sociais e políticas
e do avanço das artes, das técnicas e dos ofícios.

30
TÓPICO 2 | EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO

O período do positivismo, de acordo com Diniz (2012), inicia-se no


século XIX com Augusto Comte. Segundo ele, a humanidade atravessa três
estágios progressivos do conhecimento, indo da superstição religiosa à metafísica
e à teologia, para chegar, à Ciência Positivista, final do progresso humano O
positivismo estuda os fatos humanos usando procedimentos, métodos e técnicas
empregados pela Ciência da Natureza.

O período do historicismo surge no final do século XIX e início do século


XX, proposto por Dilthey, concepção herdeira do idealismo alemão. Insiste na
diferença entre ser humano e natureza, chamada de ciência do espírito ou da cultura.
Os fatos humanos são históricos, dotados de valor e de sentido, de significação
e finalidade e devem ser estudados com essas características, por isso devem ser
criados métodos da explicação e compreensão do sentido e dos fatos humanos,
encontrando a causalidade histórica que os governa. O historicismo trabalha com o
fato histórico ou temporal, surge no tempo e se transforma no tempo, em cada época
histórica, devem ser compreendidos como particularidades históricas ou visões
de mundo específicas ou autônomas (aos fatos psíquicos, religiosos, econômicos,
políticos, técnicos e artísticos, seguem as mesmas causas gerais, os mesmos sentidos
e mesmos valores). Resultou em dois problemas que não podem ser resolvidos por
seus adeptos. O relativismo e a subordinação a uma filosofia da História.

A constituição das Ciências Humanas como ciências específicas consolidou-


se a partir de três correntes do pensamento, entre os anos de 1920 e 1950. De
acordo com Chaui (1997), provocaram uma revolução científica e uma ruptura
epistemológica no campo das humanidades. Fenomenologia, que introduziu
a noção de essência ou significação como um conceito que permite diferenciar
internamente uma realidade de outras, encontrando seus sentidos, sua forma, suas
propriedades e sua origem. Estruturalismo, permitiu que as Ciências Humanas
criassem métodos específicos para o estudo de seus objetos, livrando-se das
explicações mecânicas de causa e efeito, sem por isso abandonar a ideia de lei
científica. Os fatos humanos assumem formas de estrutura, de sistemas que criam
seus próprios elementos, dando a estes sentidos pela posição e pela função que
ocupam no todo. Marxismo permitiu compreender que os fatos humanos são
instituições sociais e históricas produzidas não pelo espírito e pela vontade livre dos
indivíduos, mas pelas condições objetivas nas quais a ação e o pensamento humano
devem realizar-se. O marxismo trouxe como grande contribuição a interpretação
dos fenômenos humanos como expressão e resultado de contradições sociais, de
lutas e conflitos sociopolíticos determinados pelas relações econômicas baseadas
na exploração do trabalho da maioria pela minoria de uma sociedade.

Em síntese, de acordo Diniz (2012), a fenomenologia permitiu a definição


e a delimitação dos objetos das Ciências Humanas. O estruturalismo, uma
metodologia que chega às leis dos fatos humanos, sem ser necessário copiar os
procedimentos das Ciências da Natureza. O marxismo permitiu compreender
que os fatos humanos são historicamente comprovados e garante a interpretação
racional deles e o conhecimento de suas leis. Portanto, os fenômenos humanos
são dotados de sentido e significação, são históricos, possuem leis próprias, são
diferentes dos fenômenos naturais e podem ser tratados cientificamente.
31
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

4 EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO
A Epistemologia se ocupa, dentre outros assuntos, do estudo de questões
teórico-metodológicas que abordam a cientificidade. Na educação escolar de base,
essa teoria produzida poderá analisar imagens nos livros didáticos, o currículo escolar
e as concepções de conhecimento que se apresentam no processo educativo, tanto
como obstáculos, quanto promotoras do desenvolvimento da educação escolar como
fundamentação para a educação superior, entre outras possibilidades de análise.

A presença de diversidade de paradigmas (modelos) propicia o


desenvolvimento de tendências que, com o passar do tempo, se consolidam como
abordagens, amplamente difundidas e aplicadas na formação dos educadores.
Na concretude histórica da Ciência identificamos diversas abordagens
epistemológicas e que influenciaram e influenciam o campo da educação. Com
base nos interesses humanos, que corresponde ao interesse cognitivo, entre outros
do fazer pedagógico, estudaremos as seguintes vertentes:

a) Empírico-analítica ou Positivista: segundo Gamboa (1987), envolve análise


e interpretação objetiva da realidade social observável, onde o produto final
é o estabelecimento ou generalização de leis. Ao processo empírico-analítico
corresponde um interesse técnico de controle, orientado para o domínio da
natureza. Sua base teórica é alicerçada no Positivismo. O Positivismo representa
o rigor, racionalidade instrumental e eficácia, de inspiração experimentalista
e modelo de ciência na física newtoniana, assim como todas as projeções dos
pensamentos nas ciências, como o behaviorismo na psicologia, a pedagogia
tecnicista, o positivismo jurídico, a sociologia funcionalista, entre outros. O
modelo científico proposto é fundamentalmente embasado nas Ciências Naturais,
no método empírico-analítico e na objetividade dos fatos. Mas é preciso observar
que o Positivismo não se confunde meramente com o Empirismo.

De acordo com Trivinos (1987), a abordagem positivista tem em comum com


a empirista a não aceitação ou mesmo a contrariedade com as especulações teóricas,
filosóficas e metafísicas. Apesar de o Positivismo ter suas raízes no empirismo, este
se distingue pela sua maior complexidade, tendo como traços característicos, em
primeiro lugar, explicar os fenômenos a partir da identificação de suas relações.
Utiliza para isso instrumentos estatísticos e de coleta de dados, como questionários,
escalas de atitude e amostragem. Uma das suas principais características é que a
explicação científica da realidade se dá sobre os fatos/fenômenos observáveis, com
o pressuposto de neutralidade do pesquisador. Nessa abordagem, o pesquisador
simplesmente apresenta a realidade, sem julgá-la, não tendo importância o contexto
e as causas do fenômeno, o que interessa é descobrir as suas relações.

Por sua vez, ao discutir as abordagens epistemológicas na educação e na


pesquisa, Gamboa (1987) apresenta as seguintes características da empírico-analítica:

32
TÓPICO 2 | EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO

• Razão técnica experimental: o conceito de causa é fundamental, a relação causa


se explicita no experimento, na sistematização e controle de dados empíricos
por meio de análises estatísticas e teóricas. A validação da prova científica se
fundamenta nos testes dos instrumentos de coleta e tratamento de dados. A
concepção de Ciência está relacionada com a concepção de causalidade, tem
como finalidade a procura da causa dos fenômenos, das explicações dos fatos
pelos condicionantes, a racionalidade científica está na situação experimental,
na análise estatística dos dados, na sistematização rigorosa das variáveis ou
na lógica da explicação dos fatos pelas causas finais, exigindo um processo
hipotético-dedutivo que se fundamenta na percepção e registro de dados de
origem empírica e na lógica demonstrativa matemática, próprias das ciências
analíticas. É a ausalidade como eixo da explicação científica.
• Razão acrítica: imparcialidade do pesquisador, neutralidade científica. tem
preferência por autores clássicos do Positivismo ou Neopositivismo e da
ciência analítica. O tratamento dos temas obedece à definição de variáveis.
A fundamentação teórica, na maioria das vezes, aparece na forma de
revisões bibliográficas e, sobretudo, das variáveis manipuláveis nas situações
experimentais. Em relação às críticas nas pesquisas, algumas investigações
excluem discussões ou debates, essa exclusão se apoia na neutralidade
axiológica do método científico e neutralidade do pesquisador. Em certo sentido,
o conhecimento determina o sujeito, e a Ciência é o único meio de construção
do conhecimento verdadeiro. O professor é o eleito como o dono do saber,
ele transmite todo o conhecimento de maneira tecnicista (técnicas objetivas
de manipulação) e, objetivando e centralizando os resultados. Nesse modelo,
a relação sujeito-objeto se faz de modo unilateral, em que o sujeito é determinado
pela Ciência. Podemos identificar na atualidade tendências que, embora
reconhecendo a reciprocidade entre intervenções do sujeito e do objeto no ato do
conhecimento, procuram sustentar a tradição positivista. É o caso das vertentes
vinculadas ao transpositivismo, ao neopositivismo e ao estruturalismo.

b) Fenomenológica e Hermenêutica: uma outra corrente epistemológica na


educação corresponde à fenomenologia. Nos escritos de Gamboa(1987), ele
cita que, na visão de mundo são privilegiados conceitos como intencionalidade
do sujeito na apreensão do objeto, vivência, e redução à essência; a ideia de que
a consciência não existe separada dos objetos, posto que é sempre consciência
de alguma coisa (que lhe dá significado), e que o objeto deve ser compreendido
pelo desvelamento de sucessivos perfis, de variadas perspectivas. Vincula-se à
tradição subjetivista na compreensão da relação sujeito e objeto.

Conforme Martins e Bicudo (1989), a fenomenologia se consolidou


como uma linha de pensamento no século XX a partir das ideias do filósofo
alemão Husserl. O termo fenomenologia designa o estudo dos fenômenos, isto
é, aquilo que é dado a conhecer pela consciência. Um dos princípios básicos
da fenomenologia diz respeito à  intencionalidade da consciência. A consciência é
sempre  consciência de alguma coisa, estando direcionada para um determinado
objeto em análise. Por sua vez, o objeto também é sempre  objeto-para-um-
sujeito. Por intermédio da ideia de intencionalidade, a fenomenologia busca a

33
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

superação das tendências empiristas e racionalistas, visando eliminar a dicotomia


experiência-razão no processo de elaboração do conhecimento. Ao contrário das
ideias racionalistas, a fenomenologia considera que não há consciência pura,
totalmente isolada do mundo, mas toda consciência é consciência de alguma
coisa existente no mundo. A abordagem fenomenológica põe em discussão a
questão da objetividade científica, tão largamente defendida pelo positivismo,
no sentido de que a compreensão de qualquer fenômeno só se realiza a partir da
relação entre o pesquisador (o sujeito que conhece) e o objeto (o fenômeno a ser
conhecido). O pesquisador (cognoscente) parte do objeto (cognoscível) buscando,
através de reflexão e interpretação dos dados coletados de várias maneiras de
descobrir a essência do fenômeno.

Conforme Moreira (2004), acredita-se que a mais completa abordagem sobre


o método fenomenológico tenha sido desenvolvida pelo historiador Spiegelberg,
em que agrupa em sete passos sequenciais o que considera como características
do método fenomenológico. Dentre esses passos destacam-se os dois últimos que
estão relacionados à “[...] suspensão da crença na existência dos fenômenos”. Que
corresponde à redução fenomenológica e à “Interpretação do sentido dos fenômenos”
que compreende o procedimento básico da chamada fenomenologia hermenêutica.
De outra maneira, pode-se dizer que esses passos estão relacionados à isenção ou
a não interferência de significados pessoais e culturais do pesquisador bem como
a sua interpretação do fenômeno, desvendando sua essência. Essa compreensão
do fenômeno através da interpretação é denominada de círculo da Hermenêutica.
De acordo com Severino (2011), a Hermenêutica é como se fosse um dos ramos da
Fenomenologia, de vertente subjetivista da epistemologia contemporânea, que quer
ser desvinculada de qualquer compromisso com o idealismo, sua preocupação
básica é o esclarecimento e sentido da existência humana, por meio do estudo da
linguagem, pois o real não é apenas o que é visto, e sim pelo que é dito. A linguagem
é uma forma simbólica de expressão da realidade de se perceber e existir no mundo,
o ser humano percebe e existe em dimensões simbólicas.

Referente às abordagens epistemológicas na educação e na pesquisa,


Gamboa (1987) apresenta as seguintes características desta abordagem:

• Razão prática comunicativa: os pesquisadores confiam no processo lógico da


interpretação e na capacidade de reflexão do sobre o fenômeno estudado.
• Razão crítica reprodutivista: pesquisadores usam da polissemia, e a
preocupação mais sólida sobre o tema ou por uma discussão mais abrangente,
parece ser de exclusividade das pesquisas que têm como fontes de informações
e de dados de publicações, textos, documentos, leis, estudos teóricos e
análise de documentos. Na fenomenologia, a escola passa a ser um espaço de
vivência social, onde o aluno também pode ser o questionador e expor seus
conhecimentos, ao contrário do positivismo.

34
TÓPICO 2 | EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO

c) Dialética-crítica: uma outra corrente descrita por Gamboa (1987) cita que o
olhar em movimento é característico da dialética, é um olhar que busca captar
o objeto na sua totalidade, desde uma perspectiva histórica de mudanças e
contradições. A compreensão desta abordagem envolve diferentes categorias que
paulatinamente foram se desenvolvendo a partir dos escritos de Marx. A Ciência
não pode ser apenas contemplativa; trata-se de transformar a realidade, a relação
existente entre dois momentos de um todo que se condicionam mutuamente, em
que o todo é determinado pela relação entre os dois momentos, e estes, ao mesmo
tempo, pelo todo, ou seja, a ciência que produz o conhecimento e o próprio
conhecimento não podem ser vistos isoladamente, cortados  abstratamente  da
totalidade, mas em sua relação com esta mesma totalidade (realidade).

Segundo Gamboa (1987), a dialética-crítica visa alcançar a dinâmica


histórica do real, do objeto em todos os seus aspectos, em seu contínuo movimento,
explicável pelas leis da dialética jamais em uma visão estática e unilateral. Numa
metodologia assim, incabível, se a concepção dialética crítica se apresentar
como um modelo de ciência neutra e apolítica, muito pelo contrário, o método
dialético, em sua feição técnica mesmo, sempre conclui pelo posicionamento
claro do pesquisador, do professor, esclarecendo as intenções, conscientes ou
não, implícitas ou não, será sempre parte do objeto de estudo (porque é histórico),
ou intencionalidade de uma aula. O primeiro momento desta abordagem refere-
se à afirmação da profunda historicidade, tanto do real como processos de
conhecimento, tudo estando submetido a um fluxo permanente de transformação
e sempre em decorrência de forças imanentes e contraditórias.

Ainda de acordo com Gamboa (1987), o segundo momento é a dialética


marxista, que se insere na tentativa de superação da dialética hegeliana. Ao
contrário de Hegel, Marx não considera a dialética como qualidade de um
“Espírito Absoluto”, mas subordinada ao conjunto das relações concretas e
históricas que os homens estabelecem entre si para produção da sua existência
material e social. A título de exemplo, pode-se tratar da questão da relação
entre a consciência e a realidade. Esse ponto foi decisivo no contraponto entre o
marxismo e o idealismo hegeliano. Para o idealismo é a consciência que produz a
realidade. Para Marx é justamente o contrário: a realidade, ao contrário, ao invés
de produto é a produtora da consciência. Com isso, o marxismo inaugura um
método que se sustenta pela concreticidade do real a partir da ordem material
das coisas e não pela especulação direcionada à consciência do espírito como no
método fenomenológico hegeliano. A vertente marxista da dialética é considerada
aquela de uma dialética apositiva, na medida em que a história, conduzida pela
humanidade conduzirá a superação de suas contradições intrínsecas. Já por não
ver como historicamente viável essa superação, o terceiro momento da dialética é
gestada no âmbito da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, e é tida como aquela de
uma dialética negativa. Na medida em que esta vertente envolve um investimento
mais sistemático no resgate da subjetividade, o que leva a privilegiar, ao lado da
crítica política, uma análise mais profunda e autônoma dos processos culturais,
tende a valorizar mais o papel da subjetividade no âmbito da ida social e cultural.

35
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

Continuando nossos estudos referentes às abordagens epistemológicas


na educação e na pesquisa, seguem outras características desta abordagem
apresentadas por Gamboa (1987):

• Razão transformadora emancipatória: é privilegiada a inter-relação do todo com


as partes e vice-versa, da tese com a antítese, dos elementos da estrutura econômica
com os da superestrutura. Os critérios de cientificidade se fundamentam na lógica
interna do processo e nos métodos que explicitam a dinâmica e as contradições
internas dos fenômenos e explicam as relações entre homem e natureza, entre
reflexão e ação, entre teoria e prática e razão e transformação. A concepção de Ciência
é derivada de um produto da ação humana, tida como uma categoria histórica, um
fenômeno em contínua evolução inserido no movimento de formações sociais. A
produção científica serve como uma mediação entre o homem e a natureza, uma
forma desenvolvida da relação ativa entre o sujeito e o objeto, na qual o homem,
como sujeito, veicula a teoria e a prática, o pensar e o agir, em um processo cognitivo
transformador da natureza, assim a ação é a categoria epistemológica principal. É a
ação (movimento) como categoria epistemológica fundamental.
• Razão crítica: síntese das múltiplas relações privilegiam os estudos sobre
experiências, práticas pedagógicas, processos históricos, discussões filosóficas ou
análises contextualizadas a partir de um prévio referencial teórico. Em relação às
críticas dos temas estudados, as pesquisas críticas/dialéticas expressam a pretensão
de desvelar, mais que o conflito das interpretações da realidade estudada, o
conflito dos interesses. Manifestam um interesse transformador das situações ou
fenômenos estudados, resgatando sempre sua dimensão histórica e desvendando
suas possibilidades de mudança. As propostas nelas contidas se caracterizam
por destacar o dinamismo da práxis transformadora dos homens como agentes
históricos. Para isso, além da formação da consciência e da resistência espontânea
dos sujeitos históricos nas situações de conflito, propõem a participação ativa na
organização social e na política. Surgiu em crítica à fenomenologia e ao positivismo,
nela é possível verificar que a escola é o meio onde pode haver a transformação social,
e nesse processo tanto o sujeito como o objeto são fundamentais, pois através da
relação entre sujeito e objeto ocorre a difusão de conhecimentos, em uma relação de
interdependência. Corresponde ao interesse emancipador, orientado para a própria
libertação do gênero humano, guiada por uma intencionalidade que dá sentido,
uma finalidade relacionada com as transformações das condições de existência da
sociedade. Essa abordagem vê a reciprocidade sujeito e objeto eminentemente como
uma interação social que vai se formando ao longo do tempo histórico. Não se pode
pensar a educação, o conhecimento isoladamente em relação à prática política dos
seres humanos, nunca é somente questão de saber, mas também de poder.

O pensamento moderno vem sofrendo críticas dos teóricos desde


Marx, mas foi principalmente com Einstein e com a mecânica quântica que os
pressupostos da ciência moderna foram postos em xeque e começou-se a construir
um novo paradigma emergente. De acordo com Santos (1987), a construção de um
novo paradigma ou epistemologia pós-moderna de Ciência apresenta-se como
um desafio aos cientistas contemporâneos. A Pós-Modernidade traz com ela as
seguintes características em termos de abordagens epistemológicas na educação:

36
TÓPICO 2 | EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO

• Razão niilista: aniquilar valores e convicções; é a desvalorização e a morte do


sentido, a ausência de finalidade; acronia; complexa, sistêmica, insurgente.
• Razão crítica desconstrutiva: polifonia; pretende desconstruir e, assim, os
autores são escolhidos pela visão da realidade a partir do seu entorno: cenários
múltiplos, virtuais, teorias pós-críticas. Os valores tradicionais depreciam-se
e os "princípios e critérios absolutos dissolvem-se". Tudo é sacudido, posto
radicalmente em discussão. A superfície, antes congelada, das verdades e dos
valores tradicionais está despedaçada e torna-se difícil prosseguir no caminho
ou de avistar um ancoradouro.

d) Arqueologia e Genealogia: outra corrente ou vertente, em tempos atuais,


cabe também dar destaque a uma tendência ligada à tradição subjetiva
fenomenológica-hermenêutica, e de acordo com Severino (2011), pode-se designar
como arqueogenealogia, derivada de duas grandes vertentes epistemológicas:
a Arqueologia e a Genealogia. Alguns pensadores atuais estão defendendo
uma outra dimensão para a subjetividade humana, buscando se afastar da
racionalidade pura. Propõem substituir a economia da razão pela economia do
desejo, ou seja, priorizar inclusive, na ordem do conhecimento, outras dimensões
que não aquelas da lógica racional. Falam de uma desterritorialização do sujeito,
querendo ampliar os espaços da subjetividade. Resgatar as outras dimensões
humanas, como o sentimento, a paixão, a vitalidade, as energias instintivas,
o ser humano não seria definido como animal racional e sim como um ser
desejante. Sua preocupação gira em torno dos caminhos e possibilidades do
agir do sujeito que busca ampliar seu território de autonomia. Assim, quando
entra na dimensão educacional, faz exclusivamente para denunciar o caráter
desumanizador e repressivo dos conhecimentos e aparelhos sociais envolvidos.
Denuncia a cumplicidade conhecimento/poder articulando o pensamento
criativo e contestador com uma prática libertadora, inventando tarefas não
previamente definidas. As relações humanas só podem se legitimar enquanto
servirem para a expansão dos afetos e para a diminuição dos poderes.

e) Sistêmica: é necessário, hoje, colocar o sujeito no centro de todos os conhecimentos,


ciências e saberes. Segundo Morin (2011), contesta um dos princípios fundamentais
do paradigma redutor e disjuntivo que tem orientado o desenvolvimento das
ciências, segundo o qual o sujeito deve ser eliminado do produto do conhecimento
embora seja ele seu produtor. O ser humano nos é revelado em sua complexidade:
ser, ao mesmo tempo, totalmente biológico e totalmente cultural. O cérebro, por
meio do qual pensamos; a boca, pela qual falamos; a mão, com a qual escrevemos,
são órgãos totalmente biológicos e, ao mesmo tempo, totalmente culturais. O que
há de mais biológico – o sexo, o nascimento, a morte – é, também, o que há de mais
impregnado de cultura. Morin (2011, p. 16) afirma que “o ser humano é, a um só
tempo, físico, biológico, psíquico, cultural, social e histórico. [...] Desse modo, a
condição humana deveria ser o objeto essencial de todo ensino”, configurando este
como um dos sete saberes necessários à educação do futuro, evidenciando que a
educação deve ser fundamentada na concepção de homem que é transpassado por
uma série de aspectos e que na contradição forma a sua totalidade.

37
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

De acordo com Trivinos (1987), a abordagem sistêmica está relacionada


à Teoria Geral dos Sistemas de Bertalanffy, a qual é utilizada para estudar os
fenômenos que constituem sistemas. Sua premissa é a existência de inúmeras
relações no contexto interno do objeto que se estuda, estando também ligado
ao meio externo. No enfoque da Teoria Geral dos Sistemas é considerado um
modelo dinâmico que descreve a ação de um conjunto de elementos funcionais
compreendendo a entrada, o processo, a saída e o feedback. O termo estrutura
é amplamente utilizado para descrever sistemas, contudo suas estruturas e
definições são diferentes. O termo sistema é aplicado para designar o conjunto de
elementos funcionando harmonicamente. Por outro lado, a estrutura compreende
um conjunto de relações, sem o atributo da funcionalidade, enfatizando que um
sistema funciona, enquanto que a estrutura ‘é’. Podendo ser as relações estruturais
abstratas quando puramente lógicas, ou concretas quando incorporadas a
um sistema. A ideia básica é que a concepção sistêmica está mais ligada à
funcionalidade, ao concreto. Além de estudar o fenômeno de forma globalizada,
trabalhos com abordagem sistêmica apresentam como características marcantes
a visão do objeto como um sistema e a concepção de causalidade fundada na
interação mútua entre os elementos.

f) Decolonialidade: o cenário contemporâneo, no início do século XXI, segue


marcado por discussões que apontam para mudanças na ideia de um pensamento
epistemológico geral, em que o caráter monolítico do cânone epistemológico
ocidental passa a ser questionado pelas perspectivas feministas, pós-coloniais,
multiculturais e pragmáticas. Neste debate, as perspectivas interculturais,
a partir do pensamento de fronteira e do movimento da decolonialidade,
discutem a hierarquização e marginalização epistemológica da Ciência em
relação a outros conhecimentos. O reconhecimento de uma diversidade
epistemológica é uma provocação para educadoras e educadores refletirem sobre
os extensos e diversificados sistemas de conhecimentos e diferentes concepções
epistemológicas do contexto complexo e conflituoso onde se vive hoje.

Segundo Mignolo (2002), o problema da colonialidade do saber é um


dos mais recorrentes dentro das discussões da epistemologia decolonial e está
diretamente associado à “diferença colonial e geopolítica do conhecimento”.
Sendo paralela à própria geopolítica da economia, a noção de violência epistêmica
elaborada tornou-se insuficiente para captar o silêncio oriundo do racismo
epistêmico, a noção “deve ser ampliada para o âmbito de macroestruturas de
longa duração, de tal maneira que permita visualizar o problema da “invenção
do outro” de uma perspectiva geopolítica”. O que o pensamento crítico não
conseguiu capturar em sua denúncia foi o eurocentrismo e o colonialismo,
duas faces da mesma moeda. O eurocentrismo é uma lógica fundamental para
a reprodução da colonialidade do saber, ou seja, a elaboração intelectual do
processo de modernidade produziu uma perspectiva de conhecimento e um
modo de produzir conhecimento que demonstram o caráter do padrão mundial
de poder: colonial/moderno, capitalista e eurocentrado.

38
TÓPICO 2 | EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO

Dussel (2000) denuncia nos seus estudos as tendências dominantes da crítica pós-
moderna e esses estudos procuram ser enfáticos em apontar as inflexões pós-modernas,
o abandono da linguagem da mudança social, da prática emancipatória e da política
transformadora. O reconhecimento da diversidade epistemológica na qual estamos
imersos traduz-se em múltiplas concepções de ser e estar no mundo. Esse fato traz
para os educadores a dimensão de conhecer e refletir sobre os extensos e diversificados
sistemas de conhecimentos, sobre as diferentes concepções epistemológicas e o tempo
intelectual complexo no qual se vive. No debate sobre a diversidade compreende-se
que a mediação de saberes interculturais no processo educativo é uma necessidade
para o contexto atual, portanto não há como desvincular educação, cultura e política.

A educação intercultural traz para escola a possibilidade de superação de


práticas excludentes como as de caráter homogeneizante e monocultural. A ideia de
desconstruir o aprendido e reaprender a aprender, é no mínimo um convite para que
educadores repensem a escola com um olhar generalista. Nesse sentido, as interfaces
entre epistemologias decoloniais e educação intercultural apontam pistas para a
ressignificação do espaço escolar, enquanto espaço de emancipação onde caibam todos.

O pensamento contemporâneo configura-se por diferentes correntes


teóricas e epistemológicas, e trazem consigo a marca da mudança paradigmática do
pensamento científico moderno para o pós-moderno. Segundo Santos (2010), essa
mudança na reflexão epistemológica não emerge num primeiro momento somente
com as Ciências Sociais ou os estudos culturais, mas sobretudo com as Ciências
Naturais. No entanto, a Pós-Modernidade não se configura apenas como um
paradigma epistemológico, “mas como um novo paradigma social e político”. Nessa
perspectiva, o autor propõe uma crítica radical da modernidade ocidental capitalista,
seus valores, hierarquias e narrativas que justificam a opressão social. Há que se
travar uma luta cultural para além da homogeneização imposta pela globalização
excludente contra a hierarquização epistemológica que gera marginalizações,
silenciamento de outros conhecimentos. Assim, os saberes subalternos surgem
com a ideia de ressignificar as mais variadas formas de conhecimento, que foram e
continuam excluídos, omitidos, silenciados e/ou ignorados.

Partindo do pensamento de Paulo Freire, não há prática social mais


política do que a prática educativa. Esse processo educativo demanda uma
necessidade urgente de ler criticamente o mundo e intervir na reinvenção
social. A educação com uma abordagem epistemológica decolonial seria uma
continuação do entrecruzamento conceitual e pedagógico dos projetos de luta da
interculturalidade crítica e da decolonialidade, que exigem e apostam em práticas
pedagógicas que retomam a diferença entre o contexto histórico-político-social e
de poder com a intenção de construir e afirmar práticas diferenciadas.

Seria, então, não apenas uma vertente pedagógica, mas a junção de várias
bases pedagógicas que convocam conhecimentos subordinados, marginalizados
e projetos que enlaçam interculturalidade crítica e decolonialidade, ou seja,
pedagogias que venham a dialogar com antecedentes crítico-políticos, assim
como a pedagogia crítica de Paulo Freire. Essa pedagogia parte de lutas e práxis
decoloniais, como as dos movimentos afro e indígenas.
39
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

A educação intercultural, de acordo com Fleuri (2003, p. 54), “apresenta-


se como uma provocação à desconstrução de modelos unívocos de educação e
à busca de construção de novas perspectivas educacionais”, é “uma provocação
a um reeducar do olhar sobre o ‘outro’, e são imprescindíveis a um novo
entendimento das relações de saberes”.

De acordo com Mignolo (2010), “Giro decolonial” é um termo cunhado


originalmente por Nelson Maldonado-Torres em 2005 e que basicamente significa
o movimento de resistência teórico e prático, político e epistemológico, à lógica
da modernidade/colonialidade. A decolonialidade aparece, portanto, como o
terceiro elemento da modernidade/colonialidade. A conceitualização mesma da
colonialidade como constitutiva da modernidade é já o pensamento decolonial
em marcha. Mas, para ele, a origem do pensamento decolonial é mais remota,
emergindo como contrapartida desde a fundação da modernidade/colonialidade.
O pensamento decolonial é uma elaboração posterior àquilo que em outro lugar
Mignolo chamou de “pensamento fronteiriço”.

O pensamento fronteiriço, desde a perspectiva da subalternidade colonial,


é um pensamento que não pode ignorar o pensamento da modernidade, mas que
não pode tampouco subjugar-se a ele, ainda que tal pensamento moderno seja de
esquerda ou progressista. As principais características teóricas e epistemológicas
na educação e pesquisa da decolonialidade são: sabedorias e razão crítica,
transformadora, emancipatória, libertadora. Totalidade/infinitude. Relação dialética;
transitividade/diacronia. Superar os conflitos pelo diálogo e ações conscientes. A
participação de todos e todas na superação de conflitos. Razão crítica libertadora.
Alteridade cultural. Teoria da ação dialógica intercultural. Saberes e conhecimentos
originários (autóctones). Equilíbrio entre os saberes ancestrais e os científicos.

Caminhamos neste tópico por dois assuntos: a Epistemologia nas Ciências


Humanas, e Educação, agora passaremos a estudar nosso último assunto, a
relação da Epistemologia e a Geografia. Nossa lógica foi partir de uma área ampla
das ciências (Humanas), passar pela Educação, e entrar no ensino e ciência da
Geografia. Portanto, caminhos pela sociedade, educação, espaço/território.

5 EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA
Descrever autores e obras em vertentes de pensamento é importante enquanto
recurso didático, pois permite compreender a partir de sínteses as principais ideias e
movimentos, e também os abandonos e continuação destas propostas. Compreendido
este movimento, o sujeito em busca do conhecimento faz relações e aproximações com
seu contexto vivido, no âmbito social, científico e educacional. Em nosso caso, é uma
tentativa de demonstrar as muitas vias possíveis para a pesquisa e o ensino de Geografia,
bem como os desafios e possibilidades a serem enfrentados em cada uma das abordagens
epistemológicas da Geografia. Como é impossível abarcar todas as vertentes, que de
uma forma ou de outra trazem implicações epistemológicas à Geografia, estudaremos
algumas que estão relacionadas com o estudo que até aqui já realizamos. As abordagens
vistas nas Ciências Humanas e Educação serão exploradas na Geografia.
40
TÓPICO 2 | EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO

Geografia Tradicional: nas palavras de Diniz Filho (2012), somente no século


XIX é que a Geografia começou a ter o status de conhecimento organizado, assumindo
um novo discurso, que exigiu um saber sistematizado e ainda com a possibilidade
de afirmar proposições, nos limites de uma linguagem lógica. Sob essa ótica, foi
construída a fundamentação das correntes do pensamento geográfico, identificadas
como Geografia Tradicional, que são: o determinismo geográfico; o possibilismo; e
o método regional. O período chamado de tradicional na Geografia estende-se do
final século XIX, aproximadamente, quando essa disciplina se tornou uma disciplina
institucionalizada nas universidades europeias, até a metade do século XX, quando
se verificou a denominada revolução teorético-quantitativa. De acordo com os
autores, na perspectiva tradicional, a Geografia sofreu forte influência das obras de
Alexandre Von Humboldt e de Karl Ritter, suas ideias apresentadas tiveram grande
influência no contexto geográfico. Na Alemanha, os trabalhos mais significativos são
os de Alfred Hettner; na França os mais relevantes são os de Paul Vidal de La Blache.

Estudamos e compreendemos que o positivismo, uma corrente filosófica


que busca definir o ideal de Ciência a partir do modelo das Ciências Naturais,
dentro de um viés não crítico, influenciou as Ciências Humanas e a Educação,
então a própria Geografia foi influenciada por esta abordagem.

Segundo a professora e pesquisadora Suertegaray (2005), o estado Positivo,


que é o estado que indica a impossibilidade de reconhecer o absoluto, portanto,
renuncia a busca da origem dos fenômenos para procurar descobrir, graças ao uso
combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas. Trata-se de um método
que privilegia o processo de indução, que parte da observação dos fenômenos através
dos sentidos para deduzir teorias. O Positivismo teria como perspectiva romper com
a metafísica, renunciando, enquanto método de investigação, as causas últimas da
origem/destino do universo. Para o Positivismo, o que unifica a Ciência é a forma de
construí-la, o método. Portanto, o conhecimento científico apresenta, nesta vertente,
um único caminho. O princípio da certeza, então, é resultado da unicidade do método.
Uma relação da Geografia ao Positivismo está na redução da realidade ao mundo
dos sentidos. Nessa abordagem, a Geografia é considerada uma Ciência empírica,
pautada na observação, que é a única forma possível de se obter o conhecimento.

De acordo com Moraes (1994), no que se refere aos procedimentos de análise


(descrição, enumeração, classificação e comparação, chega-se a conclusões gerais
e ao descobrimento das leis), a indução é posta como a única via para se chegar à
explicação científica. Também é perpassada a ideia da existência de um único método
de interpretação, comum a todas as ciências, tal método seria originário das ciências
naturais, a naturalização dos fenômenos humanos, pois para esta abordagem a
Geografia é sobretudo uma ciência de contato entre o domínio da natureza e o da
humanidade, noção que permeia todo o pensamento Geográfico Tradicional. O
ser humano aparece como um elemento da paisagem, a unidade do pensamento
geográfico tradicional está calcada no Positivismo, manifesto numa postura geral,
profundamente empirista e naturalista. Outro olhar do Positivismo na Geografia está
presente na premissa de que a Geografia é uma Ciência de síntese. Esse pensamento
alimenta-se da ideia de classificação e hierarquização das ciências, a Geografia se
tornaria o auge do conhecimento científico, isto é, como a disciplina se relacionaria
e ordenaria os conhecimentos, produzidos por todas as demais ciências. Geografia
enquanto centro de produção de conhecimento e interpretação a realidade.

41
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

Determinismo Geográfico: o determinismo é um dos pressupostos


básicos do conhecimento científico moderno, na Geografia é muito lembrado
pela vivência ambientalista em Ratzel. A noção de determinismo, de acordo com
Gomes (2009, p. 84), é de forma geral interpretada como:

[...] O Determinismo pode ser relacionado à ideia de regularidade,


uniformidade e constância dos fenômenos da natureza, como são os
dias e as noites, os nasceres e pores do Sol, as estações climáticas, a
gravidade, as chuvas no verão, o ritmo dos relógios, os horários
comerciais, de ônibus e metrôs etc. Dessa premissa deriva-se como
universal as leis da causalidade, considerando que toda Força detém,
necessariamente, causas naturais e efeitos naturais.

Segundo Diniz Filho (2012), Friedrich Ratzel  foi um pensador alemão que
influenciou muito o  expansionismo  imperialista  da Alemanha na segunda metade
do século XIX, precursor da Geopolítica e do Determinismo Geográfico. A expressão
“determinismo” não era empregada pelo próprio Ratzel, tratando-se de uma atribuição
conceitual que foi dada a partir das leituras sobre o seu pensamento encontrado em
sua obra Antropogeografia. A teoria ratzeliana via o ser humano a partir do ponto de
vista biológico (não social) e que, portanto, não poderia ser visto fora das relações de
causa e efeito que determinam as condições de vida no meio ambiente. Nesse sentido,
o determinismo geográfico ou ambiental colocava o ser humano numa condição de
submissão aos aspectos naturais. Esse pensador foi bastante influenciado pela obra
de Charles Darwin, que defendia o postulado de que a evolução se basearia na luta
entre as diferentes espécies, de forma que aquelas que possuíssem as características
de melhor adaptação ao meio sobreviveriam. Ratzel, de certa forma, aplicou essas
ideias à espécie e sua vida em sociedade. Os seres humanos e etnias mais aptas
venceriam e dominariam os povos considerados inferiores. Tais ideais basearam e
justificaram teoricamente a dominação dos povos europeus, que se colocaram como
uma civilização mais evoluída e desenvolvida (eurocentrismo). Suas ideias também
influenciaram aquilo que mais tarde veio a ser denominado por Nazismo.

Possibilismo Geográfico: de acordo com Diniz Filho (2012), é uma


vertente de estudo da Geografia francesa, surgida no final do século XIX, como
resposta às colocações deterministas de Ratzel, e o criador das ideias possibilistas
foi Paul Vidal de La Blanche. Segundo esse autor, o Possibilismo discute as
relações homem-meio natural, mas diferentemente do Determinismo, não
entende a natureza como fator determinante do comportamento humano. Com o
Possibilismo entende-se que o ambiente não explica tudo, pois é preciso perceber
que a presença do homem como agente modifica o ambiente em que ele vive.

De acordo com Moraes (1986), são estas as críticas efetuadas por Vidal às
formulações de Ratzel e que delineiam a posição do Possibilismo:

• A primeira crítica condenou a vinculação entre o pensamento geográfico e


a defesa de interesses políticos imediatos, brandindo o clássico argumento
liberal da necessária neutralidade do discurso científico.

42
TÓPICO 2 | EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO

• A segunda crítica incidiu diretamente no caráter naturalista presente no


pensamento de Ratzel. Vidal criticou a minimização do elemento humano, que
aparecia de forma passiva nas teorias de Ratzel. Foi nessa crítica que Vidal
defendeu o componente criativo (a liberdade) contido na ação humana, que
não seria apenas uma resposta às imposições do meio. Assim, valorizou a
História, valendo-se de sua formação acadêmica de historiador.
• A terceira crítica foi desenvolvida em torno da anterior, incidindo sobre a
Antropogeografia, de Ratzel. Vidal declarou a sua oposição em relação à
concepção fatalista e mecanicista da relação entre os homens e a natureza.
Assim, atingiu diretamente a ideia da determinação da História pelas condições
naturais. Partindo dessa ideia, Vidal propôs uma postura relativista, no trato
dessa questão, dizendo que tudo o que se refere ao homem é mediado pela
contingência. Este posicionamento, aceito por seus seguidores, fez com que a
Geografia francesa abandonasse qualquer intento de generalizar.

Segundo Diniz Filho (2012), nas últimas décadas do século XIX, a geografia
acadêmica começou a superar as fronteiras da Alemanha, pois foram implantados
os primeiros cursos regulares dessa disciplina nas instituições de ensino superior de
vários países europeus e também dos EUA. No caso da França, esse processo teve
início após a Guerra Franco-Prussiana, ocorrida em 1870, pois, até então, os conteúdos
de cunho geográfico eram ensinados no curso de História. Dois anos mais tarde, o
historiador Paul Vidal de La Blache tornou-se um geógrafo, ao encarar o desafio de
dominar o conteúdo de uma disciplina que nunca havia sido ensinada no país e,
simultaneamente, desenvolver os métodos para estudá-la. Ele se aplicou nos estudos
de geologia e botânica, bem como das obras dos fundadores da geografia científica e
dos geógrafos de seu tempo, como Ratzel. Empreendeu diversas viagens pela França,
nas quais eram feitos longos trajetos a pé, pois atribuía grande importância ao contato
direto do pesquisador com as paisagens estudadas. À época, muitos intelectuais
manifestaram suas reações às extremas generalizações dos deterministas ambientais.
Foi nesse contexto que o Possibilismo se apresentou como uma escola do pensamento
geográfico, opondo-se ao Determinismo Ambiental germânico. Essa oposição era
definida por uma relação de causa e efeito, ou seja, a natureza determinando a ação
humana e não por um objeto empiricamente identificável.

Nas palavras de Moraes (1994), para o Possibilismo, o ser humano era


apresentado como um agente ativo, ao invés de passivo, como na visão determinista.
O Possibilismo foi presente no meio dos intelectuais franceses da época, tendo um
papel fundamental na consolidação da sociedade francesa. Seu objetivo era abolir
qualquer ideia determinista, e por meio da objetividade e neutralidade buscava
legitimar as doutrinas da ordem. Assim, considerou-se a natureza como doadora
de possibilidades para que o homem pudesse modificá-la a seu favor, se quisesse.
Intervir na natureza e adequá-la as suas necessidades. O ser humano transforma o
meio em que vive, pois além de modificá-lo, ele também se adapta a esse próprio
meio modificado. Os adeptos desta perspectiva não responsabilizam as condições
ambientais pela pobreza da população regional, pois a natureza oferece condições
para que o homem a modifique. É importante considerar que o Possibilismo, sendo
uma corrente do pensamento geográfico francês, surgiu por conta de uma necessidade
estatal, ao atender aos interesses do expansionismo francês, objetivando a interação
homem com o meio natural.
43
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

Geografia Regional: de acordo com Moraes (1994), podemos designar


como aquela que divide o mundo em regiões que se diferenciam por aspectos
físicos e não por fronteiras políticas. A região pode definir-se como uma área
homogênea que pode resultar de diversos fatos. Existe uma grande variação
no que se refere aos limites regionais, isso faz com que os geógrafos em muitas
situações utilizem unidades administrativas para tentarem efetuar a sua síntese
regional. O precursor da Geografia Regional foi Vidal de la Blache (1845-1918),
pertencente à escola geográfica francesa.

Diniz Filho (2012) afirma que a diferenciação de áreas é vista através da


integração de fenômenos heterogêneos em uma dada porção da superfície da
Terra, focalizando assim o estudo de áreas e atribuindo à diferenciação como
objeto de geografia. A partir dos anos 1940, essa corrente ganha importância com
raízes em Alfred Hettner, põe a geografia no plano de encontro do nomotetismo
e do ideografismo, centrando a referência unitária no conceito de região. A região
é a categoria universal da Geografia, o conceito portador da capacidade de
oferecer uma visão de unidade de espaço (Hettner diz corológica) à pluralidade
dos aspectos físicos e humanos, e de assim forjar a síntese de mundo, que é a
identidade metodológica e científica da Geografia. Chega-se à síntese regional
por intermédio da interação entre a Geografia sistemática, parte da geografia
encarregada de realizar a análise dos fenômenos no seu plano tópico, e a Geografia
regional, a verdadeira Geografia, e que se serve da primeira, ao tempo que lhe
impõe a necessária unidade sintética. Hartshorne argumentou que a geografia
interpreta as realidades da diferenciação de áreas do mundo, tais como elas são
encontradas, não somente em termos das diferenças de certos elementos de lugar
para lugar, mas também em termos da combinação total dos fenômenos em cada
lugar, diferente daquelas que se verificam em cada um dos outros lugares.

De acordo com Diniz Filho (2012), a questão regional é uma das mais
tradicionais em Geografia, sendo a região um conceito-chave dessa ciência. A
noção que Vidal de la Blache tem de região é uma noção fundada no princípio
da “unidade terrestre”, segundo o qual a região se constituiria enquanto parte de
um todo e ela mesma se constituiria numa unidade, em que, havendo a quebra
das ligações naturais, seria impossível reconhecer o encadeamento que religa os
fenômenos dos quais se ocupa a Geografia e que é sua razão de ser científica. Vidal
de la Blache insiste no fato de que a Geografia deve ser tratada como ciência e não
como uma simples nomenclatura. A região, para ele, não é a descrição de um
mosaico de paisagens. Existe, na sua noção de região, uma visão de movimento,
de imbricações dos seres regionais. As regiões de um país são peças que mantêm
relações entre si, formando um todo. Vidal mostra que existem regiões naturais, mas
para a Geografia interessa a relação entre essa região natural e as regiões históricas,
e essa unidade natural/histórica não se realiza sem implicações complexas. Não
existe uma superposição automática entre elas. A ideia é que existe uma base
geográfica no desenvolvimento histórico de um povo. Sem sombra de dúvida,
a ideia de região evolui no pensamento vidaliano, no entanto, parece-nos que
toda essa evolução tem um fio condutor que acompanhou esse grande geógrafo
durante toda a sua carreira: aquele que se funda sobre a concepção da relação

44
TÓPICO 2 | EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO

homem/natureza. A Geografia regional também é considerada uma abordagem


do estudo das ciências geográficas (de forma semelhante à Geografia quantitativa
ou às geografias críticas). Essa abordagem era prevalecente durante a segunda
metade do século XIX e a primeira metade do século XX, também conhecida
como o período do paradigma geográfico regional, quando a Geografia regional
tomou a posição central nas ciências geográficas. Foi posteriormente criticada
por sua descritividade e a falta de teoria (Geografia regional como abordagem
empírica das ciências geográficas). Um criticismo massivo foi levantado contra
essa abordagem nos anos 1950 e durante a revolução quantitativa. O paradigma
da Geografia regional teve impacto em muitas das ciências geográficas (como a
geografia econômica regional ou a geomorfologia regional).

Nova Geografia (Geografia Pragmática, Geografia Quantitativa, Geografia


Neopositivista): o professor Diniz Filho (2012) escreve que o período Pós-Segunda
Guerra Mundial marca um momento de transformações no cenário das ciências, uma
vez que se observa, em ritmo surpreendente, o desencadeamento de um conjunto de
avanços tecnológicos e científicos nas diversas áreas do saber, os quais impactam
diretamente no modo de se conceber ciência e, consequentemente, trazem novos
atributos para as relações produtivas e sociais e educacionais. A partir da década de
1950, a Geografia viveu uma profunda movimentação conceitual, que deu origem
à chamada “Revolução Quantitativa” ou “Nova Geografia”. A denominação Nova
Geografia diz respeito a um conjunto de ideias e de abordagens que começaram a
se difundir a partir das profundas transformações provocadas pela Segunda Guerra
Mundial nos setores científico, tecnológico, social e econômico. A Nova Geografia
adotou uma postura pragmática que se associou à difusão do sistema de planejamento
do Estado capitalista, e o Positivismo lógico como método de apreensão do real,
assumindo assim uma pretensa neutralidade científica. A Nova Geografia buscou
leis ou regularidades empíricas sob a forma de padrões espaciais. O emprego de
técnicas estatísticas, dotadas de sofisticação e a adoção de modelos matemáticos a
caracterizaram. Esse movimento é conhecido também como Geografia Teorética
ou Geografia Quantitativa, que na história do pensamento foi mais uma tentativa
de redefinir a Geografia como ciência. É uma vertente que promoveu grandes
modificações na abordagem metodológica da Geografia. Baseada no neopositivismo
lógico, essa nova corrente geográfica surgiu com a necessidade de exatidão, através
de conceitos mais teóricos e apoiados em uma explicação matemático-estatística.
As principais características dessa corrente geográfica são: emprego de linguagem
matemática; desenvolvimento de aporte técnico e de metodologias derivadas das
ciências exatas; larga utilização de tecnologias computacionais; neutralidade científica
e imparcialidade do pesquisador frente ao seu objeto; predomínio da abordagem
espacial; todo o conhecimento apoia-se na experiência (empirismo);deve existir uma
linguagem comum entre todas as ciências; recusa de um dualismo científico entre
as ciências naturais e as ciências sociais; maior rigor na aplicação da metodologia
científica; o uso de técnicas estatísticas e matemáticas. A investigação científica e
os seus resultados devem ser expressos de uma forma clara, o que exige o uso da
linguagem matemática e da lógica. Ela foi usada como um forte instrumento de poder
estatal, pois manipulava dados através de resultados estatísticos. Predominou na Grã-
Bretanha e nos Estados Unidos, principalmente na década de 1960 a meados de 1970.

45
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

A partir da década de 1960, começou a sofrer duras críticas, uma das principais é o
fato de não considerar as peculiaridades dos fenômenos, pois o método matemático
explica o que acontece em determinados momentos, mas não explica os intervalos
entre eles, além de apresentar dados considerando o “todo” de forma homogênea,
desconsiderando, portanto, as particularidades (DINIZ FILHO, 2002).

Geografia Crítica: nas palavras de Suertegaray (2005), ao final da década de


1960, nos países capitalistas avançados se desencadeou o agravamento das tensões
sociais, fruto do grande desemprego, dos problemas com habitação, da luta pelos
direitos civis e das questões raciais. Essa crise se proliferou nas Ciências Sociais,
nas quais emergiu uma outra tendência interpretativa da sociedade que são os
movimentos denominados críticos, marxistas ou radicais. Uma abordagem que irá
além da descrição de padrões espaciais, procurando-se ver as relações dialéticas
entre formas espaciais e os processos históricos que modelam os grupos sociais.

Segundo Diniz Filho (2012), a geografia radical ou crítica surge


caracterizada por fazer contestações aos poderes estabelecidos. Foi uma
verdadeira crítica ao Positivismo, onde se pregava acabar com a neutralidade
científica e fazer uma crítica assumida ao sistema capitalista, causador da maioria
dos problemas socioeconômicos. Era preciso um engajamento político assumido
por parte dos geógrafos. Esta Geografia Radical vai nascer na França e logo se
expande para os Estados Unidos e Grã-Bretanha. Ela é bem aceita posteriormente
nos países do chamado terceiro-mundo, como o Brasil. Esta nova visão difundida
afirmava que a ciência deveria servir para transformar o mundo, no sentido de
procurar mais justiça, servindo aos pobres e às minorias. Com o título Marxismo
e Geografia, Máximo Quaini, nos anos 1970, escreve a obra resgatando o sentido e
a perspectiva analítica Marxista na Geografia. Trata-se de uma obra que marca,
juntamente com outras já referidas, a ruptura e a crítica de um segmento de
profissionais da Geografia com o fazer geográfico de leitura positiva. O método
dialético pressupõe a compreensão do mundo como processo de totalização em
movimento. Trata-se de um método que valoriza a historicidade. Não obstante,
cabe talvez explicar o sentido da história. Quando pensamos em história
pensamos em tempo. O tempo na perspectiva positiva se apresenta de forma
linear, como sucessão de acontecimentos, metaforicamente, como seta. Para a
dialética, o tempo é histórico, mas sua expressão metafórica é o espiral, ou seja,
ele apresenta ciclos e projeções resultados do conflituoso movimento dos opostos
ou do conjunto de contradições. A história projeta-se para frente sem repetições,
por superação de contradições, portanto, a cada movimento, um novo momento.
O sentido da análise é captar a totalidade nunca alcançada, daí a compreensão
de que o conhecido é um momento do processo, uma totalização demarcada por
quem investiga (DINIZ FILHO, 2002).

De acordo com Moraes (1994), não se nega o estudo da parte, entretanto,


não se desvincula a parte da visão de conjunto, do contexto. Esta concepção tem
implicações na concepção de espaço em Geografia. A concepção dialética pensa
o espaço não só como absoluto, à maneira de Newton, ou relativo, à maneira de
Einstein, pensa o espaço como absoluto, relativo e relacional, à maneia de Leibniz.

46
TÓPICO 2 | EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO

Objetos reais e científicos ocupam espaço, relacionam-se entre si e reproduzem


dentro de si as diferentes dimensões da totalidade. Compreender a totalidade
consiste em identificar as contradições concretas e as mediações que constituem
a totalidade, da análise da essência para além das aparências, o que significa
esclarecer a dimensão imediata (palpável) e a dimensão mediata (não palpável).

Ainda de acordo com Suertegaray (2005), a partir da década de 1970,


adotaram o materialismo histórico e dialético como paradigma. O espaço é
concebido como lócus da reprodução das relações sociais de produção, isto é,
reprodução da sociedade, é onde a vida acontece. A Geografia crítica interpretou
a sociedade tendo como base o materialismo histórico e dialético. Foi uma grande
contribuição que influenciou pesquisadores de diversas áreas ao longo do século
XX. Se assenta em dois princípios marxistas: o materialismo dialético, para o
qual a natureza, a vida e a consciência se constituem de matéria em movimento e
evolução permanente; e o materialismo histórico, para o qual o modo de produção
é a base determinante dos fenômenos históricos e sociais, inclusive as instituições
jurídicas e políticas, a moralidade, a religião e as artes. Interessa-se pela análise
dos modos de produção e das formações socioeconômicas. Essa nova corrente
teve a preocupação de ser mais crítica e atuante em relação aos problemas sociais.
Nesse conjunto de ideias, a vida social é interpretada conforme a dinâmica da
luta de classes, e prevê a transformação das sociedades de acordo com as leis do
desenvolvimento histórico de seu sistema produtivo (SUERTEGARAY, 2005).

Geografia Fenomenológica: essa concepção de Geografia, de acordo com


Diniz Filho (2012), buscou focar sua atenção sobre o comportamento e atitude dos
grupos humanos face ao espaço onde viviam. Iniciaram os estudos sobre a percepção
do espaço, sobre a representação mental que o homem faz do meio em que vive.
Esta Geografia ficou conhecida como a Geografia do Espaço Vivido, que teve como
um de seus maiores representantes o geógrafo francês Armand Frémont, que
publicou um livro intitulado Região: espaço vivido, que versa sobre esta abordagem
da Geografia. A Geografia Fenomenológica surgiu com base nas concepções
filosóficas da fenomenologia como forma de reação ao objetivismo positivista, o
excesso de racionalismo, a materialização, a teorização, a instrumentalização, a
ideologia e o dogmatismo apresentado pela racionalidade científica.

Para Castro (2001), a Geografia Fenomenológica é uma proposta metodológica


que enfatiza o estudo de eventos únicos, contrariamente aos estudos de eventos
gerais; que incorpore o indivíduo no processo de construção do conhecimento,
sendo que cada indivíduo apresenta especificidades para apreensão e avaliação
do espaço; que resgate as noções de espaço e de lugar, uma vez que ambos trazem
consigo a ideia de percepção, valores, comportamento, atitudes e motivações; e que
priorize aspectos relacionados à subjetividade, intuição, simbolismo, sentimentos e
experiências e o espaço torna-se concebido pelo espaço presente.

Segundo Suertegaray (2005), a compreensão desta tendência fica mais bem


explicitada se atentarmos para o significado de fenômeno, cujo conceito dá sustentação
aos diferentes modos de conhecer. Assim, temos diferentes sentidos para fenômeno:

47
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

• fenômeno indica aquilo que do mundo externo se oferece ao sujeito do


conhecimento (visão Kantiana);
• tudo que existe, existe para uma consciência e a própria consciência se faz conhecer,
ou se mostra a si mesmo no conhecer, portanto, ela própria é fenômeno (Hegel);
• a matéria existe antes do homem.

A construção humana (consciência) é forjada a partir da tomada de


conhecimento da externalidade do homem em relação à matéria primordial.
Nas palavras de Moraes (1994), a fenomenologia de Hussell vem de encontro
às visões de Kant e de Hegel, para ele, tudo que existe é fenômeno, só existem
fenômenos. Portanto, consciência possui uma essência diferente da essência
dos fenômenos, pois ela dá sentido às coisas e essas recebem sentido. Tomando
estas referências é possível perceber que, diferentemente das ideias de Kant e
na projeção diferentemente do positivismo, temos que a Fenomenologia que
privilegia o sujeito do conhecimento na medida em que nega a consciência como
fato observável. O método fenomenológico consiste em descrever o fenômeno, ou
seja, aquilo que se apresenta imediatamente, como os fenômenos da experiência.
Esta descrição implica em exclusão de crenças e preconceitos, colocar-se no lugar
de, ou seja, procurar captar o sentido e significado dado pelos atores, agentes,
grupos envolvidos, ao vivido. Exige, também, o reconhecimento da variabilidade
e da complexidade do fenômeno que está sendo descrito. Para trabalhar nesta
perspectiva, utiliza-se uma variabilidade de fontes e instrumentais técnicos, entre
elas as entrevistas qualitativas, as histórias de vida. Ao descrever não se busca
as regularidades, indica-se as ambiguidades e a complexidade, procura-se a
estrutura de significados (MORAES, 1994).

Particularmente na Geografia, temos diferentes interpretações


fenomenológicas. Tomando como ponto de partida o conceito de espaço
geográfico, é possível dizer que, de forma mais generalizada, o foco de atenção dos
geógrafos humanistas (assim denominados os que trabalham com fenomenologia,
representações e cultura) é o mundo vivido. Este é entendido como o mundo
das experiências e do sentido que damos a elas em nosso cotidiano. Portanto, o
mundo vivido é um mundo subjetivo (DINIZ FILHO, 2002).

Na Geografia, a apropriação do método fenomenológico tem como


desdobramento a interdisciplinaridade para a compreensão do espaço, ao
considerar o mundo percebido, vivido e imaginado pelos indivíduos, levando
o indivíduo a ter contato com o “mundo exterior” por via da percepção. Para
a fenomenologia compreender o espaço é considerar o vivido e o percebido
inspirado na subjetividade da realidade, que faz com que a intuição se torne
um elemento importante no processo do conhecimento, na qual a representação
subjetiva do espaço por meio da percepção faz o homem recuperar o humanismo
que traz significados e valores ao espaço vivido que é construído pela percepção
e pelos indivíduos através das práticas sociais. Na representação do espaço, a
escala nos remete à percepção, à configuração, à projeção e ao significado do que
é visível e invisível nas relações espaciais. Três conceitos são fundamentais nesta
perspectiva, são eles: espaço, paisagem e lugar.

48
TÓPICO 2 | EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO

Segundo Diniz Filho (2012), o espaço, diferentemente das concepções já


expostas, não é concebido geometricamente, o espaço é vivido, experienciado.
A superfície limitante do espaço experienciado é a paisagem. Finalmente, temos
o conceito de lugar; este constitui o centro de significados, expressando não só a
localização, mas o tipo de experiência com o mundo. Outro dado fundamental
na concepção de mundo vivido diz respeito às interconexões dos elementos
geográficos. O mundo vivido é o mundo dos espaços inter-relacionados, ou seja,
conectam-se no mundo vivido as dimensões natural, social e cultural. E mais, o
mundo vivido também se funde com os espaços da imaginação e da projeção. É
um espaço concreto, porque vivido é único e não único, persistente e mutável, faz
parte de nós e está à parte de nós. O mundo vivido, sendo a expressão de nossas
experiências, está associado a sentimentos de prazer ou desprazer.

