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Capítulo II GIL VICENTE

O estudo da obra dramática vicentina deve preceder o das outras personalidades ou


correntes renascentistas, quer por razões cronológicas, quer pelo facto de tal obra se poder
encarar como acabamento das melhores tradições do teatro medievo europeu. É
surpreendente que a emergência de uma tal personalidade de síntese se tenha verificado
num país onde essas tradições dramáticas medievais não parecem ter florescido de um
modo brilhante, ou sequer, hoje, distintamente perceptível. Mas seria inexacto ver os autos
de Gil Vicente apenas como últimos e amadurecidos frutos de uma cultura prestes a
murchar. Graças a certos elementos doutrinários e estéticos, o teatro vicentino também
participa, entre nós, de uma incipiente atmosfera humanista e renascentista, que as
condições históricas já referidas mal deixaram sobreviver à carreira do dramaturgo. Por
outro lado, a despreconceituosa diversidade das suas fontes, estruturas e tonalidades
comunica a esse tão saboroso teatro uma vivacidade que, por vezes, o torna
extraordinariamente moderno, embora, se medíssemos a obra vicentina pela mais
racionalizada ou formalizada estética dos clássicos posteriores (e até dos românticos e
realistas), pudesse dar a impressão global de uma certa desconcertante heterogeneidade.

Vida e obra

O que se sabe de Gil Vicente, dramaturgo, reduz-se ao seguinte : nasceu à roda de


1465; encenou a sua primeira peça em 1502; foi colaborador do Cancioneiro Geral de
Garcia de Resende. Desempenhou na corte a importante função de organizador das festas
palacianas, como, por exemplo, da recepção em Lisboa à terceira mulher de D. Manuel.
Recebeu tenças e prémios de D. João III. Alcançou nos meios áulicos uma situação de
autoridade, que lhe permitiu, em 1531. por ocasião de um terramoto, num discurso feito
perante os frades de Santarém, censurar severamente os sermões terríficos em que estes
explicavam a catástrofe como resultado da ira divina. A este propósito escreveu ao rei
uma carta na qual se pronunciava contra a perseguição movida aos Judeus. O seu último
auto data de 1536, e não deu mais sinal de si posteriormente a esta altura. Preparou uma
compilação das suas obras, que não chegou a concluir. O seu contemporâneo Garcia de
Resende menciona em Miscelânea a actividade teatral de Gil Vicente entre os notáveis
acontecimentos do tempo.
Gil Vicente publicou em vida alguns dos seus autos, em folhetos de cordel que depois
foram reeditados. Destas edições, algumas das quais proibidas pela Inquisição, apenas se
conhecem o Auto da Barca do Inferno, a Farsa de Inês Pereira, o D. Duardos e o
Pranto da Maria Parda. Nomeemos ainda três peças que não figuram na Copilaçam de
todalas obras de Gil Vicente, organizada e publicada em 1562 pelo filho Luís Vicente,
manifestamente incompleta e defeituosa; essas três peças são o Auto da Festa, publicado
pelo conde de Sabugosa, e o Auto de Deus Padre, Justiça e Misericórdia e Obra da
Geração Humana, publicados em 1948 por I. S. Révah. A autenticidade destas três obras
tem sido posta em dúvida, mas é indubitável que a Copilaçam, fonte quase exclusiva, como
vemos, do teatro vicentino, está incompleta: faltavam-lhe pelo menos três autos de que
lemos notícia e que foram proibidos (Auto da Aderência do Paço, Auto da Vida do Paço e
Jubileu de Amores). Por outro lado, a cronologia indicada por Luís Vicente tem vários erros
evidentes, deficiência que prejudica o bom conhecimento da sua linha evolutiva; a Sua
classificação e a denominação dos autos exigem também correcções, que adiante
discutiremos. Graças a vários investigadores, como Braamcamp Freire, Óscar de Pratt e I.
S. Révah, tem sido possível reconstituir uma ordenação verosímil. Transcrevemos a
arrumação apurada pelo último destes investigadores, que de resto não se deve considerar
definitiva, mas muito aproximada, mantendo contudo os nomes tradicionais tanto quanto
possível, a fim de evitar dificuldades de identificação com as edições existentes de Obras
Completas:
1502 - Auto da Visitação (ou Monólogo do Vaqueiro).
1504 - Auto de S. Martinho.
1506 - Sermão perante a Rainha D. Leonor.
1509 - Ano da Índia; Auto Pastoril Castelhano.
1510 - Auto dos Reis Magos; Auto da Fé.
1512 - Velho da Horta.
1513 - Auto dos Quatro Tempos; Auto da Sibila Cassandra.
1514 - Exortação da Guerra.
1515 - Quem Tem Farelos?; Auto da Mofina Mendes (ou Mistérios da Virgem).
1517- Auto da Barca do inferno.
1518 - Auto da Alma; Auto muito impropriamente chamado da Barca do Purgatório.
1519 - Auto da Barca da Glória.
1520 - Auto da Fama
1521- Cortes de Júpiter; Comédia de Rubena; Auto das Ciganas.
1522 - D. Duardos.
1523 - Farsa de Inês Pereira; Auto Pastoril Português; Auto de Amadis de Gaula.
1524 - Comédia do Viúvo; Frágua do Amor; Auto dos Físicos.
1525 ou 26 - O Juiz da Beira.
1526 - Templo de Apolo; Auto da Feira.
1527 - Nau de Amores; Comédia sobre a Divisa da Cidade de Coimbra; Farsa dos
Almocreves; Tragicomédia da Serra da Estrela; Breve Sumário da História de Deus seguido
do Diálogo dos Judeus sobre a Ressurreição; Auto das Fadas (?).
1527 ou 28 - Auto da Festa.
1529 - Triunfo do Inverno (e do Verão).
1529 ou 30 - O Clérigo da Beira.
1532 - Auto da Lusitânia.
1533 - Romagem de Agravados.
1534 - Auto da Cananeia.
1536 - Floresta de Enganos.

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