Geografia Cultural: de acordo Gomes (2007), é caracterizada pelo


estudo dos manifestos culturais como religião, crenças, rituais, artes, formas de
trabalho, ou seja, ideias de um grupo social de um povo, o principal objetivo da
geografia cultural é o de entender os homens, a sociedade, e tentar incorporar
seus significados e conhecimentos na vida cotidiana.

De acordo com Claval (2011), esta nasceu no fim do século XIX, no mesmo
momento que a Geografia Humana. Para alguns geógrafos, ela aparecia como uma
outra formulação da geografia humana. Para outros, ela se interessava pela cultura
material dos grupos humanos: as suas ferramentas, as suas casas, a sua maneira
de cultivar os campos ou de criar animais. A abordagem cultural tinha um papel
importante na Geografia da primeira metade do século XX, mas ela permanecia
limitada: a ênfase dizia respeito aos meios usados pelos grupos humanos para
modificar o ambiente. A ênfase concentrava-se geralmente nas interpretações
funcionais, mas certos autores, como Eduard Hahn, na Alemanha, Pierre
Deffontaines, na França, Carl Sauer, nos Estados Unidos, tinham uma visão mais
abrangente, com um interesse nos elementos simbólicos da paisagem, mas mesmo
eles não ousaram analisar as representações e o trabalho mental dos homens.

Ainda de acordo com Claval (2011), a geografia cultural tinha a forma duma
secção quase autônoma da disciplina, como a geografia econômica, a geografia política
ou a geografia urbana. A geografia cultural tratava quase exclusivamente da dimensão
material da atividade humana e de suas marcas na paisagem; daí a dificuldade de tratar
de assuntos como a Geografia religiosa. Com o progresso dos meios de comunicação,
a uniformização das técnicas progredia rapidamente. O resultado foi que o objeto,
mesmo dessa disciplina, estava desaparecendo; alguns geógrafos pensavam que ela
tinha também de desaparecer. O contexto mudou profundamente nos anos sessenta e
setenta do século XX. O quadro dominante da reflexão epistemológica deixou de ser
positivista ou neopositivista. A subjetividade humana não apareceu mais como um
domínio fora do campo da pesquisa nas ciências sociais.

49
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

Nas palavras de Gomes (2007), depois de 1970, a evolução da abordagem


cultural teve motivações diversas e desenvolveu-se num longo período de tempo,
mais ou menos trinta anos. Atualmente, pode-se pensar na Geografia Cultural como
sendo aquela que considera os sentimentos e as ideias de um grupo ou povo sobre o
espaço a partir da experiência vivida. É uma Geografia do lugar. Sua relevância será
estabelecida à medida que as referências culturais determinam as ações da sociedade
sobre a natureza. Desde 1980, a “nova geografia cultural” emergiu trazendo diversas
tradições teóricas, incluindo o modelos políticos econômicos marxistas, a  teoria
feminista, a teoria pós-colonialista, o pós-estruturalismo e a psicanálise.

Partindo particularmente das teorias de  Michel Foucault  e das mais


diversas influências da teoria pós-colonialista, segundo Diniz Filho (2012), houve
um grande esforço para  desconstruir  a cultura para revelar as várias relações
de poder. Áreas de particular interesse são a identidade política e a construção
da identidade. Exemplos de áreas de estudo incluem:  Geografia feminista,
infantil, turística, comportamental, sexualidade e espaço, política. Alguns que
trataram sobre a “nova geografia cultural” focaram sua atenção na crítica de
algumas de suas ideias, por causa das visões sobre a identidade e espaço como
estáticos. Seguiram-se às críticas de Foulcault feitas por outros teóricos  pós-
estruturalistas, como Certeau e Deleuze .

DICAS

SUGESTÃO DE AULA

Aula referente ao conhecimento geográfico na perspectiva Fenomenológica.


Topofilia: “todos os laços afetivos dos seres humanos com o meio ambiente material”.

Geografia do Som

Solicitar aos alunos que entrevistem pessoas com mais de 50 anos, perguntando para elas
quais são os sons relacionados ao passado, por exemplo, uma música, um som de alguma
ave ou de algum programa de rádio, entre outros sons, que elas não escutam atualmente.

Na socialização, aproveite para refletir com os alunos sobre alguns conceitos ou temas da
geografia que você quer explorar na aula. Exemplo: músicas sertanejas raiz, que lembram o
interior. Você pode comparar com as músicas sertanejas universitárias que são escutadas na
área urbana, rural/campo e cidade/urbano.

Outra opção é elaborar e aplicar uma pesquisa referente às cidades conhecidas como as
capitais dos sons. Exemplo: A Capital do Rock. Capital da Música Sertaneja.

O tema será de lugar, localidade relacionada à memória, saudade, entre outros.

FONTE: O autor

50
TÓPICO 2 | EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO

LEITURA COMPLEMENTAR

DEBATE E EPISTEMOLOGIA NA GÊNESE DA


GEOGRAFIA MODERNA

Pensamento e Imaginação Geográfica

O que podemos observar nesse breve debate sobre as propostas científicas de


Humboldt e Ritter, que marcam a gênese da Geografia moderna, é que elas apresentam
uma característica muito particular no período, a de unidade entre homem e natureza,
seja pela medida intuitiva e artística, no caso de Humboldt, seja pela medida objetiva
(natureza/ sociedade) no caso de Ritter. Não há, nesse momento, uma dicotomia entre
Geografia Humana e Geografia Física, e nem poderia. A natureza é um todo organizado
harmonicamente; o homem, como parte e resultado de todo esse complexo, é também
visionário dessa estrutura enigmática, não só vislumbra sua condição e a da natureza
como concorre para novas finalidades e para o rearranjo da estrutura a qual pertence.
Essa visão marca o que Moreira (2006) define como concepção holista da realidade.
Nessa perspectiva, os precursores da moderna Geografia traduzem em suas obras o
paradigma geral de uma realidade unificada, em contraposição à especialização que
tomará forma com o avanço das ciências modernas.

A Ciência geográfica, entretanto, depois dessa sua gênese moderna sob uma
visão integradora, holística (Moreira, 2006), se viu à baila com a dificuldade de pensar
a sua construção científica a partir da natureza e da sociedade, a partir de vias que
assumiram historicamente caminhos diversos e antagônicos. O objeto de análise da
Geografia, compreendido desde a gênese como a expressão dessa relação do homem
(sociedade) e da natureza em sua complexidade, se viu diante da dificuldade científica
de lidar com a divisão ou separação dos pressupostos metodológico-filosóficos das
ciências naturais e humanas, das quais largamente se vale, e em cuja tensão se localiza.
O problema aqui não está na perspectiva de síntese, como se pretende, mas justamente
na incapacidade de integração filosófica, por parte dos geógrafos, dessas divergências
que tomaram forma no campo da Ciência. Quer dizer, seguindo os preceitos de um
saber científico moderno e recorrendo à Filosofia como fonte de premissas e conceitos,
a Geografia não realizou historicamente o que se propôs em sua gênese moderna e o
que realmente exige sua matéria, ou seja, lidar a todo tempo com a solução filosófica e
metodológica de uma aproximação das esferas humana e natural.

Humboldt e Ritter percorreram este caminho, participaram ativamente


do debate filosófico e, a seu modo (especialmente Humboldt), propuseram uma
forma de análise que, em seu contexto, era capaz de harmonizar conceitualmente o
homem e a natureza. Entende-se, desse modo, porque o cumprimento da cartilha
de um saber científico moderno que rompe analiticamente com a Filosofia e só vem
a encontrá-la na definição dos pressupostos (quando ainda se propõe esse mínimo
diálogo) impactou tão incisivamente na construção e estruturação metodológica
da Geografia, e mesmo no debate sobre seu objeto, afinal, a Geografia tem sua
gênese moderna justamente nesse debate, abandoná-lo foi recuar com relação a
sua proposta de sistematização científica.
51
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

As divergências metodológicas entre um ramo físico e outro social das


ciências ampliaram a dificuldade epistemológica da Geografia, na medida
em que ela não solucionou seus impasses e, ainda hoje, continua tomando
emprestado suas orientações e premissas metodológicas das Ciências Humanas
e Naturais sem o exame e solução filosóficos necessários para uma postura
integradora. Como, enfim, não há uma unidade filosófica entre estas premissas
e correntes, ou seja, como os pressupostos metodológicos das ciências naturais e
humanas assumiram caminhos divergentes, resta que a Geografia, refém destes
pressupostos, se encontra permanentemente em crise, para usar a tão conhecida
expressão de Lacoste (1974).

No saber geográfico contemporâneo, mais do que outrora, o conflito


resultante desses caminhos metodológicos distanciou o que se pretendia explicar,
enfim, desenhou-se mais precisamente uma divisão entre uma Geografia Física e
uma Geografia Humana, de maneira que, na Geografia Física, a sociedade aparece
como uma variável no conjunto organizado da natureza e sua manifestação espacial,
e na Geografia Humana, a natureza é tomada como um elemento antropizado,
incorporado direta ou indiretamente pelos interesses e prerrogativas sociais,
aparecendo então como uma expressão material da relação levada a cabo pelas
transformações produtivas. Percebemos, nesse sentido, que a Geografia se manteve
ligada a sua origem pelo desafio de analisar integradamente homem (sociedade) e
natureza, mas abandonou o exercício filosófico que lhe é próprio e sem o qual não
pode integrar de maneira coerente uma explicação para o objeto que se propõe.
Ritter e Humboldt, com suas propostas integradoras, são a apresentação de uma
resposta ou no mínimo promotores de uma discussão sobre a possibilidade de
unir bases metodológicas distintas, legados interpretativos diversos, construções
filosóficas excludentes num mesmo corpo de análise. Uma contribuição como essa
seria fundamental para a Geografia. Uma ciência que pretende explicar a relação da
natureza com a sociedade deve, evidentemente, se valer de esforços múltiplos e, o
que é a grande dificuldade, certamente excludentes. Num tempo em que se apresenta
patente a necessidade de integração e, nesse caminho, o tema da interdisciplinaridade,
uma produção científica que consiga dialogar com as mais diferentes áreas do saber é
sem dúvida uma contribuição a ser analisada. A dificuldade central de uma reunião
disciplinar é, doravante, um problema filosófico. Não se pode reunir de maneira
coerente ciências que assumem como pressupostos princípios oriundos de sistemas
filosóficos opostos. Como falar em interdisciplinaridade se as ciências não falam a
mesma língua? A obra de Ritter e, em especial, de Humboldt, sob a luz de um novo
contexto material e intelectual, são contribuições a serem consideradas.

FONTE: <http://web.letras.up.pt/xiicig/comunicacoes/202.pdf>. Acesso em: 20 set. 2018.

52
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• Na atualidade, quando falamos da gênese, desenvolvimento, estruturação e


articulação da Ciência, dizemos que estamos tratando da Epistemologia, que é
em certo sentido a teoria do saber científico que tem por fim o estudo crítico dos
princípios, objetos, limites, relações e resultados das diversas ciências e/ou a
investigação de todo conhecimento enquanto tal. Em alguns países e em dados
momentos históricos, a Epistemologia é sinônimo de Teoria do Conhecimento,
ou Gnosiologia, ou Filosofia da Ciência.

• Na era moderna, foram duas as vertentes epistemológicas que mantiveram o


domínio sobre o debate concernente ao conhecimento: o empirismo, que vê o
conhecimento como produto da percepção dos sentidos; e o racionalismo, que
o vê como o produto da reflexão racional. Sendo o objeto da epistemologia o
conhecimento, algumas questões básicas da teoria do conhecimento necessitam
ser refletidas e a questão fundamental passa a ser de onde vêm e quais são os
limites do conhecimento humano.

• O mundo contemporâneo conheceu a crítica aos regimes únicos de referência.


Com o advento da pós-modernidade, caíram por terra as grandes explicações
ou compreensões ditas universais/gerais do mundo.

• Do século XV até o início do século XX, a investigação do ser humano realizou-


se de três abordagens diferentes: o período do Humanismo, Positivismo e
Historicismo. A constituição das Ciências Humanas como ciências específicas
consolidou-se a partir de três correntes do pensamento, entre os anos de 1920 e
1950: Fenomenologia, Estruturalismo e Marxismo.

• A presença de diversidade de paradigmas (modelos) propicia o desenvolvimento


de tendências que com o passar do tempo se consolidam como abordagens,
amplamente difundidas e aplicadas na formação dos educadores. Na concretude
histórica da Ciência identificamos diversas abordagens epistemológicas que
influenciaram e influenciam o campo da educação.

• Foi somente no século XIX que a Geografia começou a ter o status de


conhecimento organizado, assumindo um novo discurso, que exigiu um saber
sistematizado e ainda com a possibilidade de afirmar proposições, nos limites
de uma linguagem lógica. Sob essa ótica, foi construída a fundamentação das
correntes do pensamento geográfico identificadas como Geografia tradicional,
que são: o Determinismo Geográfico, o Possibilismo e o Método Regional.

53
• A partir da década de 1950, a Geografia viveu uma profunda movimentação
conceitual, que deu origem à chamada “Revolução Quantitativa” ou “Nova
Geografia”. A denominação Nova Geografia diz respeito a um conjunto de
ideias e de abordagens que começaram a se difundir a partir das profundas
transformações provocadas pela Segunda Guerra Mundial nos setores
científico, tecnológico, social e econômico.

• A respeito da Geografia Crítica, ao final da década de 1960, nos países capitalistas


avançados, se desencadeou o agravamento das tensões sociais, fruto do grande
desemprego, dos problemas com habitação, da luta pelos direitos civis e das
questões raciais.

• A Geografia Fenomenológica buscou focar sua atenção sobre o comportamento


e atitude dos grupos humanos face ao espaço em que viviam. Iniciaram os
estudos sobre a percepção do espaço, sobre a representação mental que
o homem faz do meio em que vive. Esta Geografia ficou conhecida como a
Geografia do Espaço Vivido, que teve como um de seus maiores representantes
o geógrafo francês Armand Frémont, que publicou um livro intitulado Região:
espaço vivido, que versa sobre esta abordagem da Geografia.

• A Geografia Cultural é caracterizada pelo estudo dos manifestos culturais como


religião, crenças, rituais, artes, formas de trabalho, ou seja, ideias de um grupo social
de um povo, o principal objetivo da Geografia cultural é o de entender os homens, a
sociedade e tentar incorporar seus significados e conhecimentos na vida cotidiana.

54
AUTOATIVIDADE

1 (ENADE, 2008 – Questão 13):

“Não pensamos que a região haja desaparecido. O que esmaeceu foi a


nossa capacidade de reinterpretar e de reconhecer o espaço em suas divisões e
recortes atuais, desafiando-nos a exercer plenamente aquela tarefa permanente
dos intelectuais, isto é, a atualização dos conceitos”, dizia Milton Santos em 1994.
Em 1999, o geógrafo afirmava: “a região continua a existir, mas com um
nível de complexidade jamais visto pelo homem. Agora, nenhum subespaço
do planeta pode escapar ao processo conjunto de globalização e fragmentação,
isto é, de individualização e regionalização”.
Se existe hoje um resgate ou uma continuidade teoricamente consistente
para os estudos regionais e os métodos de regionalização, ele deve pautar-se
em uma reconstrução do conceito de região a partir de suas articulações com os
processos de globalização. Cabe-nos, portanto, à guisa de conclusão, corroborar
plenamente o pensamento de Milton Santos: devemos empreender uma
atualização do conceito de região levando em consideração alguns aspectos.

Haesbaert. In: GEOgraphia. Ano I, n. 1, 1999, p. 32 (com adaptações).

Com base nas ideias apresentadas no texto acima, é correto afirmar que os
aspectos a serem observados na atualização do conceito de região incluem:

I- o grau de complexidade muito maior na definição dos recortes regionais,


atravessados por diversos agentes sociais que atuam em múltiplas escalas.
II- a interação entre os elementos da natureza e os recortes espaciais
definidores de ambientes uniformes.
III- a mutabilidade muito mais intensa, que altera mais rapidamente a
coerência ou a coesão regional.
IV- a inserção da região em processos concomitantes de globalização e
fragmentação.

Estão certos apenas os itens

a) ( ) I e II.
b) ( ) I e III.
c) ( ) II e IV.
d) ( ) III e IV.
e) ( ) I, III e IV.

FONTE: ENADE/Geografia 2008. Disponível em: <http://download.inep.gov.br/download/


Enade2008_RNP/GEOGRAFIA.pdf>. Acesso em: 20 set. 2018.

55
2 Sobre a concepção epistemológica positivista presente nas ciências humanas,
é correto afirmar:

a) ( ) A busca de leis universais só pode ser empreendida no interior das


ciências naturais religiosas.
b) ( ) As ciências humanas têm como função pesquisar a vida afetiva, o que
demanda a necessidade de entender suas regras de funcionamento
complexo e suas instituições forjadas metafisicamente.
c) ( ) O estudo da compreensão humana das “coisas divinas”. 
d) ( ) Enquanto doutrina filosófica, sociológica e política, o positivismo tem a
Matemática, a Física, a Astronomia, a Química, a Biologia e, também, a
Sociologia como modelos científicos.

3 Essa abordagem vê a reciprocidade sujeito-objeto eminentemente como


uma interação social que vai se formando ao longo do tempo histórico. Não
se pode pensar a educação e o conhecimento isoladamente em relação à
prática política dos seres humanos, nunca é somente questão de saber, mas
também de poder. Assinale a alternativa correta:

a) ( ) Analítica-positivista.
b) ( ) Dialética-crítica.
c) ( ) Fenomenológica-hermenêutica.
d) ( ) Estruturalista.

4 Sobre as abordagens epistemológicas da Geografia, assinale V para as


sentenças verdadeiras e F para a falsas:

( ) A Geografia Tradicional é uma corrente que abrange desde as formulações


do geógrafo Friedrich Ratzel até meados do século XX. O elemento mais
importante dos geógrafos dessa tendência era a concepção de que a
Geografia consiste nas lutas de classe.
( ) O Determinismo geográfico ou ambiental colocava o homem numa
condição de submissão aos aspectos naturais (a natureza é que determina
a ação humana), e surge como resposta ao Possibilismo de Karl Marx.
( ) Na abordagem Fenomenológica, o termo Topofilia é descrito como sendo
"o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente físico".
( ) A Geografia Fenomenológica surgiu com base nas concepções filosóficas da
fenomenologia como forma de reação ao objetivismo positivista, o excesso
de racionalismo, a materialização, a teorização, a instrumentalização, a
ideologia e o dogmatismo apresentado pela racionalidade científica.

A sequência correta é:

a) ( ) V– V– V– F.
b) ( ) F– V– V– V.
c) ( ) F– F– V– V.
d) ( ) V– V– F– F.

56
UNIDADE 1
TÓPICO 3

OS ANTECEDENTES DA GEOGRAFIA CIENTÍFICA

1 INTRODUÇÃO
Neste tópico, abordaremos a história do saber geográfico. É importante
distinguirmos Geografia enquanto ciência e do conhecimento e/ou saber
geográfico. A Geografia enquanto Ciência se institucionaliza no século XIX,
essa institucionalização significou, portanto, a sistematização científica do saber
geográfico desenvolvido ao longo da história humana. Para isso, vamos percorrer
o conhecimento geográfico de alguns períodos históricos.

Apresentaremos o conhecimento geográfico no mundo antigo, espaços e


pensamentos mais importantes. No contexto medievo, veremos a influência da
religião na formação do espaço geográfico e do conhecimento geográfico.

Por fim, estudaremos também o espírito renascentista, uma das bases do


mundo moderno e a relação com o conhecimento geográfico.

2 O CONHECIMENTO GEOGRÁFICO DA ANTIGUIDADE


Desde a Antiguidade, o ser humano traz consigo a preocupação em
conhecer o espaço no qual habita. Os seres humanos buscavam na agricultura,
na caça e na pesca o sustento e também uma aproximação direta com a natureza,
de fato uma forma de interação com o saber geográfico. Esses povos quando
buscavam na natureza e em seus diversos espaços seus meios para sobreviver
detinham informações e conhecimento a respeito desses espaços.

De acordo com Rodrigues (2008, p. 39), no período conhecido como antigo,


“o conhecimento geográfico era utilizado para desenhar roteiros a serem percorridos
e para informar os recursos a serem explorados em um determinado lugar. O ser
humano apropria-se dos recursos da natureza imprimindo-lhes forma útil à vida
humana”. O espaço geográfico passa a ser percebido como uma segunda natureza.
Os mapas elaborados tinham a função de delimitar fronteiras, localizar água, terras
férteis, rotas de comércios, entre outros. Inicialmente, havia a concepção de que a
Terra tinha a forma de um disco com massa continental que flutuava na água.

57
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

Nas palavras de Moraes (1994), as primeiras formas civilizatórias da


Antiguidade desenvolveram atividades relacionadas ao espaço natural que
ocupavam. No vale dos grandes rios, como o Nilo e o Eufrates, a economia baseava-
se na agricultura. Já os povos que viviam próximos ao mar dedicavam-se à pesca,
navegação e ao comércio marítimo. Nesse sentido,  os povos da Antiguidade –
egípcios, mesopotâmicos, fenícios, hebreus e persas – desenvolveram-se em geral
às margens de grandes rios.

Segundo Sodré (1987), pode-se também pensar que o processo migratório;


as condições atmosféricas; solo propício para o plantio; os diversos conhecimentos
contribuíram ao entendimento do saber geográfico na Antiguidade. O autor
afirma que o ser humano, nos primórdios civilizatórios, manifestou a tendência ao
deslocamento espacial e que as primeiras migrações humanas tenham apontado
a importância do reconhecimento e do registro de informações geográficas.

De acordo com Cavalcanti e Viadana (2010), na Antiguidade, os


conhecimentos geográficos passaram a ter outras características em comparação
aos desenvolvidos pelas sociedades pré-históricas, visto que a ocupação do espaço
e a organização de Estados ocorrem de modo mais estruturado e baseado em
alguns saberes. A escrita e os mapeamentos, por exemplo, possibilitaram a certos
grupos, como os egípcios, ter maior domínio espacial, e permitiram também
localizar as riquezas naturais, como as minas de metais preciosos. Nas sociedades
grega, romana, mesopotâmica, chinesa, inca, maia, asteca, entre outras, os
conhecimentos geográficos permitiram formar e expandir seus territórios. Essas
civilizações descobriam o espaço e o dominavam.

Segundo Moraes (1994), a Geografia, desde a Antiguidade, primou pela


descrição das paisagens terrestres, dos territórios e pelos relatos da vida cotidiana
e de viagens. Os gregos realizavam os seus estudos sobre diversos temas:
agricultura, técnicas de uso do solo, relacionamento entre as cidades e o campo,
relações entre classes sociais e entre o Poder e o povo, desenvolvia-se também a
curiosidade sobre as características naturais, os sistemas de montanhas, os rios
com os seus variados regimes, a distribuição das chuvas, a sucessão das estações
do ano, entre outros estudos.

Para Rodrigues (2008), a partir da contribuição dos gregos, o conhecimento


geográfico recebeu grande impulso na Antiguidade. Tais contribuições decorrem do
posicionamento geográfico da Grécia, que possibilitou a navegação, o comércio e o
domínio sobre os povos do mediterrâneo, além do desenvolvimento social, político,
econômico e cultural. Os gregos realizaram estudos sobre sistemas agrícolas, sistemas
de montanhas, técnicas de uso do solo, os rios com variados regimes, a distribuição das
chuvas, a sucessão das estações do ano, o relacionamento entre campo e cidade, entre
outros. O conhecimento geográfico era produzido pelo senso comum e filosófico, pois
era possível a um filósofo realizar estudos de cunho geográfico. Alguns importantes
filósofos que contribuíram para o conhecimento geográfico: Tales de Mileto (640-558
a.C.), além de ser filósofo, era considerado matemático, astrônomo, físico e realizou
estudos de interesses geográficos. Ele concebia a Terra como um disco boiando sobre

58
TÓPICO 3 | OS ANTECEDENTES DA GEOGRAFIA CIENTÍFICA

a água. Anaxímenes de Mileto (610-547 a.C.), filósofo e meteorologista, contribuiu na


distinção dos planetas e estrelas e nos princípios do Geocentrismo. Para Hipócrates
(460-350 a.C.) era necessário localizar e conhecer cada lugar para fazer uma correta
avaliação dos hábitos, costumes e aspectos físicos de cada lugar, além de vários outros
estudos. Heródoto (485-425 a.C.) contribuiu bastante para o conhecimento geográfico,
foi o primeiro a fazer um elo entre História e Geografia, estudou as populações e suas
características e é considerado o pai da História (RODRIGUES, 2008).

Para Moraes (1994), o conhecimento geográfico aparece também com a


contribuição dos gregos, que detinham em sua cultura os estudos cartográficos,
graças a eles surgem os primeiros mapas. As primeiras descobertas geográficas
relacionadas à distribuição dos fenômenos, bem como a localização, nos apontam
ao desenvolvimento dos estudos geográficos, os gregos dessa forma buscam
formar colônias, integrando trocas comerciais entre os povos, principalmente
pela proximidade com o mediterrâneo. Segundo Rodrigues (2008, p. 1):

Os gregos realizaram estudos sobre sistemas agrícolas, sistemas de


montanhas, técnicas de uso do solo, os rios com variados regimes,
a distribuição das chuvas, a sucessão das estações do ano, o
relacionamento entre campo e cidade, entre outros. O conhecimento
geográfico era produzido pelo senso comum e filosófico, pois era
possível a um filósofo realizar estudos de cunho geográfico.

De acordo com Cavalcanti e Viadana (2010), em relação à contribuição dos


povos gregos para o conhecimento geográfico, foram eles que desenvolveram as
primeiras noções de polos, linhas imaginárias, esfericidade da Terra, projeções
cartográficas, latitude e longitude. Sobre a Geografia na Antiguidade, podem-se
citar as contribuições de expedições e da biblioteca de Alexandria. Nesse período,
destacam-se as obras de pensadores como:

• Anaximandro (610 a.C. - 546 a.C.), criador da obra Descrição da Terra;


• Hecateu (550 a.C. - 475 a.C.), responsável pelo primeiro mapa-múndi;
• Hipócrates (460 a.C. - 377 a.C.), criador de Tratado dos ares, das águas e dos
lugares, em que se discute a influência do meio ambiente sobre o ser humano;
• Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.), o qual provou que nosso planeta é esférico
baseando-se na observação da sombra da Terra projetada na Lua durante um
eclipse;
• Eratóstenes (275 a.C. - 194 a.C.), que calculou a primeira medida da circunferência
da Terra, muito próxima aos dados atuais;
• Estrabão (63 a.C. - 25 d.C.), responsável pela obra Geografia, que deu origem ao
nome conhecido até hoje para essa área do conhecimento;
• Cláudio Ptolomeu (90 d.C. - 168 d.C.), que defendeu a ideia de que a Terra
era o centro do Universo. O conhecimento geográfico apresentado pelos
povos gregos encontrava-se caracterizado de forma descritiva e informativa,
pautada apenas na descrição e despreocupado com a coleta de informações. O
desenvolvimento das técnicas de cartografia aliada com a expansão das trocas
de mercadorias permitiu um salto à ciência geográfica. O homem conseguiu
obter respostas acerca do espaço.

59
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

3 O CONHECIMENTO GEOGRÁFICO DA IDADE MÉDIA


Nas palavras de Sevcenko (2014), a queda do Império Romano e a
difusão do Cristianismo dão início à Idade Média, instalando um processo de
fragmentação na produção do conhecimento científico e geográfico. As causas
para essa fragmentação podem ser encontradas no contexto social, econômico e
religioso daquela época. As invasões bárbaras vão provocar uma situação de guerra
generalizada em boa parte do espaço europeu ocupado pelo Império Romano.
Tal situação irá provocar na Europa consequências importantes que levaram ao
isolacionismo espacial das sociedades e à instauração do sistema feudal, que
divide em uma série de pequenas áreas politicamente diferenciadas, deixando
de existir uma política uniforme sobre todo o território. A desarticulação dos
sistemas de comunicação ligada ao fato de a Europa se encontrar relativamente
despovoada dificultava o deslocamento de pessoas e a troca de ideias e de
bens entre suas diferentes áreas. O sistema que se constitui é essencialmente
isolacionista e tenta resolver seus problemas a partir da autossubsistência do
próprio feudo, prejudicando a mobilidade de pessoas, as trocas e a ampliação do
horizonte geográfico (SEVCENKO, 2014).

De acordo com Hébrard (1990), o estabelecimento do feudalismo e o


fortalecimento político da Igreja Católica mudaram a dinâmica dos estudos que
vinham sendo feitos até então. Do ponto de vista do feudo, o espaço visível passou
a ser muito reduzido, as pessoas tinham uma limitação geográfica de seus espaços
conhecidos, uma vez que nasciam, viviam e cresciam em função das relações
feudais. O ser humano continuava se perguntando sobre as questões geográficas.
A Bíblia era um instrumento que continha referências cosmológicas e geográficas,
as quais davam respostas a tais perguntas. Esses fatores, aliados ao poder da Igreja,
provocam a diminuição da busca de respostas nas ciências. Era natural que em um
período de lutas constantes houvesse grande dificuldade de comunicação e uma
queda no ritmo do comércio e nas preocupações filosóficas e, consequentemente,
um retrocesso do conhecimento na Europa Ocidental (HÉBRARD, 1990).

No mundo árabe houve um pequeno avanço em termos de conhecimento


geográfico. Conforme Ferreira e Simões (1990), o Império Muçulmano dominava
uma área muito vasta, surgiu a necessidade de conhecer o mundo. Ao mesmo
tempo surgia também a necessidade religiosa de viajar, na medida em que todo
mulçumano tem de ir a Meca, pelo menos uma vez em vida. Assim, as viagens e o
comércio sofreram um novo impulso. A Geografia verificou um novo avanço. Entre
os viajantes árabes destacam-se Al-Biruni, Al-Idrisi e Ibn Battuta, que escreveram
extensos e valiosos relatos sobre as regiões onde viajavam. Idrisi, a serviço do rei
da Sicília, desenvolveu a escola de Palermo e pôde elaborar o mapa árabe mais
completo que se conhece. Por outro lado, os monarcas muçulmanos promoveram
as ciências e as artes. Foi traduzida para o árabe a obra de Ptolomeu e desenvolveu-
se a Geografia, a Astronomia, a Astrologia, a Matemática e a Geometria.

60
TÓPICO 3 | OS ANTECEDENTES DA GEOGRAFIA CIENTÍFICA

Em resumo, o mundo medievo foi palco muitas vezes de explorações


exóticas e a serviço da fé, em consequência, somente relatos de mundos
imaginários, e repletos de mistérios povoaram a mente e o conhecimento da
época. As peregrinações às Terras Santas, as chamadas Cruzadas, em certo
sentido também contribuíram para o conhecimento geográfico da época.
Segundo Sevcenko (2014), com a incorporação de novas áreas agrícolas (florestas
e pântanos); a mudança no uso do solo agrícola, dependendo da localização das
áreas mais próximas das rotas de comércio e o contingente populacional que se
deslocava para as cruzadas e para a peregrinação a lugares santos e a crise do
sistema feudal impulsionou a atividade comercial na Europa. Era fundamental
ampliar os horizontes geográficos para conquistar novos mercados por meio de
ofertas e de novos produtos. Essa necessidade levou muitos comerciantes a investir
nas expedições marítimas. Nascia assim, o período das grandes navegações e da
expansão Ibérica, o que foi fundamental para o renascimento da geografia.

NOTA

IDADE MÉDIA:

• Declínio do comércio e avanço das práticas agrárias (agricultura e pecuária).


• Regressão do conhecimento científico e geográfico.
• Escassa circulação monetária.
• Forte poder da igreja.
• A Idade Média também ficou conhecida como Idade das Trevas, porque o conhecimento
dito científico pouco avançou em sua produção.

4 O CONHECIMENTO GEOGRÁFICO, O RENASCIMENTO E


A CIÊNCIA MODERNA
Sevcenko (1994) afirma que o Renascimento  foi um  movimento
cultural,  econômico  e  político que surgiu na Itália do século XIV, se consolidou
nos séculos XV e XVI e se estendeu até o século XVII por toda a Europa. Inspirado
nos valores da Antiguidade Clássica  e gerado pelas modificações estruturais da
sociedade, resultou na reformulação total da vida medieval, dando início à Idade
Moderna. Representou uma revolução científica pautada no racionalismo, que
mudou a forma de ver o mundo, ou seja, a mentalidade das pessoas, os conhecimentos
produzidos. Para a Geografia, seria o momento histórico que possibilitou os
primeiros avanços em torno da Institucionalização da Geografia enquanto Ciência,
ou seja, sistematização e organização do conhecimento geográfico científico.

61
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

De acordo com Pereira (2005), desde o Renascimento, observa-se a


manipulação experimental da natureza. O conhecimento não é mais resultado
apenas da clareza de raciocínio; ele tem que ser comprovado experimentalmente e
isso a experimentação se dá através do trabalho. O conhecimento passa a ser, então,
fruto do trabalho. A ideia de natureza, que começa a tomar corpo, estabelece um
paralelo com a máquina, destruindo a antiga visão contemplativa que se instituíra
entre o homem e a natureza. A evolução das estruturas econômico-sociais provoca
o desenvolvimento da superestrutura cultural, afetando, portanto, a maneira de
explicar as relações entre o homem e a natureza. O conhecimento é produzido
de acordo com as particularidades históricas de cada época. Como um ramo do
conhecimento, a Geografia pode ser considerada universal, considerando que
emerge de o próprio despertar da consciência humana, através do contato do
homem com a natureza (PEREIRA, 2005).

Nas palavras de Sevcenko (2014), o Renascimento  originou-se na Itália,


devido ao florescimento de cidades como Veneza, Gênova, Florença, Roma, entre
outras. Elas enriqueceram com o desenvolvimento do comércio no Mediterrâneo
dando origem a uma rica burguesia mercantil que, em seu processo de afirmação
social, se dedicou às artes, juntamente com alguns príncipes e papas. Neste
momento ocorrem significativas mudanças. Na Europa, estas mudanças estão na
origem do que viria a ser o mundo contemporâneo. Significou uma nova arte, o
advento do pensamento científico e uma nova literatura. Para o autor, nelas estão
presentes as seguintes características:

• Antropocentrismo: valorização do ser humano como ser racional. Para os


renascentistas, o homem era visto como a mais bela e perfeita obra da natureza,
colocando o homem como a suprema criação de Deus e como centro do universo.
• Humanismo: o humanista era o indivíduo que traduzia e estudava os textos
antigos, principalmente gregos e romanos. Foi dessa inspiração clássica
que nasceu a valorização do ser humano. Uma das características desses
humanistas era a não especialização. Seus conhecimentos eram abrangentes,
tal característica representava-se na reprodução de situações do cotidiano e na
rigorosa reprodução dos traços e formas humanas (naturalismo).
• Racionalismo:  tentativa de descobrir pela observação e pela experiência as
leis que governam o mundo. A razão humana é a base do conhecimento. Isto
se contrapunha ao conhecimento baseado na autoridade, na tradição e na
inspiração de origem divina que marcou a cultura medieval. Tem capacidade
criadora e pode explicar os fenômenos a sua volta, ou seja, a razão, era uma
manifestação do espírito humano que colocava o indivíduo mais próximo
de Deus. Ao exercer sua capacidade de questionar o mundo, o homem
simplesmente dava vazão a um dom concedido por Deus (neoplatonismo).
• Otimismo:  os renascentistas acreditavam no progresso e na capacidade do
homem de resolver problemas. Por essa razão apreciavam a beleza do mundo
e tentavam captá-la em suas obras de arte.
• Hedonismo: valorização dos prazeres sensoriais. Esta visão se opunha à ideia
medieval de associar o pecado aos bens e prazeres materiais.

62
TÓPICO 3 | OS ANTECEDENTES DA GEOGRAFIA CIENTÍFICA

• Individualismo: a afirmação do artista como criador individual da obra de arte se deu


no Renascimento. O artista renascentista assinava suas obras, tornando-­se famoso.

Segundo Diniz Filho (2012), a cultura renascentista científica teve


características marcantes, pois a razão era o único caminho para se chegar ao
conhecimento, e que tudo podia ser explicado pela razão e pela ciência, por meio
do experimentalismo, para eles, todo conhecimento deveria ser demonstrado
através da experiência científica. Na esfera econômica, o comércio e a manufatura
tiveram grande expansão e o capitalismo substituiu amplamente as formas
medievais de organização econômica. Na esfera política, o governo central torna-
se mais forte e viabiliza a consolidação do Estado, nova forma de governar. Na
esfera religiosa, veremos a ascensão do protestantismo.

Salinas (1994) afirma que, na esfera social, surge o que hoje é denominada
de classe média, que assume um papel importante no campo da política e da
cultura. O clero perde o monopólio do ensino e a teologia cede lugar à ciência
na explicação do mundo. A sociedade renascentista é uma sociedade fascinada
pela vida da cidade, pelo comércio e pelos prazeres terrenos (hedonismo). Ao
se afastarem da orientação religiosa predominante na Idade Média (sagrada),
a sociedade emergente vai discutir a condição humana na sua relação com o
mundo, abrindo, assim, novas possibilidades de reflexão sobre questões políticas
e morais. Note que nesse processo de transição do Medieval, passando pelo
Renascimento, para a Modernidade o mundo vai tornando-se cada vez mais laico
e independente da tutela da religião, e o ser humano vai sendo levado a pensar e
analisar a realidade que o cerca em toda a sua objetividade e não como resultado
da vontade divina (SALINAS, 1994).

Rodrigues (2008) cita que, embora o Renascimento pareça ser uma época
esplendorosa de belas artes, poetas e descobertas, promoveu as novas formas
de ver a política, a ciência, a moral e a religião. Foi marcado por importantes
descobertas científicas, notadamente nos campos da astronomia, da física,
da medicina, da matemática e da geografia. O polonês  Nicolau Copérnico foi
que negou a teoria geocêntrica defendida pela Igreja, ao afirmar que "a terra
não é o centro do universo, mas simplesmente um planeta que gira em torno
do Sol". Galileu Galilei  descobriu os anéis de Saturno, as manchas solares, os
satélites de Júpiter. Perseguido e ameaçado pela Igreja, Galileu foi obrigado a
negar publicamente suas ideias e descobertas. Na medicina, os conhecimentos
avançaram com trabalhos e experiências sobre circulação sanguínea, métodos
de cauterização e princípios gerais de anatomia. Ideias surgidas contestavam a
visão de mundo medieval. Os europeus passaram a valorizar a experiência e a
observação, o estudo da natureza e da vida humana na Terra. O corpo passou a ser
visto pelo Renascimento como fonte inspiradora pelos artistas da época. Pinturas
e esculturas com homens e mulheres nus, ou com roupas que mostravam mais
os corpos estavam em alta. A mentalidade estava se transformando lentamente e
agora a vida na Terra e todos seus mecanismos se colocavam à frente da tradição,
à autoridade da Igreja e dos ideais medievais. Neste momento aparecem novas
instituições políticas e sociais, tais como: nações, estados, novas legislações, novas

63
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

classes sociais, exércitos, o que implica também numa nova maneira de pensar a
vida social, a história e a geografia. As cidades ganham vida, atraindo pessoas
de diferentes lugares dispostas a conquistar um espaço no mundo, a competir
e a enriquecer. A cidade vai transformar-se também no lócus de sustentação do
desenvolvimento do capitalismo, inaugurando também uma nova divisão social
e territorial do trabalho (RODRIGUES, 2008).

Nas palavras de Sevcenko (2014), a vida começava a se tornar mais agitada


nas cidades com o desenvolvimento do mercado e do dinheiro, a ascensão da
burguesia, as descobertas geográficas e o contato com outros povos e o reforço
do poder dos reis com a monarquia absolutista. A valorização das ações humanas
abriu um diálogo com a burguesia, que floresceu desde a Baixa Idade Média. Suas
ações pelo mundo, a circulação por diferentes espaços e seu ímpeto individualista
ganharam atenção dos homens que viveram todo esse processo de transformação
privilegiado pelo Renascimento. A burguesia financiou muitos artistas e cientistas
surgidos entre os séculos XIV e XVI. Graças a essa preocupação em revelar o
mundo, o Renascimento suscitou valores e questões que se fizeram presentes em
outros movimentos concebidos ao longo da história ocidental.

De acordo com Moraes (1994), neste período, ainda, designam-se como


Geografia: relatos de viagem, escritos em tom literário; compêndios de curiosidades,
sobre lugares exóticos; áridos relatórios estatísticos de órgãos de administração.
Pode-se dizer que o conhecimento geográfico se encontrava disperso. Assim, até o
final do século XVIII, não é possível falar de conhecimento geográfico como algo
padronizado, com um mínimo que seja de unidade temática, e de continuidade nas
formulações. A sistematização do conhecimento geográfico só vai ocorrer no início
do século XIX. E nem poderia ser de outro modo, pois pensar a Geografia como
um conhecimento autônomo, particular, demandava certo número de condições
históricas. E, por sua vez, o Renascimento estabeleceu as bases de mudanças
nas concepções e vertentes dos geógrafos no mundo, possibilitando o avanço e
institucionalização da Ciência Geográfica (assunto que estudaremos na próxima
unidade de ensino do livro de estudos) (MORAES, 1994).

64
TÓPICO 3 | OS ANTECEDENTES DA GEOGRAFIA CIENTÍFICA

NOTA

O CONCEITO DE GEOGRAFIA EM SALA DE AULA


ESTRATÉGIAS DE ENSINO

Me. Rodolfo Alves Pena

O esclarecimento do conceito de Geografia em sala de aula é uma necessidade básica para


tornar essa ciência mais acessível para os estudantes.

O  conceito de geografia em sala de aula  – e fora dela – nem sempre é compreendido


de forma clara e concisa, o que não é de se estranhar, haja vista que até uma boa parte
dos geógrafos não possui facilidade na elaboração de uma síntese sobre tal questão. Essa
dificuldade em conceituar essa ciência – e, consequentemente, aquilo que ela estuda – não
vem, propriamente, da influência de uma ou outra corrente de pensamento, como muitas
pessoas insistem em apontar, mas da existência de uma grande pluralidade de abordagens.

Ao longo do tempo, foram vários os conceitos de Geografia, como a ciência de descrição


da superfície terrestre  ou o  estudo da diferenciação de áreas ou, até mesmo, o  estudo
do conjunto de aspectos regionais da Terra, entre outras muitas definições. Diante desse
conjunto não consensual, é natural, portanto, que não exista certa clareza sobre o que essa
ciência possa representar exatamente.

Diante disso, surgem as questões: como transmitir conhecimentos de uma ciência que não
sabemos conceituar? É possível esclarecer o que é a Geografia em sala de aula?

Fazer um debate epistemológico durante as aulas parece estar mesmo fora de questão, haja vista
que a complexidade do assunto exige um longo tempo para debates e problematizações, além
de apresentar uma discussão bastante complexa para estudantes do ensino básico. No entanto,
é bom considerarmos a seguinte premissa: o professor não precisa assumir, necessariamente,
uma definição clássica ou contemporânea da Geografia, mas trabalhar a sua noção básica.

Assim, é preciso esclarecer aquilo que parece mais simples:  a Geografia é a ciência que
estuda o espaço geográfico. Afinal, por mais limitada que essa definição seja, é a sua
simplicidade que favorece a compreensão inicial dessa ciência para os seus estudantes. O
conceito de espaço geográfico, tido como o produto da relação entre sociedade e natureza,
também precisa ser evidenciado.

Como abordar o conceito de geografia em sala de aula?

É comum, no começo do ano letivo, os professores trabalharem o conceito de Geografia de forma


rápida e isolada, distanciada de uma aplicação prática, o que se constitui como um dos erros que os
docentes da área tendem a praticar. No entanto, além de explicar o que é a Geografia e o espaço
geográfico para os estudantes, é importante esclarecer esse conceito à medida que a sua aplicação
prática ocorra ao longo do estudo dos diferentes temas. Assim, entende-se que o ensino do conceito
de Geografia deve ser executado de maneira transversal ao longo da aplicação do currículo escolar.

Por exemplo: uma aula sobre a estrutura fundiária e as transformações do espaço rural pode ser uma
evidência e uma aplicação prática de como a Geografia estuda a dinâmica do espaço geográfico –
no caso, o espaço geográfico do campo. O mesmo contexto aplica-se em aulas sobre urbanização,
demografia e até sobre as dinâmicas naturais da Terra, como o relevo, haja vista que o conhecimento
destas também é necessário para o desenvolvimento das sociedades e suas espacialidades.

FONTE: <https://educador.brasilescola.uol.com.br/estrategias-ensino/o-conceito-geografia-
sala-aula.htm>. Acesso em: 20 jan. 2018.

65
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

LEITURA COMPLEMENTAR

AS UTOPIAS MEDIEVAIS: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A


CARTOGRAFIA DAS TERRAS IMAGINÁRIAS

A realidade dos servos-camponeses e dos deserdados da terra e da sorte


levava-os a crer na existência das utopias. Associadas ao que denomino de utopias,
está o imaginário medieval e a difusão da existência desses lugares. Mesmo
significando a não existência geográfica e real, o desejo de encontrar esses lugares
paradisíacos, miraculosos ou de poderes sobrenaturais levou não só os pobres
iletrados como os religiosos e aristocratas a buscarem-nos sob diferentes nomes
e lugares.  Le Goff  (1989) trata das funções que o maravilhoso desempenharia,
como a da compensação, e ao referir-se ao "mundo às avessas" cita a Cocanha, a
abundância alimentar, a nudez, a liberdade sexual, o ócio e o Paraíso Terrestre – a
Idade do Ouro. Podemos verificar que o que Le Goff trata como "maravilhoso",
Franco Jr. denominou de "utopias medievais". A escolha do termo utopias faz-
se no sentido de elas serem não lugares reais, concretos, porém existentes no
imaginário e nas mentes medievais. É uma maneira mais "geográfica", a meu ver,
de tratar a concepção espacial nessa época numa ótica de uma geógrafa e não
de uma historiadora. A hipótese destes lugares lendários existirem na superfície
terrestre, cabendo procurá-los, foi reforçada pelos geógrafos cristãos medievais
e pelos relatos dos viajantes e comerciantes e perdurou até 1774 quando James
Cook destruiu a lenda da existência de um grande continente no hemisfério sul –
a Terra Australis (DREYER-EIMBCKE,1992; GIUCCI, 1992). Devemos distinguir
que a procura dos lugares lendários por navegadores, geógrafos e cartógrafos foi
além das utopias medievais. Acreditava-se na existência deles no imaginário da
época e buscou-se na superfície terrestre mais do que um lugar concreto, o desejo
de harmonia, de acesso a uma hipotética idade do ouro no retorno ao Paraíso
Perdido. Hilário Franco Junior (1992) descreve algumas das utopias medievais
que tiveram repercussão geográfica e social. Para a nobreza, a utopia da paz
localizava-se no claustro, para onde se fugia das tentações mundanas. Até o
surgimento das sociedades mendicantes no século XIII, organizadas sob a forma
das fraternidades, o mosteiro dos enclausurados era o lócus terrestre, reflexo do
mundo harmônico celeste. A imagem do mundo reproduzia-se até na microesfera
religiosa: no século XII foi construído o mosteiro de Montreal e na Sicília (1170
ou 1180), cujo pátio retratava o mapa-múndi medieval. A heresia, contestação
dos valores e das práticas consideradas ideais pela Igreja, permeou os séculos XII
e XIV e em pelo menos uma delas – a dos bugomilos – encontramos referência
ao heliocentrismo, em contraposição ao etnocentrismo da Igreja. A heresia foi
praticada também pelo homem comum, pouco ou iletrado, ou por evangelistas
leigos. A idealização da vida no campo foi uma resposta ao processo de formação
de burgos. Representantes da Igreja viam nas cidades – a primeira delas fundada
por Caim, o lugar do pecado, enquanto os servos buscavam lá "respirar o ar da
liberdade". A igualdade jurídica foi simbolizada na figura de Robin Hood, uma
resposta dos pobres ao rigor das leis e justificadora da consequente rebeldia
(Franco Junior, 1992). O autor acredita que desde o século XIII essa lenda, que

66
TÓPICO 3 | OS ANTECEDENTES DA GEOGRAFIA CIENTÍFICA

tomou forma literária no século XIV, já fazia parte do imaginário popular,


período em que as leis inglesas proibiam aos camponeses a caça e o pastoreio nas
florestas. A autonomia dizia respeito às comunidades autônomas que sofriam
pressões quando entravam no circuito das rotas comerciais. A lenda de Guilherme
Tell representa a resposta às tentativas de dominação do Sacro Império Romano
Germânico nos séculos XIII e início do século XIV, quando rotas comerciais
levaram à modificação da economia autárquica de comunidades (no caso alpina),
ingressando-as na troca de produtos. Essa lenda medieval foi posteriormente
retomada pelos filósofos Românticos Alemães (Sturm und Drang), estes bastante
apreciados pelos geógrafos Ritter e Ratzel (MORAES, 1989). Entre as utopias
medievais que Franco Jr. descreveu, algumas têm em comum o desejo das classes
pobres de viverem em paz e em liberdade, saudáveis e sempre jovens, com
alimentos abundantes sem o necessário trabalho cansativo de obtê-los. Ele está
presente nas utopias da heresia (em parte), na igualdade jurídica e na autonomia.
Entre o desejo e a lenda, um primeiro passo. Entre a lenda transmitida oralmente,
por vezes assumindo mais tarde a forma literária, e a tentativa de relacioná-la
a lugares concretos ou procurá-los na superfície terrestre, o segundo passo foi
dado. O terceiro seria cartografar o imaginado.

A lenda da Cocanha foi identificada em documentos de 1142, crescendo


entre os séculos XVI e XVII. Franco Júnior (1992) listou 12 variedades da lenda na
França, 22 na Alemanha, 33 na Itália e 40 em Flandres. Apesar da etimologia do
termo apresentar dúvidas, a palavra latina coquere (cozinhar) foi derivada de "doce"
em provençal ("cocanha") e sofreu pequenas modificações nas línguas francesa
(século XIII), inglesa (século XIV), italiana, espanhola e portuguesa. Caracterizada
principalmente pela abundância de comidas, bebidas e vida descansada, a
Cocanha ainda apresentava uma repetição de dias de festas, cujos meses eram
formados por 6 semanas, além de nela estar localizada a Fonte da Juventude.
Na Alemanha, a lendária Cocanha assumiu o nome de Schlaraffenlande e surgiu
no século XVI – o país de vida ociosa. O pintor Peter Bruegel ("the older"), já no
século XVI, representou-a com camponeses descansando após uma refeição, e
uma de suas mais belas obras é exatamente esta terra imaginária.

As sucessivas buscas na localização exata do Éden ou Paraíso não


impediram que este aparecesse cartografado no Oriente nos mapa-múndi da
época – sempre na parte superior do mapa estavam Adão, Eva e a serpente. A
importância que a explicação religiosa do mundo assumiu nessa época alterou
profundamente a cartografia das terras conhecidas. Cercado por obstáculos
naturais, como montanhas ou muralhas de fogo, este lugar era impossibilitado
aos simples mortais. Isidoro de Sevilha (560-636) descreveu-o rodeado por
um deserto, tornando inacessível aos homens, e no seu centro, localizou-se a
Árvore da Vida, donde nasciam os quatro rios que irrigavam o mundo. Boorstin,
analisando a literatura de viagens medievais enumera vários homens que
acreditaram ter estado ou chegado a esse lugar lendário. Alexandre, o Grande,
após uma  viagem de um mês depois da travessia de um grande rio na Índia
(Ganges?), teria chegado as suas muralhas. Uma lenda bastante popular na Idade
Média, acreditava-se que o  monge irlandês S. Brandão (484-578) teria atingido

67
UNIDADE 1 | EPISTEMOLOGIA, FUNDAMENTOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

o Paraíso  ao chegar numa ilha ocidental e enevoada, navegando através do


Oceano Atlântico mas de acesso a poucos. "A ausência de mudança define a ilha
prometida dos santos. Ela permanece idêntica e inalterável desde a gênese do
mundo. Anula a noção de temporalidade e morte - nunca escurece -; inverte
desastres naturais em fonte de prazer - eterna primavera -; elimina o sofrimento
das necessidades temporais - não precisam comer, beber nem dormir. Mas sua
virgindade inviolável não a priva de possuir um elemento constitutivo das
representações imaginárias do maravilhoso: as riquezas. Na terra prometida
todas as pedras são preciosas" (GIUCCI, 1992, p. 39). A Navigatio Santis Brendani
Abbatis foi propagada e acrescentada pela tradição oral e escrita, sobrevivendo
em 120 manuscritos na Europa. Até 1759 os cartógrafos identificavam ilhas como
sendo a de S. Brandão. Ora localizada a Oeste das Canárias junto ao Equador
(Globo de Martin Behain, em 1492 e Mapa de Hereford, entre 1275 e 1300), ora
perto ou confundida com a Irlanda, a "Ilha de S. Brandão" foi identificada até no
Oriente. Outros lugares foram identificados como sendo a Ilha de São Brandão:
as da Madeira no portulano de Angelino Dulcerto (1339), ou como ilha solitária
no Atlântico nos mapas de Piziani (1637), em Batista Beccario (1426-1435), Biando
(1436), Pareto (1455), Benincasa (1482), Mercator (1567) e Ortelius (1570). Franco
Junior também se refere à viagem de São Brandão, baseado em Benedeit: 

Aproximando-se da parede de neblina, o santo viu que ela se abria


para seu barco e por três dias navegaram através de uma estreita
montanha, cercado por uma muralha belíssima e resistente, de material
desconhecido para os homens, com a porta guardada por dragões e
por uma espada que corta o ferro, pedra e diamante, girando sozinha
(FRANCO JUNIOR, 1992, p. 119).

Como o Éden tinha múltiplas indicações, ora numa ilha, ora numa
montanha, outra identificação foi feita com as lendárias Ilhas Afortunadas e,
apesar das recomendações de  Isidoro de Sevilha  e de Pedro d´Ailly,  Cristóvão
Colombo no século XV relacionava-as ao Éden pela fertilidade, localizando este
Paraíso nas costas da África. Colombo pensava que a forma do globo terrestre
tinha uma "deformidade", como se fosse uma pera, onde localizava-se o Paraíso.
Entretanto, ao encontrar a paisagem sempre verde das ilhas tropicais do "Novo
Mundo", não teve dúvidas em associá-la ao Paraíso. A vertente bíblica e cristã
localizava o Paraíso no Oriente, porém religiosos e leigos imaginavam-no na região
dos antípodas e separado por um oceano intransponível - S. Basílio, S. Sulpício, S.
Beda (673-735) e Dante - ou na zona tropical (Tertuliano, S. Boaventura, S. Tomás
de Aquino). Os judeus se inclinavam entre o Vale do Hebron e Jerusalém. Porém,
o "umbigo do mundo" seria considerado como o lugar onde todos os problemas
físicos e da alma seriam curados. Segundo a narrativa de um monge do Concílio
de Clermont em 1095, já no início da época das Cruzadas: 

68
TÓPICO 3 | OS ANTECEDENTES DA GEOGRAFIA CIENTÍFICA

Jerusalém é o umbigo do Mundo, uma terra mais frutuosa do que


qualquer outra, uma terra que é outro paraíso de delícias. Foi esta
terra que o Redentor da humanidade iluminou com a Sua vinda,
embelezou com a Sua vida, consagrou com a Sua paixão, redimiu
com a Sua Morte e marcou com o Seu sepultamento. Essa cidade real,
situada no meio do mundo encontra-se agora cativa dos seus inimigos
e feita serva, por aqueles que não conhecem Deus, para as cerimônias
pagãs. Anseia e espera pela liberdade; roga-os incessantemente que
partais em seu socorro. Espera auxílio de vós, especialmente porque
Deus vos concedeu glórias nas armas do que a qualquer outra nação.
Empreendei, pois, essa viagem pela remissão dos vossos pecados, com
a certeza da "glória que não pode desvanecer-se " no reino do Céu
(BOORSTIN, 1989, p. 118).

A associação de Jerusalém com o Jardim do Éden e a remissão dos pecados


na época das Cruzadas (1099-1291) somava-se mais uma crença da cultura popular
incentivada pela Igreja, a da cura de doenças pela presença das relíquias ou onde
os corpos de santos estariam sepultados. A figura do peregrino que partia em
direção ao local de sua cura (do corpo ou da alma) feita através de milagres só
reforçou os poderes sobrenaturais que teria Jerusalém. O monte Calvário seria
o lugar onde Adão teria sido enterrado, por consequência, próximo ao Paraíso,
e sobre sua sepultura teria sido fincada a cruz de Cristo, feita com a madeira
da Árvore da Vida. Mas qualquer relíquia de santos teria o mesmo efeito, daí o
surgimento de vários lugares de peregrinação. 

FONTE: CARVALHO, Márcia Siqueira de. Geografia e Utopias medievais. Disponível em: <http://www.
geocities.ws/pensamentobr/IMAGOcapel.htm#.O%20PENSAMENTO%20GEOGR%C3%81FICO>.
Acesso em: 18 maio 2018.

69
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• Na Antiguidade, o conhecimento geográfico era utilizado para desenhar


roteiros a serem percorridos e para informar os recursos a serem explorados
em um determinado lugar. O ser humano apropria-se dos recursos da natureza
imprimindo-lhes forma útil à vida humana. O espaço geográfico passa a ser
percebido como uma segunda natureza. Os mapas elaborados tinham a função de
delimitar fronteiras, localizar água, terras férteis, rotas de comércios, entre outros.

• A partir da contribuição dos gregos, o conhecimento geográfico recebeu grande


impulso na Antiguidade. Tais contribuições decorrem do posicionamento geográfico
da Grécia, que possibilitou a navegação, o comércio e o domínio sobre os povos do
mediterrâneo, além do desenvolvimento social, político, econômico e cultural.

• A queda do Império Romano e a difusão do Cristianismo dão início a esse novo


momento da história da humanidade (Idade Média), instalando um processo de
fragmentação na produção do conhecimento científico e geográfico. As causas
para essa fragmentação podem ser encontradas no contexto social, econômico
e religioso daquela época.

• O mundo medievo foi palco muitas vezes de explorações exóticas e a serviço


da fé, em consequência, somente relatos de mundos imaginários, e repletos de
mistérios povoaram a mente e o conhecimento da época. As peregrinações às
terras consideradas Santas, sagradas e as cruzadas em certo sentido também
contribuíram para o conhecimento geográfico da época.

• O Renascimento foi um movimento cultural, econômico e político que surgiu


na Itália do século XIV, se consolidou nos séculos XV e XVI e se estendeu até o
século XVII por toda a Europa. Inspirado nos valores da Antiguidade Clássica e
gerado pelas modificações estruturais da sociedade, resultou na reformulação
total da vida medieval, dando início à Idade Moderna.

• A cultura renascentista científica teve características marcantes, pois a razão era o


único caminho para se chegar ao conhecimento, e que tudo podia ser explicado pela
razão e pela ciência, por meio do experimentalismo, para eles, todo conhecimento
deveria ser demonstrado através da experiência científica. Na esfera econômica,
o comércio e a manufatura tiveram grande expansão e o capitalismo substitui
amplamente as formas medievais de organização econômica.

70
• A sociedade renascentista é uma sociedade fascinada pela vida da cidade, pelo
comércio e pelos prazeres terrenos (hedonismo). Ao se afastarem da orientação
religiosa predominante na Idade Média (sagrada), a sociedade emergente vai
discutir a condição humana na sua relação com o mundo, abrindo, assim,
novas possibilidades de reflexão sobre questões políticas e morais. O período
foi marcado por importantes descobertas científicas, notadamente nos campos
da astronomia, da física, da medicina, da matemática e da geografia.

71
AUTOATIVIDADE

1 (ENADE, 2008 – Questão 14):

Em sua obra História, Heródoto (484-425 a.C.) narra as Guerras Médicas e


menciona as inóspitas e longínquas terras da Cítia, atual Ucrânia. Segundo
Heródoto,

A leste (...) chega-se ao território dos citas nômades, que nada semeiam e não lavram
terra alguma. Todo aquele território (...) é desprovido de árvores. (...) O inverno é
tão rigoroso que durante oito meses do ano o frio é insuportável; (...) o mar congela
(...) e os citas (...) passam por cima do gelo e irrompem com seus carros no território
dos sindos. (...) [Nos] quatro meses restantes ainda faz frio. Esse inverno é de uma
espécie diferente daquele de todas as outras terras; nessa estação, normalmente chuvosa
em outras regiões, as chuvas lá são insignificantes, mas durante todo o verão chove
ininterruptamente. (...)
Heródoto, História. Brasília: UnB, 1988, IV, 19-30.

A partir da citação acima, pode-se identificar algumas estratégias usadas pelo


historiador grego para narrar o “outro”. No caso da caracterização dos citas, Heródoto

a) ( ) conjugava vida comunitária, engenhosidade e isolamento.


b) ( ) dissociava a descrição dos costumes da influência dos fatores naturais.
c) ( ) relacionava o espaço natural e social à condição de selvageria.
d) ( ) valorizava o nomadismo como pressuposto para o exercício da liberdade.
e) ( ) reconhecia a diversidade e a fundamentava em termos étnicos.

FONTE: ENADE/História 2008. Disponível em: <http://download.inep.gov.br/download/


Enade2008_RNP/HISTORIA.pdf>. Acesso em: 20 set. 2018.

2 Grande parte do mundo ocidental antigo era dominado pela Grécia.


Povo com grandes interesses em descobrir novos territórios de domínio
e atuação comercial, era fundamental que conhecessem o ambiente físico
e os fenômenos naturais. Referente ao conhecimento geográfico na Grécia
Antiga, assinale a alternativa correta:

a) ( ) Grandes navegações e colonização do novo mundo.


b) ( ) Visão teocêntrica do mundo, possibilitando a divisão das terras férteis
em latifúndios.
c) ( ) Conhecimento da astronomia, auxiliando os marinheiros em suas viagens.
d) ( ) Idealizaram os sistemas solares Pirocêntrico e Heliocêntrico.

72
3 Sobre a o sistema político-econômico na Idade Média é correto afirmar que:

a) ( ) Havia democracia na Idade Média, pois todos podiam escolher os reis


e senhores feudais.
b) ( ) O poder político e econômico estava todo concentrado nas mãos do
clero católico, principalmente dos pastores e obreiros.
c) ( ) O poder era centralizado na figura do senhor feudal que, além do poder
político, possuía os poderes econômico e jurídico.
d) ( ) Com a formação das monarquias nacionais europeias na Idade Média,
todo poder ficou concentrado nas mãos dos capitalistas.

4 O Renascimento também foi um espírito de época que afetou também a


produção artística, marcada pela constante relação entre:

a) ( ) Crença e misticismo.
b) ( ) Ciência e Arte.
c) ( ) Religião e comércio.
d) ( ) Mercantilismo e economia.

73
74
UNIDADE 2

EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA
NO CONTEXTO MODERNO

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender como o panorama de ampliação do horizonte geográfico


contribuiu para o alargamento da Ciência Geográfica e seus fundamentos
epistemológicos;

• identificar os principais princípios e conceitos do pensamento dos séculos


XIX e XX;

• entender a influência dos conceitos filosóficos, geográficos e científicos da


época para a sistematização da Geografia;

• perceber, a partir das obras dos principais autores, os conceitos fundamentais


para o desenvolvimento da Geografia alemã, francesa e norte-americana,
sua base epistemológica, bem como sua influência para a Geografia atual.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você
encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – GEOGRAFIA DO SÉCULO XIX

TÓPICO 2 – GEOGRAFIA – INÍCIO DO SÉCULO XX

TÓPICO 3 – CRÍTICAS FRENTE À GEOGRAFIA

75
76
UNIDADE 2
TÓPICO 1

GEOGRAFIA DO SÉCULO XIX

1 INTRODUÇÃO
Partindo da ideia apresentada na unidade anterior, de que aquilo que
está ligado ao conhecimento e tudo aquilo que se relaciona com ele, no caso
específico do conhecimento geográfico, é necessário antes entender que ao olhar
o conhecimento não podemos tão somente compreendê-lo como algo pronto ou
acabado, ou dito de outra forma, olhá-lo somente enquanto conhecimento, mas
perceber e compreender que o conhecimento precisa de um ser que o produz, e esse
ser vive, habita, existe em determinados contextos culturais, com determinadas
vertentes éticas, com opções políticas e interesses diversos.

Em outras palavras, para compreender o conhecimento é imprescindível


conhecer os sujeitos que produziram e produzem conhecimentos, seu contexto
espaço-temporal em que vive e as dimensões sociais e humanas que compõem a
sociedade e ele próprio (cosmovisão).

Portanto, apresentamos neste tópico a história percorrida pela Ciência


Geográfica, seus principais fundadores, teorias, conceitos e obras da Geografia
no século XIX, no intuito de melhor entender as configurações e relações de poder
estabelecidas no início da formação da Geografia Moderna.

2 INÍCIO DO CAMINHO GEOGRÁFICO CIENTÍFICO


Após a Revolução Científica iniciada na Renascença, a partir dos esforços de
Francis Bacon (1521-1626) aparecem os primeiros trabalhos que procuram integrar
o estudo das formas e distribuições presentes na superfície da Terra, com base na
cartografia e na matemática, com estudos históricos e descritivos sobre regiões
particulares. Esses trabalhos podem ser vistos como precursores da concepção
de Ciência de síntese, ou corológica, sob a qual viria a se desenvolver a Geografia
tradicional, por isso há um consenso razoável de que é somente depois da Renascença
que se constituem os requisitos necessários para o surgimento da Geografia como
Ciência. Porém, os trabalhos produzidos nessa época não chegaram a criar um conjunto
sistemático de interpretações sobre os fenômenos estudados e, sendo assim, não existia
ainda a Geografia como forma de conhecimento individualizada, distinta das outras.
77
UNIDADE 2 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO

De acordo com Diniz (2012), a Revolução Científica só se consolidou muito


mais tarde, graças ao brilhante trabalho de aplicação da matemática ao estudo dos
fenômenos físicos realizado por Isaac Newton. Seu sucesso em formular leis gerais
explicativas de uma vasta gama de fenômenos físicos desencadeou uma série
de consequências de grande alcance científico e cultural. Uma delas foi ter aberto
caminho para o fortalecimento, no âmbito científico, de uma visão de natureza
do tipo mecanicista e determinista, que já estava presente nos escritos de Galileu
Galilei e de René Descartes. Todos os fenômenos físicos poderiam ser explicados e
previstos mediante a aplicação de leis expressas por fórmulas matemáticas, tal qual o
funcionamento de um relógio é explicado pelo conhecimento das suas engrenagens
e dos movimentos de cada uma delas. O cientista, à semelhança do relojoeiro,
identifica e isola os fenômenos naturais e aplica a metodologia científica para
descobrir as leis que os regulam. Assim, principalmente do século XVIII em diante,
é que a metodologia científica, baseada na observação, experimentação e dedução,
consolidou-se como base das Ciências Naturais, conforme acontece nos nossos dias.

A quantificação e a linguagem matemática desempenham um papel central


dentro desse método, pois não é possível provar uma hipótese científica, conferindo-
lhe, assim, o status de “lei da física”, a não ser por meio de testes quantitativos, ou
seja, de experimentos em laboratório. Até o início do século XIX, o termo geografia
consistia principalmente em narrativas de viajantes, as quais, frequentemente,
davam muito mais importância à descrição de paisagens e acidentes geográficos
do que à cultura e à história dos povos encontrados pelo caminho.

Ainda de acordo com Diniz Filho (2012), a demora no estabelecimento de


bases científicas para a investigação de temas geográficos pode estar relacionada
às dificuldades de se aplicar o modelo da Ciência físico-matemática, consolidada
por Isaac Newton, ao estudo de fenômenos sociais e de muitos fenômenos da
natureza que envolvem relações entre elementos variados. A via encontrada
pelo Racionalismo Iluminista para lidar com esses dois tipos de fenômenos
foi a História Natural, Ciência que incluía tanto a História da Natureza como
também a História Civil. Na vertente política do Iluminismo houve também
contribuições a essa proposta, como se pode ver em Montesquieu. Esse autor
escreveu a respeito das influências da natureza sobre o homem e sobre as formas
de organização política, além de redigir o projeto de uma história natural da terra
antiga e moderna para a Academia de Bordeaux. Embora esse projeto não tenha
sido realizado, ele propunha o estudo de temas tão diversos como os terremotos,
a descrição dos acidentes geográficos, e ainda os resultados da ação humana
sobre a superfície terrestre (DINIZ FILHO, 2012).

Nesse contexto, a abordagem histórica se tornou um caminho


complementar ao da Ciência físico-matemática na busca por um conhecimento
completo da natureza, bem como o pilar central para o desenvolvimento das
Ciências Humanas, ainda embrionárias. Nessa encruzilhada de pensamentos e
vivências, nasce a Geografia Moderna.

78
TÓPICO 1 | GEOGRAFIA DO SÉCULO XIX

Na formação da Geografia é amplamente reconhecida a influência do


filósofo iluminista Immanuel Kant (1724-1804) nas reflexões realizadas pelos
geógrafos a respeito do objeto e dos métodos dessa ciência. Kant foi um dos maiores
filósofos de todos os tempos e também ministrou um curso de Geografia Física na
Universidade de Könisgberg (o mais prestigiado da época) durante 48 semestres.

FIGURA 1 – IMMANUEL KANT (1724-1804)

FONTE: <http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.
html?pagina=espaco%2Fvisualizar_aula&aula=37199&secao=espaco&request_
locale=es>. Acesso em: 24 set. 2018.

Nas palavras de Godoy (2010), a contribuição de Kant à Geografia não estava


na elaboração do conteúdo das aulas, o qual consistia em descrições superficiais e,
de acordo com o uso dado na época à expressão Geografia Física, incluía o tema da
distribuição de plantas, animais e pessoas. O que importou para os geógrafos foi a
proposta de classificação das ciências elaborada por esse autor, a primeira dentro da
qual se afirmam a especificidade e o valor da Geografia. Kant explicou o que entende
por Geografia na introdução as suas conferências didáticas, na qual ele faz uma
distinção entre a Antropologia e a Geografia, sendo a primeira dedicada ao estudo do
homem e a segunda ao estudo da natureza. A palavra antropologia se refere aí a um
conhecimento que advém dos “sentidos internos”, isto é, da percepção do mundo
interior do homem – um sentido próximo ao que hoje atribuímos à palavra psicologia.
Já a palavra geografia diz respeito ao conhecimento das coisas que percebemos com
nossos “sentidos externos”, quer dizer, a natureza (GODOY, 2010).

79
UNIDADE 2 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO

De acordo com Diniz Filho (2012), o estudo da Geografia Física é a base


para todos os ramos da Geografia, que abrangem os seguintes temas: a forma da
Terra e sua posição no sistema solar; as diferenças de costumes e códigos morais
entre populações de diferentes regiões do globo; as relações entre as unidades
políticas, como os estados e suas respectivas localizações; a influência da distribuição
dos recursos naturais no comércio internacional e, por fim, Kant fala na Geografia
teológica, a qual “examina as mudanças que se processam nos princípios teológicos,
em diferentes meios”, como as variações do Cristianismo em diferentes partes da
Europa, por exemplo. Portanto, Kant qualifica a Geografia Física como uma Ciência
que estuda as relações espaciais entre elementos heterogêneos, mas não lhe atribui a
função de produzir leis gerais no mesmo sentido em que a Ciência Físico-matemática
o faz, mas sim a de fornecer um arcabouço de conhecimentos para ordenar as
percepções sobre o mundo. Essa disciplina é um conhecimento preliminar que
fornece uma visão do todo para permitir a sistematização das experiências obtidas
nas viagens, preparando o caminho para os estudos mais particularizados.

O geógrafo Gomes (2007), com base em estudos da obra kantiana, destaca que
o sentido de palavras como empirismo e natureza eram muito diversos na época de
Kant, pois, para esse filósofo, a “ciência empírica se referia somente a uma primazia
da experiência, sem, no entanto, recusar a utilização de conceitos e categorias
advindas do raciocínio, de maneira similar às Ciências Sistemáticas. De todo modo,
é amplamente reconhecido que as considerações de Kant sobre a Geografia eram
insuficientes para estabelecê-la como uma disciplina científica. Esse trabalho só
podia ser realizado pelos estudiosos da História Natural, diretamente empenhados
em construir conhecimentos científicos sobre os fenômenos naturais e humanos que
ocorrem na superfície terrestre. Os geógrafos destacam principalmente Humboldt
e Ritter como os naturalistas que ofereceram as contribuições mais relevantes para
estabelecer métodos científicos de estudo de temas geográficos.

Em síntese, segundo Quaini (2002), Kant representa o início de uma visão


científica para a Geografia, em decorrência de uma reflexão filosófica sobre os
conceitos de espaço, tempo, moral, economia e política, instauração de um novo
método de conhecimento e o curso universitário de vital importância para as
escolas geográficas nacionais. No pensamento de Kant, a Geografia é a descrição
geral da natureza e dos seus efeitos, o homem é somente um efeito desta natureza,
enquanto a Geografia Física é a base dos demais assuntos.

Embora a origem da Geografia científica remonte ao século XIX, já


existia um pensamento geográfico que vinha desde a Antiguidade. A elaboração
de representações e discursos sobre o espaço não é monopólio da geografia
acadêmica, e sim uma atividade que se realiza em qualquer época e em todos
os campos da cultura, já que toda sociedade necessita conhecer o espaço em
que habita para controlá-lo e para dele extrair os recursos com os quais produz
sua cultura. Assim, a Geografia nada mais é do que um discurso constituído
historicamente, institucionalizado e caracterizado por uma sistematização de
tipo científico. Aliás, o próprio conteúdo atribuído ao rótulo geografia varia ao
longo do tempo, bem como entre autores de uma mesma época e lugar.

80
TÓPICO 1 | GEOGRAFIA DO SÉCULO XIX

E
IMPORTANT

As aulas de Kant deram origem a livros que servirão de ponto de continuidade


de sua epistemologia da geografia, com Humboldt e Ritter, e, a partir de Ritter, com Ratzel.
Embora se afastando do sistema kantiano, uma vez que Humboldt apoia-se na filosofia de
Schelling e Ritter na filosofia da história de Hegel, os precursores da Geografia Moderna
não romperão com a epistemologia geográfica deixada por Kant, consolidarão a noção de
conhecimento empírico, de síntese espacial, bem como as noções kantianas de espaço e
tempo: tempo e espaço como lugares; tempo e espaço separados (DINIZ FILHO, 2012).

A Geografia Moderna necessitou de uma série de condições históricas para


poder se tornar realidade. De acordo com Gomes (2007), as condições históricas
dizem respeito ao processo de transição do feudalismo para o capitalismo, a
grande revolução para o conhecimento geográfico começa a ser preparada a partir
da extraordinária expansão do espaço conhecido, do domínio da configuração
da Terra e do desprezo às ideias e crenças a respeito da superfície terrestre que
vem com a Idade Moderna. Mas, para que a Geografia desponte como um saber
autônomo, particular, faz-se necessárias ainda certas condições que só estarão
suficientemente amadurecidas no século XIX (século XIX: entre 1801-1900).

A institucionalização da Geografia dependeu tanto de fatores externos


quanto de fatores de ordem interna à lógica do conhecimento científico em geral.
O desenvolvimento dessa lógica está intimamente ligado ao processo mais amplo
de desenvolvimento histórico da humanidade. Em se tratando especificamente da
institucionalização do conhecimento geográfico moderno, que é o nosso caso, podemos
dizer que quatro ordens de fatores ou pressupostos fundamentais contribuíram para a
erupção da sistematização da Geografia como Ciência (estes pressupostos históricos da
sistematização geográfica objetivam-se no processo de produção):

a) O efetivo conhecimento do planeta (alargamento do horizonte geográfico,


ampliação do ecúmeno – áreas da Terra habitadas pelo homem): de acordo com
Moraes (1994), o primeiro destes pressupostos dizia respeito ao conhecimento
efetivo da extensão real do planeta. Isto é, era necessário que a Terra toda fosse
conhecida para que fosse pensado de forma unitária o seu estudo. O conhecimento
da dimensão e da forma real dos continentes era a base para a ideia de conjunto
terrestre, concepção basilar para a reflexão geográfica. Esta condição começa a se
realizar com as “grandes navegações”, e as consequentes descobertas, efetuadas
pelos europeus a partir do quingentésimo. A constituição de um espaço mundial,
que tem por centro difusor a Europa, é elemento destacado do processo de transição
do feudalismo para o capitalismo. A formação deste modo de produção exige a
articulação de suas relações a uma escala planetária, o que faz expandir sua área de
ação das sociedades europeias a todo o globo terrestre. Este processo de formação
de um espaço mundializado, pela primeira vez na história da humanidade, só está
plenamente constituído em fins do século XIX (MORAES, 1994).

81
UNIDADE 2 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO

b) Acúmulo de informações sobre os diferentes lugares: para Moraes (1994),


outro pressuposto da sistematização da Geografia era a existência de um
repositório de informações sobre variados lugares da Terra. Isto é, que os
dados referentes aos pontos mais diversificados da superfície já estivessem
levantados (com uma margem de confiança razoável) e agrupados em alguns
grandes arquivos. Tal condição incidia na formação de uma base empírica
para a comparação em Geografia. Só a partir daí seria possível discorrer, com
base em evidências, sobre o caráter variável dos lugares, sobre a diversidade
da superfície da Terra. Assim, o levantamento de realidades locais, em número
elevado, aparece como fundamento de uma reflexão geográfica sólida. Tal
condição vai se substantivando com o próprio avanço do mercantilismo e com a
formação dos impérios coloniais. A apropriação de um dado território implicava
o estabelecimento de uma relação mais estreita com os elementos aí existentes,
logo, num maior conhecimento de sua realidade local. O domínio implicava em
ir além do simples conhecimento de novas terras, era necessário penetrá-las e
criar aí estabelecimentos constantes, enfim, apropriá-las. A exploração produtiva
dos territórios coloniais, com o estabelecimento de atividades econômicas,
aprofundava ainda mais o conhecimento de suas características. Com o
desenvolvimento do comércio colonial, os Estados europeus vão incentivar
o inventário dos recursos naturais presentes em suas possessões, gerando
informações mais sistemáticas e observações mais científicas (MORAES, 1994).

c) Aperfeiçoamento das técnicas cartográficas: Moraes (1994) cita que outro


pressuposto para o aparecimento de uma Geografia unitária residia no
aprimoramento das técnicas cartográficas, o instrumento por excelência do
geógrafo. Era necessário haver possibilidade de representação dos fenômenos
observados e da localização dos territórios. Assim, a representação gráfica, de
modo padronizado e preciso era um requisito da reflexão geográfica; era também
uma necessidade posta pela expansão do comércio. O aparecimento de uma
economia global, que articulava distintas e longínquas partes da Terra, demandava
mapas e cartas mais precisas. Era fundamental para a navegação poder calcular as
rotas, saber a orientação das correntes e dos ventos predominantes e a localização
correta dos portos. Estas exigências fizeram desenvolver o instrumental técnico
da cartografia. Finalmente, a descoberta das técnicas de impressão difundiu e
popularizou as cartas e os atlas (MORAES, 1994).

d) Desenvolvimento do conhecimento científico-filosófico: uma das valorizações


do temário geográfico, segundo Moraes (1994), vai ocorrer na discussão da
Filosofia. As correntes filosóficas do século XVIII vão propor explicações
abrangentes do mundo; formulam sistemas que buscam a compreensão de
todos os fenômenos do real. A meta geral de todas as escolas, neste período, será
a afirmação das possibilidades da razão humana; a aceitação da existência de
uma ordem na manifestação de todos os fenômenos, passível de ser apreendida
pelo entendimento e enunciada em termos sistemáticos; uma fé na viabilidade
de uma explicação racional do mundo. Esta postura progressista insere-se no
movimento de refutação dos resquícios de ordem feudal, pois esta se apoiava
numa explicação teológica do mundo. Propor a explicação racional do mundo

82
TÓPICO 1 | GEOGRAFIA DO SÉCULO XIX

implicava deslegitimar a visão religiosa, logo, a ordem social por ela legitimada.
Esta perspectiva, de explicar todos os fenômenos, englobava também aqueles
tratados pela Geografia, sendo assim um fundamento geral de sua sistematização.
Porém, havia discussões filosóficas específicas que diretamente tratavam de
temas geográficos. Os autores que se dedicaram à Filosofia do Conhecimento,
como Kant ou Liebniz, enfatizaram a questão do espaço (MORAES, 1994).

Os autores considerados os pais da Geografia, aqueles que estabelecem


uma linha de continuidade nesta disciplina, são os alemães Humboldt e Ritter.
Na verdade, todo o eixo principal da elaboração geográfica, no século XIX, estará
sediado neste país. É da Alemanha que aparecem os primeiros institutos e as
primeiras cátedras dedicadas a esta disciplina; é de lá que vêm as primeiras teorias
e as primeiras propostas metodológicas; enfim, é lá que se formam as primeiras
correntes de pensamento (DINIZ FILHO, 2012).

E
IMPORTANT

Há um consenso entre os historiadores do pensamento geográfico de que a


origem da geografia científica se deu no século XIX, com os estudos dos naturalistas Alexander
von Humboldt (1769-1859) e Carl Ritter (1779-1859). Dessa época até pelo menos meados do
século XX, os geógrafos pautaram-se pela concepção de que a originalidade da Geografia
reside em seu papel de “ciência de síntese”, e sempre se reportavam às obras desses autores
para justificar a cientificidade dos métodos que utilizavam (DINIZ FILHO, 2012).

3 A GEOGRAFIA DO SÉCULO XIX: ALEXANDER HUMBOLDT


E CARL RITTER
Humboldt, junto a Ritter, são considerados os pais da Geografia Moderna.
Segundo Diniz Filho (2012), vivem ainda o clima histórico da unificação alemã e
o desenvolvimento capitalista tardio da Alemanha, a especificidade da situação
histórica da Alemanha, no início do século XIX, época que se dá a eclosão da
Geografia, está no caráter tardio da penetração das relações capitalistas nesse
país. Na verdade, o país não existe enquanto tal, pois ainda não se constituiu
como Estado Nacional. A Alemanha de então é um aglomerado de feudos cuja
única ligação reside em alguns traços culturais comuns. Inexistente qualquer
unidade econômica ou política, a primeira começando a se formar no decorrer do
século XIX, a segunda só se efetivando em 1870, com a unificação nacional. Com
eles nasce a Geografia científica. Início da Geografia acadêmica, isto é, a Geografia
produzida a partir das instituições universitárias e ensinada nas escolas.

83
UNIDADE 2 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO

Nos escritos de Pontuschka (2007, p. 40):

As publicações de Humboldt, conselheiro do rei da Prússia e Ritter,


tutor de uma família de banqueiros, compunham na época a base da
denominada Geografia científica, constituída no fim do século XIX.
Essas atividades eram importantes para o poder político e econômico
da Europa e interessavam às classes dominantes dos países europeus,
em um período que promoviam a expansão colonial, apropriando-se
de territórios na África e Ásia.

Alexander von Humboldt (1769-1859) pertencia a uma família aristocrática


prussiana. Seu pai preocupou-se desde cedo em dar uma esmerada educação aos
filhos através de preceptores. Alexandre de Humboldt recebeu precocemente
uma boa formação em Economia Política, Matemática, Ciências Naturais,
Botânica, Física e Mineralogia. Foi um grande viajante naturalista de sua
época. Ao contrário de boa parte de seus colegas geógrafos, que permaneceram
nos gabinetes, ele entende que a pesquisa deve se iniciar no campo. Os seus
conhecimentos de Mineralogia, Geologia e Botânica permitem-lhe desvendar
muitos traços interessantes nas paisagens e relacioná-los. Em lugar de justapor
informações, procura compreender como os fenômenos se condicionam.

FIGURA 2 – ALEXANDER VON HUMBOLDT (1769-1859)

FONTE: <https://steemit.com/science/@saunter/alexander-von-humboldt-10-reasons-
why-you-should-get-to-know-the-greatest-forgotten-scientist-and-traveller>.
Acesso em: 25 set. 2018.

De acordo com Diniz Filho (2012), Humboldt foi um grande explorador,


mas, à diferença dos viajantes do século XVIII, preocupava-se menos com a
descoberta de fatos novos e mais em revelar as relações que existem entre eles.
Esse espírito científico era fruto do conhecimento que ele adquiriu das ideias
iluministas em voga na Europa do “Século das Luzes”, por meio de seus estudos
na universidade, da correspondência com estudiosos de diversas áreas e até de
contatos pessoais com “ideólogos” e filósofos franceses ilustres do período.

84
TÓPICO 1 | GEOGRAFIA DO SÉCULO XIX

A influência do materialismo racionalista, que afirma a existência de leis


naturais explicativas dos fenômenos da natureza e valoriza o rigor metodológico
como critério de verdade das teorias científicas, foi, assim, marcante na formação
de Humboldt. Daí porque suas publicações afirmam, reiteradas vezes, a
importância de utilizar métodos científicos como condição para descobrir as leis
que explicam as relações entre os fenômenos observados na paisagem. Mais do
que isso, foi ele quem fundou os métodos de observação de quase todos os setores
da Geografia Física. A esse respeito, podemos lembrar que Humboldt sistematizou
o emprego das isolinhas na cartografia, chegando a traçar a primeira carta de
isotermas. Outra contribuição científica importante foi a descoberta de que as
correntes marítimas frias podem produzir climas áridos em áreas próximas do
litoral, uma das mais claras demonstrações da possibilidade de descobrir relações
de causa e efeito que atuam como leis gerais explicativas das influências mútuas
dos elementos da natureza. Isso ficou demonstrado também quando Humboldt
estruturou a Geografia Botânica (hoje chamada Fitogeografia), ao descobrir que
a altitude e a latitude determinam certas características das plantas, o que serviu
de base para a elaboração de sistemas classificatórios das espécies vegetais de
acordo com os tipos de ambiente.

Nas palavras de Moraes (1994), Humboldt comparou as formações vegetais


de regiões diversas entre si, como foi o caso da América Latina e da Sibéria. Tentou
encontrar semelhanças entre as culturas dos povos asiáticos e dos índios americanos.
Das suas investigações feitas em escalas diferentes (mundial, continental ou regional)
resultou uma sistematização do conhecimento geográfico. Assim, com Humboldt, a
Geografia passa a ser uma Ciência sistemática. Os fenômenos poderiam ser estudados
tanto no nível mundial quanto no regional. A utilização de comparações universais
foi talvez a sua contribuição mais importante. Ele comparava sistematicamente as
paisagens das áreas que estudava com outras partes da Terra.

O método proposto por Humboldt era empírico e indutivo. Partia dos


casos particulares para os gerais, tentando obter uma lei geral, válida também
para os casos não observados. Humboldt possuía uma formação de naturalista e
realizou inúmeras viagens. Viajou para a Venezuela, onde sobe o rio Orenoco até
o Cassiquiare, que faz parte da bacia do rio Negro, afluente do Amazonas.

De acordo com Moraes (1994), Humboldt foi da Colômbia até o Equador


e ao Peru. Esse deslocamento lhe deu a oportunidade de escalar alguns dos picos
mais altos dos Andes e de medir as suas altitudes. Através desse procedimento,
observa a variação do clima com a altitude, tendo introduzido a terminologia
de quente, temperado e frio, ainda hoje utilizada. No caso dos Andes, a partir
da altitude, ele introduz um escalonamento das formas de vegetação e tipos de
agricultura, passando das terras quentes para as terras temperadas e, em seguida,
para as terras frias. Nas pesquisas de biogeografia, introduz o conceito de meio.

85
UNIDADE 2 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO

Moraes (1994) escreve que Humboldt vai para o México e depois para
Cuba. Volta à Europa após passar pelos Estados Unidos. Essa viagem durou quatro
anos e com ela recolhe uma riqueza tão grande de dados que sua publicação leva
vários anos. Os trabalhos que decorrem de suas viagens estão voltados para a
explicação daquilo que diferencia as diversas áreas do globo, tentando encontrar
as relações que se estabelecem entre os diversos fenômenos da superfície da Terra,
de modo a produzir espaços com características diferentes. Ou seja, interessou-
se pela diferenciação espacial e considerou a paisagem resultante da interação
de vários fenômenos. Para melhor compreender a distribuição dos fenômenos
geográficos, Humboldt utiliza-se das observações que faz em diferentes escalas,
inaugurando a ideia de que os lugares não se explicam em si mesmos. Foi ele o
primeiro a perceber a influência das correntes marítimas sobre os climas. Percebe
isso especialmente nas costas do Peru, onde empresta o nome a uma corrente
fria que se origina no polo Sul e ameniza a temperatura nas costas desse país.
Foi ele também o primeiro a perceber os mecanismos que regem tais correntes.
Humboldt igualmente sabe fazer uso dos dados estatísticos, que as administrações
coloniais acumulavam, para tratar das realidades humanas da América hispânica.
Em um de seus livros analisa a situação calamitosa da escravidão em Cuba. Para
Humboldt, a explicação dos fenômenos deve partir do meio, mas devemos ter
sempre em mente que este reflete realidades em outras escalas (MORAES, 1994).

A proposta de Geografia em Humboldt, de acordo com Moraes (1994),


aparece na justificativa e explicitação de seus próprios procedimentos de análise,
assim, não estava preocupado em formular os princípios de uma nova disciplina.
Desta forma, seu trabalho não tinha um conteúdo normativo explícito. Seus
principais livros são Quadros da Natureza e Cosmos, ambos publicados no primeiro
quartel do século XIX. Humboldt entendia a Geografia como a parte terrestre da
ciência do cosmos, isto é, como uma espécie de síntese de todos os conhecimentos
relativos à Terra. Tal concepção transparece em sua definição do objeto geográfico,
que seria: “A contemplação da universalidade das coisas, de tudo que coexiste no
espaço concernente a substâncias e forças, da simultaneidade dos seres materiais
que coexistem na Terra”. Caberia ao estudo geográfico: “reconhecer a unidade na
imensa variedade dos fenômenos, descobrir pelo livre exercício do pensamento e
combinando as observações, a constância dos fenômenos em meio a suas variações
aparentes”. Desta forma, a Geografia seria uma disciplina eminentemente sintética,
preocupada com a conexão entre os elementos, e buscando, através dessas
conexões, a causalidade existente na natureza. Em termos de método, Humboldt
propõe o “empirismo raciocinado”, isto é, a intuição a partir da observação.
O geógrafo deveria contemplar a paisagem de uma forma quase estética (daí o
título do primeiro capítulo do Cosmos: “Dos graus de prazer que a contemplação da
natureza pode oferecer”). A paisagem causaria no observador uma “impressão”, a
qual, combinada com a observação sistemática dos seus elementos componentes,
e filtrada pelo raciocínio lógico, levaria à explicação: à causalidade das conexões
contidas na paisagem observada. Daí a afirmação de Humboldt: “a causalidade
introduz a unidade entre o mundo sensível e o mundo do intelecto”. Pois é, ao
mesmo tempo, algo existente de fato na natureza, porém só apreensível pela razão,
assim, uma inerência do objeto e uma construção do sujeito (MORAES, 1994).

86
TÓPICO 1 | GEOGRAFIA DO SÉCULO XIX

E
IMPORTANT

Devido a descobertas como essas, os geógrafos costumam apontá-lo como o


fundador da Geografia Geral, também chamada Geografia Sistemática, ramo da disciplina
que visa descobrir as leis que definem os padrões de distribuição espacial dos elementos
físicos e humanos e as relações entre elementos heterogêneos na superfície terrestre. Mas
é bom ressalvar que, da época de Humboldt até meados do século passado, a expressão
Geografia Geral não se referia ainda ao objetivo de elaborar leis por meio de generalizações,
conforme estabelece a metodologia científica, mas sim a estudos comparativos que visavam
demonstrar o caráter unitário dos fenômenos presentes na superfície terrestre. Comparavam-
se os fenômenos ocorridos numa área do planeta a fenômenos análogos encontrados em
outras áreas, de forma a demonstrar que existiriam princípios gerais de evolução capazes de
explicar as particularidades encontradas em cada área (PONTUSCHKA, 2007).

Assim como Humboldt, Diniz (2012) cita que Ritter também se preocupou
em estabelecer parâmetros para o estudo científico de temas geográficos. Estava
convicto de que os fenômenos presentes na superfície terrestre eram regidos por leis
e propôs adaptar o método comparativo, que dera bons resultados nos estudos de
Anatomia e de outros campos científicos ao estudo dessas leis. Rejeitava, assim, os
trabalhos de Geografia que se limitavam a fazer descrições e propunha a aplicação
de sistemas classificatórios para organizar as informações e do método comparativo
para descobrir as relações de causa e efeito que explicam os fenômenos. Desse
modo, embora Ritter atribuísse a Humboldt a invenção do método comparativo,
o uso que fez dele em diversos estudos de caráter ideográfico ou regional levou
os historiadores da Geografia a considerá-lo como o principal elaborador desse
método e, por conseguinte, como o fundador da Geografia Regional.

Na visão de Moraes (1994), com Humboldt ganha forma acadêmica e


escolar a Geografia Ecológica, isto é, a concepção do mundo como unidade
cósmica, que envolve o próprio homem, embora não subordine o homem ao meio.

De acordo com Vesentini (2006), a Geografia é uma Ciência sintetizadora,


que conecta o geral com o espacial através do levantamento, do mapeamento e
da ênfase regional. Ela se ocupa da influência que o meio físico exerce sobre o
homem e procura interligar o estudo da natureza física com o estudo da natureza
moral para se chegar a uma visão harmonizante.

Humboldt tinha uma visão sistêmica, não analisava um fator isoladamente,


mas estabelecia relações de causa e efeitos entre as partes, ou seja, demonstrou
que o ser humano dependia do solo, do clima, da vegetação, como a vegetação é
função dos fenômenos físicos, como estes dependem uns dos outros.

Carl Ritter (1779-1859) nasce dez anos depois de Humboldt e morre no


mesmo ano em que este; teve uma vida pouco movimentada, foi um homem que
se dedicou mais à reflexão, ao magistério e ao intuito explícito de sistematização
da Geografia. Sua obra é explicitamente metodológica.
87
UNIDADE 2 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO

FIGURA 3 – CARL RITTER (1779-1859)

FONTE: <http://controversia.com.br/7957>. Acesso em: 25 set. 2018.

De acordo com Moraes (1994), a formação de Ritter possui formação em


Filosofia e História. A ideia de unidade terrestre e da relação entre o lugar, a região
e o todo terrestre está presente em seus estudos. Propõe o método descritivo
regional e utiliza comparação para fazer compreender as especificidades de cada
país e as configurações de sua história. A Geografia deixa de ser uma modesta
descrição da Terra e torna-se indispensável para quem quer compreender a
cena mundial, a dinâmica das civilizações e a maneira através da qual os povos
exploram o seu ambiente. O problema essencial estudado por Ritter é o das
relações, das conexões que se estabeleciam entre os fatos físicos e humanos. Para
ele, a Terra e seus habitantes desenvolvem mútuas e estreitas relações onde um
elemento não pode ser considerado em sua plenitude sem que se considerem tais
relações. Nesse sentido, a História e a Geografia devem estar sempre juntas. Dessa
forma, foi um observador atento do devir histórico dos povos que habitavam
em cada uma das regiões estudadas. Entendia o espaço terrestre como o teatro
da história e considerava que quanto maior o desenvolvimento cultural, maior
harmonia seria estabelecida entre o homem e a natureza.

Segundo Diniz Filho (2012), Ritter veio de uma família relativamente


modesta, trabalhou a vida toda como professor e suas viagens se restringiram
ao continente europeu, escrevia a respeito dessas viagens, mas, ao contrário de
Humboldt e de outros naturalistas, preocupava-se pouco com a descrição das
paisagens. Tudo o que lhe interessava era estabelecer as bases de um conhecimento
geográfico científico nos moldes das Ciências Naturais. É por isso que a maior
parte dos trabalhos de Ritter dizia respeito à África e à Ásia, continentes onde ele
nunca esteve, mas sobre os quais estudou muito. Vale ainda mencionar que Ritter
destacou bem mais do que Humboldt a importância de demonstrar as influências
da natureza sobre a história humana, tendo chegado a propor que o estudo dos
elementos naturais é importante para a Geografia apenas na medida em que serve
de base para o estudo do homem (DINIZ FILHO, 2012).

88
TÓPICO 1 | GEOGRAFIA DO SÉCULO XIX

De acordo com Moraes (1994), a Geografia proposta por Ritter deveria


estudar arranjos individuais e compará-los. Cada arranjo abarcaria um conjunto
de elementos, representando uma totalidade, onde o homem seria o principal
elemento. Assim, a geografia de Ritter é, principalmente, um estudo dos lugares,
uma busca da individualidade destes. Toda esta proposta se assentava na
arraigada perspectiva religiosa desse autor. Para ele, a Ciência era uma forma de
relação entre o homem e o “criador” (com uma dimensão interior de revelação),
uma tentativa de aprimoramento das ações humanas, assim uma aproximação
à divindade. Neste sentido, caberia à Geografia explicar a individualidade
dos sistemas naturais, pois nesta se expressaria o desígnio da divindade ao
criar aquele lugar específico. A meta seria chegar a uma harmonia entre a ação
humana e os desígnios divinos, manifestos na variável natureza dos meios. Para
Ritter, a ordem natural obedeceria a um fim previsto por Deus, a causalidade da
natureza obedeceria à designação divina do movimento dos fenômenos. Deste
modo, haveria uma finalidade na natureza, logo uma predestinação dos lugares.
Compreender esta predestinação seria a tarefa do conhecimento geográfico, que no
limite, para esse autor, seria uma forma de “contemplação da própria divindade”.
A proposta de Ritter é, por estas razões, antropocêntrica (o homem é o sujeito
da natureza), regional (aponta para o estudo de individualidades), valorizando
a relação homem natureza. Em termos de método, Ritter vai reforçar a análise
empírica, para ele é necessário caminhar de “observação em observação”. Com
Ritter, ganha forma acadêmica e escolar a geografia-história, isto é, a concepção
do mundo como um Antropocentrismo, uma unidade cujo ponto de partida e
finalidade é o ser humano. Há para ele uma teleologia na natureza, isto é, ela
existe com a finalidade de servir ao ser humano (MORAES, 1994).

Segundo Pontuschka (2007), após 1870, com a institucionalização da


Geografia no ensino superior de vários países, os geógrafos acabaram encontrando
nas obras desses naturalistas elementos que serviram de base para justificar
a necessidade de uma ciência integradora e também para estabelecer seus
fundamentos epistemológicos. A visão de Humboldt e Ritter sobre a unidade da
natureza e os métodos que procuraram desenvolver para o estudo das relações
entre elementos heterogêneos, em escala mundial e também regional, acabaram
sendo os atrativos que levaram os geógrafos a elegê-los como os fundadores da
disciplina. Nesse sentido, a própria dualidade racionalismo/romantismo acabou
funcionando como elemento favorável para que suas obras fossem lidas e utilizadas
pelos geógrafos, já que servia de base para a construção da Geografia como uma
Ciência que deveria ser, a um só tempo, física e humana, geral e regional.

Após a morte de Humboldt e de Ritter, nas palavras de Diniz Filho (2012), a


Geografia sofre certo declínio. No entanto, mantém-se como disciplina com grande
dinamismo e se expressa por duas vias: através das inúmeras sociedades de Geografia
e a permanência como disciplina lecionada no ensino primário e secundário. Do
ponto de vista da institucionalização, os impactos de seus ensinamentos não foram
imediatos: as cátedras de Geografia permanecem raras nas universidades e os
estudantes que frequentam as suas aulas seguem carreiras variadas.

89
UNIDADE 2 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO

E
IMPORTANT

A obra destes dois autores compõe a base da Geografia Tradicional. Todos


os trabalhos posteriores vão se remeter às formulações de Humboldt e Ritter, seja para
aceitá-las ou refutá-las. Apesar das diferenças entre estas, a Geografia de Ritter é regional
e antropocêntrica, a de Humboldt busca abarcar todo o Globo sem privilegiar o homem.
Os pontos coincidentes vão aparecer, para os geógrafos posteriores, como fundamentos
inquestionáveis de uma Geografia unitária. Assim, estes autores criam uma linha de
continuidade no pensamento geográfico, coisa até então inexistente. Além disso, há de
se ressaltar o papel institucional desempenhado por eles na formação das cátedras dessa
disciplina, dando assim à Geografia uma cidadania acadêmica. Entretanto, apesar deste peso
no pensamento geográfico posterior, não deixam discípulos diretos. Isto é, não formam uma
“escola”. Deixam uma influência geral, que será resgatada por todas as “escolas” da Geografia
Tradicional (PONTUSCHKA 2007).

4 RATZEL E O DETERMINISMO NA GEOGRAFIA


Era possível falar numa dualidade entre Geografia Física e Geografia
Humana em meados do século XIX. No final desse período havia uma tendência à
divisão da disciplina entre uma Geografia Física geral e especializada, amplamente
predominante, e uma Geografia Humana regional e sintética. De um lado, uma maioria
de pesquisadores que tendiam a ser geomorfólogos ou climatólogos antes de serem
geógrafos; de outro, um número menor de geógrafos que se dedicava a entender as
influências do espaço e da natureza sobre os grupos humanos, mas que não formulavam
propriamente leis gerais a partir dos estudos de síntese regional que descreviam tais
influências. Para sair desse impasse, era necessário integrar as abordagens geral,
regional, física e humana dentro da ótica racionalista que se ia impondo nos meios
científicos ao longo do século XIX e começo do século XX. Essa foi justamente uma das
grandes contribuições de Ratzel à história da Geografia (PONTUSCHKA 2007).

Segundo Moraes (1994), após o falecimento dos dois principais pioneiros da


Geografia Moderna, Ritter e Humboldt, o desenvolvimento dos estudos geográficos
acelerou-se, uma vez que esses dois estudiosos colocaram, por assim dizer, a pedra
fundamental para a construção e evolução da Geografia como Ciência. No século XIX
progride rapidamente a constituição de um espaço econômico mundial influenciado
pelo desenvolvimento da navegação a vapor, o que provoca uma reviravolta na relação
dos homens com as distâncias, com o processo de expansão colonial, os conflitos entre
populações nativas e o elemento europeu são cada vez mais intensos e demandam
intervenções. O domínio político aparece como garantia de abertura real dos espaços ao
comércio mundial e impõe o respeito aos interesses ocidentais. Essas alterações provocam
um reordenamento e uma necessidade cada vez maior da formalização dos saberes
geográficos. É nesse contexto que vamos assistir à substituição das casas de comércio
familiares por grandes firmas de exportação e importação que demandam cada vez
mais conhecimentos ligados à Geografia para a formação de seus agentes deslocados
para regiões remotas. É aí que as sociedades de Geografia comercial, marítima e colonial
se multiplicam e dão respostas a essas necessidades (MORAES, 1994).
90
TÓPICO 1 | GEOGRAFIA DO SÉCULO XIX

Nos escritos de Moraes (1994), a História e a Geografia, que eram as ciências


que vinham abordando os fatos humanos, deixam de ser exclusivas nesse aspecto
à medida que a Sociologia, a Etnologia, a Antropologia e as Ciências Políticas vão
surgindo. É o período também de desenvolvimento da economia política. Com o
aparecimento de outras ciências no campo dos estudos humanos e sociais, os geógrafos
são confrontados com o problema da delimitação face aos novos campos científicos,
os quais evidentemente não ignoram a dimensão espacial dos seus domínios.
O interesse por conhecimentos geográficos úteis à vida comercial internacional
nunca havia sido tão grande como nas últimas três décadas do século XIX. Nesse
mesmo período, a engenharia política dos estados europeus apontava em direção
aos nacionalismos e essa tarefa recai, entre outros, sobre o ensino da Geografia na
escola elementar, que teria a função de dar aos cidadãos uma consciência clara sobre
o espaço em que se desenvolve a sua existência. Por outro lado, as elites tinham a
necessidade de um bom conhecimento dos mapas e das rotas do comércio.

De acordo com Diniz Filho (2012), ao longo do século XIX, a Geografia vai
se desenvolver mais rapidamente na Alemanha do que na Grã-Bretanha. Nesta, a
Geografia permanece vinculada aos modelos do século XVIII, no qual se privilegia
a exploração das pesquisas históricas em detrimento do estudo das relações que
estabelecem entre os grupos humanos e os meios em que vivem. Dessa forma, o
impacto do evolucionismo de Darwin foi mais direto na Alemanha que em sua
pátria. Um revigoramento do processo de sistematização da Geografia vai ocorrer
com as formulações de Ratzel. Este autor, também alemão e prussiano, publica suas
obras no último quartel do século XIX. Enquanto Humboldt e Ritter vivenciaram
o aparecimento do ideal de unificação alemã, Ratzel vivencia a constituição real
do Estado Nacional alemão e suas primeiras décadas. Suas formulações só são
compreensíveis em função da época e da sociedade que as engendram.

FIGURA 4 – FRIEDRICH RATZEL (1844-1904)

FONTE: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Friedrich_Ratzel_-_J_Albert_
Albert_Josef_btv1b8451030w.jpg>. Acesso em: 25 set. 2018.

91
UNIDADE 2 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO

De acordo com Quaini (2002), Ratzel nasceu no Ducado de Baden, um dos


estados germânicos que, a partir de 1871, viria a integrar o Império Alemão. Apesar
de sua origem social um tanto modesta, conseguiu cursar universidades importantes
como as de Jena, Berlim e Munique. Ele teve aulas de Zoologia com Ernst H. P. A.
Haeckel (1834-1919), que foi um dos divulgadores da Teoria de Darwin na Alemanha
e fundador da Ecologia, nome que ele criou para designar uma Ciência cujo objetivo
seria explicar as relações dos seres vivos entre si e com o ambiente. Ratzel chegou a
publicar, em 1869, um trabalho no qual fazia uma síntese da teoria darwiniana, embora
tenha passado a tecer críticas contra ela em alguns de seus livros da maturidade.
A verdade é que Darwin não foi a única referência de teorias evolucionistas no
pensamento de Ratzel, pois ele também se baseou nos trabalhos de Alfred Russel
Wallace (1823-1913) e de Jean-Baptiste Pierre Antoine de Monet, o Cavaleiro de
Lamarck (1744-1829). Além disso, é significativo que, embora os geógrafos costumem
qualificar o pensamento ratzeliano como evolucionista, os antropólogos preferem
destacar suas contribuições para a formulação da teoria “difusionista”, segundo a
qual os traços culturais são formados principalmente no processo de difusão dos
grupos humanos sobre os traços culturais são formados principalmente no processo
de difusão dos grupos humanos sobre a superfície terrestre.

Nos escritos de Moraes (1994), a Geografia de Ratzel foi um instrumento


poderoso de legitimação dos desígnios expansionistas do Estado alemão recém-
constituído. Ratzel vai ser um representante típico do intelectual engajado no projeto
estatal; sua obra propõe uma legitimação do expansionismo bismarckiano. Assim, a
Geografia de Ratzel expressa diretamente um elogio do Imperialismo, como ao dizer,
por exemplo: “Semelhante à luta pela vida, cuja finalidade básica é obter espaço,
as lutas dos povos são quase sempre pelo mesmo objetivo. Na história moderna
a recompensa da vitória foi sempre um proveito territorial”. O principal livro de
Ratzel, publicado em 1882, denomina-se Antropogeografia: fundamentos da aplicação da
Geografia à História; pode-se dizer que esta obra funda a Geografia Humana. Nela,
Ratzel definiu o objeto geográfico como o estudo da influência que as condições
naturais exercem sobre a humanidade. Estas influências atuariam primeiro na
fisiologia (somatismo) e na psicologia (caráter) dos indivíduos e, através destes, na
sociedade. Em segundo lugar, a natureza influenciaria a própria constituição social,
pela riqueza que propicia, através dos recursos do meio em que está localizada a
sociedade. A natureza também atuaria na possibilidade de expansão de um povo,
obstaculizando-a ou acelerando-a. E ainda nas possibilidades de contato com outros
povos, gerando assim o isolamento e a mestiçagem. Ratzel realizou extensa revisão
bibliográfica sobre o tema das influências da natureza sobre o homem, e concluiu
criticando as duas posições mais recorrentes: a que nega tal influência, e a que visa
estabelecê-la de imediato. Diz ele que estas influências vão se exercer mediatizadas
através das condições econômicas e sociais. Para ele, a sociedade é um organismo que
mantém relações duráveis com o solo, manifestas, por exemplo, nas necessidades de
moradia e alimentação. O homem precisaria utilizar os recursos da natureza para
conquistar sua liberdade, que, em suas palavras, “é um dom conquistado a duras
penas”. O progresso significaria um maior uso dos recursos do meio, logo, uma
relação mais íntima com a natureza. Quanto maior o vínculo com o solo, tanto maior
seria para a sociedade a necessidade de manter sua posse. É por esta razão que a
sociedade cria o Estado (MORAES, 1994).
92
TÓPICO 1 | GEOGRAFIA DO SÉCULO XIX

Moraes (1994) cita que a análise das relações entre o Estado e o espaço foi um
dos pontos privilegiados da Antropogeografia, o território representa as condições
de trabalho e existência de uma sociedade. A perda de território seria a maior
prova de decadência de uma sociedade. Por outro lado, o progresso implicaria a
necessidade de aumentar o território, logo, de conquistar novas áreas. Justificando
estas colocações, Ratzel elabora o conceito de “espaço vital”; este representaria uma
proporção de equilíbrio entre a população de uma dada sociedade e os recursos
disponíveis para suprir suas necessidades, definindo assim suas potencialidades
de progredir e suas premências territoriais. É fácil observar a íntima vinculação
entre estas formulações de Ratzel, sua época e o projeto imperial alemão. Esta
ligação se expressa na justificativa do expansionismo como algo natural e inevitável
numa sociedade que progride, gerando uma teoria que legitima o Imperialismo
bismarckiano. Também sua visão do Estado como um protetor acima da sociedade
vem no sentido de legitimar o Estado prussiano, onipresente e militarizado.
A Geografia proposta por Ratzel privilegiou o elemento humano e abriu várias
frentes de estudo, valorizando questões referentes à História e ao espaço, como: a
formação dos territórios, a difusão dos homens no Globo (migrações, colonizações
etc.), a distribuição dos povos e das raças na superfície terrestre, o isolamento e suas
consequências, além de estudos monográficos das áreas habitadas. Tudo tendo em
vista o objetivo central que seria o estudo das influências, que as condições naturais
exercem sobre a evolução das sociedades. Em termos de método, a obra de Ratzel
não realizou grandes avanços. Manteve a ideia da Geografia como Ciência empírica,
cujos procedimentos de análise seriam a observação e a descrição. Porém, propunha
ir além da descrição, buscando a síntese das influências na escala planetária, ou, em
suas palavras, “ver o lugar como objeto em si e como elemento de uma cadeia”. De
resto, Ratzel manteve a visão naturalista: reduziu o homem a um animal, ao não
diferenciar as suas qualidades específicas; assim, propunha o método geográfico
como análogo ao das demais Ciências da natureza; e concebia a causalidade dos
fenômenos humanos como idêntica a dos naturais. Daí o mecanicismo de suas
afirmações. Ratzel, ao propor uma Geografia do Homem, estendeu-a como uma
Ciência Natural (MORAES, 1994).

Segundo Andrade (1991), Ratzel, em sua obra Antropogeografia, foi


responsável pela propagação de ideias deterministas, que considerava a grande
influência do meio natural sobre o ser humano. O progresso da humanidade seria
obtido com o maior uso dos recursos naturais, propondo que se estreitassem as
relações do ser humano com a natureza. O objeto de Geografia era definido
como sendo o estudo da influência que as condições naturais exercem sobre a
humanidade. Ele afirmava que o território constituía as condições de trabalho e
existência de uma sociedade, prova de decadência de uma sociedade seria a perda
do território. Sustentava que, na luta pela vida, prevaleceriam os mais fortes sobre
os mais fracos (elaborou o conceito de  espaço vital, que seriam as condições
espaciais e naturais para a manutenção ou consolidação do poder do Estado sobre
o seu território. Seriam as condições naturais disponíveis para o fortalecimento de
uma dada sociedade ou povo. Aquelas populações que dispusessem de melhor
espaço vital estariam mais aptas a se desenvolver e a conquistar outros territórios).

93
UNIDADE 2 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO

Foi Ratzel, de acordo com Quaini (2002), reduziu o ser humano ao


nível animal sem considerar suas qualidades específicas. Propôs um método
de trabalho semelhante às Ciências Naturais, concebendo o Estado como um
organismo, protetor e responsável pelo território nacional. Os discípulos de
Ratzel radicalizaram suas colocações, constituindo o que se denomina “escola
determinista” de Geografia, ou doutrina “escola determinista” de Geografia,
ou doutrina do “determinismo geográfico”. Os autores dessa corrente partiram
da definição ratzeliana do objeto da reflexão geográfica e simplificaram-na.
Orientaram seus estudos por máximas, como “as condições naturais determinam
a História, ou “o homem é um produto do meio” – empobrecendo bastante as
formulações de Ratzel, que falava de influências.

Dessa ideia passou-se facilmente para a noção de maior desenvolvimento


dos povos brancos, que viviam em condições climáticas favoráveis em relação
aos povos habitantes dos trópicos, que não dispunham de climas com estações
do ano bem definidas. Na verdade, todo o trabalho destes autores se constituía
da busca de evidências empíricas para teorias formuladas a priori, partindo da
premissa ou caráter determinista de que a influência das forças naturais é que
determinará a distribuição das pessoas nas sociedades.

Contrariando as ideias do determinismo da escola Alemã, que teve como


principal representante Ratzel, surge no final do século XIX o francês La Blache, que
contrapôs as ideias de que o meio físico determina as atividades humanas. Defende
que a ideia principal do geógrafo é esta, a natureza cria as regiões, enquanto o ser
humano modifica o espaço físico de acordo com suas necessidades locais e regionais.

E
IMPORTANT

No ensino da Geografia Tradicional, os estudos se desenvolvem por meio de


blocos (Geografia física, humana e econômica), que não se relacionam internamente nem
entre si. Na Geografia Física não é estabelecida uma relação entre clima, solo, relevo e
hidrografia. Apesar de comprovada dificuldade da Geografia Tradicional em explicar a
relação entre o ser humano e seu espaço geográfico, muitos profissionais da educação
seguem essa linha de trabalho e muitas obras didáticas adotam o estudo fragmentado do
espaço geográfico (PONTUSCHKA, 2007).

5 PAUL VIDAL DE LA BLACHE E AS MONOGRAFIAS REGIONAIS


Durante o século XIX, o centro da discussão da Geografia, na Europa,
concentrou-se na Alemanha, e somente no fim desse mesmo século o pensamento
geográfico francês encontrou seu espaço (Escola Francesa de Geografia). Em meados
do século XIX, a disputa entre a Prússia e a França se acirra, culminando na guerra
de 1870. Dessa guerra, a França sai derrotada e perde o controle da Alsácia e da

94
TÓPICO 1 | GEOGRAFIA DO SÉCULO XIX

Lorena. Nesse período, a Geografia obtém grande desenvolvimento e, apoiada pelo


Estado, é implantada em todo o Ensino Básico, surgindo as primeiras cátedras e os
institutos de Geografia. Até o advento da guerra, os estudos geográficos eram muito
negligenciados pelos franceses, ao contrário da Prússia, que já contava com grandes
nomes no ramo da ciência geográfica (PONTUSCHKA, 2007).

Após terem sido derrotados, os franceses perceberam a importância do ensino


da Geografia e do desenvolvimento da pesquisa geográfica. Mesmo sendo derrotados
pelos alemães, os franceses esforçaram-se para transferir para seu país o modelo de
ensino adotado na Alemanha. Após a guerra, os franceses tomam, dolorosamente, a
consciência da negligência com os conhecimentos geográficos que tinham até então.
Constataram que o inimigo estava mais bem preparado no tocante ao conhecimento
do território. Para eles, a superioridade militar e econômica da Alemanha derivara
de seu grande desenvolvimento científico. Dessa forma, a Alemanha se constituía, ao
mesmo tempo, em inimigo e exemplo a ser seguido (PONTUSCHKA, 2007).

Coube a um professor a tarefa maior de implantação e institucionalização


da Geografia francesa. Tomando como referência, as formulações de alemães
(Humboldt, Ritter, Ratzel), elaborou com originalidade a sua Geografia e deu
sustentação para a criação da Escola Francesa de Geografia, que, durante muito
tempo, influenciou o desenvolvimento dessa área em várias partes do mundo.
Paul Vidal de La Blache (1845-1918) foi um historiador e geógrafo francês (nasceu
no sul da França) e um dos nomes mais lembrados no que se refere à história
do pensamento geográfico. Sua obra é bastante reconhecida por ser fundadora
da corrente de pensamento que veio a ser denominada por Possibilismo, em
oposição ao Determinismo Geográfico alemão (PONTUSCHKA, 2007).

FIGURA 5 – PAUL VIDAL DE LA BLACHE (1845-1918)

FONTE: <https://journals.openedition.org/confins/6300>. Acesso em: 25 set. 2018.

95
UNIDADE 2 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO

De acordo com Moraes (1994), La Blache tornou-se um geógrafo ao encarar o


desafio de dominar o conteúdo de uma disciplina que nunca havia sido ensinada no
país e, simultaneamente, desenvolver os métodos para estudá-la. Ele se aplicou nos
estudos de Geologia e Botânica, bem como das obras dos fundadores da Geografia
científica e dos geógrafos de seu tempo, como Ratzel. Empreendeu diversas viagens
pela França, nas quais eram feitos longos trajetos a pé, pois atribuía grande importância
ao contato direto do pesquisador com as paisagens estudadas. Pelo mesmo motivo,
usava sempre excursões em suas aulas e valorizou o hábito das “lições itinerantes”,
que qualificou como “um dos mais notáveis ganhos pedagógicos desses últimos
anos”. Devido ao tempo necessário para dominar os conhecimentos geográficos e
exercer a função de professor, publicou pouco em seus anos iniciais de atividade
como geógrafo, sendo que suas primeiras publicações tiveram cunho pedagógico.

La Blache rejeitava a ideia preconizada por Friedrich Ratzel que caracterizou


a Escola Alemã de Geografia, em que as condições naturais do meio influenciavam
e determinavam as atividades humanas e a vida em sociedade. O ser humano
também transformava o meio onde vivia, de forma que para as ações humanas,
diversas possibilidades eram possíveis, uma vez que essas não obedeceriam a uma
relação entre causa e efeito. Membro de uma família de professores e militares,
seu pai, professor, deseja para o filho a mesma profissão, por isso o envia para um
colégio interno em Paris onde teria melhores condições para fazer uma carreira
brilhante. Na Escola Normal Superior, onde estuda, se dedica principalmente aos
estudos de História. Vai para Escola de Atenas, onde fica por três anos, e prepara sua
tese sobre a Ásia Menor. Percorrendo a Turquia para preparação de seu trabalho,
toma como guia a obra que Carl Ritter havia escrito sobre esse país. A partir desse
contato inicial, passa a se dedicar aos estudos geográficos, tornando-se um dos
grandes nomes dessa ciência. Em 1875 é nomeado conferencista de Geografia da
Universidade de Nancy; em 1880, torna-se subdiretor da Escola Normal Superior
onde fica até 1898, ano em que vai para a Sorbonne. Foi um professor irrepreensível
e um viajante incansável. Conheceu muito bem a França e a Europa, assim como
boa parte do norte da África e da América do Norte (PONTUSCHKA, 2007).

Produziu uma obra pouco volumosa, mas muito densa. Nos ditos de
Moraes (1994), para La Blache, a Geografia deveria partir de uma ideia simples:
explicar a desigual repartição dos homens sobre a superfície da Terra e suas
densidades. Para tanto, deu um tratamento cartográfico aos dados e considerou na
análise os sinais expressos pela paisagem e a relação dos assentamentos humanos
com o solo. Para construir o edifício teórico e metodológico da Geografia, Vidal de
La Blache se embasará na ideia de totalidade, de Possibilismo, de mapeamento
das densidades. Um dos pontos importantes para os estudos da Geografia
eram as cartas de densidade. Para ele, essas cartas colocavam o problema
fundamental de toda a Geografia Humana: aquele das relações que os grupos
humanos estabelecem com os lugares onde vivem e com o seu entorno. Dessa
forma, a Geografia deve analisar e explicar as relações entre os grupos humanos
e o meio ambiente onde moram. Nesse sentido, a tarefa mais importante dela
é estudar e explicar os mapas de densidades, porque eles dão uma ideia clara
dessas relações e de gênero de vida, ao abordar a relação entre o meio e a ação

96
TÓPICO 1 | GEOGRAFIA DO SÉCULO XIX

humana, considerava que o meio é uma força viva, que tem movimento próprio
e regras de conexão que escapam à intervenção humana. Por outro lado, a ação
do homem tem grande capacidade de transformação. O conjunto das ações e as
formas através das quais os homens tiram proveito das possibilidades oferecidas
pela natureza é dada pela diversidade dos gêneros de vida. A noção de gênero de
vida permite à análise geográfica compreender as relações que os homens tecem
com o seu meio. Relações que são estabelecidas pelas técnicas, pelas formas de
trabalho, pelas formas de habitação, pela cultura, entre outros (MORAES, 1994).

Referente ao Possibilismo, o qual já estudamos anteriormente na primeira


unidade deste livro, Moraes (1994) comenta que é importante lembrar que o
Possibilismo constituir-se-ia, assim, numa alternativa ao determinismo do meio físico
na análise das relações que o homem mantém com esse meio. O Possibilismo é a
rejeição à ideia de que o homem é, antes de tudo, passivo, submisso às condições locais
e constrangido a se adaptar. Na análise, a compreensão das relações homem/meio
se dá em toda sua complexidade, dando relevante atenção às iniciativas humanas
transformadoras da natureza. Sua posição é frontalmente antideterminista, ou seja,
contrário ao determinismo, mas considera que o homem sofre influências do meio
no sentido de que existe uma diferenciação natural frente à qual o homem se depara
e que em cada meio dado a natureza apresenta um conjunto de possibilidades, com
limites próprios e que é em função dos dados históricos, culturais e técnicos que
algumas dessas possibilidades serão exploradas pelos seus habitantes.

De acordo com Diniz Filho (2012), La Blache foi o primeiro professor de


Geografia de Sorbonne, planejou uma obra de destaque, Geografia Universal, que
abrangia a Geografia Regional em todo o mundo, mas não foi concluída, seus
seguidores completaram a obra. Ele procurou estabelecer princípios básicos nos quais
a Geografia estava relacionada com os seguintes aspectos: a interdependência dos
fenômenos terrestres; o reconhecimento da influência do meio ambiente e sua relação
com o ser humano; a necessidade de um método científico para classificar e definir
os fenômenos e a interferência do ser humano em seu espaço geográfico. Combateu
o pensamento geográfico tradicional determinista de seu tempo, formulando novas
concepções, enfocando o aspecto humano e dando destaque à Geografia Regional.

Para La Blache, seria impossível, ao menos naquele momento, alcançar


visões totalizantes para a realidade, de forma que os conhecimentos e os conceitos
só deveriam ser aplicados em realidades específicas. Incentivou e participou
de muitas monografias regionais, isto é, estudos que se preocupavam apenas
com uma determinada região e que se caracterizavam por serem extremamente
descritivos. O conceito de região foi muito importante em sua obra. Esse conceito
estava associado às paisagens naturais, de forma que uma região existia no espaço
independente da vontade humana, cabendo aos cientistas apenas identificá-las e
expor suas características. Tal conceito foi mais tarde criticado, uma vez que a
região passou a ser entendida como uma divisão elaborada pelo homem a partir
de seus próprios critérios e que, portanto, não existiria naturalmente, sendo uma
construção intelectual humana (MORAES, 1994).

97
UNIDADE 2 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO

A questão regional é uma das mais tradicionais em Geografia, sendo a região


um conceito-chave dessa Ciência. Para Moraes (1994), até La Blache, a Geografia não
se constituía num ramo autônomo do conhecimento, é com ele que atinge status de
ciência na França. Ele é um pensador do possível, das diversas possibilidades que o
homem tem diante do imperativo de habitar a Terra. Procurou salientar a importância
da vinculação entre o geral e o particular e a complexidade das entidades (regiões)
geográficas, para tanto, desenvolveu a ideia de unidade terrestre. Considerava
fundamental para análise geográfica o modo como as diversidades dos lugares
se expressa numa determinada organização espacial. Cabe ao geógrafo explicar e
compreender a lógica interna de cada fragmento da superfície terrestre revelando
sua individualidade, cuja réplica exata não se encontra em nenhuma outra parte.
É atribuição do geógrafo estudar a organização de cada espaço diferenciado e
individualizado. Para ele, as regiões se diversificam em unidades mais reduzidas e são
compreendidas segundo aspectos históricos, em função de elementos políticos e de
desenvolvimento econômico – as rotas – ou em função de elementos oriundos do raio
de influência de uma cidade. Por sua vez, tais regiões se revestem de aspectos e traços
bastante diferenciados, cuja originalidade se exprime numa certa fisionomia, num
estilo particular de organização espacial engendrada pelo casamento entre a natureza
e a história. Essa fisionomia é o que nós chamamos hoje de paisagem (MORAES, 1994).

Com La Blache, e de forma progressiva a partir dele, o conceito de região


foi humanizado. Segundo Moraes (1994), buscava-se sua individualidade nos dados
humanos, poder-se-ia inclusive dizer que a busca de tal vínculo foi um dos móveis
principais dos estudos efetuados. Porém, a região foi sendo compreendida como
um produto histórico, que expressaria a relação dos homens com a natureza. Este
processo de historicização do conceito de região expressou o próprio fortalecimento
da Geografia Humana, tal como proposta por La Blache. A ideia de região propiciou
o que viria a ser majoritária e mais usual perspectiva de análise do pensamento
geográfico: a Geografia Regional. Esta, sem dúvida a mais costumeira forma de
estudo empreendida pelos geógrafos, propõe a realização de monografias, análises
circunscritas à área enfocada, que buscam chegar a um conhecimento cada vez mais
profundo dela, pela descrição e observação dos fenômenos e elementos presentes, no
limite tendendo à exaustão. Assim, os estudos da Geografia Regional esquadrinhavam
o Globo, gerando um considerável acervo de análises locais (MORAES, 1994).

Ainda de acordo com Moraes (1994), esta perspectiva se difundiu bastante,


enfocando regiões de todos os quadrantes da Terra. Por isso, pode-se dizer que a
Geografia Regional foi o principal desdobramento da proposta vidalina. O acúmulo
de estudos regionais propiciou o aparecimento de especializações, que tentavam
fazer a síntese de certos elementos por eles levantados. Assim, o levantamento
de regiões predominantemente agrárias ensejou o desenvolvimento de uma
Geografia Agrária, tentando sintetizar as informações e as características sobre a
estrutura fundiária, as técnicas de cultivo, as relações de trabalho etc. O estudo das
redes de cidade, das hierarquias e das funções citadinas, levou à constituição de
uma Geografia Urbana. E assim por diante, com uma Geografia das indústrias, da
população ou do comércio. Desta forma, as sínteses empreendidas por comparação
das regiões foram especializadas. As generalizações, obedecendo às prescrições

98
TÓPICO 1 | GEOGRAFIA DO SÉCULO XIX

de Vidal, orientaram-se para tipologias: de indústrias, de cidades etc. Isto levou


a uma setorização dos estudos e, no limite, a análises regionais especializadas.
Destas especializações dos estudos regionais, a que manteve a perspectiva mais
globalizante foi, sem dúvida, a Geografia Econômica. Esta privilegiou, como objeto
de sua análise, a vida econômica de uma região, discutindo os fluxos, o trabalho, a
produção etc. Tal perspectiva articulava população, comércio, indústria, agricultura,
transportes, enfim, variados elementos do quadro regional (MORAES, 1994).

Todavia, é interessante ressaltar que, de acordo com Diniz Filho (2012) La


Blache se interessa muito pelas realidades geográficas extensas: nações ou grandes
zonas geográficas, como o Mediterrâneo. Se ele efetua recortes regionais, é para
melhor compreender a natureza das entidades que lhe interessam. Seu método
repousa sobre uma incessante dialética das escalas. Para ele, essa dialética se realiza
quando analisa a situação dos lugares ou de pequenos conjuntos territoriais:
pontos ou áreas mais ou menos extensos. A outra vertente dessa dialética das
escalas procede de modo inverso, indo das grandes áreas naturais, das nações,
das grandes regiões em direção ao local. Essas operações de regionalização que
“revelam” componentes que existem no seio de um grande espaço o apaixonam.
Quando os critérios de partição são mudados, a forma do recorte toma toda
sua amplitude. É o que torna a démarche regional insubstituível no pensamento
vidaliano. Ela revela, assim, a complexidade dos objetos estudados, quer se trate
de nações, de grandes espaços, ou do estudo do local (DINIZ FILHO, 2012).

Em síntese, as monografias regionais são, sem dúvida, a maior expressão


da Geografia francesa, principalmente em se tratando de Geografia Regional. Uma
monografia regional, ou seja, um trabalho científico em Geografia deveria estar atento
para os elementos que compõem a região: os elementos do meio físico, sobretudo, o
solo; formas de habitação, atividades humanas, e como as comunidades se integram
com o meio físico e com outras comunidades; além de estar atento para elementos
solidários que pudessem parecer estranhos à região estudada (DINIZ FILHO, 2012).

E
IMPORTANT

Embora La Blache estivesse empenhado em estabelecer as bases científicas da


Geografia, e apesar da grande influência que efetivamente exerceu na França e em muitos
outros países, seus livros não apresentavam propostas epistemológicas explícitas. Desde
os primeiros escritos, ele afirmou sua aversão às construções teóricas apriorísticas e sua
convicção de que as pesquisas científicas devem ter por base a observação dos fenômenos,
motivo pelo qual ele não efetuava discussões epistemológicas separadas das descrições
regionais (MORAES, 1994).

99
UNIDADE 2 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO

DICAS

SUGESTÃO DE AULA

Plano de aula: Ensino Médio Geografia.


Nazismo e o conceito de Espaço Vital.
Espaço Vital ou, em alemão, Lebensraum – o conceito popularizou-se no século XIX, após
a Unificação Alemã, por meio dos trabalhos do geógrafo Ratzel. O século XIX foi o século
do Imperialismo e do Neocolonialismo. Ratzel, que havia visitado os EUA na época do auge
da Doutrina Monroe, passou depois a conceber uma doutrina geopolítica que defendia que
toda “raça ou povo com dotes civilizacionais superiores” precisaria de um vasto espaço físico
para o seu pleno desenvolvimento. A conquista desse “espaço vital” dependia da subjugação
de “povos ou raças inferiores”, ocupantes de territórios “indignos” deles. Hitler na segunda
guerra mundial ampliou este conceito.

Para saber mais acesse: <https://brasilescola.uol.com.br/o-que-e/historia/o-que-foi-o-


espaco-vital-nazista.htm>.

Existem muitas possibilidades, conceitos ou temas para se trabalhar este assunto. Uma dica
é promover um projeto de pesquisa entre os alunos em torno da temática: “Uso do termo
espaço vital pelos nazistas e os problemas/crises decorrentes para a humanidade”.

FONTE: O autor

100
TÓPICO 1 | GEOGRAFIA DO SÉCULO XIX

LEITURA COMPLEMENTAR

PAUL VIDAL DE LA BLACHE E A CONSTRUÇÃO


DA GEOGRAFIA HUMANA

Deyse Cristina Brito Fabrício


Antonio Carlos Vitte

A Escola Geográfica Francesa ganhou notabilidade entre o final do século


XIX e o início do século XX. No contexto da época havia uma crise no pensamento
geográfico que abalava seus pressupostos científicos, pois o método positivista, que
vinha norteando fortemente os primeiros trabalhos da disciplina institucionalizada,
acabou entrando em declínio. É necessário entender então, primeiramente, algumas
características do Positivismo e sua articulação com a Geografia.

Segundo Capel (1981, p. 268-273), o Positivismo é uma metodologia científica


e também uma concepção filosófica que se difundiu primeiramente na Europa, em
meados do século XIX. As ciências naturais foram tomadas como modelo, com as
ideias de neutralidade e infalibilidade científica, pela crença no progresso. Atreladas
a essa linha de pensamento, a biologia evolutiva darwinista e lamarckista colocava
uma nova metodologia, focando o conceito de “organismo” e a importância do meio
natural. Nesse sentido, a teoria da seleção natural, concebida por Charles Darwin
(1809-1882), modificou o pensamento científico no século XIX. Acreditava-se que
o meio selecionava os indivíduos mais aptos de uma espécie. Junto a essa teoria, a
negação da teologia instaurava uma nova confiança para o desenrolar da ciência.
O caminho para o conhecimento seguiria uma lógica a partir da experimentação
empírica, que se aplicaria ao estudo das ciências naturais e também às ciências
humanas, ambas vistas como uma unidade. Assim, a sociedade seguiria, também, leis
naturais, numa concepção tomada de forma conservadora por muitos positivistas.

A corrente positivista e o evolucionismo acabaram influenciando a busca


de um método para as Ciências Humanas e à Geografia, em particular, sendo
muito presentes na Geografia alemã da época.

Um dos primeiros geógrafos a incorporar os pressupostos do Positivismo


evolucionista foi Friedrich Ratzel (1844-1804), colocando a influência dos fatores
naturais como cruciais para explicar os povos. Não podemos dissociar sua teoria
do contexto político. Inserido na disputa territorial por colônias, o teórico procura
legitimar o Imperialismo alemão. Para isso afirma que o homem, sua história
e cultura seriam frutos do meio e das imposições deste aos seus habitantes. O
objeto geográfico seria, então, o estudo da influência das condições naturais na
sociedade, atuando na fisiologia, no caráter dos indivíduos e na condição social.

A partir disso, Friedrich Ratzel enfatiza as condições naturais, criando a


teoria do “Espaço Vital”. É o território quem viabilizaria a existência da nação e seu
progresso (CAPEL, 1981, p. 290-291). A disputa entre povos (espécies) era apropriada
para a evolução. Os mais adaptados venceriam essa luta e sobreviveriam. Os europeus
seriam os mais adaptados e poderiam dominar os outros povos.
101
UNIDADE 2 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO

Dessa forma, apesar de não negar os elementos humanos e a história, a


visão naturalista de Friedrich Ratzel propõe uma metodologia parecida com as
demais ciências naturais. Todas as leis que regem aqueles fenômenos também
regeriam os fenômenos humanos, seguindo os pressupostos positivistas.

Em prosseguimento, no final do século XIX a corrente positivista, com suas


bases epistemológicas, acabou entrando em declínio e os cientistas iniciaram uma busca
pela especificidade das ciências humanas. Com influências neokantianas, separava-se
natureza e história em dois ramos numa reação que seria chamada de “historicismo”.

A corrente historicista teve sua origem na Alemanha entre o final do século


XVIII e início do século XIX, apresentando inicialmente um caráter reacionário,
legitimador. Afirma a historicidade de todos os fenômenos sociais, considerados
distintos dos fatos naturais. Também afirma a historicidade do próprio cientista,
que possui uma visão de mundo interferindo em seus trabalhos, contrariamente
ao que afirmava a neutralidade positivista (LÖWY, 1985, p. 69-70).

A citada tendência à separação entre as ciências físicas e humanas traz


um ponto de crise para a unidade da ciência geográfica. Nesse contexto, a Escola
Geográfica Francesa vai ganhando destaque, principalmente pelos trabalhos de
Paul Vidal de La Blache. A concepção vidaliana inseria um aspecto historicista
à ciência geográfica, numa tentativa de garantir-lhe um método. Criticava o
Positivismo evolucionista e os pontos de vista de Friedrich Ratzel, afirmando que
estes tinham claramente um interesse político, embora buscassem a neutralidade.

Engendra-se, então, a chamada Geografia Regional Francesa, colocando o


conceito de região como foco de unidade. Estabelecer diferenças entre regiões e
delimitá-las a partir de critérios muito específicos, com peso dos fatores naturais,
seria a essência da Geografia, acreditando-se que dessa forma integravam-se
fatores físicos e humanos.

Embora essa ideia seja ilusória, pois havia mais uma justaposição de
fatores físicos e humanos do que uma integração, a parte histórica e cultural
passou a ter maior consideração, mesmo que permanecesse atrelada aos fatores
físicos (ANDRADE, 1987, p. 64).

É importante notar que a carga naturalista e positivista se mantinha, apesar


de serem inseridos os fatores históricos. A Escola Francesa, embora contestando
alguns pressupostos positivistas, herdaria muitos conceitos evolucionistas,
vigentes no pensamento científico da época.

Como exemplo, citamos o conceito biológico de “função” (CAPEL, 1981, p.


275) apropriado por Paul Vidal de La Blache para explicar a dinâmica das regiões,
que se constituiriam como organismos vivos, fazendo parte de um conjunto mais
amplo: a nação.

102
TÓPICO 1 | GEOGRAFIA DO SÉCULO XIX

Assim, as críticas vidalianas à postura marcadamente política de Friedrich


Ratzel acabam “mascarando” o profundo caráter ideológico de suas próprias
declarações, como confirma Lacoste (1997, p. 57). Cada país seria considerado
uma unidade, com suas várias regiões. Concebendo um historicismo conservador,
as fronteiras seriam algo “dado”, demarcadas principalmente por meios naturais,
sendo pertencentes à nação desde tempos imemoriais.

Nessa ideia, engendra-se o conceito de gênero de vida. Acrescentando os


elementos humanos, Paul Vidal de La Blache acreditava que as regiões constituiriam
uma unidade, um organismo compondo o meio físico que daria o “suporte” para
os homens e os grupos desenvolverem, ao longo da história, um gênero de vida.

O entendimento das regiões seria fundamental para a compreensão de


cada gênero de vida, pois o meio ofereceria os obstáculos e as possibilidades para
o homem exercer sua atividade, criar técnicas ou extrair produtos, daí a expressão
“Possibilismo”, difundida por Lucien Febvre (ANDRADE, 1987, p. 70).

O homem estaria inserido nessa complexa rede de relações, sendo ora


passivo, ora ativo, pois quando se depara com as possibilidades do meio, tem
inteligência para aumentar os recursos e utilizá-los de forma satisfatória.

Prosseguindo a análise, o conceito de modo de vida está inserido num


contexto que não perpassa a neutralidade. As disputas históricas entre potências
europeias inserem as monografias regionais vidalianas numa feição de legitimação
do Imperialismo francês e do sistema burguês estabelecido.

Nessa concepção, a obra fundamental de Paul Vidal de La Blache,


“Princípios de Geografia humana”, reporta aos povos ditos primitivos, sua
dependência em relação ao meio e quais os fatores que colocaram a superação
dos obstáculos que a natureza oferecia.

O autor diz que a tendência foi a aglomeração de núcleos humanos ao


longo do curso de rios, constituindo áreas mais propensas à vida. A partir disso,
ocorreu uma separação por obstáculos, como montanhas. Nesse isolamento, em
sua relação com o meio o homem teria engendrado seu modo de vida, levando à
criação de técnicas capazes de transformar o ambiente (LA BLACHE, 1954, p. 40).

Analisados a partir de ideias darwinistas, os isolamentos levaram à


formação de “raças”. Em alguns casos, a população ficaria estagnada em seus
hábitos, assemelhando-se às sociedades animais, por serem presas, historicamente,
à mesma forma de interação com o meio (LA BLACHE, 1954, p. 80-84).

103
UNIDADE 2 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO

Concluindo a obra, então, o autor diz que o meio europeu teria sido muito mais
exigente, por isso a população que lá vive fez um povoamento original, concentrando
a principal massa da humanidade, capaz de uma “evolução” mais complexa. Os povos
teriam uma tendência inerente ao aperfeiçoamento. Há culturas pontuais e outras
capazes de transmitir seus progressos. A Europa ocidental teria apresentado, num
movimento histórico, um desenvolvimento quase contínuo, o que não ocorrera com as
civilizações da África e da Ásia, habitantes das zonas de deserto e de estepes. Por isso,
os europeus deveriam alastrar seu “progresso” e “evolução” para outros gêneros de
vida (LA BLACHE, 1954, p. 277-278).

FONTE: <http://www2.fct.unesp.br/semanas/geografia/2011/ensinodegeografiaeepistemologia/
REEG02%20-%20Deyse%20Cristina%20Brito%20Fabricio%20e%20Antonio%20Carlos%20Vitte.pdf>.
Acesso em: 25 set. 2018.

104
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• Na formação da Geografia é amplamente reconhecida a influência do filósofo


iluminista Immanuel Kant (1724-1804) nas reflexões realizadas pelos geógrafos
a respeito do objeto e dos métodos dessa Ciência. Kant foi um dos maiores
filósofos de todos os tempos e também ministrou um curso de Geografia Física
na Universidade de Könisgberg.

• Humboldt, junto a Ritter, são considerados os pais da Geografia Moderna. Vivem


ainda o clima histórico da unificação alemã e o desenvolvimento capitalista tardio
da Alemanha, a especificidade da situação histórica da Alemanha, no início do
século XIX, época que se dá a eclosão da Geografia, está no caráter tardio da
penetração das relações capitalistas nesse país.

• Alexander Humboldt (1769-1859) pertencia a uma família aristocrática


prussiana. Seu pai preocupou-se desde cedo em dar uma esmerada educação aos
filhos através de preceptores. Alexandre de Humboldt recebeu precocemente
uma boa formação em Economia Política, Matemática, Ciências Naturais,
Botânica, Física e Mineralogia. Foi um grande viajante. Foi essencialmente
um grande viajante naturalista de sua época. Os seus conhecimentos de
Mineralogia, Geologia e Botânica permitem-lhe desvendar muitos traços
interessantes nas paisagens e relacioná-los. Em lugar de justapor informações,
procura compreender como os fenômenos se condicionam.

• Carl Ritter (1779-1859) nasce dez anos depois de Humboldt e morre no mesmo ano
em que este; teve uma vida pouco movimentada, foi um homem que se dedicou mais
à reflexão, ao magistério e ao intuito explícito de sistematização da Geografia. Sua
obra é explicitamente metodológica; a formação de Ritter também é radicalmente
distinta da de Humboldt, enquanto aquele era geólogo e botânico, este possui
formação em Filosofia e História. A Geografia deixa de ser uma modesta descrição
da Terra e torna-se indispensável para quem quer compreender a cena mundial,
a dinâmica das civilizações e a maneira através da qual os povos exploram o seu
ambiente. O problema essencial estudado por Ritter é o das relações, das conexões
que se estabeleciam entre os fatos físicos e humanos.

• Friedrich Ratzel (1844-1904) nasceu no Ducado de Baden, um dos estados


germânicos que a partir de 1871 viria a integrar o Império Alemão. Apesar
de sua origem social um tanto modesta, conseguiu cursar universidades
importantes como as de Jena, Berlim e Munique. Ele teve aulas de Zoologia
com Ernst H. P. A. Haeckel (1834-1919), que foi um dos divulgadores da Teoria
de Darwin na Alemanha e fundador da Ecologia, nome que ele criou para
designar uma Ciência cujo objetivo seria explicar as relações dos seres vivos
entre si e com o ambiente. Ratzel chegou a publicar, em 1869, um trabalho

105
no qual fazia uma síntese da teoria darwiniana, embora tenha passado a
tecer críticas contra ela em alguns de seus livros da maturidade. Em sua obra
Antropogeografia, foi responsável pela propagação de ideias deterministas,
que considerava a grande influência do meio natural sobre o ser humano. O
progresso da humanidade seria obtido com o maior uso dos recursos naturais,
propondo que se estreitassem as relações do ser humano com a natureza.

• La Blache incentivou e participou de muitas monografias regionais, isto é,


estudos que se preocupavam apenas com uma determinada região e que se
caracterizavam por serem extremamente descritivos. Por isso, o conceito de
região foi muito importante em sua obra. Esse conceito estava associado às
paisagens naturais, de forma que uma região existia no espaço independente
da vontade humana, cabendo aos cientistas apenas identificá-las e expor suas
características. Uma monografia regional, ou seja, um trabalho científico em
Geografia deveria estar atento para os elementos que compõem a região: os
elementos do meio físico, sobretudo, o solo; formas de habitação, atividades
humanas, e como as comunidades se integram com o meio físico e com outras
comunidades; além de estar atento para elementos solidários que pudessem
parecer estranhos à região estudada.

106
AUTOATIVIDADE

1 (ENADE, 2005 – Questão 11):

A síntese regional [...] é o objetivo último da tarefa do geógrafo, o único terreno sobre
o qual ele se encontra a si mesmo. Ao compreender e explicar a lógica interna de um
fragmento da superfície terrestre, o geógrafo destaca uma individualidade que não se
encontra em nenhuma outra parte.

(VIDAL DE LA BLACHE apud LENCIONI, S. Região e Geografia. São Paulo: Edusp, 1999. p. 107).

É correto afirmar:

I- A concepção vidaliana de região implica uma postura empirista. Na sua


singularidade, a região é concebida como uma realidade concreta e uma
entidade dada e autoevidente.
II- A Geografia Regional, na tradição de Vidal de La Blache, baseia-se numa
postura objetiva do cientista que atua no gabinete. O trabalho de campo é
considerado de menor relevância para a pesquisa.
III- A Geografia Regional vidaliana privilegia procedimentos funcionalistas
para a elaboração de regionalizações e rejeita a interpretação historicista.

a) ( ) Somente a afirmativa I é correta.


b) ( ) Somente as afirmativas I e II são corretas.
c) ( ) Somente as afirmativas I e III são corretas.
d) ( ) Somente as afirmativas II e III são corretas.
e) ( ) As afirmativas I, II e III são corretas.

FONTE: ENADE, 2005/Geografia. Disponível em: <http://download.inep.gov.br/download/


enade/2005/provas/GEOGRAFIA.pdf>. Acesso em: 25 set. 2018.

2 O tema da modernidade é muito controverso e complexo para ser tratado


de forma acabada. A modernidade pode ser considerada como um novo
código de valorização que se irradiou pelas mais diversas esferas da vida
social, tomando diferentes formas e que possui uma dinâmica espaço-
temporal muito complexa para ser objeto de uma precisa localização.
Assinale a opção correta acerca da história do pensamento geográfico e da
institucionalização da geografia como Ciência:

a) ( ) A geografia enquanto Ciência se originou de escritos encontrados nos


povos indo-europeus.
b) ( ) A geografia enquanto Ciência se originou de escritos teológicos.
c) ( ) A geografia enquanto Ciência se originou de escritos de autores pós-
modernos.
d) ( ) A geografia enquanto Ciência se originou de escritos de Alexander
von Humboldt e Carl Ritter.

107
3 Assinale qual é a geografia que estuda e analisa o espaço utilizando de
quantidade, números e analisa-o de acordo com pontos, ignorando o lado
social e humano, diário, somente observando os fatos de acordo com os
dados obtidos:

a) ( ) Geografia Teorética.
b) ( ) Geografia Pós-Moderna.
c) ( ) Geografia Decolonial.
d) ( ) Geografia Marxista.

4 Procurou abolir qualquer forma de determinação, adotando a ideia de que


a ação humana é marcada pela contingência. A natureza era considerada
como fornecedora de possibilidades para que o homem a modificasse. Esta
afirmação está de acordo com a Teoria:

a) ( ) Teorética.
b) ( ) Possibilista.
c) ( ) Determinista.
d) ( ) Teológica.

108
UNIDADE 2 TÓPICO 2

GEOGRAFIA – INÍCIO DO SÉCULO XX

1 INTRODUÇÃO
As descobertas realizadas pelas Ciências Sistemáticas na primeira metade
do século XX fortaleceram a ideia, ao menos nas Ciências Naturais, de que
produzir conhecimento científico é formular teorias gerais referidas a categorias
particulares de fenômenos. Assim, foi se tornando cada vez mais difícil aceitar
que sínteses regionais descritivas, destituídas de vocabulário técnico e elaboradas
com uma boa dose de linguagem literária e de intuição artística, pudessem ser
contribuições efetivas ao conhecimento científico.

De acordo com Diniz (2012), até a primeira década do século XX, a principal
vertente de crítica ao Positivismo tomou corpo com o surgimento das “escolas
neokantistas” de pensamento filosófico, as quais tiveram influência considerável
sobre o pensamento científico. De forma um tanto esquemática, podemos dizer
que o objetivo básico dessas escolas era fazer a crítica do Positivismo sem recorrer
aos grandes sistemas filosóficos produzidos pelos idealistas germânicos do início
do século, daí a proposta de resgatar as ideias de Kant. Como você, acadêmico,
deve se lembrar, esse filósofo estabelece que o conhecimento não pode ter acesso
às coisas em si mesmas, mas apenas aos fenômenos, isto é, às coisas tais como
aparecem ao sujeito sob as formas da percepção e as categorias do entendimento.
Por conseguinte, a objetividade da Ciência é constituída por categorias que não são
propriedades dos objetos, mas condições do conhecimento, isto é, conceitos a priori
que possibilitam apresentar os fenômenos sob a forma de relações de causa e efeito,
de quantidades, qualidades etc. A teoria do conhecimento de Kant se opõe, assim, ao
princípio positivista de que todo conhecimento provém diretamente da experiência
imediata, sensível, já que a própria experiência é, segundo Kant, constituída pelas
categorias do entendimento. Todavia, o neokantismo não foi simplesmente uma
volta à filosofia de Kant, mas principalmente um esforço de reinterpretação no qual
algumas proposições fundamentais desse autor foram radicalmente modificadas.

109
UNIDADE 2 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO

FIGURA 6 – ALFRED HETTNER (1859-1941)

FONTE: <http://geography.ruhosting.nl/geography/index.php?title=File:Alfred_Hettner.jpg>.
Acesso em: 26 set. 2018.

Alfred Hettner (1859-1941), segundo Diniz Filho (2012), foi um geógrafo


alemão, professor da Universidade de Heidelberg influenciado pelo refluxo das
críticas francesas às colocações de Ratzel. Por essa razão, suas teorizações foram
a busca de um terceiro caminho para a análise geográfica, que não fosse o do
Determinismo e o do Possibilismo. De acordo com o autor, Hettner procurou
formular uma proposta epistemológica alternativa às opções oferecidas pelo
Determinismo e pelo Possibilismo. Suas considerações sobre o tema, num
diálogo com as ideias de Comte e dos autores neokantistas, acabam conduzindo
a uma classificação das ciências muito semelhante àquela exposta por Kant na
introdução a suas conferências didáticas. Kant afirma que as ciências empíricas
se diferenciam umas das outras por descrever os fenômenos segundo conceitos
ou conforme a sua distribuição no tempo ou no espaço. De modo análogo,
Hettner diz que as “ciências concretas” se dividem em três grupos, os quais se
caracterizam por estudar a realidade de acordo com pontos de vista próprios, a
saber: o do grau de homogeneidade dos objetos, o do desenvolvimento temporal
das coisas e, por fim, o da organização das coisas no espaço (DINIZ FILHO, 2012).

110
TÓPICO 2 | GEOGRAFIA – INÍCIO DO SÉCULO XX

De acordo com Moraes (1994), Hettner vai propor a Geografia como a


Ciência que estuda “a diferenciação de áreas”, isto é, a que visa explicar “por
quê” e “em que” diferem as proporções da superfície terrestre; diferença esta
que, para ele, é apreendida ao nível do próprio senso comum. Para Hettner, o
caráter singular das diferentes parcelas do espaço adviria da particular forma
de inter-relação dos fenômenos aí existentes. A Geografia seria então o estudo
dessas formas de inter-relação dos elementos no espaço terrestre. As teses
hettnerianas foram pouco divulgadas. Foi somente através de sua retomada
por Richard Hartshorne, um renomado geógrafo americano, que a proposta
de Hettner passou a ser amplamente discutida. Diante disso, a epistemologia
proposta por Richard Hartshorne, a partir do legado de Alfred Hettner, apareceu
como um interessante caminho para conferir rigor metodológico ao projeto da
ciência de síntese, dentro de uma perspectiva racionalista. O fato de se denominar
racionalista esta corrente advém de sua menor carga empirista, em relação às
anteriores. Privilegiou um pouco mais o raciocínio dedutivo, antecipando um
dos móveis da renovação geográfica nos anos sessenta, fundamentando-se no
neokantismo. A Geografia para essa corrente seria o estudo das formas de inter-
relações dos elementos no espaço terrestre. A proposta da Geografia Racionalista
não rompeu definitivamente com a Geografia Tradicional, mas se afastou de suas
colocações e já representava um papel de transição (MORAES, 1994).

2 A GEOGRAFIA EM RICHARD HARTSHORNE

FIGURA 7 – RICHARD HARTSHORNE (1899-1992)

FONTE: <https://www.cadernoterritorial.com/news/richard-hartshorne%3A-do-estudo-da-
diferencia%C3%A7%C3%A3o-de-areas-%C3%A0-integra%C3%A7%C3%A3o-de-fenomenos-
heterog%C3%AAneos-dallys-dantas-de-souza/>. Acesso em: 26 set. 2018.

111
UNIDADE 2 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO

Richard Hartshorne (1899-1992), de acordo com Moraes (1994), foi um


geógrafo estadunidense muito conhecido pela ampla difusão de suas principais obras.
Foi somente a partir de 1930 que a Geografia americana se desenvolveu, chegando esse
país, nos anos mais recentes, a ser um dos centros mundiais da produção geográfica.

Nas palavras de Diniz Filho (2012), Hartshorne aproximou-se bastante da


Antropologia, elaborando a Geografia Cultural (trataremos mais adiante deste
assunto). Entretanto, foi sem dúvida a produção de Hartshorne que encontrou
maior repercussão, dado o seu caráter amplo (em busca de uma Geografia Geral)
e explicitamente metodológico. Publicou em 1939 um livro, A natureza da Geografia,
que foi mundialmente discutido. Dos debates ensejados por esta obra, das críticas
e sugestões levantadas, retirou o material para escrever outro livro, Questões sobre
a natureza da Geografia, publicado em 1959, que apresentou o conteúdo final da
sua proposta. Esta vai ser a última tentativa de agilizar a Geografia Tradicional,
mantendo-lhe a essência de busca de um conhecimento unitário, e dando-lhe uma
versão mais moderna. A primeira diferença da proposta residiu em este defender
a ideia de que as ciências se definiriam por métodos próprios, não por objetos
singulares. Assim, a Geografia teria sua individualidade e autoridade decorrentes
de uma forma própria de analisar a realidade. O método especificamente geográfico
viria do fato de essa disciplina trabalhar o real em sua complexidade, abordando
fenômenos variados, estudados por outras ciências (DINIZ FILHO, 2012).

De acordo com Moraes (1994), Hartshorne introduzira o pensamento de


Hettner, porém, ao contrário dos anteriores, desenvolvendo-o e aprimorando-o. O
estudo geográfico não isolaria os elementos, ao contrário, trabalharia com suas inter-
relações. A forma antissistemática seria mesmo a singularidade da análise geográfica.
Desta forma, ele deixou de procurar um objeto da Geografia, entendendo-a como um
“ponto de vista”. Seria um estudo das inter-relações entre fenômenos heterogêneos,
apresentando-as numa visão sintética. Entretanto, as inter-relações não interessariam
em si, e sim na medida em que “desvendam o caráter variável das diferentes áreas da
superfície da Terra”. Os conceitos básicos formulados por Hartshorne foram os de área
e de integração, ambos referidos ao método. A área seria uma parcela da superfície
terrestre, diferenciada pelo observador, que a delimita por seu caráter, isto é, a
distingue das demais. Essa delimitação é um procedimento de escolha do observador,
que seleciona os fenômenos enfocados; dependendo dos dados selecionados, a
delimitação será diferente (pois a abrangência destes varia desigualmente). A área
seria construída no processo de investigação. Para Hartshorne, uma área possuiria
múltiplos processos integrados, sendo uma fonte inesgotável de inter-relações. O
conjunto de todas as inter-relações possíveis daria a realidade total da área, porém
sua apreensão seria impossível; logo, buscar a exaustão seria anticientífico. Daí a
necessidade de seleção dos elementos a serem analisados, que deveriam ser os mais
significativos (MORAES, 1994).

112
TÓPICO 2 | GEOGRAFIA – INÍCIO DO SÉCULO XX

De acordo com Moraes (1994), Hartshorne argumentou que os fenômenos


variam de lugar a lugar, que as suas inter-relações também variam, e que os
elementos possuem relações internas e externas à área. O caráter de cada área seria
dado pela integração de fenômenos inter-relacionados. Assim, a análise deveria
buscar a integração do maior número possível de fenômenos inter-relacionados. A
esta forma de estudo denominou a Geografia Idiográfica. Seria uma análise singular
(de um só lugar) e unitária (tentando apreender vários elementos), que levaria a um
conhecimento bastante profundo de determinado local. Porém, também propôs
uma segunda forma de estudo, por ele denominada Geografia Nomotética. Esta
deveria ser generalizadora, apesar de parcial. No estudo nomotético, o pesquisador
pararia na primeira integração, e reproduzi-la-ia (tomando os mesmos fenômenos
e fazendo as mesmas inter-relações) em outros lugares. As comparações das
integrações obtidas permitiriam chegar a um “padrão de variação” daqueles
fenômenos tratados. Assim, as integrações parciais (de poucos elementos inter-
relacionados) seriam comparáveis, por tratarem dos mesmos pontos, abrindo a
possibilidade de um conhecimento genérico (MORAES, 1994).

Desta forma, segundo Moraes (1994), Hartshorne articulou a Geografia


Geral e a Regional, diferenciando-as pelo nível de profundidade de suas colocações.
Quanto maior a simplicidade de fenômenos e relações tratados, maior possibilidade
de generalização. Quanto mais profunda a análise efetuada, maior conhecimento
da singularidade local. Esta era a proposta de Hartwhorne, que foi amplamente
discutida, pois abria novas perspectivas para o estudo geográfico. A Geografia
Nomotética possibilitou análises tópicas, isto é, centradas em um conjunto articulado
de temas. A Geografia Nomotética possibilitou a agilização do estudo regional, que
ia ao encontro dos interesses do planejamento, pois abriu a perspectiva de trabalhar
com um número bastante elevado de elementos, relacionando-os de acordo com os
interesses do plano. Esta segunda perspectiva instrumentalizou os “diagnósticos”,
e deu possibilidade para o uso da quantificação e da computação em Geografia.
Observe-se a operacionalidade que a introdução do computador propicia, na ótica
das inter-relações e integrações. Porém, tais desdobramentos já se inserem no
movimento de renovação da Geografia, que terá na proposta de Hartshorne uma
das vias de sua objetivação (MORAES, 1994).

Essas propostas, encerram as derradeiras tentativas da Geografia


Tradicional. Finalizou um ciclo, que teve sua unidade dada pela aceitação de
certas máximas tidas como verdadeiras, a saber: a ideia de ciência de síntese, de
ciência empírica e de ciência de contato. Hartshorne, o que mais se afastou destas
colocações, sem romper com o pensamento tradicional, já representava um papel
de transição (MORAES, 1994).

A Geografia Tradicional deixou uma Ciência elaborada, um corpo de


conhecimentos sistematizados, com relativa unidade interna e indiscutível
continuidade nas discussões. Nos escritos de Moraes (1994), Hartshorne deixou
fundamentos, que mesmo criticáveis, delimitaram um campo geral de investigações,
articulando uma disciplina autônoma. Nesse processo, elaborou um temário
válido, independente das teorias que desenvolveu; esse temário restou como a

113
UNIDADE 2 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO

grande herança do pensamento geográfico tradicional. Assim, seu grande feito


foi a identificação de problemas, o levantamento de questões válidas, às quais
deu respostas insatisfatórias ou equivocadas. Mesmo que por vias metodológicas
também criticáveis, o valor das informações acumuladas não pode ser minimizado.
Constituem um substantivo material para pesquisas posteriores, pois apresentam
dados minuciosos sobre situações singulares. Neste sentido, a tônica descritiva foi
benéfica, pois forneceu informações fidedignas. O próprio desenvolvimento das
técnicas de descrição e representação foi também um saldo favorável da Geografia
Tradicional. E, finalmente, o pensamento tradicional da Geografia elaborou alguns
conceitos (como território, ambiente, região, habitat, área etc.) que merecem ser
rediscutidos. Sua crítica permitirá um avanço no trato das questões a que se referem.
Em termos sucintos, este é o quadro do que foi a Geografia (MORAES, 1994).

3 A GEOGRAFIA EM CARL SAUER


Carl Sauer (Carl Ortwin Sauer, 1889-1975) foi um geógrafo estadunidense,
nascido no estado de Missouri, filho de pais de origem alemã, sendo um dos
precursores da chamada Geografia Cultural e um dos principais nomes da “Escola
de Berkeley”. Na Universidade de Chicago aprende os métodos que estão em
moda na Geografia as Ciências Naturais, a Ecologia em particular. Trabalhou na
Universidade de Michigan e, depois, em 1922, foi professor titular na Universidade
da Califórnia (Berkeley). Se aposentou em 1957 e morreu em 1975.

FIGURA 8 – CARL ORTWIN SAUER (1889-1975)

FONTE: <http://storage.lib.uchicago.edu/ucpa/series7/derivatives_series7/apf7-01181r.jpg>.
Acesso em: 26 set. 2018.

114
TÓPICO 2 | GEOGRAFIA – INÍCIO DO SÉCULO XX

A primeira obra importante de Sauer, segundo Holzer (2000), foi The


Morfology of Landscape, publicada em 1925. Revitaliza a Corologia como área de
estudo importante da Ciência Geográfica. Os enunciados contidos neste artigo
fundamentaram a Geografia Cultural norte-americana, entre eles: a valorização
da relação do homem com a paisagem (ambiente), que por ele é formatada e
transformada em habitat; a análise desta relação sempre feita a partir da comparação
com outras paisagens, formatadas de forma orgânica gerando uma visão integral da
paisagem que individualiza a Geografia enquanto disciplina. Por um longo período,
principalmente nos Estados Unidos, valorizou-se muito apenas um determinado
aspecto de seu trabalho: o de atribuir à Geografia o estudo da diferenciação de
áreas. No entanto, a unidade espacial escolhida por Sauer para essa finalidade era a
paisagem cultural, que dependia da atuação humana para ser caracterizada.

Em Berkeley, liga-se a um colega, que influencia sua maneira de conceituar


a cultura. De acordo com Claval (2007), o antropólogo Alfred L. Kroeber faz
descobrir e fascinar-se pelo passado pré-colombiano. Traz a cultura como um
fenômeno que se compreende à luz do tempo histórico, mas que é traçado a partir
do espaço. Foi, portanto, a partir daí que se difundiram as concepções sobre a
influência do espaço sobre as atividades humanas e a ideia de  espacialidade.
O principal mérito dos trabalhos de Carl Sauer é trazer novas premissas para
a Geografia Cultural que, sob a filiação da escola alemã e de pensadores como
Richard Hartshorne, concebia a ideia de diferenciação das paisagens. Sauer,
por outro lado, valorizava as relações entre o homem e o ambiente, concebendo
a paisagem como um habitat e rompendo com as premissas que traziam esse
conceito em uma perspectiva formal, funcional e genética (CLAVAL, 2007).

De acordo com Holzer (2000), Sauer valoriza, entre outros temas, o


vocabulário geográfico local como substrato do aprendizado que ainda espera
ser explorado a partir das visões culturais comparativas. Esta valorização do
mundo vivido pode ser atribuída à importância dada por Sauer, explicitamente
à visão fenomenológica da Ciência. Destaca-se também a afirmação do caráter
não positivista da Geografia enquanto Ciência, a partir da qual Sauer enunciou
o sentido que a Geografia teria enquanto disciplina: a de fornecer-nos uma visão
integral (ao mesmo tempo individual e genérica, física e humana) que nos obriga
sempre a inter-relacionar os fatos, os “fatos do lugar”, que, associados, originam
o conceito de paisagem. Estes temas iriam se desdobrando, abrindo diversas
áreas de pesquisa para a Geografia Cultural (HOLZER, 2000).

Sauer se aproximou muito da Antropologia norte-americana. Nas palavras


de Claval (2007), mostra-se crítico às civilizações modernas, que considera
dessecantes sobre o plano humano e indiferentes à natureza. A Geografia limita-
se, entretanto, para ele, aquilo que é legível na superfície da Terra. Como os
geógrafos alemães, ignora as dimensões sociais e psicológicas da cultura.

115
UNIDADE 2 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO

A primeira visão de cultura de Sauer é superada de um conjunto de


instrumentos e de artefatos que permite ao ser humano agir sobre o mundo exterior.
Ele vai mais longe, segundo Claval (2007), é composta de associações de plantas e de
animais que as sociedades aprenderam a utilizar para modificar o ambiente natural
e torná-lo mais produtivo. A aptidão para gerenciar com sabedoria o ambiente é
um dos traços maiores, segundo os quais as culturas devem ser julgadas.

Conforme Holzer (2000), as principais contribuições trazidas por


Sauer à Geografia para as futuras gerações de geógrafos foram: manter vivos
o Culturalismo e o Antropocentrismo em meio a um cenário fortemente
quantitativo, o que certamente permitiu a reação e ruptura na década de 1970;
respeitar a diversidade de temas e de interesses como “modus vivendi”, o que
a manteve aberta para temas novos como o da percepção ambiental; enfatizar
a interdisciplinaridade, permitindo aos geógrafos amplas incursões em outros
campos do conhecimento sem o dilema de perder o domínio de seu objeto
de estudo; valorizar o trabalho de campo e a recusa dos “a priori”; e, devido
diretamente a Sauer, reafirmar a crença de que a Geografia estava além da ciência
e de que os males atuais seriam sanados pelas próximas gerações, bastando para
isso que fosse mantida a liberdade acadêmica (HOLZER, 2000).

4 A GEOGRAFIA CULTURAL
De acordo com Corrêa (2007), desde o fim do século XIX, a Geografia se
configura pela abordagem humanista com vigor e vislumbra não apenas o espaço
de ação do ser humano, mas também os produtos dessa ação no espaço e no tempo
(produtos culturais). Nessa produção de produto e humanidade são construídos
os territórios que configuram identidades e pertencimentos sociais. Os grupos,
portanto, necessitam do espaço para se reordenar, se reconhecer e exercer sua
cultura (antropologia). Desta forma, a Geografia Cultural nasceu no fim do século
XIX, no mesmo momento em que a Geografia Humana. Para alguns geógrafos,
ela aparecia como outra formulação da Geografia Humana. Para outros, ela se
interessava pela cultura material dos grupos humanos: as suas ferramentas, as
suas casas, a sua maneira de cultivar os campos ou de criar animais.

Nos escritos de Corrêa (2007), encontramos que a dimensão cultural da


sociedade estava presente na Geografia europeia do final do século XIX e nas
duas primeiras décadas do século XX, contudo, foi nos estados Unidos que a
Geografia Cultural ganhou plena identidade graças à obra de Carl Sauer, que
propôs o estudo das “paisagens culturais”, isto é, a análise das formas que a
cultura de um povo cria, na organização de seu meio.

A Geografia de Sauer e de seus seguidores esteve fundamentada no


historicismo. De acordo com Claval (2007), havia uma ênfase na diversidade cultural,
valorizava-se o passado em detrimento do presente, assim como a contingência e a
compreensão. Os estudos focalizavam as sociedades tradicionais, pouco reportando-
se às sociedades modernas/industriais (influência da antropologia cultural).

116
TÓPICO 2 | GEOGRAFIA – INÍCIO DO SÉCULO XX

A Escola de Berkeley, segundo Corrêa (2007), investigou/focou em cinco


temas principais: cultura; paisagem cultural; áreas culturais; história da cultura
e ecologia cultural. Nesses temas surgem outros subtemas ou estudos sobre
limites, contatos e mudanças culturais; difusão espacial; migrações; língua, entre
outros assuntos. Nas palavras de Claval (2007), os trabalhos dessa escola tratam,
sobretudo, das sociedades de etnólogos, do mundo americano ou das grandes
civilizações tradicionais (Ameríndios e América Latina, Extremo Oriente e Europa
Mediterrânea). A marca que os grupos humanos imprimem às paisagens dura
frequentemente muito tempo além de seu desaparecimento ou da modificação
total de seus métodos de criação de valor.

As críticas à escola de Berkeley foram inúmeras. Segundo Corrêa (2007), tanto


provenientes de geógrafos vinculados a outras correntes, como geógrafos sauerianos.
O pouco interesse em uma visão pragmática e a ênfase nos estudos tradicionais foram
as críticas provenientes dos geógrafos vinculados às teorias quantitativas. A ausência
de uma sensibilidade social crítica veio dos materialistas históricos dialéticos.

As críticas internas vieram, sobretudo, do conceito de cultura adotado por


Sauer; admitia-se a cultura como uma entidade supraorgânica. De acordo com
Duncan (2002, p. 23), “com leis próprias, acima dos indivíduos, considerados como
mensageiros de cultura, sem autonomia, a cultura era exterior aos indivíduos de
um grupo social, sua internalização se fazia por mecanismos de condicionamento,
gerador de hábitos, entendidos como cultura”.

A despeito das inúmeras críticas, a Geografia Cultural saueriana teve


importante papel na história do pensamento geográfico, deixando um rico legado
de estudos, pesquisas, conceitos, e se faz sentir na Geografia Cultural renovada.
Por exemplo, a inquietação ecológica já muito moderna era sensível em Sauer e
seus seguidores. O desenvolvimento da Geografia Cultural foi lento até os anos
1970, após este período ela se apresenta com uma nova roupagem.

DICAS

COMO TRABALHAR CULTURA E DIVERSIDADE EM SALA DE AULA

Donizetti Damião Alves dos Santos

Plano de Aula: Cultura e Diversidade – Geografia.

JUSTIFICATIVA:
Quando observamos novas tendências de atitudes nos perguntamos onde surgiu,
seus conceitos e significados e conclui-se que parte de desigualdades sociais:
pensamentos que influi modos de agir, sentir e reagir na esfera cultural e diversa. 

117
UNIDADE 2 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO

Temos então que reaprender certas definições de cultura e diversidade para perceber suas
implicações e aplicações: visão ética, meio ambiente, pluralidade e saúde. Muitos ainda
respeitam tabus da ignorância, do desconhecido, do preconceito e do diferente (desigual). 

Então há necessidade de se expressar por meio de agressões verbais ou físicas que machucam
ou humilham seus semelhantes. É por isso que as instituições éticas devem mostrar a tolerância
e a compreensão da cultura da diversidade. Desenvolve-se um resgate ético de como agir
perante tais situações e inspirar valores de igualdade e equilíbrio social. O canal da disseminação
de tais atitudes são os meios de comunicação, principalmente estendida pela INTERNET. 

Marcam-se encontros, reuniões, formam gangues e grupos de intolerância para


desencadear um atropelo de violência e truculências. Está se espalhando de tal maneira
que chega a ser assustador: bailes, restaurantes, clubes e principalmente nas escolas.
Então está na hora da Escola e outras instituições darem uma resposta rapidamente: criar
uma autonomia moral sem se deixar influenciar pelas atitudes bizarras e tresloucadas. 

O projeto escolar deve-se manter na transmissão do respeito mútuo, justiça, solidariedade


e principalmente diálogo. Esses valores têm que ser desenvolvidos em todas as esferas de
relacionamento social que tange ao princípio da dignidade humana. O grande desafio da escola
é investir contra a discriminação para interagir o aspecto humano com o aspecto moral: a escola se
torna local de diálogo, de aprender a conviver, vivenciando a própria cultura e suas diversidades. 

OBJETIVOS: 
Desenvolver nos alunos os valores morais resgatando sua história e ambiente cultural
para proporcionar uma visão crítica social e repensar as atitudes sociais. Assim se tornarão
participantes de solidariedade e justiça na própria comunidade. Conhecer os fatos e
compreender as diversidades e culturas do seu país, região ou município. Os alunos se
sentirão responsáveis como agentes transformadores do seu ambiente e de sua história. 

METODOLOGIA: 
Os alunos serão convidados a participar em grupos para compreender que cada
individualidade é enriquecida pelas opiniões e diálogos. Entender também que os
meios de comunicação trabalhados serão suportes para estabelecer comparações e
conclusões das observações dos fatos comunicados. A velocidade de informações
é muito rápida e, às vezes, não menos importante, pois sugere uma ampla
discussão e debate. A orientação dada será perceber que o tema em questão traz
muita reflexão e fundamentos de mudanças no relacionamento social escolar. 

ESTRATÉGIAS:
Desenvolver frases com os alunos para servir como protesto ou alerta sobre a discriminação
ou desigualdade social. Realizar manifestações na escola com as frases e explicar o porquê
da importância das normas e regras em outras classes. Pesquisar sobre personalidades que
respeitaram o próximo, seu ambiente e seu povo. Perceber que nos textos de pesquisa
notarão que a discriminação nunca envelhece. Fazer seminários e apresentações de
pesquisas utilizando os parâmetros jornalísticos. Realizar entrevistas e reportagens com
a comunidade escolar sobre as mudanças no bairro, na cidade ou região. Registrar os
episódios de convivência social e elaborar gráficos que determine as situações ou fatos.

FONTE: <https://www.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/idiomas/como-trabalhar-
cultura-e-diversidade-em-sala-de-aula/10387>. Acesso em: 26 set. 2018.

118
TÓPICO 2 | GEOGRAFIA – INÍCIO DO SÉCULO XX

LEITURA COMPLEMENTAR

RICHARD HARTSHORNE: ENTRE O CLÁSSICO E O


MODERNO NA GEOGRAFIA

Wesley de Souza Arcassa

[...]
3. A Escola Norte-Americana de Geografia

Antes de iniciar a explanação acerca do processo de implantação da


Escola Norte-Americana de Geografia, propriamente dito, cabe tecer algumas
reflexões em torno da concepção das “escolas de geografia” no transcorrer da
evolução dessa ciência. Isso porque, a partir do momento em que a Geografia
se institucionaliza, é frequente recorrer à ideia de escola para pensar o seu
desenvolvimento: no início, existe uma impulsão dada pelo gênio fundador; o
movimento toma em seguida uma forma linear e contínua.

De acordo com Claval (2013, p. 8), este modelo é, sobretudo, utilizado


para o fim do século XIX e início do XX, um momento onde a Geografia torna-se
uma disciplina acadêmica em um mundo universitário que é então fortemente
hierarquizado; ele apresenta menos interesse para o período contemporâneo.
Porém, o “modelo de escola” não é desinteressante. Fala-se, na primeira metade
do século XX da escola francesa, escola alemã e de duas escolas americanas, uma
do Meio-Oeste e outra de Berkeley.

Ainda, conforme as noções expressas por Claval (2013, p. 8), a ideia de uma
única coerência ligada à autoridade de um mestre ou à importância das instituições
nacionais não é convincente. As escolas não nascem, portanto, automaticamente
da autoridade intelectual e institucional de um mestre. Que elas sejam dominadas
por uma personalidade forte, isso é certo, mas não é sempre o caso. Se a escola de
Berkeley se estrutura ao redor de Carl Sauer, a escola do Meio-Oeste não se constrói
ao redor de um nome, isso será analisado ao longo dessa seção.

Com relação ao cenário instalado nos Estados Unidos, cabe destacar que
os geógrafos do Meio-Oeste tentam tirar a Geografia desse impasse reforçando
seu rigor metodológico, isso fica nítido em toda a produção acadêmica de
Richard Hartshorne. Carl Sauer é próximo dos alemães pela ênfase que confere
à paisagem, mas ele a interpreta de maneira original, uma vez que, para ele,
o ambiente vegetal e animal das sociedades humanas é uma criação em parte
voluntária do homem e em parte involuntária.

Nesse sentido, pode-se dizer, segundo Claval (2013), que houve uma época
das Escolas de Geografia: é essa que surge com o nascimento da Geografia Humana
(final do século XIX) até o aprofundamento da reflexão sobre seus fundamentos,
depois da Segunda Guerra; a partir de então, evidencia-se o momento em que
a Geografia Humana mostra-se incapaz de propor uma interpretação geral e
coerente da realidade que ela analisa.
119
UNIDADE 2 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO

Conforme as ideias tecidas por Unwin (1995, p. 126), a criação de sociedades


geográficas nas principais cidades do mundo chamou a atenção dos comerciantes,
editores e filantropos nova-iorquinos que, em 1851, fundaram a Sociedade
Americana de Geografia e Estatística de Nova Iorque. Em seus primeiros anos, a
sociedade centrou-se principalmente na exploração e integração econômica dos
Estados Unidos. Os quatro focos de interesse da sociedade resumiam-se na abertura
dos Estados ocidentais, a exploração e desenvolvimento dos laços econômicos com
a América do Sul, a exploração da África inspirada em grande medida nos informes
das atividades missionárias de Livingstone, e a exploração do Ártico. Em 1859, ano
do falecimento de Humboldt e Ritter, e da primeira publicação da obra A Origem
das Espécies de Darwin, publicou-se o primeiro número do “Jornal” da sociedade.

Uma característica particularmente interessante desta sociedade nessa


época era o interesse por compilar e publicar estatísticas das temáticas mais
diferentes, desde as características do solo e da agricultura até os serviços postais.
Outros aspectos de destaque da sociedade eram sua preocupação pela pertinência
prática e a influência da Geografia acadêmica alemã.

Já a Escola Geográfica Norte-Americana — aquela constituída no âmbito


da academia — desenvolveu-se a partir da segunda metade do século XIX, tem
sido muito estimulada pela migração de geógrafos oriundos de nações europeias.

A Geografia universitária americana deve muito à ação de duas figuras:


Louis Agassiz (1807-1873) e Arnold Guyot (1807-1884), geógrafos suíços que
migraram para os Estados Unidos, passando a executar estudos de Geografia
Regional e Geomorfologia, tendo como base os modelos alemães. De acordo com
Andrade (1987, p. 77), em consequência do aporte desses dois mestres, teve a
Geografia Americana maior desenvolvimento em seus aspectos físicos, destacando-
se John Wesley Powell (1834-1902), na Geomorfologia, estudando o Oeste, e William
Morris Davis (1850-1934), considerado o grande teorizador da Geomorfologia em
seu tempo. Davis foi o autor da Teoria do Ciclo Geográfico de Erosão, baseada em
observações feitas nos Estados Unidos, em áreas de clima temperado úmido. Suas
análises tiveram grande aceitação tanto nos Estados Unidos quanto na Europa.

Quanto à Geografia Humana, os historiados da ciência geográfica admitem


a existência de duas escolas nos Estados Unidos: a de Chicago (Meio-Oeste) e
Berkerley (Califórnia). Na primeira, conforme as explanações de Andrade (1987,
p. 78), dominaram geógrafos inspirados em Ratzel, como Ellen Churchill Semple
(1863-1923) e Ellsworth Huntington (1876-1947). Esta escola levou ao extremo as
teorias deterministas, o que serviu para legitimar a expansão americana para o
Oeste, que resultou na dizimação de tribos indígenas, e para o Sul conquistando
mais da metade do território mexicano.

A Escola de Berkeley teve a sua figura principal em Carl Sauer (1889-1975),


que também se deixou influenciar profundamente por geógrafos alemães, como
Hettner (1859- 1941), e pela chamada escola histórico-cultural. Segundo Andrade
(1987, p. 78), trabalhando no Oeste, em clima seco, desértico, Sauer observou e
analisou as civilizações indígenas, admitindo um condicionamento da atividade
humana pelo meio físico, com a adaptação das civilizações ao meio natural. Dando
grande importância às culturas, ele aproximou a Geografia da Antropologia, como
acontecera na França com os discípulos de Jean Brunhes.
120
TÓPICO 2 | GEOGRAFIA – INÍCIO DO SÉCULO XX

Entretanto, a figura mais célebre, que encontrou maior repercussão de


sua produção, foi sem dúvida Hartshorne, considerado como o teorizador da
Geografia Clássica norte-americana. Nitidamente influenciado pela obra de
Kant e Hettner, o autor procurou desenvolver reflexões sobre a epistemologia,
natureza e aspectos metodológicos da Geografia. Para Andrade (1987, p. 79),
em dois livros, A Natureza da Geografia, publicado em 1939, e Propósitos e
Natureza da Geografia, publicado em 1959, Hartshorne desenvolve as teses do
mestre alemão (Hettner) a quem seguia e especula sobre a análise das inter-
relações entre os fenômenos, admitindo duas formas de estudá-los: ou partir do
particular, da região, quando se fazia a Geografia a que chamou de Idiográfica,
ou de forma generalizadora, aquilo que se considera como Geografia Geral, ao se
fazer o que denominava Geografia Nomotética. Assim, Hartshorne sem romper
com o pensamento mais ligado à Geografia Clássica, já representa um papel de
transição no “horizonte geográfico”.
[...]

FONTE: <https://www.15snhct.sbhc.org.br/resources/anais/12/1473518323_ARQUIVO_
TrabalhoCompleto-RichardHartshorne(WesleyS.Arcassa).pdf>. Acesso em: 26 set. 2018.

121
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• Richard Hartshorne (1899-1992) foi um geógrafo estadunidense muito conhecido


pela ampla difusão de suas principais obras. Articulou a Geografia Geral e a
Regional, diferenciando-as pelo nível de profundidade de suas colocações. Quanto
maior a simplicidade de fenômenos e relações tratados, maior possibilidade de
generalização. Quanto mais profunda a análise efetuada, maior conhecimento
da singularidade local. Esta era a proposta de Hartwhorne, que foi amplamente
discutida, pois abria novas perspectivas para o estudo geográfico.

• Carl Sauer (Carl Ortwin Sauer, 1889-1975) foi um geógrafo estadunidense,


nascido no estado de Missouri, com pais de origem alemã. Sendo um dos
precursores da chamada Geografia Cultural e um dos principais nomes da
“Escola de Berkeley”. Em Berkeley, liga-se a um colega, que influencia sua
maneira de conceituar a cultura. O antropólogo Alfred L. Kroeber o faz descobrir
e fascinar-se pelo passado pré-colombiano. Traz a cultura como um fenômeno
que se compreende à luz do tempo histórico, mas que é traçado a partir do
espaço. Foi, portanto, a partir daí que se difundiram as concepções sobre a
influência do espaço sobre as atividades humanas e a ideia de espacialidade.

• A Geografia Cultural nasceu no fim do século XIX, no mesmo momento em


que a Geografia Humana. Para alguns geógrafos, ela aparecia como outra
formulação da Geografia Humana. Para outros, ela se interessava pela cultura
material dos grupos humanos: as suas ferramentas, as suas casas, a sua maneira
de cultivar os campos ou de criar animais.

• A Geografia de Sauer e de seus seguidores esteve fundamentada no


historicismo, havia uma ênfase na diversidade cultural, valorizava-se o passado
em detrimento do presente, assim como a contingência e a compreensão.
Os estudos focalizavam as sociedades tradicionais, pouco se reportando às
sociedades modernas/industriais (influência da Antropologia Cultural).

• A Escola de Berkeley investigou/focou em cinco temas principais: cultura;


paisagem cultural; áreas culturais; história da cultura e ecologia cultural.
Nesses temas surgem outros subtemas ou estudos sobre limites, contatos e
mudanças culturais; difusão espacial; migrações; língua, entre outros assuntos.

122
AUTOATIVIDADE

1 (ENADE, 2011 – Questão 8):

Em reportagem, Owen Jones, autor do livro Chavs: a difamação da classe


trabalhadora, publicado no Reino Unido, comenta as recentes manifestações
de rua em Londres e em outras principais cidades inglesas. Jones prefere
chamar atenção para as camadas sociais mais desfavorecidas do país, que
desde o início dos distúrbios ficaram conhecidas no mundo todo pelo apelido
chavs, usado pelos britânicos para escarnecer dos hábitos de consumo da classe
trabalhadora. Jones denuncia um sistemático abandono governamental dessa
parcela da população: “Os políticos insistem em culpar os indivíduos pela
desigualdade”, diz. (...) “você não vai ver alguém assumir ser um chav, pois
se trata de um insulto criado como forma de generalizar o comportamento das
classes mais baixas. Meu medo não é o preconceito e, sim, a cortina de fumaça
que ele oferece. Os distúrbios estão servindo como o argumento ideal para que
se faça valer a ideologia de que os problemas sociais são resultados de defeitos
individuais, não de falhas maiores. Trata-se de uma filosofia que tomou conta
da sociedade britânica com a chegada de Margaret Thatcher ao poder, em 1979,
e que basicamente funciona assim: você é culpado pela falta de oportunidades.
(...) Os políticos insistem em culpar os indivíduos pela desigualdade”.

Suplemento Prosa & Verso. O Globo, Rio de Janeiro, 20 ago. 2011, p. 6 (adaptado).

Considerando as ideias do texto, avalie as afirmações a seguir.

I- Chavs é um apelido que exalta hábitos de consumo de parcela da população


britânica.
II- Os distúrbios ocorridos na Inglaterra serviram para atribuir deslizes de
comportamento individual como causas de problemas sociais.
III- Indivíduos da classe trabalhadora britânica são responsabilizados pela
falta de oportunidades decorrente da ausência de políticas públicas.
IV- As manifestações de rua na Inglaterra reivindicavam formas de inclusão
nos padrões de consumo vigente.

É correto apenas o que se afirma em:

a) ( ) I e II.
b) ( ) I e IV.
c) ( ) II e III.
d) ( ) I, III e IV.
e) ( ) II, III e IV.

FONTE: ENADE/2011. Disponível em: <https://brainly.com.br/tarefa/1530180>. Acesso em: 26 set. 2018.

123
2 Após a Segunda Guerra Mundial, as monografias descritivas em Geografia
(herdadas do pensamento de La Blache) não eram mais suficientes, surgiu
o Racionalismo, que repudiava todo tipo metafísica, como o subjetivismo, a
vontade e a intuição do espírito, privilegiando mais o raciocínio dedutivo.
Referente à Geografia Racionalista, assinale V quando a afirmativa for
verdadeira e F quando se apresentar falsa:

( ) De acordo com Hettner, a Geografia não deveria ser a Ciência que busca
estudar as relações entre homem e meio.
( ) Hartshorne defendia que a Geografia deveria se preocupar em entender
como os fenômenos se combinam na superfície terrestre, integrando em
um mesmo viés os elementos naturais e humanos.
( ) Hartshorne também teve o mérito de possibilitar, de certa forma, a compreensão
de como se dá a divisão da Geografia Geral e a Geografia Regional.

A sequência correta é:

a) ( ) V, F, V.
b) ( ) F, V, V.
c) ( ) F, V, F.
d) ( ) V, V, F.

3 Carl Sauer é um dos principais nomes do pensamento geográfico, sendo


considerado a principal referência da Geografia Cultural. Foi um geógrafo
estadunidense, nascido no estado de Missouri. Referente ao autor, sua obra
e pensamento é correto afirmar que:

I- O último agente que modifica a superfície da Terra é o homem. Assim, o


ser humano deve ser considerado como um agente geomorfológico.
II- A Geografia Cultural, em sua concepção, deveria interessar-se em
compreender e analisar as obras humanas sobre o espaço e a impressão
destas sobre o meio.
III- O principal mérito dos trabalhos de Carl Sauer é trazer novas premissas
para a Geografia Cultural que, sob a filiação da escola prussiana e de
pensadores como La Blache.

Está(ão) correta(s) apenas a(s):

a) ( ) Afirmativa III.
b) ( ) Afirmativas I e II.
c) ( ) Afirmativas I e III.
d) ( ) Afirmativa II.

4 Foi nos Estados Unidos que a Geografia Cultural ganhou plena identidade.
A denominada Escola de Berkeley desempenhou papel fundamental na
Geografia Cultural. Referente a essa escola, assinale a opção correta:

124
a) ( ) As críticas a essa escola foram inúmeras. A ausência de uma sensibilidade
espiritual nos estudos das sociedades tradicionais foi uma das críticas
proveniente dos geógrafos de abordagem quantitativa.
b) ( ) A Escola de Berkeley privilegiou cinco temas principais de estudo. Um
dos cinco se refere à História da cultura e ecologia cultural.
c) ( ) As críticas a essa escola foram inúmeras. A ausência de uma sensibilidade
religiosa nos estudos das sociedades tradicionais foi uma das críticas
proveniente dos geógrafos de abordagem medieva.
d) ( ) As críticas a essa escola foram inúmeras. A ausência de uma sensibilidade
cultural nos estudos das sociedades tradicionais foi uma das críticas
proveniente dos geógrafos de abordagem pós-moderna.

125
126
UNIDADE 2 TÓPICO 3

CRÍTICAS FRENTE À GEOGRAFIA

1 INTRODUÇÃO
A Geografia Tradicional tinha, como elemento de identidade mais
importante, o objetivo de ser uma ciência de síntese ou de contato entre as
disciplinas da natureza e da sociedade. As fontes científicas e filosóficas que
informaram esse conjunto de propostas eram bastante variadas, pois incluíam,
entre outras, o Positivismo de Augusto Comte, as “filosofias evolucionistas”, o
Romantismo e as escolas neokantianas.

A crise de um paradigma epistemológico não se instala de fato quando os


cientistas manifestam insatisfação com os resultados obtidos em suas pesquisas,
mas quando eles começam a construir um paradigma alternativo que se apresenta
como capaz de superar o anterior.

A primeira ruptura efetiva com os pressupostos da Geografia Tradicional


surgiu com as formulações inaugurais da Geografia Quantitativa, também
chamada Geografia Teorética ou Nova Geografia. A partir deste fenômeno surge
um movimento de renovação considerável, que advém do rompimento de grande
parte dos geógrafos com relação à perspectiva tradicional. Há uma crise de fato da
Geografia Tradicional, e esta enseja a busca de novos caminhos, de nova linguagem,
de novas propostas, enfim, de uma liberdade maior de reflexão e criação.

2 A CRÍTICA DA GEOGRAFIA TRADICIONAL


As certezas ruíram, desgastaram-se. E, novamente, pergunta-se sobre o
objeto, o método e o significado da Geografia. De acordo com Diniz Filho (2012),
a crise da Geografia Tradicional, e o movimento de renovação a ela associado,
começam a se manifestar já em meados da década de 1950 e se desenvolvem
aceleradamente nos anos posteriores. A década de sessenta encontra as incertezas
e os questionamentos difundidos por vários pontos. A partir de 1970, a Geografia
Tradicional está definitivamente enterrada; suas manifestações, dessa data em
diante, vão soar como sobrevivências, resquícios de um passado já superado.
Instala-se, de forma sólida, um tempo de críticas e de propostas no âmbito
dessa disciplina. Os geógrafos vão abrir-se para novas discussões e buscar
caminhos metodológicos até então não trilhados. Isto implica uma dispersão das

127
UNIDADE 2 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO

perspectivas, na perda da unidade contida na Geografia Tradicional. Esta crise é


benéfica, pois introduz um pensamento crítico frente ao passado dessa disciplina
e seus horizontes futuros. Introduz a possibilidade do novo, de uma Geografia
mais generosa (DINIZ FILHO, 2012).

Para uma melhor compreensão do assunto é necessário, antes de mais


nada, tentar explicar as razões da crise. Segundo Moraes (1994), a fundamentação
social se alterou, que configurava os fundamentos e as formulações da Geografia
Tradicional. A realidade havia mudado, deixando produtos defasados, aqueles
que não acompanharam o ritmo da mudança. O desenvolvimento do modo de
produção capitalista havia superado seu estágio concorrencial, entrando na era
monopolista. Vivia-se a época dos grandes trustes, do monopólio e do grande
capital. O liberalismo econômico já estava enterrado; a grande crise de 1929 havia
colocado a necessidade da intervenção estatal na economia. Havia caído por
terra as teses da livre iniciativa, da ordem natural e autorregulada do mercado.
Propunha-se agora a ação do Estado na ordenação e regulação da vida econômica.
O planejamento econômico estava estabelecido como uma arma de intervenção do
Estado e, com ele, o planejamento territorial, com a proposta de ação deliberada
na organização do espaço. A realidade do planejamento colocava uma nova
função para as Ciências Humanas: a necessidade de gerar um instrumental de
intervenção, enfim, uma feição mais tecnológica. A Geografia Tradicional não
apontava nessa direção, daí sua defasagem e sua crise (MORAES, 1994).

O desenvolvimento do capitalismo havia tornado a realidade mais complexa.


Nas palavras de Moraes (1994), a urbanidade e urbanização atingia graus até então
desconhecidos, apresentando fenômenos novos e complexos, como as megalópoles.
O quadro agrário também se modificara com a industrialização e a mecanização da
atividade agrícola em várias partes do mundo. As comunidades locais tendiam a
desaparecer, articulando-se a intrincadas redes de relações, próprias da economia
mundializada da atualidade. O lugar já não se explicava em si mesmo; os centros de
decisão das atividades ali desenvolvidas localizavam-se, muitas vezes, a milhares de
quilômetros. O espaço terrestre se globalizara nos fluxos e nas relações econômicas.
Vivia-se o capitalismo das empresas multinacionais, dos transportes e das
comunicações interoceânicas. O instrumental elaborado para explicar comunidades
locais não conseguia apreender o espaço da economia mundializada. Estabelece-se
uma crise de linguagem, de metodologia de pesquisa. O movimento de renovação
vai buscar novas técnicas para a análise geográfica (MORAES, 1994).

O pensamento geográfico tradicional havia ruído. Segundo Moraes (1994),


a disciplina permanecia como talvez o último baluarte do Positivismo Clássico. Este
havia sofrido críticas internas e renovações, das quais a Geografia passou ao largo. O
desenvolvimento das ciências e do pensamento filosófico ultrapassara em muito os
postulados positivistas, que apareciam agora como por demais simplistas. Assim, mesmo
ao nível desse pensamento, ocorrera uma renovação, à qual a Geografia permanecera
alheia. A própria complexização da realidade e dos instrumentos de pesquisa havia
envelhecido as formulações do Positivismo Clássico. A crise deste foi também uma das
razões da crise da Geografia que nele se fundamentava (MORAES, 1994).

128
TÓPICO 3 | CRÍTICAS FRENTE À GEOGRAFIA

Nas palavras de Diniz Filho (2012), a crise do pensamento geográfico


tradicional também se desenvolveu a partir de problemas internos dessa disciplina.
Havia questões de formulação, lacunas lógicas e dubiedades, que forneceram a
via imediata da crítica. A renovação fez desta o seu patamar, dissimulando muitas
vezes o teor da crise, ao colocá-la apenas como uma discussão interna da Geografia,
puramente técnica, ou como uma forma de gerenciar o nível de crítica, escondendo
as razões anteriores e os compromissos sociais do discurso geográfico.

De acordo com Moraes (1994), entre os pontos mais visados da Geografia


Tradicional existem alguns que foram apontados por todos os envolvidos na
crítica desse conhecimento. A indefinição do objeto de análise seria um desses
primeiros pontos. Esta indefinição, como foi visto, acompanha toda a produção
desta disciplina, abrindo flancos na crítica da autoridade da Geografia, por outros
campos do conhecimento científico. Outro ponto foi a questão da generalização.
Como foi observado, a análise geográfica não conseguiu chegar a explicações
genéricas. As únicas generalizações empreendidas que se fizeram à custa de
simplismo e do mecanicismo determinista, ou com a perda da unidade do estudo
geográfico, como em Hartshorne. De resto, a Geografia unitária, que buscava
apreender um conjunto de fenômenos em síntese, sempre permaneceu nos
estudos de singularidades. A falta de leis, ou de outra forma de generalização,
foi uma das maiores razões da crise da Geografia Tradicional. Estes dois pontos
articularam-se nas dualidades que permearam toda a produção geográfica:
Geografia Física e Geografia Humana, Geografia Geral e Geografia Regional,
Geografia Sintética e Geografia Tópica. Sempre a resolução de um dos problemas
acarretava a não solução do outro dualismo. Todas estas questões forneceram
as razões formais para a crítica do pensamento geográfico tradicional, e, assim,
foram as condutoras do início do movimento de renovação (MORAES, 1994).

3 O MOVIMENTO DE RENOVAÇÃO DA GEOGRAFIA


A insatisfação com as propostas tradicionais é um traço comum entre os
geógrafos, porém, os níveis de questionamento variam bastante. Segundo Diniz
Filho (2012), alguns autores vão ficar nas razões formais; outros avançam, buscando
as razões mais profundas na base social e na função ideológica desse conhecimento.
De acordo com esta variação, houve críticas distintas, que dependiam dos propósitos
e do direcionamento que se imprimia ao movimento de renovação.

O fundamento positivista clássico é negado por todos, porém o que deve


substituí-lo é matéria das mais polêmicas. Para Moraes (1994), o afastamento
da Geografia Tradicional, com relação à Filosofia e às demais ciências, é
unanimemente criticado, porém as teorias científicas e as posturas filosóficas, que
cada um vai buscar para se aproximar da Nova Geografia, serão as mais variadas
e antagônicas. Conforme as propostas e perspectivas que cada autor vislumbra ou
defende, cada um possuirá um nível de questionamento, enfocará sua crítica do
conhecimento tradicional num determinado ângulo, destacando aqueles pontos
que melhor se adéquem a introduzir sua proposta. O movimento de renovação, ao

129
UNIDADE 2 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO

contrário da Geografia Tradicional, não possui uma unidade; representa mesmo


uma dispersão em relação àquela. Tal fato advém da diversidade de métodos
de interpretação e de posicionamentos dos autores que o compõem. A busca do
novo foi empreendida por variados caminhos; isto gerou propostas antagônicas e
perspectivas excludentes (MORAES, 1994).

A escola filosófica que deu esteio a essa renovação da Geografia, chamada


Positivismo Lógico ou Neopositivismo, teve origem muito antes. De acordo com
Diniz Filho (2012), seus antecedentes remontam aos debates intelectuais ocorridos
nas últimas décadas do século XIX. Esse período assistiu ao surgimento de várias
reações ao Positivismo Clássico, e uma delas se manifestou num debate ocorrido
entre intelectuais alemães e austríacos a partir de 1880, conhecido como controvérsia
sobre o método. De um lado estavam os economistas de visão neoclássica,
para quem a economia deve formular leis utilizando métodos dedutivos cujo
pressuposto teórico fundamental é o “homem econômico”, isto é, a ideia de que
os indivíduos atuam motivados pelo interesse de maximizar a satisfação das suas
necessidades minimizando o gasto de dinheiro, tempo e/ou trabalho necessários
para tanto. De outro lado estavam os economistas da chamada nova escola
histórica e alguns filósofos neokantistas. Os primeiros defendiam que a economia
não deve se preocupar com a elaboração de leis gerais do desenvolvimento, mas
realizar estudos históricos e descritivos para demonstrar que o funcionamento dos
mecanismos econômicos é sempre relativo às instituições vigentes em cada país
num momento histórico particular. Trata-se, assim, de um historicismo similar à
concepção dos neokantistas, os quais sustentavam que a ideia de causalidade não
se aplica aos fenômenos sociais e que, por essa razão, a vida social não pode ser de
fato explicada, mas estudada pela via da compreensão de contextos históricos e
culturais singulares (DINIZ FILHO, 2012).

Nas décadas de 1920 e 1930, um grupo de filósofos e matemáticos


conhecidos como Círculo de Viena reafirmou os princípios do Positivismo com
base em reflexões que valorizavam a análise lógica e a linguagem matemática como
ferramentas de conhecimento. De acordo com Diniz Filho (2012), em vez de afirmar
que a elaboração de leis consiste apenas na generalização indutiva de regularidades
observáveis, como fazia Comte, o Positivismo Lógico enfatiza a importância dos
procedimentos dedutivos para a construção de modelos de explicação geral, os
quais são expressos, na maior parte das vezes, por equações matemáticas. Isso em
nada diminui a importância da indução e da observação no trabalho científico,
pois a estatística valida a inferência de relações causais a partir de certo número
de observações, enquanto os dados empíricos são essenciais para testar a eficácia
explicativa dos modelos. Com essas proposições (apresentadas aqui de forma
extremamente simplificada), o Positivismo Lógico sustenta o princípio de que a
observação empírica é a única fonte de conhecimentos científicos, além de renovar
os argumentos em favor do princípio da unidade do método na medida em que as
Ciências Sociais poderiam elaborar teorias objetivas e de validade geral mediante
a formulação de modelos quantitativamente testáveis. Apesar da sofisticação
das reflexões lógicas e filosóficas com as quais os estudiosos do Círculo de Viena
procuraram fundamentar a validade universal do método científico, foi somente

130
TÓPICO 3 | CRÍTICAS FRENTE À GEOGRAFIA

após a Segunda Grande Guerra (1939-1945) que suas propostas alcançaram


uma aceitação ampla nas Ciências Sociais. O mesmo aconteceu com a Geografia
Humana, visto que a assimilação desse paradigma foi bastante favorecida (se não
determinada) pela crescente inadequação das concepções clássicas da Geografia à
dinâmica do capitalismo industrial (DINIZ FILHO, 2012).

Por outro lado, o conceito que valorizava os aspectos históricos e culturais


materializados na paisagem mostrava-se anacrônico diante da velocidade dos
processos de industrialização e urbanização, sobretudo no período do pós-
guerra. Diniz Filho (2012) escreve que o interesse pela explicação científica
da diferenciação de áreas, com base no estudo das interações entre elementos
heterogêneos, declinava diante da importância cada vez maior que os processos
sociais e econômicos passavam a desempenhar como agentes de organização do
espaço, criando e reproduzindo padrões que negavam a ênfase tradicional na
singularidade dos lugares.

Segundo Diniz Filho (2012), a pertinência da epistemologia neopositivista


como via para superar essas dificuldades foi bem demonstrada por Fred Kurt
Schaefer (1904-1953), em um artigo intitulado O excepcionalismo na Geografia,
publicado em 1953. Nesse importante trabalho ele contesta as “reivindicações
exorbitantes” dos autores que atribuem à Geografia a condição de “ciência
integradora única, com uma singular metodologia própria”. Essa crítica atribui
diretamente à influência da proposta kantiana de classificação das ciências,
retomada por Hettner e Hartshorne, a responsabilidade pela visão de que a
Geografia não se distingue por ter um objeto próprio, mas pela particularidade
do seu ponto de vista. Sua proposta é que essa disciplina deveria se dedicar ao
estudo dos padrões de distribuição de elementos físicos e humanos na superfície
terrestre, os quais seriam regidos por uma lógica expressa em regularidades
estatisticamente constatáveis, que são a base para a formulação de leis.

A incorporação do Positivismo Lógico foi o principal caminho seguido


pelos geógrafos dos anos 1950 e 1960 para atualizar sua disciplina em relação
às crescentes exigências de rigor nos meios científicos, como também para
responder à crise da Geografia Tradicional. Nas palavras de Diniz Filho (2012),
a industrialização e a urbanização impuseram a passagem da síntese regional
para a construção de teorias gerais dos padrões de distribuição e das relações
espaciais. Tanto que até mesmo alguns herdeiros de La Blache decidiram buscar
na Ciência Regional os instrumentos para lidar com essas novas questões, mesmo
sem abandonar os pressupostos clássicos.

O mosaico da Geografia Renovada é bastante diversificado. Para Moraes


(1994), abrange um leque muito amplo de concepções, entretanto é possível
agrupá-las, em função de seus propósitos e de seus posicionamentos políticos, em
dois grandes conjuntos: um pode ser denominado Geografia Pragmática, outro,
Geografia Crítica. A divisão do movimento de renovação da Geografia em duas
vertentes, a Crítica e a Pragmática, está assentada na polaridade ideológica das
propostas efetuadas. O critério adotado é o da concepção de mundo dos autores,

131
UNIDADE 2 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO

vista como decorrente de posicionamentos sociais e/ou engajamentos políticos.


Assim, é pelo compromisso social, contido nas variadas perspectivas de análise
renovadas que se torna possível agrupá-las; noutras palavras, pelo projeto histórico
que veiculam, pela perspectiva de classe que professam, enfim, pela ideologia que
alimentam e pelos interesses concretos a que servem. Dentro desse fundamento
ético, comum a cada uma, encontram-se propostas singulares de feições e
procedimentos ímpares. Nas duas vertentes, aparecem posturas filosóficas, logo,
fundamentos metodológicos diversificados. A unidade ético-política não implica
diretamente perspectivas unitárias, com respeito a métodos. Entretanto, isto não
esvaece a característica comum de cada conjunto, que transparece, por exemplo,
nos horizontes de crítica à Geografia Tradicional (MORAES, 1994).

4 A NOVA GEOGRAFIA
Na metade do século XX, alguns geógrafos começaram a questionar a função
da Geografia, constatando que esta área do conhecimento precisava ser renovada
para que pudesse ter uma utilidade prática na sociedade. Estes geógrafos começaram
a apontar a falência da Geografia Clássica. Em função da renovação metodológica
que sofreu, surgiu a chamada Nova Geografia, também denominada por alguns de
Geografia Pragmática. A Nova Geografia acabou desenvolvendo algumas tendências
diferenciadas. Assim, no seu âmbito, é possível perceber três correntes: Geografia
Quantitativa; Geografia Sistêmica ou Modelística; Geografia da Percepção ou
Comportamental. A Nova Geografia surge através da quantificação e da abordagem
sistêmica. De acordo com Santos (1994), a quantificação ocorreu em razão da procura
de uma linguagem matemática para dar cientificidade à Geografia. A Geografia
Quantitativa se caracterizou pelo maior rigor na aplicação metodológica, embasado
no Positivismo Lógico e Neopositivista com suas técnicas estatísticas e matemáticas,
na abordagem sistêmica e no uso de modelos. As mudanças epistemológicas mais
radicais introduzidas pela Geografia Quantitativa foram três: a substituição do espaço
concreto pelo espaço abstrato dos modelos; o deslocamento da abordagem histórica
do centro da pesquisa geográfica para uma posição auxiliar e, por fim, a introdução
do estudo de certos aspectos do comportamento humano na Geografia, por ser essa
uma condição necessária para a formulação de teorias sobre a organização espacial.

A Nova Geografia critica o caráter não prático da Geografia Tradicional.


De acordo com Moraes (1994), faz uma crítica apenas à insuficiência da análise
tradicional, não vai aos seus fundamentos e a sua base social é um questionamento
da superfície da crise, não de seus fundamentos. É uma crítica “acadêmica”, que
não toca nos compromissos sociais do pensamento tradicional. Nem poderia ser
de outra forma, na medida em que estes compromissos são mantidos.

O planejamento é uma nova função, posta para as Ciências Humanas pelas


classes dominantes; é um instrumento de dominação, a serviço do Estado Burguês. É
uma tentativa de contemporaneizar, em vista dessa nova função, este campo específico
do conhecimento, sem romper seu conteúdo de classe. Suas propostas visam apenas
a uma redefinição das formas de veicular os interesses do capital, daí sua crítica

132
TÓPICO 3 | CRÍTICAS FRENTE À GEOGRAFIA

superficial à Geografia Tradicional. A partir daí passa-se de um conhecimento que


levanta informações e legitima a expansão das relações capitalistas, para um saber
que orienta esta expansão, fornecendo-lhe opções e orientando as estratégias de
alocação do capital no espaço terrestre (MORAES, 1994).

Seus defensores alegavam que a Geografia Tradicional voltava-se


somente ao passado: não informava a ação e não previa. De acordo com Moraes
(1994), os autores pragmáticos vão propor um conhecimento voltado para o
futuro, que instrumentalize uma Geografia aplicada. A Geografia Pragmática
vai se substantivar por algumas propostas diferenciadas. Uma primeira via de
sua objetivação é a Geografia Quantitativa, o temário geográfico poderia ser
explicado, totalmente com o uso de métodos matemáticos. Todas as questões aí
tratadas – as relações e inter-relações de fenômenos de elementos, as variações
locais da paisagem, a ação da natureza sobre os homens etc. seriam passíveis
de ser expressas em termos numéricos (pela medição de suas manifestações) e
compreendidas na forma de cálculos. Os avanços da estatística e da computação
propiciam uma explicação geográfica (MORAES, 1994).

As características desta teoria deveriam ter: clareza, simplicidade,


generalidade e exatidão. De acordo com Heinsfeld (2012), o que se conseguiria,
fundamentalmente, com a utilização de princípios matemáticos. A Geografia
Quantitativa surge no contexto da Guerra Fria e como decorrência disso terá
uma grande aceitação nos EUA, conhecida como New Geography. O surgimento
de novas perspectivas de abordagem geográficas está ligado às transformações
profundas provocadas pela Segunda Guerra Mundial nos setores científico,
tecnológico, social e econômico (HEINSFELD, 2012).

Segundo Heinsfeld (2012), a transformação, abrangendo o aspecto


filosófico, metodológico e técnico foi denominada de “Revolução Quantitativa e
Teorética da Geografia” pelo canadense Ian Burton, o qual evidenciava que uma
verdadeira revolução no modo de pensar estava acontecendo no seio da Geografia;
essas transformações eram profundas e implicavam numa matematização
da Ciência. Surgia, assim, a Geografia Quantitativa ou Teorética. Em relação
à Geografia Humana, o emprego dos métodos quantitativos gerou problemas
de ordem epistemológica. Muitos geógrafos levantaram questões apontando
dificuldades para se quantificar fenômenos humanos. Milton Santos foi um dos
grandes críticos da Nova Geografia, principalmente em seu aspecto quantitativo.

Outra via de objetivação da Geografia Pragmática, segundo Heinsfeld (2012),


vem da teoria dos sistemas; daí ser chamada Geografia Sistêmica ou Modelística,
o que se expressa, por exemplo, nas colocações de Brian Berri, que propõe o
uso de modelos de representação e explicação no trato dos temas geográficos e
articula-se com a proposta anterior, mas ultrapassa-a ao conceber um nível mais
genérico de análise. Estes modelos atuam na pesquisa como hipóteses lógicas
dadas aprioristicamente, sendo constituídos de dados constantes, ou “fatores”, e de
elementos agregados, ou “variáveis”. Na pesquisa, o investigador deve preencher
os itens do modelo assumido com os dados da realidade enfocada, assim como

133
UNIDADE 2 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO

introduzir variáveis próprias do lugar estudado. A articulação entre estes dados


constantes e variáveis fornecerá, por uma elaboração no computador, os resultados
em termos de padrões e tendências. Os modelos originaram-se basicamente na
Economia, aparecendo, por exemplo, na explicação da organização da agricultura,
da formação das redes de cidades, ou da localização industrial. O modelo tentaria
expressar a estrutura do sistema, em Geografia o “geossistema”, ou o “ecossistema”,
os “sistemas de cidades”, ou a organização regional como “subsistema do sistema
nacional”. Assim, os modelos seriam tantos quantos os sistemas existentes no real,
passíveis de uma análise geográfica. A análise Modelística permite selecionar os
elementos do estudo, relacioná-los de acordo com os interesses do pesquisador, e
aprofundar a pesquisa, com a inclusão de novas variáveis, tornando o sistema mais
complexo (HEINSFELD, 2012).

Para Moraes (1994), cabe destacar e mencionar, dentro da exposição das


vias de objetivação da Geografia Pragmática, aquela que se aproxima da Psicologia,
formulando o que se denomina Geografia da Percepção ou Comportamental. Para
o autor, busca entender como os homens percebem o espaço por eles vivenciado,
como se dá sua consciência em relação ao meio que os encerra, como percebem e
como reagem frente às condições e aos elementos da natureza ambiente, e como
este processo se reflete na ação sobre o espaço. Os seguidores desta corrente tentam
explicar a valorização subjetiva do território, a consciência do espaço vivenciado,
o comportamento em relação ao meio. Utilizando instrumentos e conceitos
apropriados da Psicologia, em particular as teorias behavioristas, nas palavras
de Heinsfeld (2012), os geógrafos vão desenvolver estudos sobre temas como os
seguintes: o comportamento do homem urbano, em relação aos espaços de lazer;
a influência das formas, na produtividade do trabalho; a relação das sociedades
com a natureza, expressas na organização dos parques; a atitude frente a novas
técnicas de plantio, numa determinada comunidade rural; a concepção e as formas
de representação do espaço, numa sociedade indígena africana, entre outros.

A crítica da Geografia Pragmática, segundo Heinsfeld (2012), alimenta


o embate ideológico da sociedade atual, ao nível dessa disciplina. Esta é
empreendida por aquela vertente do movimento de renovação, que se denomina
Geografia Crítica. A polêmica, entre as duas vertentes, reflete o antagonismo
político existente na sociedade capitalista; manifesta a contradição de classe na
discussão de um campo específico do conhecimento. É assim um debate político,
ao nível da Ciência; uma luta ideológica, expressão da luta de classe no plano do
pensamento. Cabe analisar o teor das críticas levantadas à perspectiva pragmática
por parte da Geografia Crítica na próxima unidade de estudo.

134
TÓPICO 3 | CRÍTICAS FRENTE À GEOGRAFIA

E
IMPORTANT

Um questionamento levantado ao conjunto de propostas, que constituem a


Geografia Pragmática, incide no empobrecimento que ela introduz na reflexão geográfica.
A Geografia Tradicional, em função da prática da observação direta (da pesquisa de campo),
concebia o espaço em sua riqueza (em sua complexidade). A Geografia Pragmática, ao romper
com estes procedimentos, simplifica arbitrariamente o universo da análise geográfica, torna-o
mais abstrato, mais distante do realmente existente. Seus autores empobrecem a Geografia, ao
conceber as múltiplas relações entre os elementos da paisagem, com relações matemáticas,
meramente quantitativas. Empobrecem a Geografia, ao conceber a superfície da Terra como
um espaço abstrato de fluxos, ou uma superfície isotrópica, sob a qual se inclina o planejador,
e assim a desistoricizam e a desumanizam. Empobrecem a Geografia ao conceber a região
como a região-plano, a área de intervenção, cuja dinâmica é dada pela ação do planejador.
Há, assim, um empobrecimento, advindo de um anti-historicismo (DINIZ FILHO, 2012).

DICAS

SUGESTÃO DE AULA PARA ANÁLISE DE GRÁFICOS E TABELAS

Luiz Paulo Moreira

Para a atividade serão necessárias de duas a três aulas de aproximadamente 50 minutos, que
terão seu tempo dividido da seguinte maneira:

Primeiro momento

Esse primeiro momento deverá ser feito como atividade para casa. Apenas a orientação a
respeito das coletas de dados deve ser dada e isso pode ser feito em poucos minutos ao
final da aula. Divida seus alunos em grupos com 4 ou 5 pessoas e, para cada grupo, dê temas
parecidos com os seguintes:

1 – Cesta básica em cinco supermercados diferentes.


2 – Combustíveis em dez postos diferentes.
3 – Idade, altura e peso de 10 familiares diferentes.

Os temas não precisam ser exatamente esses, mas devem ser temas que possam
ser pesquisados facilmente para que os alunos não tenham dificuldades que não os problemas
matemáticos relacionados a esse conhecimento. Os alunos precisam colher o maior número
de informações que for possível: a região da cidade onde a pesquisa foi feita, o objeto de
pesquisa em si, o grau de interesse das pessoas com relação àqueles produtos etc.

135
UNIDADE 2 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO

Segundo momento

Em sala de aula, organize os alunos nos mesmos grupos e peça para que organizem os dados
em uma tabela. Nesse momento, o professor pode dar alguma instrução aos alunos, mas é
melhor que seja feito o mínimo possível no quadro. O docente deve orientar grupo a grupo,
sempre permitindo que os alunos cheguem as suas próprias conclusões e tomem as melhores
decisões para o desenvolvimento da atividade. Os alunos também devem produzir uma parte
teórica na qual demarcarão o contexto social, econômico e histórico dos locais escolhidos
para a pesquisa dentro das limitações dos dados obtidos e, claro, da idade dos alunos.

Terceiro momento

O terceiro momento é a análise e debate dos dados da tabela obtida. Para tanto, é bom que os
grupos tenham feito uma apresentação de slides ou construído uma tabela maior em papel.
Cada grupo falará sobre todas as informações disponíveis que foram encontradas. A tabela em
si pode ser apresentada a partir dos valores mínimos, máximos e médios das informações mais
importantes da lista e também com comentários sobre o significado desses números.

Quarto momento

Essa etapa destina-se à construção de gráficos. Cada grupo terá que construir um gráfico com
as informações obtidas na  pesquisa. Sugerimos que, antes dessa  atividade, o professor
proponha, para casa, que cada grupo pesquise um tipo de gráfico diferente. Em sala de aula,
peça para que cada grupo construa um gráfico igual ao que foi objeto da atividade para casa
com os  dados da tabela. Oriente seus alunos sempre que necessário, mas, inicialmente,
permita que eles façam descobertas e tentativas por si mesmos e que aprendam com
seus erros. Ao final, os trabalhos podem ser trocados para que outros grupos analisem os
resultados da pesquisa. Essa atividade é um bom início para quem alcançou o conteúdo
de medidas de centralidade, uma vez que constrói os alicerces de um bom conhecimento
sobre análise de gráficos e tabelas.

FONTE: <https://educador.brasilescola.uol.com.br/estrategias-ensino/sugestao-aula-para-
analise-graficos-tabelas.htm>. Acesso em: 27 set. 2018.

136
TÓPICO 3 | CRÍTICAS FRENTE À GEOGRAFIA

LEITURA COMPLEMENTAR

A GEOGRAFIA QUANTITATIVA: ENSAIOS

José Roberto Nunes de Azevedo

Espaço sob a ótica quantitativista

O conceito de espaço é de fundamental importância para a Geografia e


o seu significado é dinâmico. O espaço, no decorrer dos tempos, teve significados
diferentes, sendo que, embora seja um conceito-chave da Geografia, foi valorizado
e compreendido ora com maior ou menor destaque no cenário desta Ciência, uma
vez que, conforme ocorre a transformação da paisagem, também muda-se o foco
de análise e os elementos que estruturam o pensar dominante. Desta forma, se na
Geografia Tradicional era relevante, enquanto conceitos analíticos a esta Ciência,
principalmente, a paisagem e a região, posteriormente, estes deixam de o ser,
despontando, pois, outras formas talvez mais representativas da realidade atual, as
quais são baseadas em formulações filosóficas novas e, principalmente, amparadas
nas transformações em curso no limiar do século XXI. Conforme destaca Oliveira
(1972), durante a hegemonia da Geografia Quantitativa a compreensão do conceito
caracterizou-se pela incorporação da ideia do espaço relativo em detrimento do espaço
absoluto da visão hartshorniana que, por sua vez, entendia-o como um conjunto de
pontos que têm existência em si. Para Corrêa (2003, p. 21), “[...] o espaço relativo
é entendido a partir das relações entre os objetos, relações estas que implicam em
custos para se vencer a fricção imposta pela distância”. Eis o porquê de Corrêa (2003)
dizer tratar-se de uma visão limitada de espaço, dado que se por um lado privilegia
em demasia a distância, por outro, as contradições, as transformações e os agentes e
suas práticas sociais ficam marginalizados, não merecendo uma análise acurada.

Na Geografia Quantitativa, privilegia-se uma concepção do espaço


multidimensional, e que, portanto, busca contribuições da geometria, das técnicas
cartográficas, recorrendo ao emprego de modelos para efetuar investigações e
compreender seu objeto de pesquisa. As suas análises demonstram preocupações
com as relações espaço-tempo, espaço-custo, espaço-comportamento etc. Conforme
destaca Santos (1978), o maior pecado da Geografia Quantitativa é que a mesma
desconhece a existência do tempo, de maneira a trabalhar com estágios sucessivos
da evolução espacial sem, no entanto, conseguir compreender o que se encontra
entre um estágio e outro. Para Oliveira (1972, p. 18), “[...] as pesquisas geográficas
vêm se orientando na procura de métodos e técnicas para mensurar quantitativa
e qualitativamente as relações espaciais, no sentido de obter maior precisão e
melhor aproveitamento dos dados coletados”. O entendimento do conceito de
espaço é circunstancial para pensar o território e sua consequente gestão territorial.
Decorre disto que, ao buscarmos entender o espaço apenas pelo viés geométrico,
teremos, inevitavelmente, dificuldade de acompanhar as transformações em curso.
Vejamos um exemplo. Ao analisar a agricultura, mais precisamente, a dinâmica da
agroindústria canavieira, podemos, de antemão, por meio da análise dos dados,

137
UNIDADE 2 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO MODERNO

verificar com entusiasmo o seu potencial produtivo e econômico para a economia


brasileira. Pois veremos que atualmente a cana-de-açúcar territorializa-se em cerca
de 9 milhões de hectares no Brasil, onde emprega centenas de trabalhadores nas
mais diversas etapas produtivas desenvolvidas no campo e na planta fabril, gerando
grande volume de renda, oriunda de impostos para os municípios que sediam as
agroindústrias canavieiras. Enfim, notar-se-á que a agroindústria canavieira é um
dos principais suportes do agronegócio.

No entanto, é preciso que não nos amparemos apenas nos números no


momento em que realizamos uma leitura do espaço total, pois estes mascaram
a realidade quando são utilizados sem critérios sérios e, mais do que isso, visto
dentro de uma perspectiva histórica e da gênese dos processos sociais. Esse é o
caso do exemplo apresentado, uma vez que, ao considerar-se quantitativamente
os dados do setor canavieiro, oculta-se a existência da exploração do trabalho,
de onde é extraída a mais-valia do trabalhador, e que é constante o desrespeito
em relação às relações de trabalho empreendidas. Do mesmo modo, sonega-se
o fato de que na ânsia de obter uma balança comercial positiva (superávit), o
Estado deixa de investir em culturas alimentícias, o que rebate diretamente no
binômio soberania alimentar/segurança alimentar e, consequentemente, em
políticas públicas eficazes e abrangentes para as classes trabalhadoras do campo
e da cidade. Por outro lado, exalta-se o agronegócio, sendo os seus resultados
são motivo de orgulho para brasileiros(as) que não raras vezes esquecem dos
impactos socioambientais que eventos como estes acarretam em seu cotidiano.
Segundo observação de Santos (1978, p. 53), “[...] o espaço que a Geografia
Matemática pretende produzir não é o espaço das sociedades em movimento e
sim a fotografia de alguns de seus momentos”. Verifica-se, desta maneira, que
o papel do espaço na Geografia Quantitativa é negligenciado para a efetivação
“segura” de um planejamento comprometido com o status quo.

FONTE: <https://www.revistas.ufg.br/espaco/article/download/16893/10344>. Acesso


em: 27 set. 2018.

138
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• A crise da Geografia Tradicional, e o movimento de renovação a ela associado,


começam a se manifestar já em meados da década de 1950 e se desenvolvem
aceleradamente nos anos posteriores. A década de sessenta encontra as incertezas
e os questionamentos difundidos por vários pontos. A partir de 1970, a Geografia
Tradicional está definitivamente enterrada; suas manifestações, dessa data em
diante, vão soar como sobrevivências, resquícios de um passado já superado.

• A crise do pensamento geográfico tradicional também se desenvolveu a partir


de problemas internos dessa disciplina. Havia questões de formulação, lacunas
lógicas e dubiedades, que forneceram a via imediata da crítica. A renovação fez
desta o seu patamar, dissimulando muitas vezes o teor da crise, ao colocá-la
apenas como uma discussão interna da Geografia, puramente técnica, ou como
uma forma de gerenciar o nível de crítica, escondendo as razões anteriores e os
compromissos sociais do discurso geográfico.

• O movimento de renovação, ao contrário da Geografia Tradicional, não possui


uma unidade; representa mesmo uma dispersão em relação àquela. Tal fato
advém da diversidade de métodos de interpretação e de posicionamentos
dos autores que o compõem. A busca do novo foi empreendida por variados
caminhos; isto gerou propostas antagônicas e perspectivas excludentes.

• A incorporação do Positivismo Lógico foi o principal caminho seguido pelos


geógrafos dos anos 1950 e 1960 para atualizar sua disciplina em relação
às crescentes exigências de rigor nos meios científicos, como também para
responder à crise da Geografia Tradicional.

• Na metade do século XX, alguns geógrafos começaram a questionar a função


da Geografia, constatando que esta área do conhecimento precisava ser
renovada, para que pudesse ter uma utilidade prática na sociedade. Estes
geógrafos começaram a apontar a falência da Geografia Clássica. Em função
da renovação metodológica que sofreu, surgiu a chamada Nova Geografia,
também denominada por alguns de Geografia Pragmática.

• A Nova Geografia acabou desenvolvendo algumas tendências diferenciadas.


Assim, no seu âmbito, é possível perceber três correntes: Geografia Quantitativa;
Geografia Sistêmica ou Modelística; Geografia da Percepção ou Comportamental.
A Nova Geografia surge através da quantificação e da abordagem sistêmica.

139
AUTOATIVIDADE

1 (ENADE, 2008 – Questão 12):

Entre os conceitos-chave da ciência geográfica, figura o de região, que, marcado


por diferentes acepções conforme a época ou a corrente do pensamento
geográfico, frequentemente, ocupa lugar central nos debates acadêmicos.
Acerca desse conceito, assinale a opção correta.

a) ( ) Conceitualmente, região natural, neste século XXI, ainda constitui, do


ponto de vista espacial, referência-chave para explicar diferenças no
processo de desenvolvimento socioeconômico.
b) ( ) Nos anos 50 do século passado, prevalecia a ideia de que região
corresponderia à área de ocorrência de uma mesma paisagem cultural,
caracterizada, portanto, como região-paisagem, ou landscape.
c) ( ) Conceitualmente, o termo região tem sido empregado para designar
uma classe de área que apresenta grande uniformidade interna e grande
diferença em relação ao seu entorno.
d) ( ) Após a década de 80 do século XX, no âmbito da geografia cultural,
região passou a ser entendida como organização do processo social
vinculada ao modo de produção capitalista.
c) ( ) Conceitualmente, do ponto de vista da geografia crítica, a região assumiu
o caráter de conjunto específico de relações culturais no qual a apropriação
simbólica do espaço geográfico é determinada pelo grupo social.

A pista para a escolha da opção correta encontra-se nas caracterizações de


região, nas cinco alternativas. A resposta certa é o conceito de região baseado
na Geografia Quantitativa, teorética ou Nova Geografia. Fundamentada no
Positivismo Lógico, a região é definida como um conjunto de lugares em que
as diferenças internas entre esses lugares são menores do que as existentes
entre eles e qualquer elemento de outro conjunto de lugares. São as técnicas
matemáticas e estatísticas que possibilitam obter as diferenças e as semelhanças
entre os lugares. Essa forma de individualizar regiões aboliu toda ideia de
processo, de gênese, de origem. Definir regiões passa a ser um problema de
aplicação eficiente da estatística. São, pois, os propósitos do pesquisador que
norteiam os critérios a serem selecionados para a divisão regional.

FONTE: ENADE, 2008/Geografia. Disponível em: <http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/enade/


geografia2008.pdf>. Acesso em: 27 set. 2018.

2 A Geografia Teórico-Quantitativa ou Nova Geografia foi muito marcada


pela situação socioeconômica que vivia o mundo no pós-Segunda Guerra.
O cenário de destruição fez com que os geógrafos buscassem novas
formulações para superar a crise econômica capitalista. Referente a essa
concepção, assinale a alternativa correta:

140
a) ( ) No posicionamento teórico da Nova Geografia o conceito de natureza passa
ser visto como uma realidade inserida num espaço geométrico, matemático,
hierarquizado e com finalidades voltadas para os interesses do ser humano.
b) ( ) Caracterizada pelo uso de métodos matemático-estatísticos, essa
Nova Geografia desenvolveu-se principalmente nas décadas de 1960 e
1970. Na essência buscava a substituição do trabalho de campo pelos
experimentos laboratoriais, com muitas mensurações, dados estatísticos,
gráficos e tabelas bastante sofisticadas.
c) ( ) No posicionamento teórico da Nova Geografia, o conceito de natureza passa
a ser visto como uma realidade inserida num espaço religioso, matemático,
hierarquizado e com finalidades voltadas para os interesses do ser espiritual.
d) ( ) Caracterizada pelo uso de métodos matemático-estatísticos, essa
Nova Geografia desenvolveu-se principalmente nas décadas de 1960 e
1970. Na essência buscava a substituição do trabalho de campo pelos
experimentos filosóficos, com muitas mensurações, dados estatísticos,
gráficos e tabelas bastante simples.

3 O espaço é visto sobre duas formas: de um lado a noção de planície


isotrópica (é uma construção de espaço que resume uma concepção
derivada de um paradigma racionalista e hipotético-dedutivo), de outro,
de sua representação matricial. Refere-se ao desenvolvimento da análise do
espaço no âmbito da:

a) ( ) Geografia Teorética-Quantitativa, calcada no raciocínio hipotético-


dedutivo do Positivismo Lógico.
b) ( ) Geografia Crítica, que adota o materialismo histórico e dialético como
paradigma.
c) ( ) Geografia Humanística, assentada na subjetividade e no conceito.
d) ( ) Geografia Tradicional francesa, calcada nos conceitos de meio, ação
humana e gênero de vida.

4 A Geografia Pragmática, também conhecida como Geografia Quantitativa


ou Nova Geografia, é uma corrente de pensamento que surgiu na década
de 1950 e promoveu grandes modificações na abordagem metodológica da
Geografia. Baseada no Neopositivismo Lógico, essa nova corrente geográfica
surgiu com a necessidade de exatidão, através de conceitos mais teóricos
e apoiados em uma explicação matemático-estatística. As características
apresentadas a seguir são desta corrente geográfica, EXCETO:

a) ( ) Aceitação de um dualismo científico entre as Ciências Naturais e as


Ciências Sociais.
b) ( ) Maior rigor na aplicação da metodologia científica.
c) ( ) O uso de técnicas estatísticas e matemáticas.
d) ( ) A investigação científica e os seus resultados devem ser expressos de
uma forma clara, o que exige o uso da linguagem matemática e da lógica. 

141
142
UNIDADE 3

EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO
CONTEXTO CONTEMPORÂNEO –
PÓS-MODERNO

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• situar a geografia e sua base epistemológica no período contemporâneo,


no contexto pós-moderno;

• identificar os principais temas e conceitos na atualidade no ensino da


geografia;

• conhecer a gênese e o desenvolvimento das abordagens epistemológicas


atuais no âmbito da geografia;

• identificar os principais desafios encontrados na geografia no Brasil.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você
encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – GEOGRAFIA HUMANISTA E CONTEMPORÂNEA

TÓPICO 2 – PERSPECTIVAS HISTÓRICAS, AMBIENTAIS E PÓS-


MODERNAS

TÓPICO 3 – PERSPECTIVAS ATUAIS E A GEOGRAFIA NO BRASIL

143
144
UNIDADE 3
TÓPICO 1

GEOGRAFIA HUMANISTA E CONTEMPORÂNEA

1 INTRODUÇÃO
Estamos em nossa última unidade do livro de estudos. Abordaremos
a Geografia no período contemporâneo, em um contexto de transição da
modernidade com a pós-modernidade. Aparentemente, na atualidade, a história
humana universal é concreta, já que existe uma base material, organizacional e
financeira de interdependência no planeta, portanto, há uma situação concreta
para se perceber, estudar e compreender. No entanto, e num verdadeiro paradoxo,
quando se tornou mais possível falar de uma geografia geral concreta, histórica,
interdependente, de um planeta com uma base material e organizacional comum,
desigual e seletiva, a disciplina se fragmentou em muitas especialidades ou
aspectos. O discurso sobre os lugares dá legitimidade científica à disciplina, mas
quando a história humana concreta se torna interdependente, quando a história
humana universal se geografiza, quando o planeta materialmente é a prova de
que a história humana é interdependente, a abstração reside exatamente no
estudo do particular. Isso é uma abstração, e não o estudo da totalidade. Estudo
da desterritorialização, da fragmentação, da desconstrução, esse é um grande
dilema da disciplina hoje, o dilema da pós-modernidade na Geografia.

Ao longo dos tempos, a Geografia se mostrou como um campo do


conhecimento que busca constantemente a compreensão do mundo e suas
contradições nas relações sociais, na apropriação e uso do meio ambiente. No
decorrer do seu processo de desenvolvimento e construção evidenciam-se
diferentes formas de perceber, pensar e refletir os fenômenos socioespaciais, sendo
cada uma das geradoras de linhas metodológicas, as quais são fundamentais
no processo de construção do conhecimento geográfico. Pensando a Geografia
Contemporânea como uma ciência que busca a compreensão das relações
socioespaciais, há de se entender que as maneiras de se analisar estes processos
assumem diferentes formas ao longo do tempo. A construção do pensar e fazer
geografia, nos últimos tempos, teve o Marxismo, a tradição de pensamento que
influenciou mais intensamente a formulação de teorias na geografia no contexto
contemporâneo. Mas a partir de 1990, vemos uma tendência à combinação de
ideias marxistas, humanistas e pós-modernistas na Ciência Geográfica. Trata-
se, assim, de um aumento do ecletismo epistemológico guiado pelo objetivo
de renovar as críticas à sociedade capitalista num contexto de inegável crise
intelectual e política do Marxismo.
145
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

2 A GEOGRAFIA HUMANISTA E O SER HUMANO INTEGRAL


Na década de 1970, surgiu a Geografia Humanista/Humanística, que
está embasada nas filosofias do significado, especialmente a Fenomenologia e o
Existencialismo. Na verdade, tal corrente de pensamento expressou a sua crítica à
Geografia de cunho lógico-positivista. De acordo com Diniz Filho (2012), é possível
constatar e compreender, dentro da história humana, que correntes filosóficas e
diferentes modos influenciam, criam e promovem diferentes humanismos. No
contexto da Geografia, a vertente humanista/humanística contemporânea foi
definida como subcampo nos anos 1970 e, ao longo da história do pensamento
geográfico, ganhou definições mais sólidas, como corrente, vertente, crítica, até
chegar a concepções mais abrangentes. A noção que predomina atualmente em
Geografia é que essa perspectiva extravasa o campo disciplinar, isso permite,
junto à Geografia Cultural e às filosofias do significado, ser identificada como
abordagem cultural e/ou horizonte humanista, apostando de tal forma em uma
Geografia permeada pelo Humanismo. Ou seja, perspectivas, antes vistas como
delimitadas a campos disciplinares da Geografia, acabam contemporaneamente
sendo chamadas de abordagem cultural e novo horizonte ou o terceiro horizonte
epistemológico da geografia, o horizonte humanista, compondo, com o horizonte
neopositivista e com o horizonte marxista, os horizontes epistemológicos da
Geografia. Esse horizonte pode ser visto também por outros autores, como o
horizonte interpretativo, dos significados, dos valores, ligado às filosofias dos
significados, em especial, a fenomenologia (DINIZ FILHO, 2012).

De acordo com Seabra (1999), é lançado o livro Topofilia, de Yi-Fu Tuan,


trabalho este no qual o autor, baseado nas obras do filósofo francês Gaston
Bachelard, propõe que a Geografia se volte a um novo pensar sobre a relação
do homem com o mundo em que vive. Outro nome que se destaca nessa
discussão é Anne Buttimer, a pesquisadora tem uma importância fundamental
na constituição da Geografia Humanista, tendo em vista o desenvolvimento de
seus trabalhos, que a partir de um olhar crítico tratou de questões sociológicas
nos valores geográficos, avaliando as ideias de um ponto de vista filosófico,
tecendo considerações sobre o existencialismo e o fenomenologismo no futuro
da Geografia. Somadas às discussões, essa perspectiva despontou como um
ressurgimento da perspectiva cultural na Geografia, sendo denominada como
uma nova Geografia Cultural ou Geografia Fenomenológica (título indicado por
Edward Relph em 1971), Geografia da Percepção, Geografia Humanística ou,
enfim, Geografia Humanista.

146
TÓPICO 1 | GEOGRAFIA HUMANISTA E CONTEMPORÂNEA

FIGURA 1 – YI-FU TUAN

FONTE: <http://geography.ruhosting.nl/geography/images/4/46/Yifutuan.jpg>.
Acesso em: 30 jan. 2019.

Em certo sentido a Geografia Humanista/Humanística é definida


por bases teóricas nas quais são ressaltadas e valorizadas as experiências, os
sentimentos, a intuição, a intersubjetividade e a compreensão das pessoas sobre
o meio ambiente em que habitam, buscando compreender e valorizar esses
aspectos. De acordo com Tuan (1980), a Geografia Humanista é a tendência do
pensamento geográfico que estuda as experiências de indivíduos e grupos em
relação ao espaço com o intuito de compreender seus comportamentos e valores.
Procura um entendimento do mundo humano através do estudo das relações das
pessoas com a natureza, do seu comportamento geográfico, bem como dos seus
sentimentos e ideias a respeito do espaço e do lugar (TUAN, 1980).

Segundo Diniz Filho (2012), os geógrafos que preferem usar a palavra


humanística argumentam que todos os estudos de Geografia Humana põem
em foco comportamentos do homem, de modo que a palavra humanista é
muito genérica, pois se aplica a todos os ramos e vertentes de estudo. Assim,
esses autores falam em Geografia Humanística para enfatizar que estudam os
elementos mais particularmente humanos da relação do homem com o espaço e a
natureza, que são os valores, crenças, símbolos, atitudes, dentre outros. A visão de
que a perspectiva humanista ou humanística procura, acima de tudo, servir como
ferramenta de autoconhecimento para o homem, sendo que a contribuição da
Geografia nessa empresa está nos conhecimentos que oferece acerca dos inúmeros
tipos de percepção, atitudes e valores concernentes ao espaço e à natureza.

Para Diniz Filho (2012), os pressupostos que dão unidade a essa corrente
derivam da incorporação de variadas formas de pensamento humanista pelos
geógrafos. Um pressuposto importante desse tipo de pensamento é a visão
antropocêntrica do saber, no sentido de que a produção de conhecimento é sempre
fruto da intencionalidade do sujeito que o produz, de modo que todo saber é

147
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

marcado pela subjetividade. Igualmente importantes são a crítica aos procedimentos


analíticos do modelo de ciência normativo e, em consequência, a proposta de buscar
um conhecimento holístico, baseado na contextualização social e natural das relações
do homem com o ambiente. Finalmente, podemos mencionar a concepção do
homem como um ser que atribui valor e sentido às coisas que o cercam, sendo estes
os fundamentos da cultura. Apesar desses pressupostos comuns que, por sinal, são
bastante gerais, a Geografia Humanista pode ser considerada a mais diversificada
quanto às suas opções epistemológicas, não havendo uma corrente filosófica ou
científica que predomine claramente nos estudos humanistas, nem mesmo um método
que seja mais frequente em tais estudos. O melhor que se pode fazer para oferecer
uma visão de conjunto sobre os geógrafos dessa corrente é ressaltar a existência de
algumas abordagens inspiradas na fenomenologia e de outras que procuram renovar
as abordagens clássicas da Geografia pelo estudo do “espaço vivido”.

Percebe-se que a Geografia Humanista/Humanística está apoiada em


pressupostos da Fenomenologia, como subjetividade, intuição, sentimentos,
experiência, no simbolismo e na contingência, privilegiando o singular e não o particular,
e ao invés da explicação, tem na compreensão a base de inteligibilidade do mundo real.
Foi um movimento de ideias que destacou os aspectos humanos. Assim, a Geografia
Humanística tentou compreender como as atividades e fenômenos geográficos
revelam a qualidade da percepção humana. Desse modo, a compreensão do homem
e de sua condição é alcançada. Dentro desse propósito, a produção de conhecimento
se dá através da experiência concreta. Sob esse prisma de estudo da Geografia, tem-
se como premissa que cada indivíduo possui uma percepção do mundo que se
expressa diretamente por meio de valores e atitudes em relação ao meio ambiente.
Em outras palavras, a Geografia Humanista busca a compreensão do contexto pelo
qual a pessoa valoriza e organiza o seu espaço e o seu mundo, e nele se relaciona de
forma integral, ou seja, uma educação integral que compreende que a educação deve
garantir o desenvolvimento dos sujeitos em todas as suas dimensões: intelectual, física,
emocional, social e cultural e se constituir como projeto coletivo, compartilhado por
crianças, jovens, famílias, educadores, gestores e comunidades locais.

DICAS

O atual período histórico da educação/escolarização no Brasil, sobretudo


por indução do poder público em suas diferentes escalas de atuação (federal, estadual e
municipal), vem sendo marcado por um conjunto de questões que podem ser consideradas
relevantes no debate a respeito da formação inicial e continuada de professores de Geografia
na atualidade, entre elas a concepção de Educação Integral. A BNCC soma-se aos propósitos
que direcionam a educação brasileira para a formação humana integral e para a construção
de uma sociedade justa, democrática e inclusiva.
Para saber mais, acesse a página do MEC: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/>
(Base Nacional Comum Curricular – BNCC é um documento de caráter normativo que
determina os direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento para todos os alunos
da Educação Básica brasileira).

148
TÓPICO 1 | GEOGRAFIA HUMANISTA E CONTEMPORÂNEA

3 A GEOGRAFIA CRÍTICA
Ao final da década de 1960, nos países capitalistas avançados se
desencadeou o agravamento das tensões sociais, fruto do grande desemprego,
dos problemas com habitação, da luta pelos direitos civis e das questões raciais.
Essa crise se proliferou nas Ciências Sociais, nas quais emergiu uma outra
tendência interpretativa da sociedade, que são os movimentos denominados
críticos, marxistas ou radicais, que de certa maneira influenciaram a forma de
ler os fenômenos da Ciência Geográfica e produzem questionamentos, ou seja,
a geografia de abordagem crítica, a qual tem como método de análise principal
o materialismo histórico e dialético, elaborado pelos filósofos Engels e Marx, e
acrescenta-se autores da escola de Frankfurt (teoria crítica); abordagem marxista
cultural (Gramsci); Anarquismo; o Pós-Modernismo (principalmente Foucault).

FIGURA 2 – MICHEL FOUCAULT (POITIERS, 15 DE OUTUBRO DE 1926 –


PARIS, 25 DE JUNHO DE 1984)

FONTE: <https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcSV-
GvWN6Ykao6N75gIvYxhSYz-hqS3TpcHppOzCQBZkeB9kZlESQ>. Acesso em: 30 jan. 2019.

Esta denominação (Geografia crítica) advém de uma postura crítica radical


frente à Geografia existente (seja a Tradicional ou a Pragmática), que será levada
ao nível de ruptura com o pensamento anterior. Nas palavras de Moraes (1994),
a crítica diz respeito, principalmente, a uma postura frente à realidade, frente à
ordem constituída. São os autores que se posicionam por uma transformação da
realidade social, pensando o seu saber como uma arma desse processo. São, assim,
os que assumem o conteúdo político de conhecimento científico, propondo uma
Geografia militante, que lute por uma sociedade mais justa. São os que pensam a

149
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

análise geográfica como um instrumento de libertação do ser humano, fazem uma


avaliação profunda das razões da crise: são os que acham fundamental evidenciá-
la, vão além de um questionamento acadêmico do pensamento tradicional,
buscando as suas raízes sociais. Em nível acadêmico, criticam o empirismo
exacerbado da Geografia Tradicional, que manteve suas análises presas ao mundo
das aparências e todas as outras decorrências da fundamentação positivista (a
busca de um objeto autonomizado, a ideia absoluta de lei, a não diferenciação
das qualidades distintas dos fenômenos humanos, entre outros). Entretanto, vão
além, criticando a estrutura acadêmica que possibilitou a repetição dos equívocos:
o “mandarinato”, o apego às velhas teorias, o cerceamento da criatividade dos
pesquisadores, o isolamento dos geógrafos, a má formação filosófica, e, ainda, a
despolitização ideológica do discurso geográfico, que afastava do âmbito dessa
disciplina a discussão das questões sociais. A vanguarda desse processo crítico
renovador vai ainda mais além, apontando o conteúdo de classe da Geografia
Tradicional. Seus autores mostram as vinculações entre as teorias geográficas
e o imperialismo, a ideia de progresso veiculando sempre uma apologia da
expansão, mostram o trabalho dos geógrafos como articulado às razões do Estado.
Desmistificam a pseudo-“objetividade” desse processo, especificando como
o discurso geográfico escamoteou as contradições sociais. Atingem, assim, seu
caráter ideológico, que via a organização do espaço como harmônica; via a relação
homem-natureza numa ótica que acobertava as relações entre os homens; via a
população de um dado território como um todo homogêneo, sem atentar para
a sua divisão em classes. Enfim, os geógrafos críticos apontaram a relação entre
a Geografia e a superestrutura da dominação de classe na sociedade capitalista.
Desvendaram as máscaras sociais aí contidas, pondo à luz os compromissos
sociais do discurso geográfico, o seu caráter classista. As razões da crise foram
buscadas fora da Geografia (MORAES, 1994).

Essa abordagem epistemológica da Geografia entendeu que as injustiças e


as desigualdades sociais e espaciais são estigmas das sociedades capitalistas. Por
isso, entende-se que tal corrente de pensamento tenha se desenvolvido no seio
dos países capitalistas, principalmente nos Estados Unidos e na Inglaterra. Nas
palavras de Heinsfeld (2012), a Geografia Crítica incorporou alguns conceitos
marxistas na análise geográfica. O autor pioneiro a apresentar a discussão sobre
as relações de produção, as relações de trabalho, a ação do grande capital, as
forças produtivas, no âmbito da Geografia, foi o francês Pierre George. Uma
manifestação clara da renovação crítica encontra-se em Geografia Ativa (1966),
que Pierre George produziu com seus ex-alunos Yves Lacoste, Bernard Kayser
e Raymond Guglielmo. Esta obra marcou uma geração de geógrafos, ao se opor
à Geografia Aplicada, então, hegemônica. Elaborou uma análise regional que
desvendou as contradições do modo de produção capitalista, inaugurando uma
Geografia que faz a denúncia das realidades espaciais injustas e contraditórias.
Fez uma crítica severa da abordagem descritiva e enumerativa da Geografia,
apontando a necessidade e a carência de informações objetivas que permitem
traçar perspectivas capazes de subsidiar tomadas de decisões. Seus autores

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TÓPICO 1 | GEOGRAFIA HUMANISTA E CONTEMPORÂNEA

consideravam a Geografia como um prolongamento da história, mas com


métodos próprios, deixando o papel meramente contemplativo e assumindo um
papel dinâmico, atuante, por meio do que chamavam uma “geografia ativa”, que
buscasse estabelecer um elo entre passado e futuro.

O autor que fez a crítica mais radical à Geografia Tradicional foi um aluno
e discípulo de Pierre George, o francês Yves Lacoste. Nos escritos de Moraes
(1994), encontramos Lacoste vinculado ao Partido Comunista Francês. Lacoste
lançou no início de 1970 uma revista que nas décadas seguintes procurou revelar
a face oculta da Geografia, isto é, seu caráter político. O debate proporcionado
pela revista fez surgir a questão: "A quem serve a geografia?". Em 1972, em
plena Guerra do Vietnã, Lacoste, após uma visita ao Vietnã do Norte, denunciou
a estratégia norte-americana de bombardeio dos diques de água vietnamitas,
através de um artigo publicado no Le Monde, que teve grande repercussão junto
à opinião pública americana. Isso fez com que os bombardeios cessassem pouco
tempo depois. A obra de impacto de Yves Lacoste foi A Geografia: isso serve em
primeiro lugar, para fazer a guerra, publicada em 1976. Nesta obra, ele argumenta que
o saber geográfico pode se manifestar em dois planos: a “Geografia dos Estados
Maiores” e a “Geografia dos Professores”. A primeira sempre foi ligada à prática
do poder, seja através dos Estados ou de grandes corporações internacionais, que
estabelecem estratégias de dominação da superfície terrestre. A segunda seria a
Geografia Tradicional, que tem uma dupla função:

a) mascarar a existência da “Geografia dos Estados Maiores”, apresentando o


conhecimento geográfico como inútil, mascarando o valor estratégico de saber
pensar o espaço, tornando-o desinteressante para a maioria das pessoas;
b) levantar, camufladamente, dados para a “Geografia dos Estados Maiores”,
fornecendo informações precisas sobre os variados lugares da Terra, sem gerar
suspeita. Decorrente disso, o indivíduo tem uma visão fracionada do espaço,
enquanto o Estado tem uma visão integrada e articulada deste espaço, pois age
em todos os lugares, facilitando a dominação. Lacoste defende a necessidade
de se construir uma visão integrada do espaço, numa perspectiva popular e
de sociabilizar este saber, pois, como afirma Lacoste (1988, p. 6), “é necessário
saber pensar o espaço, para saber nele se organizar, para saber nele combater”.

De acordo com Moraes (1994), é preciso que as pessoas estejam melhor


armadas, tanto para organizar seu deslocamento, como para expressar sua
opinião em matéria de organização espacial. É preciso que elas sejam capazes de
perceber e de analisar suficientemente rápido as estratégias daqueles que estão
no poder, tanto no plano nacional, como no internacional. Embora Yves Lacoste
utilize o Marxismo em sua análise crítica da sociedade capitalista e nas suas
concepções sobre o vínculo entre ciência, política e ética profissional, ele procura
valorizar a autonomia epistemológica do estudo do espaço pelo refinamento
dos métodos utilizados pela Geografia Tradicional. Para ele, não poderia haver
uma geografia marxista propriamente dita, mas uma complementaridade entre
teoria marxista e pesquisa geográfica, uma vez que o espaço constitui o “domínio
estratégico por excelência”, influindo decisivamente nas lutas políticas. Desta

151
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

forma, o questionamento das teses tradicionais efetuado pela Geografia Crítica,


partindo de Lacoste, é muito mais profundo. Incide nos compromissos sociais e
nos posicionamentos políticos em jogo, e aponta para propostas de renovação,
que implicam uma ruptura com a Geografia Tradicional, e, mais que isso, na
construção de um conhecimento que lhe seja antagônico, de um discurso que
a combata de teorias que se contraponham às tradicionais, daí Lacoste definir
seu trabalho como “guerrilha epistemológica”. Esta é a via revolucionária da
renovação do pensamento geográfico, que agrupa aqueles autores imbuídos de
uma perspectiva transformadora, que negam a ordem estabelecida, que veem
seu trabalho como instrumento de denúncia e como arma de combate; enfim, que
propõem a Geografia como mais um elemento na superação da ordem capitalista.
A crítica radical do pensamento tradicional é, dessa maneira, uma exigência do
tom das propostas de renovação efetuadas (MORAES, 1994).

Essa Geografia propôs um novo modelo de análise espacial que era


rigorosamente científico e ao mesmo tempo revolucionário. Desse modo,
tentou integrar os processos sociais e os espaciais no estudo da realidade e se
interessou, principalmente, pela análise dos modos de produção e das formas
socioeconômicas, que são resultantes do modo de produção capitalista. Vale
enfatizar que o modo de produção se tornou um conceito importante nessa
corrente de pensamento. A Geografia Crítica vai buscar o entendimento das
contradições inerentes ao sistema capitalista de produção e as divisões de classe
social. Comporta um conjunto variado de orientações teórico-metodológicas e
políticas, em grande parte antagônicas entre si, mas que convergem no interesse
de criticar a sociedade capitalista e suas instituições em bases radicais. É por
isso que, algumas vezes, essa corrente é denominada por seus defensores de
pensamento crítico. Sob o ponto de vista da abordagem epistemológica da
Geografia Crítica, o espaço é produzido pelo ser humano por meio do trabalho.
É um espaço organizado, no qual os diferentes elementos estão arranjados
e distribuídos de acordo com uma certa lógica, de acordo com os interesses e
necessidades de grupos sociais que nele habitam. Considera o espaço geográfico
sob vários aspectos interligados: os fenômenos naturais; a ação do ser humano; a
formação dos espaços, as transformações humanas sobre a natureza, as questões
ambientais de alcance planetário. Ao observar o espaço de forma crítica, descobre-
se nele as marcas que refletem o momento histórico de sua criação e recriação
constante, as relações sociais que se desenvolvem nesse espaço e o projeto de
mundo que está sendo executado por trás das aparências da paisagem.

152
TÓPICO 1 | GEOGRAFIA HUMANISTA E CONTEMPORÂNEA

De acordo com Heinsfeld (2012), influências extrageográficas também


colaboraram para que a Geografia adquirisse uma nova dimensão, como é o
caso de Michel Foucault, ao enfatizar que “seria preciso fazer uma história dos
espaços – que seria ao mesmo tempo uma história dos poderes que estudasse
desde grandes estratégias da geopolítica até as pequenas táticas do habitat”. A
preocupação de Foucault é com a discussão entre o espaço e o poder. Na verdade,
a Geografia Crítica tem como seus objetivos, também, romper o isolamento do
geógrafo em relação a outras áreas do conhecimento. A Geografia Crítica se
desenvolveu bastante a partir dos estudos temáticos, notadamente aqueles
dedicados ao conhecimento das cidades (que não devem ser confundidos
com a Geografia Urbana tradicional). Aqui, foi particularmente importante a
contribuição dada por autores não geógrafos (HEINSFELD, 2012). O contato com
teorias extrageográficas foi bastante benéfico, basta pensar na influência de um
sociólogo, como M. Castels, ou de um filósofo, como H. Lefebvre. O primeiro,
através de seu livro já clássico A questão urbana, o segundo, através de obras como
A produção do espaço e Espaço e Política. A influência de urbanistas, como J. Lojikne
ou M. Folin, também é sensível. Dentre estes trabalhos temáticos, que enfocam o
urbano, um destaque deve ser dado para a figura de David Harvey.

FIGURA 3 – DAVID HARVEY (GILLINGHAM, KENT, 7 DE DEZEMBRO DE 1935)

FONTE: <https://i0.wp.com/d3n8a8pro7vhmx.cloudfront.net/democracyatwork/
pages/4047/attachments/original/1541611043/0.png?resize=500%2C500&ssl=1>.
Acesso em: 30 jan. 2019.

153
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

De acordo com Heinsfeld (2012), Harvey esteve na vanguarda do


Neopositivismo da reflexão geográfica; depois rompeu radicalmente com
a perspectiva pragmática, escrevendo uma obra que traduz uma profunda
autocrítica: A justiça social e a cidade. Neste livro, o autor faz a crítica das teorias
liberais sobre a cidade e assume uma postura socialista. Realiza então uma leitura
das colocações marxistas, tentando empregar a teoria da renda fundiária na
análise da valorização do espaço urbano. Analisa o uso do solo, um tema clássico
da Geografia, à luz das categorias do valor de uso e do valor de troca. Nessa
reflexão, adianta bastante as formulações a respeito de uma dialética do espaço,
e chega a algumas concepções interessantes, por exemplo, a de ver as formas
espaciais enquanto processos sociais no sentido de que os processos sociais são
espaciais. Trabalhando com uma concepção mais ampla, isto é, numa escala mais
abrangente do que a do fenômeno urbano, vários autores vêm realizando uma
discussão crítica a respeito do território. Assim, enfocam a expansão espacial
das relações capitalistas de produção, as formas espaciais e os fluxos gerados, a
organização do espaço implementada por este modo de produção, enfim, a lógica
do capital na apropriação e ordenação dos lugares.

Vale enfatizar, segundo Gomes (2007), que o modo de produção se tornou


um conceito importante nessa corrente de pensamento geográfico crítico. A
utilização do conceito de “modo de produção” aparece, então, como o meio que
permitiria afastar todo idealismo da análise geográfica. A Geografia contribuiria
para a compreensão das condições materiais da existência social e, portanto,
da constituição de um modo de produção, levando em consideração a divisão
territorial do trabalho. Finalmente, o reconhecimento da função ideológica
e estratégica inerente ao saber geográfico criaria uma nova prática social e
epistemológica. A partir desses três pontos, o Marxismo seria a única corrente
teórica capaz de dar respostas satisfatórias às novas demandas científicas e
sociais. Inserida no contexto radical, a Geografia tinha o objetivo de colaborar
ativamente para a transformação radical da sociedade capitalista em direção à
socialista, através da revolução.

Em síntese, a Geografia Crítica ou Radical se assenta em dois princípios


marxistas: o materialismo dialético, para o qual a natureza, a vida e a consciência
se constituem de matéria em movimento e evolução permanente, e o materialismo
histórico, para o qual o modo de produção é a base determinante dos fenômenos
históricos e sociais, inclusive as instituições jurídicas e políticas, a moralidade,
a religião e as artes. Interessa-se pela análise dos modos de produção e das
formações socioeconômicas. Essa nova abordagem teve a preocupação de ser
mais crítica e atuante em relação aos problemas sociais. Nesse conjunto de ideias,
a vida social é interpretada conforme a dinâmica da luta de classes, e prevê a
transformação das sociedades de acordo com as leis do desenvolvimento histórico
de seu sistema produtivo. Assim, a Geografia Crítica trouxe uma nova forma de
interpretação da sociedade, tendo como base o materialismo histórico e dialético.
Foi uma grande contribuição que influenciou pesquisadores de diversas áreas ao
longo do século XX.

154
TÓPICO 1 | GEOGRAFIA HUMANISTA E CONTEMPORÂNEA

4 A FENOMENOLOGIA NA GEOGRAFIA
Na década de 1970, vimos o surgimento da Geografia Humanista que foi,
na década seguinte, acompanhada da retomada da Geografia Cultural. Semelhante
à Geografia Crítica, a Geografia Humanista, calcada nas filosofias do significado,
especialmente a Fenomenologia e o Existencialismo, é uma crítica à Geografia de
cunho lógico-positivista. Diferentemente daquela, contudo, é a retomada da matriz
historicista que caracterizava as correntes Possibilista e Cultural da Geografia
Tradicional. Outra contribuição metódica da ciência geográfica é a análise da
Fenomenologia (existencialista e hermenêutica), a partir da filosofia de B. Husserl,
Merleau-Ponty e Heidegger. De acordo com Suertegaray (2005), a Geografia da
Percepção surge como uma corrente de pensamento que se aproxima da psicologia
e tem nas formulações fenomenológicas de Edmund Husserl (1859-1938) o seu
suporte teórico. A Fenomenologia coloca importância primordial no indivíduo
para o processo de construção do conhecimento. Para esta corrente, o mundo deve
ser descrito segundo a maneira como é visto, sentido e percebido pelo indivíduo.

As significativas críticas à Geografia Clássica e a busca de novos paradigmas


encaminharam a Geografia para a concepção fenomenológica. Esta forma de
conhecer tem sua difusão com Husserl no final do século XIX. A compreensão
dessa tendência fica mais bem explicitada se atentarmos para o significado
de fenômeno, cujo conceito dá sustentação aos diferentes modos de conhecer.
Conforme Suertegaray (2005), temos diferentes sentidos para fenômeno: Fenômeno
indica aquilo que do mundo externo se oferece ao sujeito do conhecimento (visão
Kantiana); Tudo que existe, existe para uma consciência e a própria consciência
se faz conhecer, ou se mostra a si mesmo no conhecer, portanto, ela própria é
fenômeno (Hegel); A construção humana (consciência) é forjada a partir da tomada
de conhecimento da externalidade do homem em relação à matéria primordial
(Marx). A Fenomenologia de Husserl vem de encontro às visões de Kant e de
Hegel, para ele, tudo que existe é fenômeno, só existem fenômenos. Portanto,
consciência possui uma essência diferente da essência dos fenômenos, pois ela
dá sentido às coisas e estas recebem sentido. Fenômeno, então, é consciência de.
Tudo é fenômeno enquanto consciência de. Tomando estas referências é possível
perceber que, diferentemente das ideias de Kant, e na projeção diferentemente
do positivismo (a quem Husserl se opôs), temos que a Fenomenologia privilegia
o sujeito do conhecimento, na medida em que nega a consciência como fato
observável, ou como alma, e a considera o ato de construir essências ou significações.
Por isso se diz que, nesta perspectiva, fenômeno é essência, portanto, consciência é
consciência de intencionalidade. Estas breves observações nos permitem indagar:
O que é Fenomenologia? Dizemos que Fenomenologia é a descrição de todos os
fenômenos ou essências que aparecem à consciência e que são constituídas pela
própria consciência, isto é, são as significações de todas as realidades, sejam elas
naturais, materiais, ideais ou culturais.

155
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

Particularmente na Geografia, sintetizando as palavras de Relph (1979),


temos diferentes interpretações fenomenológicas. Tomando como ponto de
partida o conceito de espaço geográfico, é possível dizer que, de forma mais
generalizada, o foco de atenção dos geógrafos humanistas (assim denominados
os que trabalham com Fenomenologia, representações e cultura) é o mundo
vivido. Este é entendido como o mundo das experiências e do sentido que damos
a elas em nosso cotidiano. Portanto, o mundo vivido é um mundo subjetivo.
Três conceitos são fundamentais nesta perspectiva, são eles: espaço, paisagem
e lugar. O espaço, diferentemente das concepções já expostas, não é concebido
geometricamente, o espaço é vivido, experienciado. A superfície limitante do
espaço experienciado é a paisagem. Finalmente, temos o conceito de lugar, este
constitui o centro de significados expressando não só a localização, mas o tipo
de experiência com o mundo. Outro dado fundamental na concepção de mundo
vivido diz respeito às interconexões dos elementos geográficos. O mundo vivido
é o mundo dos espaços inter-relacionados, ou seja, conectam-se ao mundo vivido
as dimensões natural, social e cultural. E mais, o mundo vivido também se funde
com os espaços da imaginação e da projeção. É um espaço concreto, porque vivido
é único e não único, persistente e mutável, faz parte de nós e está à parte de
nós. O mundo vivido, sendo a expressão de nossas experiências, está associado a
sentimentos de prazer ou desprazer.

Sob esta perspectiva, de acordo com Suertegaray (2005), dois conceitos


foram criados: topofilia e topofobia. A topofilia foi desenvolvida nos Estados
Unidos por Yi-fu Tuan, que quer dizer, literalmente, amor aos lugares (topo, lugar,
e filia, amor). Topofilia designa a ligação afetiva que existe entre cada indivíduo
e os lugares. Nesse caso, trata-se de um sentimento extremamente particular.
A topofobia indica experiências não confortantes, a dimensão fenomenológica
na Geografia se expressa na ideia/conceito de geograficidade, que significa
nossas experiências de vida em relação ao espaço e ao tempo. Assim, temos que
geograficidade é a nossa forma de se relacionar com as coisas e as pessoas que
nos rodeiam. Ela é a dimensão espacial da experiência humana que se revela
necessária desde o nosso nascimento. São as respostas que damos às nossas
vivências. Sua complexidade e seu domínio tendem a se ampliar com o tempo.
Tempo, por sua vez, constitui a referência a um transcurso, o da nossa existência.
Tempo diz respeito à ideia de identificação de passado, presente e futuro em
relação a alguém, ou seja, ao sujeito geográfico. A noção de tempo e de espaço,
portanto, não existe a priori, constituem o sentido dado à nossa existência e, a
partir dela, o sentido dado à construção da natureza e da cultura.

A Fenomenologia, na Geografia Humana, de acordo com Johnston (1986),


diz respeito ao ambiente dos fenômenos. O conteúdo daquele ambiente é único
para cada indivíduo, pois cada um de seus elementos é o resultado de um ato de
intencionalidade. O seu significado é atribuído pelo indivíduo, sem o qual ele
não existe, mas com o qual ele influencia o comportamento. A Fenomenologia
vai estudar como tais significados são definidos. Nessa corrente de pensamento,
o pesquisador observa como os indivíduos estruturam o ambiente de um
modo inteiramente subjetivo; o pesquisador deve agir sem pressuposições

156
TÓPICO 1 | GEOGRAFIA HUMANISTA E CONTEMPORÂNEA

ou julgamentos, não usando nenhuma de suas próprias ideias ao procurar


compreender seu objeto de estudo. É importante perceber que nessa corrente os
conceitos de paisagem e de região foram revalorizados, e o conceito de território
tem na Geografia Humanista uma de suas matrizes. O lugar se tornou o conceito-
chave mais relevante, e o espaço adquiriu, para muitos autores, o significado de
espaço vivido. É somente a partir do início dos anos setenta, com a publicação
sucessiva dos artigos de Relph e de Yi-Fu Tuan, que a aplicação dos conceitos
da Fenomenologia à Geografia se manifestou com clareza. Tuan entendeu que
na ciência clássica minimizou-se a importância e o papel da consciência humana
para o conhecimento. Diferentemente daquela ciência, a Fenomenologia dá a
possibilidade de restabelecer o contato entre o mundo e as significações, por
possuir a verdadeira medida da subjetividade, pois conhecer o mundo é conhecer
a si mesmo (JOHNSTON, 1986).

Nesse sentido, Corrêa (2003) chamou a atenção para o pensamento de


Yi-Fu Tuan no que se refere ao estudo do espaço, ao dizer que no âmbito da
Geografia Humanista consideram-se os sentimentos espaciais e as ideias de um
grupo ou povo sobre o espaço a partir da experiência. Tuan (1980) argumentou
ainda que existem vários tipos de espaços, um espaço pessoal, outro grupal, onde
é vivida a experiência do outro, e o espaço mítico-conceitual que, ainda ligado
à experiência, extrapola para além da evidência sensorial e das necessidades
imediatas e em direção a estruturas mais abstratas. Tuan tratou ainda do espaço
sagrado como sendo o locus de uma hierofania, isto é, uma manifestação do
sagrado. Este autor destacou outro estudo que também tratou do espaço sagrado:
o de Rosendahl, em 1994, que definiu “o espaço sagrado” como o “ponto fixo”,
lugar da hierofania, e o entorno. Envolvendo o espaço sagrado aparecem,
respectivamente, os espaços profanos direta e indiretamente vinculados: todos
configuram o espaço da pequena vila. O lugar, para Tuan (1980), tem um outro
significado: possui um espírito, uma “personalidade”, havendo um sentido de
lugar que se manifesta pela apreciação visual ou estética e pelos sentidos a partir
de uma longa vivência. O espaço vivido é também um campo de representações
simbólicas, rico em simbolismos que vão traduzir.

Portanto, indivíduos estabelecem relações significativas com os lugares e


que os lugares significam sempre “alguma coisa” para os seres humanos. Assim,
caberia ao geógrafo pesquisar essa “alguma coisa”, levando em consideração que os
seres humanos interpretam os lugares e, simultaneamente, lhes dão sentido. Trata-
se, então, de compreender as modalidades segundo as quais os seres humanos
constroem suas relações com os lugares, quer sejam simbólicos, constitutivos de
identidade, ou mais banais e familiares. Entretanto, devemos chamar a atenção
para o fato de que a ligação dos seres humanos com os lugares é intermediada por
fatores culturais, sociais, econômicos e, mesmo, de origem biológica. Nesse sentido,
para se compreender as preferências, afetividades e atitudes de cada indivíduo ou
grupo, é necessário levar em consideração aqueles fatores.

157
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

Pode-se dizer que a abordagem fenomenológica consiste em descrever


o fenômeno, aquilo que se apresenta imediatamente. Propõe-se a descrever
os fenômenos da experiência. Esta descrição implica em exclusão de crenças
e preconceitos, colocar-se no lugar de, ou seja, procurar captar o sentido e
significado dados pelos atores, agentes, grupos envolvidos, ao vivido. Exige,
também, o reconhecimento da variabilidade e da complexidade do fenômeno
que está sendo descrito. Ao descrever não se busca as regularidades, indicam-
se as ambiguidades e a complexidade, procura-se a estrutura de significados.
Nessa forma de conhecer, a interpretação é sempre aberta à reinterpretação.
Assim, temos que a Fenomenologia se diferencia do Positivismo na medida
em que este confunde o ver com o visível empírico. Para os que trabalham
com a Fenomenologia, cada objeto sensível possui uma essência, por isso são
concebidos como fenômeno, procurando valorizar a experiência do indivíduo ou
de um grupo, visando compreender o comportamento e as maneiras de sentir as
concepções categóricas de análise do espaço e do lugar.

E
IMPORTANT

Em síntese, de acordo com Diniz Filho (2012), a Fenomenologia propõe um


verdadeiro conhecimento a partir de uma experiência originária pelo viés da redução
fenomenológica, que procura o essencial na experiência particular. O meio utilizado nesta
perspectiva é a descrição minuciosa, despojada de todo preconceito. Este procedimento, que
consiste em afastar todos os pressupostos, deve afastar também os conceitos e as categorias,
as quais estão em total contradição com os preceitos de base da Fenomenologia clássica.
Na Fenomenologia, entende-se que não há um mundo objetivo separado da existência
do homem. É nesse mundo objetivo, aliado à existência do homem, que o conhecimento
se desenvolve. Todo conhecimento resulta do mundo da experiência, por isso não pode
ser independente daquele mundo. Nessa abordagem epistemológica, o geógrafo vai
estudar como os indivíduos estruturam o ambiente de um modo inteiramente subjetivo; o
pesquisador deve agir sem pressuposições ou julgamentos, não usando nenhuma de suas
próprias ideias, ao procurar compreender seu objeto de estudo. Dentro desse propósito, o
conceito de paisagem foi revalorizado, assim como a região e o conceito de território tem
na Geografia Humanista uma de suas matrizes. O lugar se tornou o conceito-chave mais
relevante e o espaço adquiriu, para muitos autores, o significado de espaço vivido.

158
TÓPICO 1 | GEOGRAFIA HUMANISTA E CONTEMPORÂNEA

AUTOATIVIDADE

Exercitando-se com o ENADE.

[...] o espaço geográfico é, em pleno sentido do termo, um produto social, porque resulta
do trabalho que a sociedade organiza para alcançar seus objetivos. (ISNARD, H.
L’Espace Géographique. Paris: P.U.F., 1978. p. 52).
Esta compreensão a respeito do espaço geográfico apresentada pelo autor:

(A) baseia-se na Geografia da percepção, que considera o espaço geográfico


como um conjunto de símbolos e valores elaborados através das
experiências pessoais e coletivas.
(B) opõe-se à da corrente de pensamento marxista, que critica a dicotomia
Homem-Natureza, preocupando-se em desvendar as máscaras sociais
contidas no espaço geográfico, que revelam compromissos sociais do
discurso geográfico.
(C) baseia-se no determinismo geográfico, que considera o trabalho como
categoria determinante na estruturação do espaço geográfico, já que é
através dele que os homens modelam as formas espaciais.
(D) baseia-se na fenomenologia, que considera espaço geográfico como
fenômeno produzido pela sociedade através de diferentes modos de
compreensão e de elaboração da realidade.
(E) opõe-se à da corrente de pensamento positivista, que a partir de uma visão
empirista e naturalista, entende o espaço geográfico considerando a dicotomia
Homem-Natureza, sendo o homem apenas um dado do lugar.
FONTE: ENADE. Geografia 2005. Questão 22. Disponível em: < http://download.inep.gov.br/
download/enade/2005/provas/GEOGRAFIA.pdf>. Acesso em: 13 dez. 2018.

DICAS

SUGESTÃO DE AULA

Desenvolvimento capitalista no Brasil e economia urbana


Autora: Angelita Matos Souza.
Público-alvo: 3° ano do Ensino Médio.

INTRODUÇÃO
Nosso propósito será discutir questões de economia urbana de forma articulada ao processo
de desenvolvimento capitalista no Brasil. E quando se analisa este processo, o mais comum é a
busca de explicações sobre o porquê da incapacidade de se alcançar padrões mais elevados de
modernização, a exemplo de outras experiências de capitalismos atrasados – por exemplo, EUA
e Alemanha – ou mais apropriadamente de capitalismos tardios – Coreia do Sul em especial.
No entanto, surpreendente é que o país tenha conseguido construir o parque industrial mais
integrado e avançado da região, tendo em vista o atraso do processo de industrialização
(fundamentalmente, na 2ª metade do século XX), sob o signo da dependência externa e herança
cultural de séculos de escravidão manifesta na desvalorização do trabalho e tantas outras

159
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

dificuldades no que diz respeito à estrutura de valores que [...] (para continuar lendo, acesse
<http://www.cpscetec.com.br/cpscetec/arquivos/tematicas_geo.pdf>.

OBJETIVOS
O objetivo da aula foi traçar um panorama do processo de desenvolvimento capitalista no
Brasil, de 1930 a 1980, apontando para suas especificidades – capitalismo tardio, portanto
acelerado no tempo, sob o signo da dependência externa e marcado pela herança cultural
de séculos de escravidão. Tardio em relação à revolução originária (inglesa) e às revoluções
atrasadas do século XIX (alemã, japonesa, norte-americana); acelerado porque se tratou
de tentar alcançar rapidamente padrões de produção predominantes nos países centrais,
queimando etapas. Caminho que implicou maiores custos e dificuldades de desenvolvimento
científico-tecnológico, levando à dependência financeira e científico-tecnológica. No campo
da estrutura de valores, as mazelas de séculos de escravidão são inúmeras, da desvalorização
do trabalho braçal à cultura hierárquica e obstáculos à difusão de valores modernos. [...]

DESENVOLVIMENTO DA AULA
Partindo do pressuposto de que quando falamos em economia urbana devemos pensar nos
processos de industrialização e urbanização que acompanham a história da modernidade –
ou seja, do capitalismo –, iniciamos nossa exposição traçando um panorama do processo
de desenvolvimento capitalista no Brasil, com a exposição de um resumo-cópia, com
comentários da professora e disponibilizado aos alunos para leitura antes da aula, do
texto de Fernando A. Novais e João Manuel Cardoso de Mello (1998), Capitalismo tardio
e sociabilidade moderna. Em meio à nossa exposição destacamos os temas apresentados
na Introdução acima, baseados tanto no texto-roteiro de Mello e Novais como em outras
referências (ver bibliografia). Ao final, abordamos o tema do desenvolvimento neste início de
século, a partir de textos próprios (ver bibliografia), discutindo as diferenças e continuidades
com o modelo predominante na história do capitalismo no Brasil, no qual a modernidade e
a inclusão social estariam intrinsecamente identificadas ao consumo.

PONTOS PARA REFLEXÃO


As dificuldades para a superação de problemas prementes relacionados tanto à vida nas
cidades como no campo, na medida em que decorrentes de uma história que não diz respeito
apenas ao processo de industrialização/modernização da economia brasileira, de 1930 a 1980,
mas também à história anterior a este processo e sua herança política-ideológica.

UMA FRASE PARA PENSAR


“O Brasil, que já chocara as nações civilizadas ao manter a escravidão até finais do século
XIX, voltara a assombrar a consciência moderna ao exibir a sociedade mais desigual do
mundo” (MELLO; NOVAIS, 1998, p. 633).

AÇÕES QUE FAZEM A DIFERENÇA


Adotar ideias e práticas cotidianas universalistas (ou seja, levar a sério o princípio da
igualdade entre os homens); Estudar e se dedicar às atividades culturais em geral; Contribuir
politicamente (com o voto e a participação política) para com um futuro melhor para o país;
Adotar práticas ecologicamente corretas (além de politicamente).

SUGESTÃO DE LEITURAS COMPLEMENTARES


DAVIS, Mike. Planeta favela. São Paulo: Boitempo, 2006.
HARVEY, David. Espaços da esperança. São Paulo: Loyola, 2005.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Trad. Rubens Eduardo Farias. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2001.
SUGESTÃO DE VÍDEOS
Os documentários do diretor Silvio Tendler: “Os anos JK”; “Jango”.

SOBRE VIOLÊNCIA URBANA


“Notícias de uma guerra particular”, documentário do diretor João Moreira Salles; “Santa Marta:
duas semanas no morro”, documentário de Eduardo Coutinho. “Peões”, de Eduardo Coutinho.

FONTE: <http://www.cpscetec.com.br/cpscetec/arquivos/tematicas_geo.pdf>. Acesso em:


13 dez. 2018.

160
TÓPICO 1 | GEOGRAFIA HUMANISTA E CONTEMPORÂNEA

LEITURA COMPLEMENTAR

GEOGRAFICIDADE COMO SINTOMA

Tom Adamenas e Pires

O termo geograficidade vem, nos últimos anos, ampliando sua


permeabilidade no pensamento geográfico acadêmico e escolar – através dos
livros didáticos –, especialmente o brasileiro. Diferentes artigos, dissertações e
teses têm sido publicados com autores fazendo uso dessa categoria ao tratar dos
mais diversos eixos temáticos e com um largo espectro de fundamentação teórica.

De um modo geral, a ideia de geograficidade se enquadra nos debates


existentes entre ciência geográfica e ontologia (HOLZER, 1998; MARANDOLA
JR., 2008; MARTINS, 2007; MOREIRA, 2004). Assim, a geograficidade será
entendida como uma categoria da existência ou uma das “formas elementares
da existência” (MARTINS, 2007, p. 34), compondo o grupo de saberes que
“antecederá os saberes específicos” (MARTINS, 2007, p. 34). Essa afirmação,
ponto comum entre os geógrafos que imergem nos estudos sobre ontologia,
é também o limite do entendimento consensual sobre a estrutura formal da
ideia de geograficidade, que irá flanar livremente entre as perspectivas teóricas
existencialistas da Fenomenologia e do Marxismo.

Outra importante via de uso da ideia de geograficidade vem da


exploração do termo realizada por Yves Lacoste em seu livro A Geografia: isso
serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra, publicado em 1976, um marco nos
esforços de aproximação da ciência geográfica com o pensamento marxista.
Lacoste faz uma proposta para o uso do termo geograficidade “[...] que, para
muitos, parecerá bizarro, em paralelo ao de historicidade, do qual hoje se faz
uso corrente” (LACOSTE, 2012, p. 107). Apesar de pontuar o paralelismo com a
historicidade, o livro de Lacoste se propõe a buscar entender o que os geógrafos
consideram geográfico e o que deixam de lado em suas pesquisas, atentando ao
debate epistemológico sobre o possível objeto da ciência geográfica. Embora esse
núcleo original comum, relativo à definição do que é ou não geográfico, a forma
como é articulado o termo nos mais diversos trabalhos parece transformar-se em
rizoma, em um sentido deleuzeano, tornando-se nebuloso e pouco criterioso o
autor ou ponto de partida quanto à definição da ideia de geograficidade.

Encontra-se na publicação do livro O Homem e a Terra, de Eric Dardel, em


1952, o momento em que é cunhado o termo geograficidade (géographicité), havendo,
contudo, um hiato de pelo menos duas décadas até o início de sua divulgação
(BESSE, 2011; CLAVAL, 2007; HOLZER, 2011). Este silêncio foi quebrado pela defesa
da tese de doutoramento de Edward Relph, intitulada The Phenomenon of Place, em
1973, posteriormente publicada como o livro Place and Placelessness, em 1976, tido
como: “[…] um marco da Geografia Humanista e da renovação do interesse pelo
conceito de ‘lugar’ por parte dos geógrafos” (HOLZER, 2011, p. 143).

161
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

Apesar do reconhecimento tardio, o eco da obra foi significativo. Relph


(1980) buscava, no início dos anos 1970, uma alternativa teórico-metodológica
para a pesquisa em geografia, que possibilitasse superar os estudos positivistas
e comportamentalistas, os quais tentavam dar conta dos aspectos da percepção
humana. Relph irá catalisar em seu entorno um grupo de pesquisadores, dentre
eles Yi-Fu Tuan, interessados na abordagem fenomenológica em geografia,
influenciados pelos trabalhos de Martin Heidegger e Maurice Merleau-Ponty.

No Brasil, o primeiro contexto de utilização do termo geograficidade


será na introdução do volume dedicado a Élisée Reclus, da coleção Grandes
Cientistas Sociais, escrita por Manuel Correia de Andrade, em 1985. Ali, Andrade
emprega a noção de geograficidade para caracterizar o contraste do espectro de
atuação dos geógrafos proposto por Reclus e por Vidal de La Blache, no mesmo
sentido do proposto por Yves Lacoste, ainda que a tradução de seu livro para o
português, no Brasil, seja de apenas três anos depois, em 1988. Por um caminho
diverso, delineado pela leitura de textos de Edward Relph1 e Jean-Marc Besse2,
Werther Holzer traz em sua dissertação de mestrado, em 1992, uma tradução
do termo geograficidade, tal como proposto por Dardel, iniciando sua aplicação
no debate ontológico realizado no campo acadêmico geográfico brasileiro. Essas
duas concepções iniciais de geograficidade trazidas para o Brasil inaugurariam
uma série de publicações, formação de grupos de pesquisa, organização de
eventos, orientações e defesas que iriam, em diferentes sentidos, desmembrar
e ressignificar suas acepções originais, ainda que resgatando, nos autores
fundamentais, o seu embasamento. A ampliação do uso do termo geograficidade,
aliada às ambiguidades de sua significação e aplicação, abrem caminho para
um esforço de entendimento sobre o tema, buscando fornecer maior solidez ao
arcabouço teórico que orbita o assunto. Vale dizer: deve-se buscar minimizar o
risco de transformar esta categoria em uma espécie de caixa-preta latouriana,
visando abster-se da negligência com a formalidade e rigor acadêmicos caros às
pesquisas dessa natureza. Sobre esta necessidade, Moraes (2014, p. 9) argumenta:

Hoje se observa que a fundamentação teórica de muitas investigações advém de


diálogos entre correntes e autores díspares, revelando um leque de influências
distintas não redutíveis a uma classificação única e genérica. [...] A aceitação
de certa dose de “individualismo metodológico” não significa, todavia, que o
controle epistemológico dos procedimentos analíticos de uma dada pesquisa
em ciências humanas não necessite de explicitação.

Um ponto de particular interesse nesse debate, de cunho essencialmente


ontológico, dá-se justamente no trazer à luz da ausência do próprio tema da
ontologia na geografia acadêmica brasileira. Sobre a importância desse diálogo
são significativas as palavras de Sérgio Lessa (1998, p. 11):

[…] é a ontologia o terreno decisivo para se contrapor às teorias contemporâneas


que, de um modo ou de outro, tentam fundamentar a impossibilidade da
subversão revolucionária da ordem burguesa. Todas elas, mutatis mutandis,
justificam a sociabilidade contemporânea fazendo coincidir os horizontes do
possível com os limites da sociedade burguesa; e, para tanto, não têm outra
alternativa senão afirmar a a-historicidade de, pelo menos, alguns dos traços
essenciais do ser humano.

162
TÓPICO 1 | GEOGRAFIA HUMANISTA E CONTEMPORÂNEA

Ocorre que essa ausência parece se apresentar mais como sintoma do que
ponto pacífico sobre algo resolvido. Há como um fantasma ignorado, mas que
atravessa toda a produção acadêmica contemporânea: a relação sujeito-objeto. E
quanto mais se ignora este problema, maior a crise científico-filosófica que se anuncia.

Se a metafísica, ao colocar o Ser como propriedade do sujeito, ignora a


eficácia da análise cientista que projeta o Ser por completo no objeto – cabendo,
portanto, a ela desvelar esse Ser –, também as chamadas hard sciences se tornam
prenhes de um problema ético sobre a possibilidade de outra relação existencial
com o mundo que não a própria, flertando assim com a já superada a-historicidade.
Martins (2007, p. 43) formula para este problema que “[…] uma sociabilidade
singular é humanidade genérica ante o homem particular”.

O que parece se desvelar aí é uma necessidade de reconsideração sobre o


significado próprio do que é o ser humano. E sem esse debate realizado, continuaremos
desvendando o fantasma. Longe de resolver o problema, mas anunciando um
caminho possível para o debate, a antropologia vem se refazendo epistemológica e
ontologicamente. Encontramos em Viveiros de Castro (2002, p. 117) uma passagem
que suscita este repensar e encerramos justamente com ela este diálogo:

“É justo porque o antropólogo toma o nativo muito facilmente por um outro


sujeito que ele não consegue vê-lo como um sujeito outro, como uma figura de
Outrem que, antes de ser sujeito ou objeto, é a expressão de um mundo possível”.

FONTE: <http://www.geografia.blog.br/gallery/gdn03v01_01.pdf>. Acesso em: 13 dez. 2018.

163
RESUMO DO TÓPICO 1

Neste tópico, você aprendeu que:

• Na década de 1970, surgiu a Geografia Humanista/Humanística, que está


embasada nas filosofias do significado, especialmente a Fenomenologia e
o Existencialismo. Na verdade, tal corrente de pensamento expressou a sua
crítica à Geografia de cunho lógico-positivista.

• A Geografia Humanista/Humanística é definida por bases teóricas nas quais


são ressaltadas e valorizadas as experiências, os sentimentos, a intuição, a
intersubjetividade e a compreensão das pessoas sobre o meio ambiente que
habitam, buscando compreender e valorizar esses aspectos. A geografia
humanista ou humanística é a tendência do pensamento geográfico que estuda
as experiências de indivíduos e grupos em relação ao espaço com o intuito de
compreender seus comportamentos e valores.

• Os geógrafos que preferem usar a palavra humanística argumentam que


todos os estudos de Geografia Humana põem em foco comportamentos do
homem, de modo que a palavra humanista é muito genérica, pois se aplica a
todos os ramos e vertentes de estudo. Assim, esses autores falam em Geografia
Humanística para enfatizar que estudam os elementos mais particularmente
humanos da relação do homem com o espaço e a natureza, que são os valores,
crenças, símbolos, atitudes, entre outros.

• Ao final da década de 1960, nos países capitalistas avançados se desencadeou o


agravamento das tensões sociais, fruto do grande desemprego, dos problemas
com habitação, da luta pelos direitos civis e das questões raciais. Essa crise
se proliferou nas Ciências Sociais, nas quais emergiu uma outra tendência
interpretativa da sociedade, que são os movimentos denominados críticos,
marxistas ou radicais, que de certa maneira influenciaram a forma de ler os
fenômenos da ciência geográfica e produzem questionamentos, ou seja, a
geografia de abordagem crítica, a qual tem como método de análise principal o
materialismo histórico e dialético.

• A Geografia Crítica incorporou alguns conceitos marxistas na análise geográfica.


O autor pioneiro a apresentar a discussão sobre as relações de produção, as
relações de trabalho, a ação do grande capital, as forças produtivas, no âmbito
da Geografia, foi o francês Pierre George.

164
• A Geografia Crítica ou Radical se assenta em dois princípios marxistas:
o materialismo dialético, para o qual a natureza, a vida e a consciência se
constituem de matéria em movimento e evolução permanente, e o materialismo
histórico, para o qual o modo de produção é a base determinante dos fenômenos
históricos e sociais, inclusive as instituições jurídicas e políticas, a moralidade,
a religião e as artes. Interessa-se pela análise dos modos de produção e das
formações socioeconômicas.

• As significativas críticas à Geografia Clássica e a busca de novos paradigmas


encaminharam a Geografia para a concepção fenomenológica. Esta forma de
conhecer tem sua difusão com Husserl, no final do século XIX. A compreensão
desta tendência fica mais bem explicitada se atentarmos para o significado de
fenômeno, cujo conceito dá sustentação aos diferentes modos de conhecer.

• Particularmente na Geografia, sintetizando, temos diferentes interpretações


fenomenológicas. Tomando como ponto de partida o conceito de espaço
geográfico, é possível dizer que, de forma mais generalizada, o foco de atenção dos
geógrafos humanistas (assim denominados os que trabalham com Fenomenologia,
representações e cultura) é o mundo vivido. Este é entendido como o mundo das
experiências e do sentido que damos a elas em nosso cotidiano.

165
AUTOATIVIDADE

1 Ao longo dos tempos, a Geografia se mostrou como um campo do conhecimento


que busca constantemente a compreensão do mundo e suas contradições
nas relações sociais, na apropriação e uso do meio ambiente. No decorrer
do seu processo de desenvolvimento e construção evidenciam-se diferentes
formas de perceber, pensar e refletir os fenômenos socioespaciais, sendo cada
uma das geradoras concepções, as quais são fundamentais no processo de
construção do conhecimento geográfico. Essas concepções referem-se às:

a) ( ) Linhas culturais.
b) ( ) Linhas metodológicas.
c) ( ) Linhas econômicas.
d) ( ) Linhas e alinhamentos.

2 A visão de que a perspectiva humanista ou humanística procura, acima


de tudo, servir como ferramenta de autoconhecimento para o homem, os
pressupostos que dão unidade a essa corrente derivam da incorporação de
variadas formas de pensamento humanista pelos geógrafos. Um pressuposto
importante desse tipo de pensamento é a:

a) ( ) Visão natural do saber. 


b) ( ) Visão biológica do saber. 
c) ( ) Visão antropocêntrica do saber.
d) ( ) Visão matemática do saber.

3 A Geografia Humanista pode ser considerada a mais diversificada quanto


as suas opções epistemológicas, não havendo uma corrente filosófica ou
científica que predomine claramente nos estudos humanistas, nem mesmo
um método que seja mais frequente em tais estudos. Referente à Geografia
Humanista, analise as sentenças a seguir:

I- Percebe-se que a Geografia Humanista/Humanística está apoiada em


pressupostos da Fenomenologia, como subjetividade. 
II- Percebe-se que a Geografia Humanista/Humanística está apoiada em
pressupostos da Fenomenologia, como objetividade. 
III- A Geografia Humanística tentou compreender como as atividades e
fenômenos geográficos revelam a qualidade da percepção humana.

É correto o que se afirma em:


a) ( ) I, II e III.
b) ( ) I e II, apenas.
c) ( ) III, apenas.
d) ( ) I e III, apenas.

166
UNIDADE 3
TÓPICO 2

PERSPECTIVAS HISTÓRICAS, AMBIENTAIS E PÓS-MODERNAS

1 INTRODUÇÃO
Em seu processo histórico, a ciência geográfica privilegiou determinadas
temáticas, como o território, a paisagem, a região e o espaço, que passaram a
constituir suas categorias fundamentais e cada qual dominante num dado tempo.
Diferentes olhares de cada uma dessas categorias são fruto de diversos paradigmas
que vêm estruturando a Geografia e que, por sua vez, encontram-se articuladas
às diversas correntes filosóficas, fornecedoras de critérios epistemológicos e às
relações da Geografia com as disciplinas afins.

O desenvolvimento teórico-metodológico que se observa na Geografia,


na prática, muito se deve à ação dos seus diferentes ramos (urbana, regional,
econômica etc.) que, por especificidade, entram mais frequentemente em contato
com as ciências afins. A Geografia se coloca como um campo de conhecimento
preocupado com a dimensão espacial da sociedade, não se pode esquecer que
os fenômenos sociais são, também, temporais. Portanto, essas categorias não são
prisioneiras desta ou daquela ciência e podem, consequentemente, ser apreendidas
por todas, desse modo essas questões não podem ser apenas as do presente.

Cenário de intensa crise e de profundas mudanças, a mais profunda crise


da humanidade e de civilização, o final do século XX e início do XXI desafia a
sociedade em geral a encontrar novos rumos para a construção do presente e do
futuro. Aos intelectuais e cientistas demanda, de maneira geral, um “repensar”
a ontologia e a epistemologia a partir do questionamento dos paradigmas que
sustentam a produção do conhecimento na modernidade. Aos geógrafos, de
maneira particular, impõe um profundo questionamento relativo ao estatuto da
geografia contemporânea diante das novas dimensões do espaço e dos graves
problemas sociais que se materializam na superfície terrestre e se relacionam com
o contexto educacional. Assim, neste tópico, abordaremos as vertentes históricas,
ambientais e pós-modernas da Geografia.

167
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

2 A GEOGRAFIA HISTÓRICA
A Geografia Histórica, além de se preocupar em recuperar as espacialidades
pretéritas que marcam as espacialidades atuais, busca metodologias apropriadas e
esforça-se para refletir a categoria tempo, a fim de fornecer subsídios à abordagem
espacial e temporal. De acordo com Erthal (2003), na geografia emergente nos anos
de 1970, não se edificou um só paradigma oficial. É certo que a corrente marxista,
com sua postura crítica, exerceu papel fundamental na denúncia e desmonte da
nova geografia, mas ela não obteve monopólio do saber e fazer geográficos. Esta
corrente que examina a sociedade através dos materialismos histórico e dialético
tem alcançado êxito ao ser aplicada à Geografia. A aplicação de tais conceitos pela
Geografia Histórica, certamente, auxiliaria a esclarecer a produção do espaço em
diversas escalas.

Há três fontes consideradas fundamentais para a construção teórica


e metodológica da pesquisa do passado em Geografia, de acordo com Silva
(2007). A primeira fonte encontramos na Geo-história de Fernand Braudel, cuja
interpretação das civilizações antes consideradas como espaços nos conduz numa
reconstrução dinâmica e abrangente de geografias do passado; a segunda fonte
vem da Geografia Histórica anglo-saxã, cuja solidez da produção acadêmica
influencia, dissemina e sugere métodos da investigação histórica em Geografia;
e a terceira fonte vem da abordagem cultural na Geografia, cujo conceito de
paisagem e seu papel na transição histórica para o capitalismo nos orientam
na investigação da dimensão simbólica, essencial na análise, contextualização e
releitura(s) das geografias do passado.

O surgimento da Geografia Histórica (moderna), de acordo com Pires


(2008), foi no início do século XX, mas outras tendências filosóficas, além do
Positivismo, influíram a formação intelectual dos geógrafos que pertenciam
à escola da Geografia Histórica, como foi o caso do Historicismo. Entre todas
as ciências, a História é a de relação mais íntima com a Geografia. A Geografia
utiliza-se da História para poder compreender, em tempos passados, a
construção do espaço, pois este é o resultado da construção mútua dos diferentes
períodos históricos. Contudo, estudar o meio geográfico também é uma condição
imprescindível para o conhecimento histórico. A publicação, nos anos 1920, do
trabalho La Terre et l'Evolution Humaine. Introduction Géographie à l'Histoire, de
Lucien Febvre, grande representante da Escola Francesa dos “Annales”, causou
alvoroço e influiu para o fortalecimento da crítica à ideologia ambientalista que
tanto caracterizou a Geografia Moderna no final do século XIX. Uma vasta gama
de temas novos foi introduzida por esta corrente na história do pensamento
geográfico. A Geografia Histórica foi resultante da produção de intelectuais de
origem francesa pertencentes ao Collège de France.

168
TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS HISTÓRICAS, AMBIENTAIS E PÓS-MODERNAS

Ainda no início de 1920, segundo Claval (2007), a Geografia Histórica


começa a se disseminar pelos países de cultura anglo-saxônica através de três
importantes geógrafos que aprofundaram os fundamentos filosóficos desta
corrente nos EUA: Carl Ortwin Sauer (1889-1975), Derwent Stainthorpe Whittlesey
(1890-1956) e John Kirtland Wright (1891-1969). Estes geógrafos formaram a
escola estadunidense da Geografia Histórica, também chamada de Escola do
“Middle West” ou de Berkeley. A grande contribuição de Sauer no movimento de
renovação da Geografia Histórica foi a crítica que dirigiu à ideologia dominante
do determinismo ambiental disseminada pela Geografia Moderna do final
do XIX e início do século XX. Em contraposição a essas ideologias, ele propôs
o desenvolvimento de uma teoria geográfica da “morfologia paisagem” e da
“história cultural”. Seus estudos dedicaram-se à análise dos impactos históricos
da ação humana na paisagem. Sauer não conseguiu ser um crítico radical do
Positivismo. Em seus artigos e livros, preferiu desenvolver uma interpretação
particularista e historicista do mundo.

No período compreendido entre 1940 em diante, nas palavras de Pires


(2008), importantes contribuições para o aprofundamento do legado da Geografia
Histórica foram realizadas por diversos geógrafos. Nesta fase de desenvolvimento
da Geografia Histórica, merece ser destacada a contribuição de Jan Otto Marius
Broek, geógrafo holandês, nascido em Utrecht, que estudou a Geografia Social
em Utrecht com Louis van Vuuren (1873-1951). Após concluir seus estudos, foi
estudar nos Estados Unidos com uma bolsa da Fundação Rockefeller. Produziu
um amplo material a respeito das transformações da paisagem e da cultura, na
Califórnia, que serviu de base para a confecção de sua tese escrita em 1932. Esta
tese representou um importante estudo histórico sobre a evolução dos usos da
terra na região de Santa Clara Valley. Ele identificou três fases do desenvolvimento
da agricultura desta região a partir de 1850. As ideias desenvolvidas por Jan
Broek, em sua tese sobre as transformações da paisagem em Santa Clara Valley,
revelaram a forte influência das concepções de Carl Sauer na formação intelectual.

Na França, o aprofundamento recente do legado da Geografia Histórica e


Cultural foi realizado pelos geógrafos Xavier Planhol (1926) e Paul Claval (1931).
De acordo com Pires (2008), Xavier Planhol, nascido em Paris, professor emérito de
Geografia da Universidade de Paris-Sorbonne (Paris IV), ensinou durante mais de
40 anos a Geografia do mundo islâmico nas universidades de Nancy e de Paris e
também no Instituto Nacional das Línguas e das Civilizações Orientais. Planhol é
conhecido como um grande expoente na área da Geografia Política pela pesquisa
que empreendeu sobre os países árabes. Os temas principais que marcaram a
obra de Planhol são: relações entre o homem e o meio; o pastoralismo; a Geografia
Histórica e Cultural; a Geografia Urbana; Geografia Política, particularmente do
mundo Turco-Iraniano que é seu campo de estudo predileto. Paul Claval, nascido em
Paris, professor-doutor da Universidade de Paris IV (Sorbonne), é um dos maiores
geógrafos históricos da atualidade. Suas obras são referências indispensáveis no
estudo da História da Geografia e contribuem no desenvolvimento de pesquisas
sobre a origem da Geografia Cultural. Seu trabalho científico tem tratado também
de temas sobre outras áreas complementares: a Sociologia e a Economia.

169
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

A Geografia Histórica é o ramo da Geografia Humana que trata da análise


das relações estabelecidas entre o homem e a natureza ao longo do processo
histórico. Neste sentido, a Geografia fornece subsídios e materiais históricos
para a investigação nas áreas da Geoeconomia, Geopolítica e especialmente
da Geografia. Em síntese, pode-se afirmar que a Geografia Histórica estuda as
características e evolução dos espaços históricos, sua morfologia, paisagem e
organização territorial, assim como sua formação social. Como na Geografia, em
várias áreas das ciências humanas houve um movimento semelhante de renovação,
nos escritos de Pires (2008), uma revalorização da ciência da História no estudo
dos processos geográficos e dos aspectos socioculturais na análise dos processos
espaciais. A valorização da ciência da História foi um passo extraordinário
no processo de ruptura com a concepção tradicional da história baseada nas
narrativas pessoais ou “história historicizante”, repletas de vieses ideológicos
cuja análise procurava explicar os contextos históricos como resultantes do jogo
de poder de pessoas e países.

Em síntese, a Geografia Histórica vem guardando a tradição geográfica,


que é a sua íntima relação com o tempo e, portanto, com a História. Afirmou-
se pela insistência de alguns geógrafos humanos, sobretudo britânicos e
americanos, que se recusaram a fazer uma ruptura epistemológica da Geografia
com a temporalidade e, portanto, com a própria História, para se firmar enquanto
disciplina autônoma. A abordagem cultural nos Estados Unidos surgiu com a
abordagem moderna da Geografia Histórica na Inglaterra, onde passou a ser uma
das várias temáticas da disciplina na perspectiva dos estudos das transformações
no tempo. A cultura só pode ser apreendida em sua dinâmica, sendo necessário
um enfoque que possibilite essa apreensão, qual seja, o das transformações no
tempo, cujo conceito capaz de abarcar essa dimensão é o de paisagem. Ao processo
de criação de paisagens nos lugares corresponde a manifestação material de um
período histórico específico, cujas inserções na economia-mundo nos diferentes
tempos fornecem os subsídios para o estudo da dimensão simbólica.

E
IMPORTANT

Geografia Histórica é o termo com o qual se define o conjunto de estudos


voltados para a reconstrução de paisagens geográficas em diferentes períodos. Esta área de
estudos envolve a reconstrução de fenômenos e processos centrais para a compreensão
geográfica das atividades humanas, levando em conta a ocupação humana, o respectivo
ambiente por esta construído, aplicação dos recursos naturais locais, tudo isso medido pela
gama de conhecimentos geográficos aplicados ao estudo. Dedica-se ao processo histórico
de modernização dos lugares provocados pela difusão dos objetos modernizadores, isto é,
dos objetos técnicos. Ganhou importância por meio dos estudos de geógrafos humanos,
sobretudo britânicos e americanos que em seus estudos insistiam em manter conceitos
considerados como pertencentes à área da História, "fundando" a área da Geografia Histórica.

170
TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS HISTÓRICAS, AMBIENTAIS E PÓS-MODERNAS

3 A GEOGRAFIA AMBIENTAL
É o estudo dos efeitos das ações do homem sobre o ambiente terrestre; o
meio ambiente envolve todas as coisas vivas e não vivas da Terra que afetam os
ecossistemas e a vida humana. Em certo sentido, a maneira como o ser humano
ocidental vê a natureza remete à ideia judaico-cristã. Esse pensamento aumentou
as ilusões de domínio completo da natureza.

No final do século XX e início do século XXI, com geógrafos buscando


uma nova metodologia, dita integradora e possível de explicar os acontecimentos
relacionados à sociedade e ao seu meio ambiente, surge uma nova tendência na
Geografia, tendência intitulada Geografia Ambiental, também chamada de um Novo
Paradigma da Geografia, mas que também serve a vários outros ramos da ciência,
principalmente aqueles ligados ao estudo do meio ambiente e suas influências.

Segundo Mendonça (2002), a Geografia Ambiental ou Geografia e Meio


Ambiente pode ser uma nova corrente ou linha de pensamento dentro da Ciência
Geográfica, fruto de todas as discussões e inquietações que motivaram o debate
geográfico nos últimos 20 anos. Tal afirmação não é difícil de ser constatada como
verdade, relendo, inclusive, o que aqui já foi abordado, pois toda a discussão que
norteou os aspectos metodológicos da Geografia nos últimos tempos se ampara
nesta premissa (homem/meio). Se a Geografia Tradicional tratava de descrever o
meio e a Geografia Crítica defendia que o ser social (homem) e suas relações devem
ser priorizados, então a resposta ao dilema parece ser a “corrente Ambiental”, pois
tem como centralidade a discussão das relações “sociedade-natureza”.

De acordo com Andrade (2009), a Geografia Ambiental se propõe a utilizar


o saber em busca da sustentabilidade, ou seja, são necessárias mais do que teorias
sobre o meio ambiente para se explicar a escassez dos recursos naturais. Da
mesma forma, o Marxismo não pode explicar sozinho toda a dinâmica econômica
que leva o mundo ao atual estágio de relação capitalista. Estes são os desafios da
“nova tendência”, a busca de uma explicação da origem dos recursos naturais
que passe pelo pensamento metafísico e vá em busca de uma construção de um
ideal socioambiental. Tarefa esta que não pode desmerecer todo o saber produzido
dentro e fora da Geografia, inclusive aquele relacionado à crise de civilização e da
racionalidade do mundo moderno. Crise explicada pela falta de diálogo entre os
diversos pensadores das relações entre a sociedade e o meio em que vive. Cada
qual procura propor uma nova teoria e, muitas vezes, acreditam na ineficácia
total de teorias com as quais não concorda. O “saber ambiental” não pode e nem
deve desprezar os conhecimentos exteriores, mas promover o diálogo entre eles,
procurando a resposta para a crise ambiental no seu mais amplo entendimento.

Segundo Mendonça (2001), existe uma crítica ao método e às metodologias


geográficas, amparada principalmente em discursos “parciais”, pois não apresenta
uma proposta integradora, que busque a resposta aos anseios da comunidade
geográfica. Na maioria das vezes, a ideologia fala mais alto e as propostas
metodológicas, ditas inovadoras, são endereçadas a objetos e objetivos bastante

171
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

específicos. A corrente da Geografia Ambiental tenta apontar uma solução para tal
impasse e propõe uma avaliação integradora e imparcial da realidade geográfica,
mas novamente surgem críticas, e estudiosos da teoria geográfica, que são
respeitados por avanços teóricos e metodológicos na Geografia, acusam esta ideia
de “generalizar” o fato geográfico. Resta, ainda, novamente enfatizar que o método
ou metodologia ambiental não deve ser confundido com o tratamento do ambiente
enquanto sinônimo de natureza, isso seria diminuir o conceito. É notório que a
Geografia não considera o ambiente de forma individualizada, tal conceito está
alicerçado na definição de ambiente enquanto união das relações sociais com as
naturais. Não se pretendeu discutir tal definição através destas reflexões, somente
fortalecê-la, pois o próprio esboço metodológico escolhido como padrão se ampara
na necessária inter-relação ou interação sociedade-natureza.

A Geografia Ambiental interessa-se pelos estudos acerca do meio ambiente


e da preservação da natureza, configurando-se como uma área essencialmente
interdisciplinar. É a área dos estudos geográficos que se preocupa em compreender
a ação do homem sobre a natureza, produzindo o seu meio de vivência e a
sua transformação. Nesse sentido, também é objetivo desse ramo do saber o
conhecimento a respeito das consequências dessas ações antrópicas e dos efeitos da
natureza sobre a sociedade. A principal ênfase dos estudos ambientais na Geografia
refere-se aos temas concernentes à degradação e aos impactos ambientais, além do
conjunto de medidas possíveis para conservar os elementos da natureza, mantendo
uma interdisciplinaridade com outras áreas do conhecimento, como a Biologia, a
Geologia, a Economia, a História e muitas outras.

A abordagem ambiental pode ser concebida a partir de três grandes


momentos, conforme Mendonça (1993). O primeiro, no qual o ambiente
configurava-se num sinônimo de natureza (ambientalismo = naturalismo). Ao
segundo momento pode ser associado o tecnicismo. A terceira postura identificada
é o romantismo, fortemente marcada por perspectivas políticas extremistas na
condução de problemas ambientais, mas não se assemelha ao segundo momento do
ambientalismo. Neste momento é que se observa o salto dado por alguns geógrafos
ao romperem com a característica majoritariamente descritiva-analítica do ambiente
natural ainda muito presente, passando a abordá-lo na perspectiva da interação
sociedade-natureza e propondo, de forma detalhada e consciente, intervenções
no sentido da recuperação da degradação e da melhoria da qualidade de vida do
homem. Neste momento do ambientalismo geográfico nota-se uma expressiva
diferença da corrente ambientalista em relação a outras correntes do pensamento
geográfico, e de maneira muito particular a corrente da Geografia Crítica. Se para
esta última a derrocada do socialismo real e o questionamento da perspectiva
marxista como prisma necessário para a leitura do real se enfraqueceram, para
a corrente ambientalista o impacto não foi tão profundo, afinal, tornou-se mais
explícita que a busca para a solução dos problemas socioambientais do planeta deve
estar acima de quaisquer ideologias, mesmo que possa ser por todas apropriada.

172
TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS HISTÓRICAS, AMBIENTAIS E PÓS-MODERNAS

O principal cerne de estudos é o meio ambiente e as suas formas de


preservação. Entende-se por meio ambiente o espaço que reúne todas as coisas
vivas e não vivas, possuindo relações diretas com os ecossistemas e também com
as sociedades. Com isso, fala-se que existe o ambiente natural, a partir das análises,
reflexões e considerações abordadas nesta contribuição geográfica, toma-se o espaço
geográfico (sinônimo de natureza) como uma dimensão fundamental da vida em
sociedade, e não apenas como palco ou cenário que pouco influencia essa vida.
Destaca-se que é preciso conhecer em profundidade todas as relações intrínsecas
à natureza e à sociedade, sob um olhar de sua diversidade e interatividade que se
materializa no tempo e no espaço. Dessa forma, os estudos integrados da natureza
(em conjunto com a sociedade, que é indissociável no espaço geográfico) vêm,
ao longo do tempo, se estabelecendo como uma das formas mais completas e
exitosas para o estudo das complexas relações inerentes ao espaço-tempo, aquele
constituído sem a intervenção humana, e o ambiente antropizado, aquele que é
gerido no âmbito das práticas sociais.

E
IMPORTANT

Sobre Crise Ambiental, Naturalismo e Geografia Ambientalista:

1 “A crise ambiental não é crise ecológica, mas crise da razão. Os problemas ambientais
são, fundamentalmente, problemas do conhecimento. Daí podem ser derivadas fortes
implicações para toda e qualquer política ambiental que deve passar por uma política
do conhecimento e também para a educação. Apreender a complexidade ambiental
não constitui um problema de aprendizagens do meio, e sim de compreensão do
conhecimento sobre o meio” (LEFF, 2001, p. 217).
2) A geografia naturalista e o homem natural: o naturalismo geográfico resultou da preocupação
em conhecer a superfície da Terra e controlar a natureza (e foi impregnado pelos postulados
positivistas e empiristas da época. Dentre as características desse tipo de pensamento
geográfico podem ser citados: o privilégio do empirismo e da indução, a resistência na
aceitação da diversidade de métodos de interpretação; e a visão de unicidade da geografia.
A geografia ambientalista e o homem social: buscam estabelecer relações entre o meio
e o homem, mas dessa vez um homem social, enxergado em; e um meio que não é
mais caracterizado como um meio físico de suporte à vida, como no período naturalista
da Geografia; vai além disso, caracteriza-se como um meio geográfico, como a do meio
técnico-científico-informacional.

173
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

4 A GEOGRAFIA PÓS-MODERNA
Filosoficamente, o período pós-moderno se expressa pela descrença na
concepção de tempo que funda a Modernidade, o tempo longo, a valorização da
história e da ideia de progresso. Uma das grandes críticas dos pós-modernistas é
a perspectiva de encontro com a “felicidade” sempre no futuro. Esta dimensão diz
respeito ou interessa à Geografia na medida em que, para muitos autores, a crença
de que a solução está no futuro, no progresso, gerou não só uma desvalorização
do espaço (lugar), como a sua deterioração em termos de recursos e qualidade de
vida. Neste sentido, esse momento resgata uma discussão de interesse, trata-se
da valorização do espaço não só na perspectiva econômica, enquanto portador de
recursos, mas também como o lugar da existência. Essa valorização do lugar está
em parte associada à ideia de diferença. Considerando que a pós-modernidade
também questiona as explicações totalizantes, os planejamentos centralizados, as
verdades eternas e universais e valoriza a pluralidade do poder discursivo, o jogo
de linguagem em que cada um ou cada grupo pode gerar, a partir de seu lugar,
distintos códigos e sentidos, valoriza, também, a singularidade do lugar.

Existe muita discussão a respeito da pós-modernidade na ciência, e na


própria Geografia, sendo vários os eixos de discussão e tendências que procuram
delimitar o debate pós-moderno, a análise ou identificação do potencial crítico
dessa questão faz com que os estudiosos procurem redefinir as possibilidades
de análise, discutindo-a antes como uma condição histórica e não como estilo. O
tema Pós-Modernismo é um conceito que pode ser lido e interpretado a partir de
rupturas radicais ao Modernismo: a emergência de uma sociedade nova; a lógica
cultural do capitalismo avançado. É um tema discutido sob diferentes dimensões:
cultural, política, econômica, filosófica, administrativa, entre tantas outras.
Pode-se buscar o entendimento deste conceito sob diferentes enfoques. Assim,
o Pós-Modernismo pode ser entendido como uma prática que emana da cultura
do consumo de massa enraizada na vida cotidiana nesta fase do capitalismo
avançado, ou um momento do capitalismo denominado Acumulação Flexível do
Capital, quando pensado economicamente e representado pelo Neoliberalismo.

Trata-se de um período em que há uma crise da economia, com


significativas transformações no mundo do trabalho e do processo produtivo,
com o advento das novas tecnologias vinculadas ao desenvolvimento da
ciência cibernética. Nesse contexto, o trabalho se torna informal. Este momento
é denominado de Período Técnico-Científico Informacional. Trata-se de um
momento em que o advento de novas tecnologias impulsionadas pela ciência,
demandadas dos grandes centros de investigação e/ou corporações, impõe novas
formas de produzir e consumir. A tecnociência constitui-se na força produtiva
e seus produtos impõem mudanças radicais não só nas concepções de tempo e
espaço que deram suporte à modernidade, mas impõem mudanças significativas
na vida cotidiana. São essas mudanças associadas a outras questões emergentes
no mesmo período, como a crise do petróleo, a questão ambiental e a qualidade
de vida, que vão promover o desmoronamento (a crise).

174
TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS HISTÓRICAS, AMBIENTAIS E PÓS-MODERNAS

No que tange à relação dos conceitos pós-modernos na Geografia é possível


detectar uma mudança profunda nas práticas culturais e político-econômicas
desde 1970, e esta mudança está vinculada à emergência de novas maneiras
dominantes pelas quais experimenta-se o tempo e o espaço, portanto, enxerga-se
este período do Pós-Modernismo como um período de transformações culturais.
Ocasionada diante da transformação político-econômica do capitalismo, a partir
do final do século XX, essa mudança ganha expressão na arquitetura e no projeto
urbano das cidades, na transformação do fordismo para a acumulação flexível e
na compressão do tempo-espaço que formam a condição pós-moderna. Quanto
à esfera da cultura, os exemplos mais característicos desse momento histórico
dizem respeito a novas formas de pensar e viver. Assim, na Arquitetura, o projeto
é construir para as pessoas e não para o homem, ou seja, há a possibilidade do
“toque” individual nas construções coletivas, enquanto o planejamento urbano
enfatiza a revitalização urbana, em que os exemplos mais significativos são os de
revitalização dos centros das cidades com a reconstituição de prédios históricos e
a transformação de suas funções, por vezes comerciais ou bancárias, em centros
culturais e/ou museus. A paisagem se revitaliza incorporando e redirecionando
a funcionalidade de prédios antigos. Trata-se de novas formas de valorização do
espaço e do patrimônio. Por se tratar de uma situação contemporânea, presente,
não é fácil elaborar uma visão crítica da pós-modernidade, por esta ainda não ser
uma condição histórico-geográfica, a não ser que tenha como referência condições
sociais e materiais, o que possibilita escrever a geografia histórica da experiência
do espaço e do tempo na vida social, assim como compreender as transformações
por que ambos têm passado.

Nas palavras de Diniz Filho (2012), já não é difícil encontrar geógrafos


que reconhecem erros e insuficiências na geografia marxista, propondo-se por
isso a fazer uso também de outras epistemologias que, igualmente afastadas
das concepções tradicionais e do Neopositivismo, poderiam auxiliar no
desenvolvimento de uma Geografia apta a formular uma crítica radical à sociedade
capitalista contemporânea. Daí a recente aproximação de muitos geógrafos
marxistas em relação às correntes Humanista e Pós-Moderna. O conteúdo crítico
e a valorização da análise espacial, presentes em várias perspectivas de análise
classificáveis como pós-modernas, favoreceram essa aproximação. Notamos isso
especialmente na obra do filósofo Michel Foucault, bastante empregada pelos
geógrafos críticos por suas teses a respeito das relações entre espaço e poder,
ainda que, do ponto de vista epistemológico, haja grandes diferenças entre esse e
outros autores considerados pós-modernos e as teorias marxistas, sem falar nas
aporias entre os próprios representantes do Pós-Modernismo. Esse movimento
intelectual mostrou-se particularmente nítido na mudança de enfoque ocorrida
na Geografia anglo-saxã a partir do final dos anos 1980. A figura emblemática
desse processo é David Harvey, que rompeu com os postulados do Marxismo
ortodoxo quanto à busca de cientificidade e objetividade das análises e passou a
se dedicar principalmente à temática cultural e da história das ideias.

175
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

Contudo, de acordo com Diniz Filho (2012), não deixando de utilizar com
frequência algumas categorias marxistas no estudo dessas temáticas, tais mudanças
revelam a trajetória que levou Harvey do Marxismo ao Pós-Modernismo, mas é
especialmente interessante assinalar que as discussões econômicas realizadas por
esse autor em sua fase pós-moderna, associadas às análises de caráter cultural,
mostram uma diminuição da influência marxista.

Todavia, nas palavras de Diniz Filho (2012), é interessante assinalar que Harvey
se inspirou em referenciais teóricos próximos ao Marxismo para tratar da economia
capitalista contemporânea. Edward Soja, no livro Geografias pós-modernas, procurou
efetuar uma verdadeira integração entre Marxismo e Pós-Modernismo por meio de
uma releitura das teorias econômicas de Marx. O ponto de partida dessa obra é a tese
de que a crítica marxista ao capitalismo tem desprezado historicamente a importância
do espaço como objeto de análise e, mais ainda, como esfera da realidade dotada de
uma “dialética” própria. A influência da filosofia do século XIX sobre o Marxismo
e, de forma mais ampla, sobre todo o pensamento social do século XX, concedeu
à História o status de categoria central para o entendimento dos processos sociais,
relegando o espaço ao papel de reflexo da sociedade, instância passiva e subordinada
aos processos sociais. Em virtude disso, todas as análises econômicas pautadas por
um enfoque mais incisivo na espacialidade do desenvolvimento capitalista, tais como
os estudos sobre o subdesenvolvimento e a dependência, acabaram sendo criticadas
pelo modo como teriam tentado atribuir ao espaço qualidades que pertenceriam
unicamente à esfera da sociedade e da história.

Para superar esse impasse entre o desejo de construir uma crítica social apoiada
na análise do espaço e o temor de resvalar para o determinismo ou fetichismo espacial,
de acordo com Diniz Filho (2012), Soja propõe uma reformulação epistemológica da
Geografia. Ele procura desenvolvê-la a partir da crítica ao historicismo exacerbado da
“ortodoxia marxista” e, simultaneamente, pela mobilização de diversas perspectivas
filosóficas e teóricas que, embora muito diferentes entre si, convergiriam no sentido de
demonstrar o papel ativo das configurações espaciais na estruturação da sociedade.
Nesse sentido, o autor vê o “historicismo” como uma postura filosófica que atribui à
perspectiva do tempo histórico a condição de único método válido para a compreensão
dos fenômenos sociais, contrapondo-se, assim, à “imaginação geográfica”, a qual
pensa a sociedade pela ótica do espaço, embora sem negar a historicidade dos
processos sociais. Vale lembrar que na economia, e em outras ciências sociais, o
termo historicismo costuma ser empregado para designar as correntes que, em vez
de buscarem construir uma teoria geral do desenvolvimento preferem analisar as
experiências históricas de desenvolvimento de cada país. Seja como for, vemos que
entre as várias teorias recuperadas por Soja, no intuito de revalorizar a análise do
espaço, figuram os estudos sobre o subdesenvolvimento e a dependência gerados
nas décadas de 1960 e 1970. Segundo ele, autores como Wallerstein e Frank, entre
outros, tiveram o mérito de estimular o debate sobre o desenvolvimento desigual e
as relações centro-periferia, mas não teriam levado suas conclusões até as últimas
consequências por receio de ferir o primado da luta de classes como motor da História.
Mesmo no âmbito da Geografia, os estudos realizados por Harvey e outros geógrafos
modernos, sob inspiração desses debates, teriam demonstrado a hesitação dos autores
em radicalizar suas posições sobre a importância da análise espacial do capitalismo,
motivada por idêntico receio de incorrer num determinismo geográfico não histórico.

176
TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS HISTÓRICAS, AMBIENTAIS E PÓS-MODERNAS

FIGURA 4 – HENRI LEFEBVRE (16 DE JUNHO DE 1901 - 29 DE JUNHO DE 1991)

FONTE: <https://i1.wp.com/thecharnelhouse.org/wp-content/uploads/2017/08/henri-
lefebvre-2-1.jpeg?fit=440%2C440&ssl=1>. Acesso em: 30 jan. 2019.

Encontramos nos escritos de Diniz Filho (2012), que somente Henri Lefebvre
e Ernest Mandel teriam ousado colocar a geografia do capitalismo e a lógica do
desenvolvimento desigual como elementos fundamentais para a compreensão da
sociedade capitalista, razão pela qual seus estudos teriam sido parcialmente deixados
de lado dentro da teoria social crítica. Em outras palavras, o autor resgatou algumas
teorias marxistas do intercâmbio desigual que foram influentes há cerca de 40 anos,
para sustentar a tese de que o capitalismo depende de mecanismos de exploração
entre países e entre regiões para contrabalançar os efeitos da lei da queda tendencial
da taxa de lucro. Esse é o caminho pelo qual ele procura operar uma “espacialização”
das teorias de Marx sobre a lógica de funcionamento do modo de produção capitalista.
Assim, seria possível retirar esse arcabouço teórico geral de sua forma excessivamente
abstrata, conferindo-lhe maior concretude espaço-temporal e abrindo caminho para
a construção de um “materialismo histórico-geográfico”. Com essa emancipação da
teoria social crítica em relação ao historicismo, seriam também satisfeitas algumas
condições necessárias para criar uma nova perspectiva para os estudos geográficos
(que, segundo o autor, já estaria emergindo), denominada pelo rótulo de geografia
humana crítica pós-moderna (DINIZ FILHO, 2012). Para concluirmos, é interessante
deixarmos claro que essa releitura do Marxismo não é o único caminho pelo qual o
autor procurou valorizar a análise do espaço. Ele também recorreu a uma série de
filósofos e cientistas sociais cujas teorias afirmam o papel ativo do espaço e que, em
certos casos, como o de Foucault, contrapõem esse papel às determinações históricas.

177
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

Mas não se deve pensar que o Pós-Modernismo se estabeleceu como novo


paradigma da Geografia Crítica em substituição ao Marxismo. As teorias marxistas têm
coexistido com as teses pós-modernas sobre a existência de uma crise generalizada no
momento histórico contemporâneo, além de se assemelharem nas críticas à sociedade
capitalista. Não é somente no Pós-Modernismo que os geógrafos marxistas têm buscado
renovar seus referenciais epistemológicos, mas também nas abordagens humanistas
que convergem com o Pós-Modernismo na crítica ao modelo normativo de ciência.
A imensa heterogeneidade epistemológica do pensamento pós-modernista parece
limitar seu potencial para “revolucionar” mais uma vez a disciplina, ao contrário do
que ocorreu antes com o Neopositivismo e depois com o Marxismo. O que se tem
visto, principalmente nos Estados Unidos, é uma série de debates sobre a existência
ou não de um paradigma pós-moderno na Geografia, inclusive porque há tentativas
para inserir uma epistemologia pós-moderna nas pesquisas geográficas. O momento
atual se caracteriza por um ecletismo epistemológico limitado aos horizontes da teoria
social crítica, pois se destaca pela aproximação ou mesmo integração entre ideias
marxistas e pós-modernistas, ou seja, para além da teoria crítica. Abrem-se com esta
perspectiva novos campos à Geografia, estes são expressos pela Geografia dos lugares
dos homens e mulheres (que vivem este momento), a Geografia das percepções e/ou
das representações, a Geografia das manifestações culturais derivadas da expressão
das diferenças, das identidades e das territorialidades. A valorização da qualidade de
vida promove a emergência da discussão ambiental. Perpassa essa discussão não só a
necessidade de preservação da natureza como recurso, mas também a valorização da
natureza como patrimônio, assim como a discussão/proposição das formas de uso/
preservação. Essa temática promove no âmbito científico uma releitura dos conceitos de
natureza e sociedade. Encaminha-se esse debate para uma compreensão da necessidade
de articulação, de conjunção conceitual dessas categorias, considerando que no mundo
atual (e real) o híbrido é uma realidade.

E
IMPORTANT

A influência pós-moderna se revela na valorização das especificidades culturais e


regionais, na crítica à razão e, como resultado, na proposta de resgatar uma “sabedoria humana”
negligenciada pela ciência. Temos as características essenciais da teoria social crítica, muito
nítidas na recusa da ideia de neutralidade científica e na concepção de que a política permeia
necessariamente todas as condutas e todos os discursos, especialmente as práticas pedagógicas.
Portanto, a Geografia vive hoje uma fase de maior pluralismo teórico e metodológico que
se reflete, inclusive, na recusa da maioria dos geógrafos a adotar rótulos ou a classificar seus
próprios trabalhos nesta ou naquela tendência, bem ao contrário do que aconteceu nas fases
de maior efervescência das “revoluções” neopositivista e crítica, em que os defensores do novo
faziam questão de definir e comparar escolas geográficas bem delimitadas.

178
TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS HISTÓRICAS, AMBIENTAIS E PÓS-MODERNAS

AUTOATIVIDADE

Exercitando-se com o ENADE

A imigração haitiana para o Brasil passou a ter grande repercussão na


impressa a partir de 2010. Devido ao pior terremoto do país, muitos haitianos
redescobriram o Brasil como rota alternativa para migração. O país já havia
sido uma alternativa para haitianos desde 2004, e isso se deve à reorientação
da política externa nacional para alcançar liderança regional nos assuntos
humanitários.  A descoberta e a preferência pelo Brasil também sofreram
influência da presença do exército brasileiro no Haiti, que intensificou a relação
de proximidade entre brasileiros e haitianos. Em meio a esse clima amistoso,
os haitianos presumiram que seriam bem acolhidos em uma possível migração
ao país que passara a liderar a missão da ONU.  No entanto, os imigrantes
haitianos têm sofrido ataques xenofóbicos por parte da população brasileira.
Recentemente, uma das grandes cidades brasileiras serviu como palco para uma
marcha anti-imigração, com demonstrações de um crescente discurso de ódio
em relação a povos imigrantes marginalizados. Observa-se, na maneira como
esses discursos se conformam, que a reação de uma parcela dos brasileiros aos
imigrantes se dá em termos bem específicos: os que sofrem com a violência dos
atos de xenofobia, em geral, são negros e têm origem em países mais pobres. 

SILVA, C. A. A.; MORAES, M. T. A política migratória brasileira para refugiados e a imigração


haitiana. Revista do Direito Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 50, p. 98-117, set./dez. 2016 (adaptado).

A partir das informações do texto, conclui-se que


a) o acolhimento promovido pelos brasileiros aos imigrantes oriundos de países
do leste europeu tende a ser semelhante ao oferecido aos imigrantes haitianos,
pois no Brasil vigora a ideia de democracia racial e do respeito às etnias.
b) o nacionalismo exacerbado de classes sociais mais favorecidas, no Brasil,
motiva a rejeição aos imigrantes haitianos e a perseguição contra os
brasileiros que pretendem morar fora do seu país em busca de melhores
condições de vida.
c) as reações xenófobas estão relacionadas ao fato de que os imigrantes são
concorrentes diretos para os postos de trabalho de maior prestígio na
sociedade, aumentando a disputa por boas vagas de emprego.
d) o processo de acolhimento dos imigrantes haitianos tem sido pautado por
características fortemente associadas ao povo brasileiro: a solidariedade e o
respeito às diferenças.
e) a crescente onda de xenofobia que vem se destacando no Brasil evidencia
que o preconceito e a rejeição por parte dos brasileiros em relação aos
imigrantes haitianos são pautados pela discriminação social e pelo racismo.

FONTE: ENADE. Geografia licenciatura 2017. Questão 6. Disponível em: <http://download.


inep.gov.br/educacao_superior/enade/provas/2017/26_GEOGRAFIA_LICENCIATURA_BAIXA.
pdf>. Acesso em: 14 dez. 2018.

179
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

DICAS

SUGESTÃO DE AULA

Caminhada pelo entorno da escola


Autora: Silmara Maria Cruz Paiva
Formação: Professora de Geografia

Objetivo(s): 
• reconhecer a importância de se preservar as áreas verdes para a melhoria da qualidade de
vida e do meio ambiente; 
• identificar e mapear a presença do verde na escola e em seu entorno. 

Conteúdo(s): 
• a ocupação desordenada pelo homem do espaço que ocupa;
• o desrespeito do homem com o meio ambiente;
• a importância da preservação de áreas verdes em espaços urbanos para a melhoria da
qualidade de vida.

Tempo estimado: 5 aulas.

Material necessário: 
• recortes de notícias atuais sobre mudanças climáticas encontradas em jornais, revistas,
artigos da internet;
• croqui da escola e seu entorno, esse croqui pode ser conseguido  aqui (acessar o link
indicado na fonte);
• máquina fotográfica.

Desenvolvimento: 
1ª etapa 
Divida os estudantes em grupos e entregue as reportagens. Peça que os alunos leiam e
discutam, com base nos seguintes questionamentos:

• O que são mudanças climáticas? Por que acontecem?


• Que consequências essas mudanças trarão ao homem?
• Que atitudes o homem pode tomar para amenizar essas mudanças?
• A presença de árvores e áreas verdes pode contribuir para a melhoria do meio ambiente?

Conduza um debate entre os grupos mostrando como o homem se apropria indevidamente


do espaço, desmatando áreas verdes e construindo sem planejamento.
Saliente a importância de atitudes diárias individuais para a transformação das condições
ambientais globais.

2ª etapa 
Entregue um croqui para que os estudantes possam mapear as árvores que estão no entorno
da escola durante a caminhada, e um questionário, que servirá como roteiro de observação:

• Você observa muitas árvores nesta rua?


• Em que condições de preservação elas se encontram?
• Toda casa possui uma árvore?
• Essas árvores são novas ou antigas?
• São árvores frutíferas? Você consegue identificar algum morador (pássaro) na árvore?
• Qual o benefício que uma árvore traz ao morador que a possui?

180
TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS HISTÓRICAS, AMBIENTAIS E PÓS-MODERNAS

3ª etapa 
Este é o momento de sair a campo. Leve os estudantes para fora da escola, caminhe
por todo o entorno, percorrendo ruas e parando sempre que encontrar uma árvore
para que eles possam realizar o registro e mapear a localização das árvores no croqui.
Durante o trajeto, fotografe os estudantes trabalhando, a paisagem e árvores observadas.

4ª etapa 
De volta à sala de aula, abra um círculo de debate. Deixe que contem o que acharam da
caminhada e das árvores que encontraram. Faça no quadro um registro da observação do
coletivo, anote as possíveis sugestões que surgirem.

5ª etapa 
Faça um painel com as fotos tiradas e o registro coletivo. Ele servirá de ponto de partida para
ações futuras.

Avaliação: 
Divididos em grupos, os estudantes deverão confeccionar cartazes sobre o que aprenderam
em relação às questões ambientais e à ação humana. Deverão fixar nos murais da escola
com a finalidade de sensibilizar os demais estudantes.

FONTE: <https://novaescola.org.br/conteudo/5659/caminhada-pelo-entorno-da-escola#>.
Acesso em: 10 jul. 2018.

181
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

LEITURA COMPLEMENTAR

DA GEOGRAFIA AO CORPO: ORIENTALISMO, RACISMO E


SUBALTERNIDADE NA REPRESENTAÇÃO DE MULHERES
MUÇULMANAS NEGRAS

Monise Martinez

[...]
CONTORNOS DO CORPO

Como já referido, as narrativas projetadas nos resumos das obras de Waris,


Safiya, Feven e Khady perpassam, em algum momento, por questões relacionadas
às supostas tradições de suas comunidades. Essas tradições são atribuídas de modo
subentendido aos países ou ao continente de origem das autoras e protagonistas,
revelando que a relação estabelecida entre a geografia e a tradição está, nesses contextos
discursivos, relacionada ao que Stuart Hall (2005, p. 62) define como etnia: “língua,
religião, costume, tradições, sentimento de “lugar” partilhados por um povo”. Assim,
a noção de unidade é submetida a uma suposta africanidade atribuída às personagens,
já que à exceção de Khady, notamos que há alguma insistência em iconizar as demais
protagonistas, em maior ou menor grau, como representantes da mulher africana.

Nesse sentido, os lugares de origem das personagens não são apenas


representados sob o viés do orientalismo no jogo das diferenças e da atribuição
de negatividades aos espaços tidos como do Outro. Ao nos debruçarmos sobre a
questão dos costumes e tradições, notamos que os espaços de proveniência das
protagonistas estão, nesse caso, também relacionados à articulação das diferenças
na construção do sujeito colonial a partir da forma racial e sexual, como refere
Homi Bhabha em O local da cultura (1998), já que o conflito entre os espaços é
impresso claramente no corpo feminino e negro através dos fatos da vida das
protagonistas, destacados ambiguamente, como violentos e tradicionais.

Desse modo, Waris foi vítima, com apenas cinco anos, de um dos mais
bárbaros costumes: a mutilação genital, apresentada como uma prática comum
da cultura que a moldou, destruiu e deu as armas para que sobrevivesse. Safiya
foi salva da condenação à lapidação por adultério, uma punição arcaica aplicada
em sua comunidade pelo Islã através da Sharia, apresentada como lei islâmica
universal. Feven foi torturada na Eritreia, perseguida pela lei islâmica no Sudão e
escravizada na Líbia. E Khady viveu o pesadelo da excisão, segundo as vozes da
tradição, aos sete anos de idade.

Como vemos, todas essas mulheres têm os seus corpos apresentados como
um espaço de consagração de tradições pelas quais os seus lugares de origem,
numa geografia de poder, são negativados. Com isso, a articulação da diferença
coincide com os pressupostos que gerem o discurso das geografias imaginárias
sublinhadas por Said (2008), uma vez que também apresentam o exercício de

182
TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS HISTÓRICAS, AMBIENTAIS E PÓS-MODERNAS

poder e de dominação como parte de um espaço teórico e de um lugar político


que nega a singularidade do sujeito Outro para construí-lo, discursivamente,
como parte de “uma população de tipos degenerados [...] de modo a justificar
a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução” (BHABHA,
1998, p. 111), sendo a mulher étnica o território central para determinação de
hierarquias culturais através de suas paulatinas representações como:

[...] vítima de violência doméstica; vítima de abuso sexual; vítima de


crimes de honra; vítima de casamentos forçados; vítima de crimes
passionais; vítima da crescente indústria do sexo; vítima de trabalhos
infantis; vítima de antigos rituais sádicos [...] e de mutilação genital
[...]. Vítima de ser vítima (PIRBHAI, 2005, s.p.).

O termo étnica, empregado na conferência Women and Ethnicity: A Self


Portrait, proferida por Mariam Pirbhai (2005), designa, no contexto, as mulheres
consideradas Outras na perspectiva de alguns ocidentais. A escolha dessa palavra,
ao longo do discurso, acaba por funcionar como um elemento diferenciador, já
que como refere no início de sua conferência, ao mencionar os vocábulos woman
e ethnicity, as representações imaginárias de um retrato que convida a sua plateia
a pintar perpassam, inicialmente, pela palavra colour, fazendo-nos refletir sobre
as possíveis funções dos corpos de Waris, Safiya, Feven e Khady no contexto
dos resumos das obras que assinam como suas narrativas de vida: as tradições,
apresentadas no escopo da ideia de africanidade, não revelariam possíveis
racismos imersos nessas narrativas das diferenças?

O histórico da construção ideológica a partir do termo raça remonta,


conforme refere o antropólogo congolês Kabengele Munanga (2004), a duas
grandes matrizes principais: o mito bíblico de Noé que, do ponto de vista religioso,
serviu a muitas das justificativas para consentir moralmente a escravidão, e as
concepções científicas do Modernismo Ocidental, que passaram a considerar os
caracteres físicos como cruciais para determinações sobre os comportamentos dos
povos, desembocando nas teorias que previram hierarquizações da humanidade
a partir de classificações raciais (MUNANGA, 2004).

Sabe-se que a noção biológica ou genética atribuída ao termo raça foi


claramente descontruída na década de 1970. Entretanto, enquanto um processo
inicialmente derivado e respaldado por essas classificações, o racismo é definido
pelo antropólogo como uma categoria discursiva ideológica, pautada na crença
ainda vigente de uma hierarquia entre raças, presente no imaginário coletivo de
diversos povos e sociedades contemporâneas. Assim, como ressalta Munanga (2004,
p. 29), “o racismo se reformula com base nos conceitos de etnia, diferença cultural ou
identidade cultural” e mantém-se vigente através do sentimento de superioridade
traduzido, muitas vezes, em discursos de caridade, proteção e salvação.

Os resumos apresentados nas capas das narrativas de Waris, Safiya,


Feven e Khady não referem à questão da raça em sentido biológico. Entretanto,
mostram-se bastante centrados na questão étnica, apresentando as protagonistas
como membros de comunidades específicas – como no caso de Waris e Safiya –

183
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

ou, então, um local inominável no qual a ideia de partilha de tradições e costumes


culturais é explicitada, como no caso de Khady. Na narrativa de Feven, apesar de
não encontrarmos uma referência explícita a esse aspecto, o identificamos pelo
esforço em apresentá-la a partir de uma africanidade, empregada para designar
o efeito de homogeneização que se pretende fazer dessa personagem enquanto
uma mulher proveniente do continente africano.

De um ponto de vista comparativo, essa espécie de homogeneização que


perpassa pelo viés cultural e tangencia, em alguns contextos, a questão da etnicidade,
é similar ao caso das homogeneizações verificadas nas representações dos povos
árabes ou, ainda, da própria comunidade muçulmana em muitas das publicações
de best-sellers centralizados também nas narrativas de vida de mulheres.

Entretanto, apesar de Waris, Safiya, Khady e Feven terem nascido em


países cuja população é majoritariamente muçulmana e, ao menos no caso das três
primeiras, o seio familiar e as aldeias nas quais viveram pertencerem à comunidade
islâmica, a remissão à questão da religião é feita de maneira subjacente à ideia
de africanidade, diferenciando-as, nesse sentido, do modo como as mulheres
muçulmanas brancas são, frequentemente, mais associadas a um diálogo com os
estereótipos relacionados aos povos árabes (MARTINEZ, 2015).

CONTORNOS DA SUBALTERNIDADE E DA SALVAÇÃO

Em Cultura e Imperialismo, obra na qual refere o privilégio atribuído às


formas culturais na experiência imperial moderna e na definição das identidades
através das relações imperiais e coloniais, Said (2011) verifica a relevância que
tiveram as produções literárias para a consolidação de narrativas eurocêntricas
no século XIX, centradas em tratar culturas não europeias e não judaico-cristãs
a partir de critérios como raça, cor, origem, temperamento e caráter que as
diferenciavam entre si e os demais.

Essas narrativas, nas quais a complexa relação entre o reconhecimento das


diferenças e o estabelecimento de novas hierarquias culturais pode ser verificada,
também foram importantes fontes culturais para justificar e fomentar a prática
imperialista durante o século XIX, sobretudo porque o chamado orientalista
moderno, com um discurso recém-direcionado ao da produção de verdades
científicas, acreditava-se detentor de profundos conhecimentos a respeito
dos espaços não ocidentais, considerando-se “um herói que [os] resgatava do
obscurantismo, da alienação e da estranheza” (SAID, 2008, p. 121). Desse modo,
em um contexto de apropriação, definia-se quem tinha o direito da posse das
terras, o direito de habitá-las, explorá-las, reconquistar a sua grandeza e planejar
o seu futuro, sendo o poder de narrar determinante para a estruturação do sujeito
central que pode escrever e do subordinado como objeto da escrita (SAID, 2011).

Em conformidade com parte das reflexões propostas por Said (2011)


acerca dos projetos imperiais, a delimitação das hierarquias de poderes e dos
consequentes salvacionismos, no ensaio Pode o subalterno falar?, Gayatri Spivak

184
TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS HISTÓRICAS, AMBIENTAIS E PÓS-MODERNAS

(2010) adentra em uma reflexão a partir da qual questiona as próprias formas


através das quais os sujeitos do chamado Terceiro Mundo são representados nos
discursos de estudiosos do pós-colonialismo e dos feminismos ocidentais, que não
raro remontaram a discursos paternalistas centralizados no embate entre a figura
da mulher do Primeiro Mundo e a mulher do Terceiro Mundo (MOHANTY, 1984).

Em seu ensaio, Spivak (2010) traz à tona os principais problemas


vinculados às abordagens raiz de cada uma dessas áreas, apontando a ausência
da adoção da perspectiva de gênero nos estudos pós-coloniais e o fracasso ou
incapacidade de incorporar questões raciais, ou a tendência em estereotipar e
generalizar em excesso a questão da mulher do Terceiro Mundo (BAHRI, 2004)
nos feminismos, tema posteriormente discutido por teóricas como Ella Shohat
(apud MALUF; COSTA, 2001), para as quais a desconstrução das narrativas
salvacionistas engendradas pelos feminismos ocidentais é um dos pontos-chave
para a consolidação de um movimento plural, que se proponha a romper as
estruturas hierárquicas que alicerçam o pensamento imperial.

Partindo também dessa problemática, Spivak (2010) expõe a sua própria


experiência enquanto investigadora durante o processo da tomada de consciência
da mulher como subalterna, enfatizando que a formação ideológica masculino-
imperialista faz parte da mesma formação que categoriza, de forma homogênea,
a “mulher do Terceiro Mundo”, razão pela qual o silêncio desse sujeito deve ser
o ponto de partida para o intelectual que se propõe a refletir sobre essa questão,
pois na ausência dessa compreensão, a produção dos discursos que falam por
imerge em uma problemática em conformidade com os discursos coloniais, bem
definida pela máxima: “homens brancos estão salvando mulheres de pele escura
de homens de pele escura” (SPIVAK, 2010, p. 91).

Nos resumos das obras de Waris, Safiya, Feven e Khady, já discutidos


sob a perspectiva do orientalismo, da etnicidade e do racismo, pode-se verificar
que o problema da representação das protagonistas muçulmanas negras, embora
centralizado na questão da construção da alteridade, a partir das geografias
imaginárias e dos aspectos étnico-raciais imbrincados no conceito de africanidade,
perpassa também os diálogos existentes entre o salvacionismo e a condição de
subalternidade nos termos empregados por Spivak (2010).

Nesse sentido, a própria amálgama entre corpo e espaço na construção


das identidades das personagens revela, sob dois eixos distintos, o exercício
de poder que se dá através da representação dos seus lugares de origens como
espaços inóspitos, de suas culturas como inferiores e, afinal, delas próprias como
eternas vítimas que, ambiguamente, tanto são apresentadas como salvadoras por
assumirem cargos humanitários no Ocidente, como são mantidas subalternas, à
medida que o suposto lugar de fala que ocupam nessas obras reproduz narrativas
eurocêntricas e as tormam ícones em um campo de batalha para conflitos diversos
de poder a partir das narrativas de suas próprias vidas. [...]
FONTE: <https://periodicos.fclar.unesp.br/estudos/article/view/8653/6066>. Acesso em: 10 jul. 2018.

185
RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• Três fontes são consideradas fundamentais para a construção teórica e


metodológica da pesquisa do passado em Geografia: Geo-história de Fernand
Braudel, cuja interpretação das civilizações antes consideradas como espaços
nos conduz numa reconstrução dinâmica e abrangente de geografias do
passado; a segunda fonte vem da Geografia Histórica anglo-saxã, cuja solidez
da produção acadêmica influencia, dissemina e sugere métodos da investigação
histórica em Geografia; e a terceira fonte vem da abordagem cultural na
Geografia, cujo conceito de paisagem e seu papel na transição histórica para o
capitalismo nos orientam na investigação da dimensão simbólica, essencial na
análise, contextualização e releitura(s) das geografias do passado.

• A Geografia Histórica é o ramo da Geografia Humana que trata da análise


das relações estabelecidas entre o homem e a natureza ao longo do processo
histórico. Neste sentido, a Geografia fornece subsídios e materiais históricos
para a investigação nas áreas da Geoeconomia, Geopolítica e, especialmente,
da Geografia.

• A Geografia Ambiental se propõe a utilizar o saber em busca da sustentabilidade,


ou seja, são necessárias mais do que teorias sobre o meio ambiente para se
explicar a escassez dos recursos naturais.

• A Geografia Ambiental interessa-se pelos estudos acerca do meio ambiente e


da preservação da natureza, configurando-se como uma área essencialmente
interdisciplinar. É a área dos estudos geográficos que se preocupa em
compreender a ação do homem sobre a natureza, produzindo o seu meio de
vivência e a sua transformação.

• Filosoficamente, o período pós-moderno se expressa pela descrença na concepção


de tempo que funda a Modernidade, o tempo longo, a valorização da história e da
ideia de progresso. Uma das grandes críticas dos pós-modernistas é a perspectiva
de encontro com a “felicidade” sempre no futuro. Esta dimensão diz respeito ou
interessa à Geografia na medida em que, para muitos autores, a crença de que a
solução está no futuro, no progresso, gerou não só uma desvalorização do espaço
(lugar), como a sua deterioração em termos de recursos e qualidade de vida.

• Existe muita discussão a respeito da pós-modernidade na Ciência, e na própria


Geografia, sendo vários os eixos de discussão e tendências que procuram
delimitar o debate pós-moderno, a análise ou identificação do potencial crítico
dessa questão faz com que os estudiosos procurem redefinir as possibilidades
de análise, discutindo-a antes como uma condição histórica e não como estilo.

186
• Não se deve pensar que o Pós-Modernismo se estabeleceu como novo
paradigma da Geografia Crítica em substituição ao Marxismo. As teorias
marxistas têm coexistido com as teses pós-modernas sobre a existência de
uma crise generalizada no momento histórico contemporâneo, além de se
assemelharem nas críticas à sociedade capitalista. Não é somente no Pós-
Modernismo que os geógrafos marxistas têm buscado renovar seus referenciais
epistemológicos, mas também nas abordagens humanistas, que convergem
com o Pós-Modernismo na crítica ao modelo normativo de ciência.

• A Geografia vive hoje uma fase de maior pluralismo teórico e metodológico


que se reflete inclusive na recusa da maioria dos geógrafos a adotar rótulos
ou a classificar seus próprios trabalhos nesta ou naquela tendência, bem ao
contrário do que aconteceu nas fases de maior efervescência das “revoluções”
neopositivista e crítica, em que os defensores do novo faziam questão de definir
e comparar escolas geográficas bem delimitadas.

187
AUTOATIVIDADE

1 A Geografia Histórica é o ramo da Geografia Humana que trata da análise


das relações estabelecidas entre o homem e a natureza ao longo do processo
histórico. Neste sentido, a Geografia fornece subsídios e materiais históricos
para a investigação nas áreas da Geoeconomia, Geopolítica e, especialmente,
da Geografia. Referente à Geografia Histórica é correto afirmar que:

a) ( ) A Geografia Histórica estuda as características e evolução dos espaços


históricos, sua morfologia, paisagem e organização territorial.
b) ( ) A Geografia Histórica vem guardando a tradição geográfica, que é a
sua íntima relação com o espaço e, portanto, com a vida.
c) ( ) A abordagem cultural nos Estados Unidos surgiu com a abordagem
moderna da Geografia Histórica na Inglaterra.
d) ( ) A valorização da Ciência da História foi um passo extraordinário no
processo de ruptura com a concepção tradicional da história baseada
nas narrativas dos espaços locais.

2 Cenário de intensa crise e de profundas mudanças, a mais profunda


crise da humanidade e de civilização, o final do século XX e início do XXI
desafiam a sociedade em geral a encontrar novos rumos para a construção
do presente e do futuro. Aos intelectuais e cientistas demanda, de maneira
geral, repensarem a:

a) ( ) Ontologia e a Astrologia.
b) ( ) Ontologia e a Epistemologia.
c) ( ) Ontologia e o Possibilismo Religioso.
d) ( ) Epistemologia e a Ontologia Econômica.

3 Geografia Ambiental é o estudo dos efeitos das ações do homem sobre o


ambiente terrestre; o meio ambiente envolve todas as coisas vivas e não
vivas da Terra que afetam os ecossistemas e a vida humana. Referente à
Geografia Ambiental, analise as afirmativas a seguir:

I- A Geografia Ambiental se propõe a utilizar o saber em busca da


sustentabilidade.
II- A Geografia Ambiental interessa-se pelos estudos acerca do meio
ambiente e da preservação da natureza, configurando-se como uma área
essencialmente interdisciplinar.
III- A Geografia Ambiental interessa-se pelos estudos acerca do meio
ambiente e da preservação da natureza, configurando-se como uma área
essencialmente disciplinar.

188
Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Somente as afirmativas I e II são verdadeiras.


b) ( ) Somente as afirmativas II e III são verdadeiras.
c) ( ) Somente as afirmativas I e III são verdadeiras.
d) ( ) Todas as afirmativas são verdadeiras.

189
190
UNIDADE 3
TÓPICO 3

PERSPECTIVAS ATUAIS E A GEOGRAFIA NO BRASIL

1 INTRODUÇÃO
As tendências atuais da geografia são tentativas legítimas, mais do que
novos paradigmas, de dar respostas à crise de sociedade, da civilização e da
própria geografia em um mundo em constante mudança.

O desenvolvimento do modo de produção capitalista levou o mundo a


uma mundialização econômica (não necessariamente à dissolução das fronteiras
nacionais), que forçou a uma redefinição dos espaços nacionais, regionais e locais,
acarretando muitas vezes em grandes conflitos e disputas por territórios.

Diante dessas novas realidades é importante chamar a atenção para as


mudanças e preocupações vigentes atualmente na teoria e na prática da geografia,
tais como: uma nova tendência ao pluralismo das posturas filosóficas.

2 A NOVA GEOGRAFIA CULTURAL


A Geografia Cultural passou por várias etapas até se estruturar da forma
como a conhecemos. Embora a Geografia Cultural tenha ganhado uma identidade
com a obra de Sauer e seus discípulos, a dimensão cultural já estava presente na
geografia do século XIX.

De acordo com Claval (2007), a primeira fase da Geografia Cultural ocorre


entre o final do século XIX e meados do século XX, a princípio na Alemanha e
França e, posteriormente, a partir de 1925 nos Estados Unidos. O segundo período
ocorreu nos anos sessenta e setenta, relacionado ao tempo onde a Geografia Cultural
passou por reformulação na tentativa de uma formulação metodológica. A partir da
década de setenta do século XX é o período em que há uma mudança significativa
na Geografia Cultural, em que ela deixa de ser tratada como um subdomínio
da geografia, se colocando no mesmo patamar que a Geografia Econômica e a
Geografia Política. A Geografia Cultural entra em crise no final da década de 1970,
devido às severas críticas recebidas provenientes de diversas fontes. Os problemas
colocados pela transmissão da cultura, assim como a análise das diferentes formas
com que esta se apresenta numa mesma sociedade, foram negligenciados pelos
primeiros geógrafos culturais (CLAVAL, 2007).

191
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

Segundo Corrêa (2001), as primeiras críticas aos estudos culturais da Escola


de Berkeley surgiram com Richard Hatshorne, que afirmava que os geógrafos
culturais privilegiavam apenas a cultura, que seria somente um dos múltiplos
elementos que interagem no espaço. Muitos geógrafos da Geografia Teorética-
Quantitativa criticavam o fato dos geógrafos culturais se dedicarem ao estudo do
passado. Neste sentido, traziam pouca contribuição aos estudos sobre os problemas
do desenvolvimento. A Geografia Crítica se posicionou argumentando incialmente
que os trabalhos de Geografia Cultural americanos estavam assentados em critérios
de classe e etnia, o que influenciava os valores e crenças dos pesquisadores. De
acordo com Diniz Filho (2012), as críticas estão ligadas ao modo de abordagem
relacionado à primeira metade do século XX: alegando que a visão do período
tinha a intenção de descrever o mundo e não tentar entendê-lo; grande peso do
rural devido à forte influência da paisagem e gênero de vida; forte peso referente
ao pretérito; isenta de preocupações de cunhos sociais; desprovida de interesses
relacionados a festas. As ciências sociais começam a não corresponder com o
ensejo dos pesquisadores devido à sua abordagem neopositivista, por volta dos
anos 1960 do século XX.

Para Claval (2007), os motivos para enfatizar as dimensões culturais das


distribuições geográficas eram vários: para um primeiro grupo de geógrafos, a nova
orientação foi sequência das suas pesquisas no domínio da nova geografia; para um
segundo, foi sequência da sua crítica da estandardização da conceituação do homem
e da sociedade na nova geografia; para um terceiro grupo, foi o resultado da crítica
do caráter conservador dela. A insatisfação advinha tanto dos geógrafos que tinham
como corrente filosófica a Fenomenologia, como os geógrafos de base crítica radical.
Ambos fundando críticas diferentes, mas permeados pela mesma insatisfação.
Ademais, estão de acordo que os fatos sociais não podem ser entendidos como um
fato natural. Portanto, agora se percebe a constituição de uma nova epistemologia.
A epistemologia das ciências humanas na década de 1970 do século XX começou
a se transformar. Doravante, a base filosófica crítica marxista traz a concepção de
que o Positivismo em questões sociais tende a um conservadorismo. Surge então a
tendência de trabalhar a perspectiva crítica nas relações sociais.

Ainda, de acordo com Claval (2007), o segundo grupo dos geógrafos responsáveis
do novo interesse pela cultura na geografia teve motivações completamente diversas
do primeiro grupo: eles não gostavam da nova geografia, porque ela dava uma visão
mecânica do comportamento dos homens. Nos países de língua inglesa, a crítica da
nova geografia repousava sobre o uso de temas da filosofia fenomenológica, através
de uma leitura direta de Heidegger, ou da sua interpretação por um geógrafo francês
desconhecido, Eric Dardel. Esse componente do movimento para um estudo mais
profundo da dimensão cultural das distribuições geográficas é geralmente conhecido sob
o nome de Geografia Humanista. O seu papel foi fundamental, porque ela enfatizou o
papel da iniciativa humana, geralmente esquecido pela nova geografia. O terceiro grupo
de geógrafos que participou do desenvolvimento da abordagem cultural foi também
crítico da nova geografia, mas por uma razão diversa do segundo grupo, esses geógrafos
a censuraram pelo seu caráter conservador. Alguns geógrafos radicais desenvolveram
um interesse pela cultura dos grupos dominados e das minorias (CLAVAL, 2007).

192
TÓPICO 3 | PERSPECTIVAS ATUAIS E A GEOGRAFIA NO BRASIL

Segundo Corrêa (2014), a renovação realizada na Geografia Cultural não


deixará de abordar o passado, mas há de se privilegiar o presente ou um passado
não muito longínquo. O que a nova abordagem tem de diferente é a análise dos
significados, atribuídos à espacialidade do homem. Seu foco está nos significados
criados por diversos grupos: no passado, presente ou até mesmo do futuro.

A curiosidade pela abordagem cultural generalizou-se durante os anos


1980, em consequência da crítica do Modernismo Ocidental e do movimento Pós-
Moderno. Depois da fase de exploração, um pouco anárquica dos anos 1970, um
trabalho de estruturação do novo domínio ocorreu nos anos 1980 e 1990. Conforme
Claval (2007), tomou duas formas: nos países de língua inglesa, a nova Geografia
Cultural foi baseada sobre as conceituações simbólicas da cultura de Raymond
Williams ou a partir das obras de Stuart Hall, e não tratava somente das culturas
de classe, levava em conta o novo papel dos movimentos sociais e falava do gênero,
do racismo, da exclusão social. Nesse contexto, a cultura aparecia como uma arma
nos conflitos entre as várias componentes da sociedade. Ela aparecia também como
uma ferramenta para organizar a resistência dos grupos dominados.

Segundo Claval (2007), nos anos 1990, a influência dos trabalhos de Cosgrove
e Jackson, nos Estados Unidos, foi muito importante, pois concebiam a cultura como
uma arma nas guerras sociais. Os grupos minoritários ou marginais ensaiavam
afirmar as suas identidades: é a origem da maioria dos conflitos culturais. Nas
sociedades contemporâneas, os espaços públicos tornam-se muitas vezes o teatro
deste tipo de confrontação. Na França, a reflexão sobre a abordagem cultural
tomou orientações diferentes. Ela focalizou a experiência espacial: experiência do
lugar nas pesquisas sobre o espaço vivido, experiência da natureza, experiência
da multiplicidade dos espaços imaginados pelos homens.

No entender de Claval (2007), a crítica dos fundamentos da civilização


ocidental continuou no fim dos anos 1980 e nos anos 1990. Foi o tempo em
que as técnicas da desconstrução, no sentido de Derrida, foram difundidas
nas universidades inglesas, o tempo em que as teses de Edward Said sobre os
preconceitos europeus, sobre o mundo oriental conheceram um imenso sucesso. Foi
o tempo em que o Pós-Colonialismo se desenvolveu. No campo da epistemologia,
as fronteiras entre as ciências humanas, e entre elas e as humanidades, apareceram
pela primeira vez como discutíveis. Nos anos 1980, nós começamos a falar de uma
virada linguística na história e de uma virada espacial nas ciências sociais. No meio
dos anos 1990, os geógrafos começaram a falar da virada cultural da geografia.

Existe evidentemente uma relação entre essas três viradas. Segundo Claval
(2007), a virada espacial das ciências sociais testemunha o fim do privilégio do tempo na
análise da vida social: os cientistas descobrem o papel da distância e da diversidade dos
lugares. A fronteira entre as ciências sociais e a geografia se torna menos significativa. A
virada linguística da história testemunha de uma atenção nova às formulações próprias
a cada época, a cada lugar, a diversidade das culturas no tempo e no espaço. Foi o fim
dos antigos quadros de análise, a preeminência do tempo, o interesse limitado para o
espaço, a atenção exclusiva dada às culturas dominantes. A expressão “virada cultural”

193
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

tem um sentido próximo na geografia, pois a disciplina aparecia como um conjunto de


subdisciplinas: Geografia Econômica, Geografia Política, Geografia Social, Geografia
Urbana, Geografia Rural, Geografia Cultural etc. As fronteiras entre subdisciplinas
eram fortes e rígidas. As fronteiras entre a geografia, as outras ciências sociais (salvo a
história) e as humanidades eram ainda mais altas e rígidas. Construir uma Geografia
Cultural como um compartimento isolado da geografia não tem sentido: a construção
de uma subdisciplina deste tipo tem um valor prático, mas o importante é entender
o papel da cultura no conjunto dos fenômenos geográficos: daí o sentido novo da
abordagem cultural na geografia (CLAVAL, 2007).

Uma certa continuidade não significa semelhança. Nas palavras de Claval


(2007), a virada cultural caracteriza-se pelo alargamento do campo de estudos. A
diversidade das componentes da sociedade e as suas subculturas são analisadas:
culturas dos jovens, das mulheres, dos velhos; culturas do trabalho e culturas do lazer
e do turismo; cultura dos grupos dominantes e culturas das minorias e dos marginais.
A análise da base material da cultura não se reduz mais às instalações produtivas, aos
edifícios, às ferramentas. Ela leva em conta também as áreas e instalações de lazer, as
festas; os templos e igrejas, as cerimônias religiosas. A paisagem tem uma dimensão
simbólica: a preservação de algumas de suas formas aparece como um imperativo
social, mesmo se ele é custoso. O estudo das atitudes dos grupos humanos no domínio
da natureza e da ecologia torna-se cada dia mais central nos estudos culturais. Ela
tem que integrar as contribuições da primeira metade do século XX e aquelas, mais
críticas, do período contemporâneo. Não se constitui uma subdisciplina paralela
a outras subdisciplinas. Ela aparece como um fundamento comum, que explica
a construção dos indivíduos, da sociedade, do espaço e de sistemas normativos.
Permite compreender uma boa parte dos conflitos sociais na escala local como
também na escala das nações e no nível internacional. Esclarece também a gênese
dos fundamentalismos, a proliferação das seitas e o interesse para com o patrimônio.
Mas a ênfase dada à cultura pode tornar-se perigosa: a ciência não tem que legitimar
o desenvolvimento de grupos fechados e da xenofobia (CLAVAL, 2007).

E
IMPORTANT

O lugar da cultura, na geografia, sempre foi importante, mas ele mudou


fortemente durante a última geração. Até 1970, o enfoque era sobre as dimensões materiais
e técnicas da cultura. Hoje, o enfoque é mais sobre as suas dimensões simbólicas. Às vezes,
essa trajetória é apresentada em termos de revolução científica e de ruptura epistemológica.
O sentido da virada cultural é diferente, ele não se reduz à passagem de um período em que
a ênfase foi sobre as técnicas e outra em que foi sobre o sentimento e o simbolismo. Foi
uma evolução que não excluía uma certa continuidade. Um testemunho disso está ligado
ao interesse permanente para os processos de comunicação, de transmissão e de invenção.
Um outro é o lugar da dimensão material da cultura na pesquisa contemporânea, mesmo se
essa dimensão não esteja mais centrada sobre as atividades produtivas, mas sobre o corpo
como base da experiência humana e dos sentidos, do olhar, do ouvir, do cheirar, do tocar,
ou sobre a paisagem ou o patrimônio (CLAVAL, 2007).

194
TÓPICO 3 | PERSPECTIVAS ATUAIS E A GEOGRAFIA NO BRASIL

3 PERSPECTIVAS ATUAIS DA GEOGRAFIA


Os estudos geográficos ganharam força com novas metodologias analíticas,
interpretativas e sistêmicas dos fenômenos naturais, dos processos demográficos e
do desenvolvimento a partir dos lugares estratégicos de produção na nova ordem
global/mundial. Segundo Mamigonian (1999), os estudos geográficos físicos,
populacionais, econômicos, geopolíticos e culturais, abordados por metodologias
científicas, produzindo conceitos e interpretações a partir de análises sobre as
causas das realidades geográficas. A relação causa­-efeito só produzirá resultado
científico se for estabelecida a razão geográfica da realidade em determinadas
escalas regionais e macrorregionais. A territorialidade e as interações sistêmicas
com os ambientes naturais, os processos demográficos e as mudanças geopolíticas
nas transterritorialidades constituem, pois, a razão da ruptura epistêmica ocorrida
na geografia nas últimas décadas (MAMIGONIAN, 1999).

De acordo com Mamigonian (1999), percebe-se que a mudança significativa


é em relação à semântica geográfica. A significação de termos como cidade,
fábrica, território, territorialização, desterritorialização, região, urbanização, lugar,
ecossistema, geovida e tantos outros, ou perderam sentido, ou mudaram de sentido
ou, ainda, foram introduzidos. Na pós-modernidade há uma intelectualidade
global interativa capaz de responder em tempo real aos avanços do conhecimento.
Essa realidade proporcionada pelos instrumentos das tecnologias da informação
e da comunicação permitem aos pesquisadores, em qualquer lugar do mundo,
acompanhar e contribuir para as novas tendências do pensamento.

A crise da geografia decorre de três grandes fontes: filosófica, metodológica


e de significado. Nas palavras de Mamigonian (1999), as tendências atuais
procuram, muitas vezes de forma inconsciente, frequentemente tateando, dar
respostas às dúvidas recém-surgidas, sobretudo após 1960-1970. Por outro lado, é
preciso relembrar que de tempos em tempos os ramos do conhecimento humano
entram em crise. Assim, todo o debate sobre Modernismo/Pós-Modernismo, hoje,
frequentemente omite as fases materiais, sociais e políticas dos novos paradigmas
em gestação (alguns dos quais, velhos paradigmas travestidos de novos).

As tendências atuais da geografia visam, portanto, sendo ainda hoje


tentativas legítimas, mais do que novos paradigmas, dar respostas à crise de
sociedade, da civilização e da própria geografia. De acordo com Mamigonian
(1999), é possível dizer que o desenvolvimento do modo de produção capitalista
levou o mundo a uma mundialização econômica, que forçou a uma redefinição
dos espaços nacionais, regionais e locais quanto aos processos de suas
constituições, seus papéis na divisão territorial e social do trabalho, seus novos
significados e potenciais, tais como a quebra da livre concorrência, intervenção do
Estado, capitalismo monopolista-financeiro e hoje nova tendência à concorrência
internacional, que provocaram crises desigualmente distribuídas geograficamente,
falência do Estado e dos setores em que atua, com enormes repercussões espaciais,
desenvolvimento de novas tecnologias, tendentes à emersão de uma terceira
revolução industrial. O aprofundamento de uma sociedade crescentemente

195
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

técnico-científica criando tecnologias de sensoriamento remoto, satélites,


computadores que criam um instrumental novíssimo para o conhecimento
científico e diretamente para a geografia. Por isso é importante chamar a atenção
para as mudanças e preocupações vigentes atualmente na teoria e na prática da
geografia, tais como uma nova tendência ao pluralismo das posturas filosóficas,
forte tendência à preocupação teórica, relativamente escassa não só na geografia,
mas na história, antropologia, preocupação em reduzir as fronteiras rígidas das
disciplinas no interior da geografia e da geografia em relação aos demais ramos
do saber, multiplicação das linhas de pesquisa, como a revalorização de algumas
esquecidas (geopolítica, por exemplo) e o surgimento de outras (percepção, por
exemplo), reformulações, como novos enfoques privilegiados nos seus diferentes
ramos (clima urbano, espaço urbano produzido etc.).

Outro aspecto importante para os estudos geográficos atuais diz respeito


às migrações em todos os continentes. Essa é uma temática complexa que afeta
a vida social, a estrutura econômica, a condição cultural e o equilíbrio entre
territorialidade e população. Vale destacar também que pesquisas sobre o corpo
e territórios, gênero e espaço, cultura e religião, confeccionam o novo rosto da
Geografia no século XXI.

4 A GEOGRAFIA NO BRASIL
O Brasil permaneceu mais ou menos indiferente às novas orientações da
Geografia. Concepções tradicionais dominavam a escola, e os livros se limitavam
a uma geografia puramente descritiva e enumerativa, durante um bom período
do século XX. Além de não existirem pesquisas no país, a geografia nos países
ocidentais vivia ainda ao sabor das superficialidades conceituais e metodológicas.

De acordo Pontuschka (2007), somente com a fundação da Faculdade de


Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (1934), o funcionamento
da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), o Conselho Nacional de Geografia
e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é que a situação mudou,
embora lentamente. A expansão do ensino e pesquisa no país, as reformas escolares
empreendidas nos estados e a difusão de ideias ligadas à Escola Nova favoreceram,
no período de 1930 a 1950, o lançamento de outras bases para o ensino e a pesquisa
em geografia.

A fundação da FFCL/USP em 1934 e do departamento de Geografia em 1946


tiveram papel fundamental no desenvolvimento da ciência geográfica no país e na
formação de licenciados para o ensino da disciplina. De acordo com Pontuschka
(2007), do ponto de vista teórico é importante registrar a profunda influência
europeia sobre o desenvolvimento dessa ciência no Brasil, com destaque para
a presença francesa, justificada pela nacionalidade dos primeiros professores e
pesquisadores, dentre os quais Pierre Monbeig e Pierre Deffontaines, na FFCL/USP,
e François Ruellan, na Faculdade Nacional do Rio de Janeiro de ensino superior,
que já existiam em São Paulo, sob a égide de uma unidade universitária comum. A

196
TÓPICO 3 | PERSPECTIVAS ATUAIS E A GEOGRAFIA NO BRASIL

esta congregação de unidades de diversos campos do conhecimento foi acrescida a


Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da qual fazia parte o curso de Geografia.

Ainda de acordo com Pontuschka (2007), a implementação do ensino de


geografia em São Paulo é fundamentada na concepção francesa, ou seja, um ensino
vinculado à História e à Sociologia. Os dois professores franceses convidados para
implementar a Geografia no Brasil davam maior ênfase à Geografia Humana e
Regional; ao analisar as regiões, levavam em consideração os aspectos físicos, mas
sobrepunham a estes os demográficos e os econômicos.

Conforme Pontuschka (2007), uma outra universidade que vai contribuir


sobremaneira para a implantação da Geografia Científica em nosso país é a
Universidade do Brasil (RJ), composta sobretudo de seu corpo docente formado por
professores estrangeiros, como Pierre Deffontaines (Geografia Humana) e Francis
Ruellan (Geomorfologia). Teve a colaboração dos mestres brasileiros Victor Ribeiro
Leuzinger, na área da Geomorfologia, e Josué de Castro, na área da Geografia
Humana. A Universidade do Brasil mantinha convênios e uma forte ligação
com o IBGE, que teve grande parte dos geógrafos recém-formados trabalhando
neste instituto, o qual também recorria aos professores da Universidade para
ministrar cursos de férias para professores de vários estados. Mestres estrangeiros
que permaneceram por período relativamente longo no Brasil trabalharam
simultaneamente nas duas instituições (PONTUSCHKA, 2007).

Simultaneamente à criação da USP, foi fundada a Associação dos Geógrafos


Brasileiros (AGB), nas palavras de Pontuschka (2007), teve e tem ainda até hoje
significativa importância para todos os que, no Brasil, produzem conhecimento
geográfico ou ensinam geografia. Em 1934, Pierre Deffontaines funda, em São Paulo,
a Associação dos Geógrafos do Brasil (AGB). Essa associação foi fundamental para o
desenvolvimento da pesquisa geográfica no país. Os fundadores foram: Deffontaines,
Caio Prado Júnior, Luiz Fernando Morais Rego e Rubens Borba de Morais. O nome
AGB exprimia o desejo dos fundadores de que a nova associação não tivesse caráter
restrito, mas integrasse, em nível nacional, todos os que desejassem conhecer melhor
o país. Nas décadas de 1940 e 1950, a importância maior era dada aos estudos
regionais, considerados, pelos autores da época, a expressão fiel da paisagem
geográfica. O IBGE também teve papel fundamental na produção de pesquisas,
artigos de caráter geográfico, e o Conselho Nacional de Geografia também fazia as
orientações metodológicas de pesquisa em suas publicações.

197
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

FIGURA 5 – CAIO PRADO JUNIOR (1907-1990)

FONTE: <http://www.interpretesdobrasil.org/scale/46>. Acesso em: 30 jan. 2019.

Nos anos de 1950, após o término da Segunda Guerra Mundial, o espaço


geográfico mundializado pelo capitalismo tornou-se complexo e as abordagens
epistemológicas da Geografia Tradicional não eram capazes de apreender essa
complexidade. Novas metodologias e abordagens epistemológicas deveriam ser
criadas, elaboradas, surgir para empreender tal tarefa. De acordo com Pontuschka
(2007), o levantamento feito por meio de pesquisa de campo revelou-se insuficiente;
passou-se aos poucos para o uso de técnicas mais sofisticadas, como na década de
1960, a aerofotogrametria, antes do monopólio dos exércitos. Na década de 1970,
os geógrafos passaram a utilizar, com maior intensidade, a leitura de imagens de
satélites, como documentos importantes nos estudos da dinâmica atmosférica. Nas
décadas de 1980 e 1990, os programas de computadores e as técnicas ligadas ao
sensoriamento remoto passaram a ser usados. O importante dessas mudanças e usos
de tecnologias foi a reflexão teórico-metodológica, intensificada no Brasil após 1970.

Na década de 1970, segundo Pontuschka (2007), o embasamento filosófico


centrado no positivismo clássico e no historicismo passou a ser fortemente criticado
pelos geógrafos teoréticos. O IBGE foi pioneiro na produção de artigos de caráter
geográfico em que se verifica o uso de métodos matemáticos. No Estado de São Paulo,
reuniu-se um grupo de geógrafos pertencentes à Faculdade de Filosofia de Rio Claro,
os quais fundaram uma entidade denominada Associação de Geografia Teorética
(Ageteo), e a partir dessa iniciativa pretendiam dar início à divulgação de trabalhos
com o uso da metodologia teorética, buscando nos métodos quantitativos e estatísticos
e nos modelos matemáticos uma análise, a seu ver, mais rigorosa do espaço.

198
TÓPICO 3 | PERSPECTIVAS ATUAIS E A GEOGRAFIA NO BRASIL

Tal corrente foi criticada pelos geógrafos brasileiros, que buscavam outros
caminhos para a compreensão e explicação do espaço geográfico. De acordo com esses
críticos, os teoréticos apresentavam um discurso de conteúdo mais abstrato do que
as propostas da chamada Geografia Tradicional. Os teóricos de orientação marxista,
crítica, influenciaram a produção da Geografia no Brasil nas décadas de 1980 e 1990.

De acordo com Pontuschka (2007), surgiram na década de 1980 tendências


críticas que apresentavam o materialismo histórico como elemento unificador e
método de investigação da realidade, buscando superar os diferentes dualismos
sempre constatados na Geografia, desde que constitui um corpo sistematizado
de conhecimentos. Mas ao longo da década de 1990, despontaram tendências
não marxistas, além de algumas que desvalorizavam a importância do método
dialético no debate. As transformações que abriram caminho para as diferentes
correntes do pensamento não ocorreram linearmente. Assim, nas décadas de 1980
e 1990 continuaram os embates teórico-metodológicos entre as grandes frentes:
a Nova Geografia; a Geografia Tradicional; a Geografia Crítica; a Geografia
Comportamental; e a Geografia Pós-Moderna.

A produção científica dos geógrafos brasileiros também se encontra


embasada em pensadores não geógrafos que tomam o espaço como categoria central
em suas análises: Manuel Castells e Henri Lefebvre investigam o espaço urbano.
Michel Foucault pesquisa o espaço dos poderes; David Harvey realizou estudos
temáticos preocupados com o urbano. No Brasil, José de Souza Martins produziu
obras dedicadas à Geografia Rural. Na atualidade existem vários caminhos para
a discussão e a produção de Geografia no país apoiadas no Existencialismo; na
Fenomenologia Hermenêutica; na Percepção, no Anarquismo, no Pós-Modernismo,
no Decolonialismo, entre outras abordagens.

E
IMPORTANT

Cabe destacar alguns nomes de geógrafos brasileiros que contribuíram com a


institucionalização e produção de conhecimentos geográficos:

• Josué Apolônio de Castro (1908-1974): Josué de Castro foi médico, pesquisador e professor


brasileiro. Pesquisou os problemas da fome e da miséria no Brasil. Realizou conferências e
estudos sobre a fome em vários países. Foi professor em diversas universidades no Brasil e
da Universidade de Vincennes, na França. Em 1946, publicou o livro Geografia da Fome. Em
1951, Josué foi eleito presidente do Conselho da Food and Agricultural Organization (FAO),
passando a viajar por vários países e visualizar os problemas da fome, sobretudo nos países
subdesenvolvidos. Suas ideias foram publicadas no livro Geopolítica da Fome, em 1952.
Josué de Castro foi deputado federal em Pernambuco, pelo Partido Trabalhista Brasileiro,
de 1954 a 1958 e de 1958 a 1962. Nesse último ano, foi designado embaixador do Brasil na
Conferência Internacional de Desenvolvimento, em Genebra, na Suíça. Em 1964, o presidente
João Goulart foi deposto por um golpe militar e Josué teve seus direitos cassados, perdendo
o cargo de embaixador. Exilado, transferiu-se para Paris, onde foi nomeado professor de
Geografia da Universidade de Vincennes, lá desenvolveu pesquisas e viajou para diversos

199
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

países da Europa, África e América Latina, que procuravam seu apoio. Morreu em Paris, no dia
24 de setembro de 1974.
• Milton Almeida dos Santos (1926-2001): Milton Santos, nascido em Brotas de Macaúbas,
no interior da Bahia, em 3 de maio de 1926. Embora tivesse concluído o curso de Direito em
1948, Milton Santos ministrava aulas de Geografia no Ensino Médio na Bahia. Daí seu interesse
pela disciplina que o lançou ao mundo das ideias e da reflexão política. Em 1958 obteve seu
título de doutor em Geografia, na Universidade de Strasbourg (França), passando a ensinar
na Universidade Católica de Salvador e, depois, na Universidade Federal da Bahia, na década
de 1960. Homem de ação política, aceitou o convite para participar de governos no início
da  década de 1960, que culminou com sua prisão em 1964, por ocasião do golpe de estado
implementado pelos militares ao Brasil. Foram três meses difíceis. Ao sair da prisão, carregava
consigo uma decisão: era preciso partir. O geógrafo ganhava o mundo. O começo de sua
carreira internacional forçada ocorreu na França, onde trabalhou em diversas universidades,
como as de Toulouse (1964-1967), de Bourdeaux (1967-1968) e de Paris (1968-1971). Durante
esses anos realizou estudos sobre a Geografia Urbana dos países pobres e produziu vários
livros. Da França partiu para vários países, vivendo de maneira itinerante e como professor
convidado. Em 1978 estava de volta à vida universitária brasileira, mas trazia na bagagem uma
obra que marcou, sobretudo, os geógrafos marxistas do país: Por uma Geografia Nova, que
foi traduzida para vários idiomas em diversos países. Neste trabalho, Milton Santos preconiza
uma geografia voltada para as questões sociais. Entre 1978 e 1982 trabalhou como professor
visitante na Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo – USP. Atuou também
como professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, onde permaneceu até
1983. Em 1983 ingressou em uma nova instituição de ensino e pesquisa: o Departamento
de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, onde organizou
congressos, ministrou aulas na graduação e na pós-graduação, pesquisou, produziu livros e
formou alunos. Depois de 1994 sua vida foi marcada pelo reconhecimento de sua produção
como geógrafo e intelectual crítico. Recebeu diversas premiações. Após o diagnóstico de um
câncer em 1994, ao contrário de esmorecer, intensificou o seu trabalho de intelectual, para
perplexidade dos que o acompanhavam de perto, até a data de seu falecimento, em 24 de
junho de 2001.
• Aziz Nacib Ab'Saber (1924-2012): Aziz Ab’Saber nasceu em 24 de outubro de 1924, em
São Luiz do Paraitinga/SP, e dedicou quase 70 anos ao estudo da geografia. Aos 17 anos
ingressou no curso de Geografia e História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências (FFLC)
da USP. Decidiu-se pela Geografia, na qual se licenciou em 1944. Tornou-se especialista em
Geografia Física em 1946, quando iniciou estudos sobre Geologia e ingressou na USP como
jardineiro, passando a prático de laboratório três meses depois, no Departamento de Geologia
e Paleontologia da FFLC. Manteve-se no cargo enquanto obtinha o doutorado (1956) e até
tornar-se livre-docente (1965), quando passou a dar aulas de Geografia Física na Universidade.
Antes de ser professor da USP, deu aulas no Ensino Médio e na Pontifícia Universidade Católica
(PUC) de São Paulo. Tornou-se professor titular em 1968, aposentando-se na Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) em 1982. Mesmo aposentado, continuou
desenvolvendo suas pesquisas e, em 1988, passou a integrar o IEA (Instituto de Estudos
Avançados) como professor visitante da Área de Ciências Ambientais, tornando-se depois
professor honorário do Instituto, no qual atuou até a véspera de sua morte, em 16 de março
de 2012. Ab’Saber foi autor de estudos e teorias fundamentais para o conhecimento dos
aspectos naturais do Brasil. Sua produção em geografia centrou-se sobretudo em domínios
morfoclimáticos e fitogeográficos brasileiros, sertões do Nordeste, estudos amazônicos,
superfícies aplainadas do Brasil, Teoria dos Refúgios e na revisão das pesquisas sobre
"desertificação" na Campanha Gaúcha de Sudoeste, além de esforços para cruzamento entre
o Ensino Fundamental com uma educação de base regional para o país. Realizou centenas
de pesquisas e tratados de relevância internacional nas áreas de Ecologia, Biologia Evolutiva,
Fitogeografia, Geologia, Arqueologia e Geografia. Sua produção contabiliza mais de 500
trabalhos, entre artigos acadêmicos, teses, capítulos de livros, prefácios e apresentação de
livros, resenhas, publicações em jornais, revistas, documentos e relatórios.

FONTE: <https://www.ebiografia.com>. Acesso em: 30 jan. 2019.

200
TÓPICO 3 | PERSPECTIVAS ATUAIS E A GEOGRAFIA NO BRASIL

AUTOATIVIDADE

Exercitando-se com o ENADE

Na cidade, a distância entre os desiguais não se opera mais, predominantemente,


a partir da lógica de periferização dos mais pobres e de destinação, aos
mais ricos, das áreas centrais e pericentrais, as mais bem-dotadas de meios
de consumo coletivo (infraestruturas, equipamentos e serviços urbanos).
Os sistemas de segurança urbana oferecem condições para que a separação
possa se aprofundar, ainda que justaponham, no “centro” e na “periferia”,
segmentos sociais com níveis desiguais de poder aquisitivo e com diferentes
interesses de consumo.

SFOSITO, M. E. B. A produção do espaço urbano: escalas, diferenças e desigualdades socioespaciais.


In: CARLOS, A. F. A et al. (Orgs.). A produção do espaço urbano: agentes e processos, escalas e
desafios: São Paulo: Contexto, 2011 (adaptado).

Considerando novas e velhas dinâmicas da segregação espacial nas cidades


brasileiras na contemporaneidade, avalie as afirmações a seguir.

I- A segregação espacial é consequência da existência dos sistemas de segurança,


que promovem a segregação dos ricos em relação aos mais pobres.
II- A segregação espacial tem relação com as diferenças de classes sociais, que
resultam na fragmentação do espaço em áreas com melhores condições de
infraestrutura e outras com escassez de serviços urbanos.
III- O uso dos sistemas de segurança vem permitindo que a segregação espacial
possa aprofundar-se, opondo diferentes segmentos e classes sociais, tanto
no centro quanto em outras áreas das cidades.

É correto o que se afirma em:


a) ( ) I apenas.
b) ( ) II apenas.
c) ( ) I e II apenas.
d) ( ) II e III apenas.
e) ( ) I, II e III.

FONTE: ENADE Licenciatura Geografia 2017 – Questão 9. Disponível em: <http://download.


inep.gov.br/educacao_superior/enade/provas/2017/26_GEOGRAFIA_LICENCIATURA_BAIXA.
pdf>. Acesso em: 17 jan. 2018.

201
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

DICAS

SUGESTÃO DE AULA

Nova ordem ou nova desordem mundial?


Autora: Rosângela Nasser Ganimi 

O aluno deverá compreender a formação de um novo arranjo geopolítico, econômico


e social nos países. Deverá realizar análises sobre as atuais divergências e desigualdades
presentes no novo ordenamento geopolítico e econômico internacional.
Duas aulas de cinquenta minutos.
Os alunos deverão ter um conhecimento prévio sobre o período e o fim da Guerra Fria.
Deverão conhecer a ordem bipolar e as principais características do capitalismo e do
socialismo.

Estratégias e recursos da aula – Aula 1

1º passo: o professor deverá iniciar a aula com os seguintes questionamentos: O que é


ordem (ou desordem) mundial? Qual é a (des)ordem do mundo atual? O que as pessoas
mais buscam/almejam no mundo atual? (Nesse questionamento poderão aparecer
respostas variadas. Aproveitar para trabalhar o lado humano das relações entre as pessoas).
O que vocês pensam sobre a disseminação do consumo pelo mundo? Todas as pessoas
têm acesso aos produtos disponíveis no mercado? Por quê?

2º passo: mostrar a imagem a seguir e deixar livre para análises.

Cada aluno deve escrever, individualmente, uma breve análise sobre a imagem. Os alunos
deverão ser chamados à atenção para perceber o conteúdo da imagem. Seriam produtos
(nesse caso, bolsas) produzidos/montados com matérias-primas de várias origens. A aula
deverá acontecer na sala de informática da escola, onde os alunos terão oportunidade de
pesquisar sobre a produção de outros produtos, escolhidos de acordo com interesse deles
próprios, e verificar a origem da(s) matéria(s)-prima(s) principal(is) na elaboração/construção
de tal produto. Feito isso, eles deverão se reunir em grupos de três ou quatro para discutir
e trocar opiniões, construindo um pequeno texto (único para o grupo). A turma deverá ser
organizada em círculo, de modo que todos possam se ver, para leitura dos textos construídos
pelos grupos. O professor deve, depois da leitura, mediar um debate, em que muitos
conhecimentos e ideias devem ser orientados a fim de que tenham um encadeamento.

202
TÓPICO 3 | PERSPECTIVAS ATUAIS E A GEOGRAFIA NO BRASIL

Aula 2
1º passo: o professor deverá trabalhar a leitura e a análise dos seguintes textos:

A HEGEMONIA DO NOVO LIBERALISMO


Corrente dominante no pensamento econômico contemporâneo, o neoliberalismo defende
a abertura dos mercados e a redução do Estado. No começo dos anos 1990, entramos
num novo momento econômico mundial, que se convencionou chamar de globalização.
Iniciado com o fim da Guerra Fria, após a queda do Muro de Berlim (1989) e a derrocada da
União Soviética (1991) e dos regimes comunistas do Leste Europeu, é um período marcado
pela crescente interdependência de todos os atores econômicos globais – governos,
empresas e movimentos sociais.
Para entendermos a globalização, é preciso saber que o fenômeno em si começou há
muito tempo. Os primeiros passos rumo à conformação de um mercado mundial e de uma
economia global remontam aos séculos XV e XVI, com a expansão ultramarina europeia.
[...] O mercantilismo estimulou a procura de diversas rotas comerciais da Europa para Ásia
e a África, cujas riquezas iriam somar-se aos tesouros extraídos das minas de prata e ouro
do continente americano. Essas riquezas forneceram a base para a Revolução Industrial, no
fim do século XVIII, que, com o tempo, desenvolveu o trabalho assalariado e o mercado
consumidor. As descobertas científicas e as inovações de máquinas provocaram a expansão
dos setores industrializados e possibilitaram o desenvolvimento da exportação de produtos.
Surgiram, no fim do século XIX, as corporações multinacionais, industriais e financeiras, que
iriam reforçar-se e crescer no século seguinte. O mercado mundial estava, então, atingindo
todos os continentes. A interdependência econômica entre as nações tornou-se evidente
em 1929: após a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, a depressão econômica teve
consequências negativas em todo o planeta. Enquanto isso, a Revolução Russa de 1917 e
outros movimentos após a 2ª Guerra Mundial retiraram diversos países de uma inserção
direta no mercado mundial. Mas, com o tempo, esses regimes comunistas passaram a sentir
uma crescente pressão econômica e política e foram se abrindo, gradualmente. O fim do
século XX assiste a um salto nesse processo. Em 1989 ocorre a queda do Muro de Berlim,
marco da derrocada dos regimes comunistas no Leste Europeu. Nos anos seguintes, esses
países serão incorporados ao sistema econômico mundial. A própria integração da economia
global acentuou-se a partir dos anos 1990, por intermédio da revolução tecnológica,
especialmente no setor de telecomunicações. A internet, rede mundial de computadores,
revelou-se a mais inovadora tecnologia de comunicação e informação do planeta. A troca
de informações (dados, voz e imagens) tornou-se quase instantânea, o que acelerou muito
o fechamento de negócios. [...]
FONTE: Atualidades Vestibular. São Paulo: Abril, 2008. p. 152.

TURBULÊNCIAS NO MUNDO GLOBALIZADO


A economia mundial enfrenta recessão em 2009, após crise financeira iniciada nos Estados
Unidos. Falência de bancos e indústrias, bolsas de valores em queda e países com a economia
em crise. Esses têm sido alguns dos acontecimentos recentes da economia mundial, sobre os
quais podemos ler todo dia nos jornais e revistas. Como, atualmente, a economia dos países
é muito interligada, a crise iniciada há dois anos no mercado financeiro dos Estados Unidos
acabou rapidamente por afetar a economia global de modo geral. A atual crise estourou em
setembro de 2008, quando uma onda de falências atingiu bancos e empresas imobiliárias
norte-americanos. A seguir, o problema espraiou-se para a Europa, provocando a pior crise
econômica desde a quebra da Bolsa de Nova York, em 1929. Em consequência, o mundo
entrou numa recessão em 2009, da qual estava tentando se recuperar no fim do ano, de
acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Mas eis que, em dezembro, eclodiu uma
crise de endividamento financeiro da Grécia, país da União Europeia, que voltou a tumultuar
as bolsas de valores e os mercados internacionais. As principais características da atual crise,
como a grande liberdade de movimento de capitais e a velocidade com que os problemas
financeiros surgidos nos Estados Unidos se espalharam, são típicas da globalização, atual fase
de desenvolvimento da economia global, na qual o mundo entrou há duas décadas. [...]
FONTE: Atualidades Vestibular. São Paulo: Abril, 2011. p. 134.

203
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

2º passo: depois de lido e chamada a atenção para pontos fundamentais do texto (inclusive,
fazendo referências a fatos históricos relevantes para a compreensão da organização do
espaço mundial), o professor deve organizar novamente a turma com os grupos da aula
anterior e pedir que reflitam e anotem sobre os seguintes questionamentos: Como era
a ordem mundial no período da Guerra Fria? Como vocês imaginam ser a vida em um
país que adotou o sistema socialista, como forma de gerir a nação? O que vocês pensam
acerca da possibilidade de implementação de um outro tipo de sistema, em alguns países do
mundo? Vocês conseguem imaginar de que maneira um país (ou grupo de países) socialista
enfrentaria o capitalismo hoje? Como vocês avaliam a economia global? Quais são os
pontos positivos e negativos dessa economia para a sociedade mundial? Como pode ser
estabelecida a nova (des)ordem mundial? Com tantos avanços técnicos e científicos, de que
forma vocês pensam o futuro do planeta?

Dica: a leitura dessas respostas pode gerar um seminário em outro momento. Para a execução
do seminário, os alunos poderão fazer uma pesquisa na internet, livros e revistas disponíveis na
escola, com a orientação do professor, e objetivar a construção de um material sistematizado
(em forma de texto, em tópicos ordenados, com imagens, charges, vídeos, entrevistas postadas
na internet e outros) para a discussão e apresentação no seminário proposto.
Recursos Complementares: textos; imagem.
Bibliografia:
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
São Paulo: Record, 2000.
Endereços eletrônicos:
<http://desenvolvimentoemquestao.blogspot.com/2009/07/por-uma-outra-globalizacao-
milton.html>.
Entrevista com Milton Santos – Conexão Roberto D'Ávila (1998) (vídeo). Disponível
em: <http://www.cantacantos.com.br/blog/?p=8177>.

Avaliação: o professor deverá avaliar a participação dos alunos, desde a formação e


organização dos grupos, até o seu comprometimento/envolvimento nas discussões, na
pesquisa, nas respostas solicitadas e na argumentação e respeito com opiniões divergentes.

FONTE: <http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=28853>. Acesso


em: 17 jan. 2019.

204
TÓPICO 3 | PERSPECTIVAS ATUAIS E A GEOGRAFIA NO BRASIL

LEITURA COMPLEMENTAR

A HISTÓRIA DA GEOGRAFIA NO BRASIL

Manoel Fernandes de Sousa Neto

AGB surgiu em 1934, portanto daqui a dois anos a AGB vai estar com 70
anos. Então, eu poderia fazer um histórico da AGB, do papel da AGB no Brasil,
mas eu não vou falar sobre isso, eu não vou falar sobre a AGB.

Eu sei ainda que existe uma outra instituição bastante importante aqui no
Rio de Janeiro que é o IBGE. O IBGE surgiu em 1937, mas eu também não vou falar
do IBGE. Eu poderia falar das universidades brasileiras onde se formaram geógrafos
no Brasil da década de 1930 para cá, poderia falar da Universidade de São Paulo,
que tem um curso que existe desde 1934; poderia falar da Universidade do Distrito
Federal, que passou a ser Universidade do Brasil e hoje é a Universidade Federal do
Rio de Janeiro e existe desde 1935, mas também não é da formação dos profissionais
geógrafos nas universidades brasileiras que pretendo conversar com vocês.

Em outras palavras, não tenho a pretensão de conversar com vocês sobre


aquilo que muitos já sabem, mas sobre as coisas ainda por conhecer entre nós
e que repousam sob a poeira do esquecimento. Espero que entendam a minha
recusa de falar sobre umas histórias e que acolham a escolha por outros caminhos.

Não estou querendo negar a validade da história da Geografia que


passa pela AGB, IBGE, universidades. E é claro, por exemplo, que se você puder
descrever na Revista Tamoios, é importante dizer que esta faculdade (a Faculdade
de Formação de Professores da UERJ) já tem uma história e uma história que
efetivamente precisa ser contada e que eu acho que as pessoas aqui estão tentando
contar, que é produto de todo esse processo histórico que a gente tem aí.

Bom, eu falei aqui de três instituições, ou pelo menos em três campos


institucionais, um mais ligado aos profissionais, digamos assim, de forma extensa,
no caso a AGB (1934); um mais ligado à questão do planejamento, no caso do IBGE
(1937); e outra(s) mais ligada(s) à formação acadêmica, no caso as universidades
brasileiras (1934/1935) formadoras de geógrafos. Se vocês porventura abrirem
qualquer manual ou consultarem alguns poucos textos que versem sobre a
história da Geografia no Brasil, eles vão se reportar exatamente a estas datas e a
estas instituições, correto? Quem já fez aqui alguma disciplina ligada a isso vai se
deparar exatamente com estes marcos historiográficos e institucionais.

O que nós estamos tentando fazer, quando eu digo nós, falo um grupo
expressivo de pesquisadores que hoje atua nessa área, é contar a história da
geografia no Brasil que ainda não foi contada, uma história da geografia no
Brasil que ainda está por ser, digamos assim, construída, que é uma história que
antecede à década de 1930.

205
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

Vocês já ouviram falar da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, a SGRJ?


Quem já ouviu falar aqui? Você já ouviu falar? Não? Porque na realidade foi uma
instituição fundada em 1883 e poucos conhecem, logo não espanta saber que a maioria
desconheça. Vocês sabiam que havia aqui no Brasil uma instituição que era uma seção
da Sociedade Geográfica de Lisboa da década de 70 do século XIX? Sabiam que se
produziu muita geografia por dentro da Academia Real Militar? A gente podia dizer
inclusive que houve uma instituição que produziu muita geografia no Brasil, muito
saber geográfico, chamado IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), que foi
fundado inicialmente no ano de 1838, ou seja, exatamente quase 100 anos antes do IBGE.

E por que é que agora um grupo de malucos está querendo contar uma
história, que é diferente daquela história que sempre foi contada? Por que é que
agora, algumas pessoas estão a remexer velhos papéis, para contar ou para dizer
de geógrafos, ou de geografias, ou de saberes geográficos existentes antes daquele
saber geográfico ou daquele período tido como período fundador da geografia no
Brasil? Eu vou dizer três das razões fundamentais.

A primeira delas: sempre fizemos História das Ciências a partir da história


da ciência dos países ditos centrais, correto? Vou dar um exemplo atual: se você
quer saber quais são os pesquisadores em física que mais produzem, qual é um
dos principais critérios? O critério de saber quantas vezes ele foi citado em papers
internacionais de revistas indexadas. Então você pode ter um cara muito bom em
física na Faculdade de Formação de Professores da FFP, se aqui tiver um curso
de Física que forme professores de física, ele pode ser excepcional, pode ser um
pesquisador de mão cheia, mas se ele não for muito citado, em nível internacional,
ele não vai ser reconhecido como um bom pesquisador, correto?

Cláudio Barbosa da Costa esses dias participou comigo em São Paulo de


uma reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ANPEGE),
onde foi anunciado que daqui a algum tempo instituições de pós-graduação e órgãos
de fomento à pesquisa podem vir a acabar com os cursos de mestrado acadêmico.
Só vai ter espaço para os mestrados profissionais pagos. É assim que o governo de
Fernando Henrique hoje bate o facão e diz: só quem for doutor vai poder entrar
nas universidades brasileiras, sendo que não há um só doutorado em Geografia no
Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Nós podemos ver outras coisas com relação aos
parâmetros de ciências, ou seja, em outras palavras, só os parâmetros de ciência
internacional é que valem para nós pensarmos a produção da ciência nos países ditos
colonizados, nos países ditos periféricos, então para poder fazer ciência, nós temos
que fazer ciência do jeito que se faz na Europa e Estados Unidos, certo?

É por isso que o período que antecedeu 1930 foi considerado por muito tempo
como pré-institucional ou como pré-científico, só que quase ninguém disse que
havia, por exemplo, geólogos e geógrafos-físicos importantíssimos aqui, como um
cientista americano chamado Charlles Hart que publicou em 1878 um livro intitulado
Geologia e Geografia Física do Brasil, um livro inclusive fabuloso; quase ninguém diz
que houve comissões científicas de exploração, que viajaram pelo território nacional,
fizeram levantamentos interessantíssimos da flora, da fauna, das condições físicas
mais gerais, isso quase ninguém fala. E já que naquela época, portanto, se produzia

206
TÓPICO 3 | PERSPECTIVAS ATUAIS E A GEOGRAFIA NO BRASIL

saber geográfico, só que os métodos não necessariamente eram os mesmos métodos


que eram utilizados na Europa, não necessariamente eram os mesmos métodos que
eram utilizados, “aspeadamente”, no “centro do mundo”; não foram reconhecidos
como válidos. Então a briga é para que nós deixemos de pensar que a ciência só
passou a existir entre nós depois que foram fundadas universidades, instituições de
pesquisa, institutos como o IBGE. Não. Antes já havia uma ciência produzida por
nós, só que era preciso eurocentricamente etiquetar essa ciência como não válida,
não legítima. Por quê? Porque ela ainda não acompanhava esse processo de fazer
ciência. Então a primeira briga é essa, é dizer que o que nós fazíamos aqui era ciência
geográfica ainda antes da década de 30 do século XX, essa é a primeira coisa.

A segunda coisa é, ao apontar para esse tipo de história, começar a


desmascarar algumas histórias que ainda hoje são contadas por aí. Exemplo:
dizem que os primeiros professores de geografia do Brasil foram formados na
USP, essa é uma meia verdade. Os primeiros professores de geografia no Brasil
foram formados num Curso Livre de Geografia dado em 1920, salvo engano, não
sei se a data é exatamente essa, mas na década de 20 foi criado um curso por dentro
da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, organizado por dois professores que
não eram professores universitários, Everaldo Bekhauser e Delgado de Carvalho.
Como foi um curso ministrado no Rio de Janeiro e não em São Paulo, mudam
as cidades, mudam as instituições, mudam as pessoas, só para vocês terem uma
ideia do que é que pode mudar nessa história.

Vocês sabem onde aconteceu o primeiro Congresso Brasileiro de Geografia?


Que teve representantes de todo o território nacional, doze seções e trabalhos sobre
geografia-matemática, geologia, climatologia e ensino de geografia, dentre outros.
Vocês sabem em que ano aconteceu o primeiro Congresso Brasileiro de Geografia?
Foi em 1934, com a data da fundação da AGB? Não. Foi em 1909, na cidade do Rio
de Janeiro. Se vocês tiverem a oportunidade de manusear os anais desse Congresso
irão encontrar lá uma quantidade imensa de nomes, dígitos, sons, que já aquela época
produzia geografia ou um saber geográfico que a gente precisa no mínimo considerar.

E a terceira razão para fazer este recuo historiográfico, qual é? É a seguinte:


não se conta a história desse país sem saber que geografia foi produzida nele, porque
foi esse saber geográfico que produziu também esse país. Vamos tentar explicar
um pouco o que é que isso significa. Era o Brasil em termos territoriais no século
XVI? Era aquele recorte do Tratado de Tordesilhas, vamos ver se a gente consegue
pensar naquele recorte das famosas Capitanias Hereditárias. Depois tivemos dois
Estados portugueses na América, um que era o Brasil e outro o Estado do Grão-
Pará. Além disso, havia o mito de que o Brasil era uma imensa ilha, sendo parte
dela cercada pelas águas do Atlântico e parte cercada pelas águas do São Francisco
e do Tocantins, depois Amazonas e Prata. Aí vocês podiam me perguntar: o que
isso tem a ver conosco, o que tem a ver com história da geografia no Brasil?

Alexandre Gusmão, que era diplomata português, conseguiu fazer dizer


[sic.] que nós conhecíamos o território brasileiro porque havíamos medido o
território brasileiro, sabíamos a extensão dele, sabíamos até onde ele ia, inclusive
comprovando isso por intermédio de cartas, de levantamentos realizados com

207
UNIDADE 3 | EPISTEMOLOGIA DA GEOGRAFIA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO – PÓS-MODERNO

esse ainda frágil esquadrinhamento do território, e aí o que foi que houve? Nós
trocamos o reconhecimento da Espanha, de que esse território mais a oeste era
propriedade de Portugal por uma possessão portuguesa nas Filipinas. As Filipinas
eram portuguesas, e passaram a ser, à época, propriedade espanhola, e aí você
pode entender o que tem a ver a história do Brasil com as Filipinas. Mas o que é que
garantiu que o território fosse “conquistado”, pelo menos até Santo Idelfonso, num
conclave diplomático internacional? Foi o conhecimento efetivo do território, foi o
saber do território, foi tê-lo esquadrinhado, foi tê-lo construído do ponto de vista
representacional, foi isso que permitiu Alexandre Gusmão postular suas teses.

Então eu diria que a história da geografia no Brasil é fundamental para que


nós pensemos como este país foi se constituindo. Pensando essa constituição sob
diversos aspectos e não apenas territorialmente. Esse foi um país que experimentou
a violência da escravidão e a violência contra os índios, e isso não dá pra gente
esquecer; foi um país que na expansão para o oeste, que é a lógica efetiva do processo
de expansão do capital, significou o assassinato de milhares, de milhões de pessoas.
Havia nove milhões de índios e hoje tem 200 mil, segundo alguns dados que são
colocados por aí e já não dão mais conta da realidade. É um país que ainda hoje é
marcado por essa história, por essa história de violência, física e psicológica.

Por nós não termos feito essa história do saber geográfico no Brasil anterior
a 1930, permitimos que uma série de mitos se constituíssem como verdades quase
incontestes. Quer ver algumas coisas que nós aprendemos na escola? O Brasil é
atrasado, porque foi colonizado por Portugal; segunda, o Brasil é atrasado porque
ele é um país que fica nos trópicos, então a torridez tropical faz as pessoas terem
preguiça, malemolência, produzirem pouco; depois nós somos um país atrasado
porque somos um país mestiço, porque aqui na canícula do calor dos trópicos
e tal, o sexo rolava de forma louca entre portugueses e índios e negros e aí a
mestiçagem acabou barafundando tudo e arruinando o que podia haver de bom
nas raças puras, e por isso também nós éramos atrasados.

Ainda hoje, se você parar nos pontos de ônibus, tem gente que diz mais
ou menos assim: rapaz, se por acaso os holandeses não tivessem sido expulsos do
Brasil, hoje a história seria outra, mentira! Se fosse a Inglaterra, o negócio seria outro,
mentira! Nós fomos colônia inglesa, parte de nós foi colônia holandesa, e as coisas
eram tão terríveis, ou mais terríveis do que com os portugueses. Não era lógica de ser
português ou não, era lógica colonial. Esse era o problema, é que nós temos o passado
colonial e não podemos negar isso, e tem uma geografia colonial que a gente precisa
ver e isso exige um recuo histórico ainda maior.

E o que tem a ver todo esse processo de outros presentes históricos com a
nossa história hoje? Porque quando se fala hoje em neoliberalismo, quando se fala em
globalização, quando se fala em ALCA, isso tem a ver com um projeto de recolonização.
E pra quem já foi colônia, esse debate é importantíssimo, por que, por exemplo, o
que tem a ver a CLT com a ALCA? A flexibilização da lei do trabalho com a ALCA?
Tudo. É preciso quebrar os direitos dos trabalhadores como se quebrou os direitos
das pessoas de viverem sua humanidade, por exemplo, trazendo para cá negros da
África sob a dureza do ferro e a crueza do fogo, para aqui serem comercializados. A

208
TÓPICO 3 | PERSPECTIVAS ATUAIS E A GEOGRAFIA NO BRASIL

ALCA é quase que um retorno à escravidão porque precisa disso, quebrar com um
direito dos trabalhadores, completamente. Então o que eu quero dizer é que também
estudar essa história, da geografia do Brasil, pra compreender a história desse país
e a conformação dessa sociedade, tida como atrasada por estes aspectos que eu lhes
coloquei em função dos muitos mitos que aqui foram constituídos, tem a ver com
a nossa história, hoje, tem a ver com o que nós estamos a fazer, agora. Eu sei que o
salto parece grande, não é? Não tem nada a ver a escravidão com a ALCA; não tem
nada a ver a biopirataria com o fato de que muitos cientistas estrangeiros vinham
aqui e coletavam informações acerca das riquezas naturais; não tem nada a ver as
questões dos limites territoriais com o Acordo do Livre Comércio das Américas, que
vai acabar, digamos assim, com fronteiras alfandegárias; não tem nada a ver então
uma coisa com a outra. Aparentemente não tem nada a ver.

Qual a tarefa de quem estuda história da geografia no Brasil ou saberes


geográficos? E por que eles ficaram por tanto tempo adormecidos, no período anterior
a 30? Porque não é possível, e essa é a tese fundamental que eu queria defender esta
noite, compreender a história desse país sem saber que geografias foram produzidas
aqui, mesmo antes que aqui houvesse geógrafos ou instituições geográficas, como as
universidades, como os IBGEs da vida, como as associações de geógrafos? É tarefa
nossa saber disso. E por que é tarefa nossa saber disso? Porque boa parte das coisas
só será explicada quando nós soubermos como explicá-las e, portanto, é preciso
fazer uma pesquisa documental com relação às fontes, eu diria, bastante criteriosa. É
preciso que se intervenha nesse trabalho de forma bastante cuidadosa para que nós
tenhamos algum tipo de resposta para as questões que estamos agora a levantar.

Em artigo publicado na Terra Livre nº 15, exatamente no ano em que se


discutia a questão dos 500 anos do Brasil, foi resultado de uma discussão em
que a pergunta era: O Brasil é uma invenção ou uma construção? Porque se é
uma invenção, qualquer pessoa pode dizer o que esse país é, correto? A gente
inventa e desinventa do jeito que a gente quer. Agora, se ele é uma construção
histórica, aí é diferente, aí é outra história, aí é outra coisa, e essa construção
precisa ser pensada. Então para mim não é uma invenção, para mim é construção.
E se é construção, ela é ao mesmo tempo construção do território, construção da
sociedade que habitou esse território, que produziu esse território. Construção
de uma série de mitos que precisam ser destruídos, como exatamente o mito do
clima, o mito da miscigenação, o mito do atraso pela colonização portuguesa, são
tarefas nossas como geógrafos nesse momento, evidentemente rever essa história,
contar a história que ainda não foi contada. E por que é importante contar a
história que ainda não foi contada? Porque só ao contá-la nós vamos ter dimensão
do que somos, eu não vejo outra possibilidade. E aí isso significa uma posição
política fundamental, significa dizer, primeiro, que a história não acabou, que
a velha senhora está de novo aí de pé, mais jovem do que nunca, contra a volta
de toda barbárie. E, portanto, dizer aquilo que disse uma vez Frederic Jameson,
historicizar sempre é papel nosso, eu acho, papel do estudante em geografia,
daqueles que agora estão entrando, que estão tomando pé do que significa essa
ciência para esse país, que não dá para pensar o país sem pensar que geografia
efetivamente produziu esse país ao longo de toda a sua história.

FONTE: <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/tamoios/article/viewFile/570/618>. Acesso


em: 17 jan. 2019.

209
RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• A Geografia Cultural passou por várias etapas até se estruturar da forma como
a conhecemos. Embora a Geografia Cultural tenha ganhado uma identidade
com a obra de Sauer e seus discípulos, a dimensão cultural já estava presente
na geografia do século XIX.

• A renovação realizada na Geografia Cultural não deixará de abordar o passado,


mas há de se privilegiar o presente ou um passado não muito longínquo. O que
a nova abordagem tem de diferente é a análise dos significados atribuídos à
espacialidade do homem. Seu foco está nos significados criados por diversos
grupos: no passado, presente ou até mesmo do futuro.

• As tendências atuais da geografia visam, portanto, sendo ainda hoje tentativas


legítimas, mais do que novos paradigmas, dar respostas à crise de sociedade, da
civilização e da própria geografia. De acordo com Mamigonian (1999), é possível
dizer que o desenvolvimento do modo de produção capitalista levou o mundo
a uma mundialização econômica, que forçou a uma redefinição dos espaços
nacionais, regionais e locais quanto aos processos de suas constituições, seus papéis
na divisão territorial e social do trabalho, seus novos significados e potenciais.

• Os avanços da ciência e tecnologia aceleram as transposições de épocas,


introduzindo novos paradigmas para os estudos e pesquisas. De acordo com
Vieira (2012), há uma dinâmica de coexistências e mudanças representativas da
evolução do pensamento. A Geografia atual, no âmbito do conhecimento que
lhe é referenciado, é o resultado da evolução de métodos e análises produzidos
pelo pensamento avançado. A Geografia como área científica do conhecimento
ocupa-se de realidades com alto grau de complexidade, tanto na abordagem
dos acontecimentos naturais, como em relações no âmbito das sociedades.

• Até as primeiras décadas do século XX, o Brasil permaneceu mais ou menos


indiferente às novas orientações da Geografia. Concepções tradicionais
dominavam a escola, e os livros se limitavam a uma geografia puramente
descritiva e enumerativa. Além de não existirem no país condições de
receptividade científica.

• Ao longo da década de 1990, no Brasil, despontaram tendências não marxistas,


além de algumas que desvalorizavam a importância do método dialético no
debate. As transformações que abriram caminho para as diferentes correntes
do pensamento não ocorreram linearmente. Assim, nas décadas de 1980 e
1990 continuaram os embates teórico-metodológicos entre as grandes frentes:
a Nova Geografia; a Geografia Tradicional; a Geografia Crítica; a Geografia
Comportamental; e a Geografia Pós-Moderna.

210
• A produção científica dos geógrafos brasileiros também se encontra embasada
em pensadores não geógrafos que tomam o espaço como categoria central em
suas análises: Manuel Castells e Henri Lefebvre investigam o espaço urbano.
Michel Foucault pesquisa o espaço dos poderes; David Harvey realizou estudos
temáticos preocupados com o urbano. No Brasil, José de Souza Martins produziu
obras dedicadas à Geografia Rural. Na atualidade, existem vários caminhos para
a discussão e a produção de Geografia no país apoiadas no Existencialismo;
na Fenomenologia Hermenêutica; na Percepção, no Anarquismo, no Pós-
Modernismo, no Decolonialismo, entre outras abordagens.

211
AUTOATIVIDADE

1 A Geografia Cultural representa uma das áreas mais dinâmicas no campo


da geografia. Ela recebeu uma identidade com a obra de Sauer e seus
seguidores, porém a dimensão cultural já estava presente na geografia do
século XIX. Referente à Nova Geografia Cultural é correto afirmar que:

a) ( ) A Geografia Cultural teve sua origem, de forma sinuosa, no final do


século XIX.
b) ( ) A primeira fase da Geografia Cultural ocorre entre final do século XIX
e meados do século XX.
c) ( ) Nos países de língua inglesa, a Nova Geografia Cultural foi baseada
sobre as conceituações simbólicas da cultura de Raymond Williams ou
a partir das obras de Stuart Hall.
d) ( ) A Geografia Cultural não se interessa pelos fenômenos religiosos.

2 Os estudos geográficos ganharam força com novas metodologias analíticas,


interpretativas e sistêmicas dos fenômenos naturais, dos processos
demográficos e do desenvolvimento a partir dos lugares estratégicos de
produção na nova ordem global/mundial. Referente à temática Perspectivas
Atuais da Geografia, assinale a alternativa correta:

a) ( ) A crise da geografia decorre de três grandes fontes: filosófica, didática


e de quantidade.
b) ( ) As tendências atuais da geografia visam, portanto, sendo ainda hoje
tentativas legítimas, mais do que novos paradigmas, dar respostas à
crise de sociedade, da civilização e da própria geografia.
c) ( ) Na categoria dos processos sociais sobre as territorialidades há,
igualmente, uma permanente fixação.
d) ( ) Os avanços da ciência e tecnologia dificultaram as transposições de épocas.

3 Na década de 1970, no Brasil, o embasamento filosófico centrado no


Positivismo Clássico e no Historicismo passou a ser fortemente criticado
pelos geógrafos teoréticos. Por sua vez, os teoréticos foram criticados pelos
marxistas. Assinale a alternativa que representa uma crítica feita pelos
marxistas direcionada aos teoréticos:

a) ( ) Os teoréticos apresentavam um discurso de conteúdo mais abstrato do


que as propostas da chamada Geografia Tradicional.
b) ( ) Produziram obras dedicadas somente à Geografia Rural.
c) ( ) As pesquisas e análises teoréticas eram fundamentadas na dialética crítica.
d) ( ) Milton Santos foi um grande pensador da abordagem Teorética e por
isso foi criticado pelos marxistas.

212
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