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1. A representação-diagnóstico e o problema
O ponto de partida: uma representação-diagnóstico do contexto cultural e social do
direito que, ao assumir-compor uma «condição implacável» de «complexidade»
(LUHMANN) e de «pluralismo» (TEUBNER, LADEUR) — ou esta como uma
tradução privilegiada dos fenómenos da «fragmentação» e da «colisão» dos discursos,
quando não já explicitamente do exercício-jogo de uma Fremdreferenz (e das
pretensões «colonizadoras» a que um tal exercício se torna vulnerável) —, nos aparece
dominada pela «modalidade» fundamental da contingência.
β) Mas com um segundo passo que nos mostra que todos estes «novos poderes» se
libertaram já dos universos academicamente concentracionários que os criaram (ou que
pelo menos lhes foram pela primeira vez plenamente sensíveis) para inscreverem as
pretensões de universalidade que os diferenciam em práticas sociais efectivas ... e mais
do que isso, para as projectar em abstracções socialmente vigentes, tanto mais
«implacáveis» quanto sustentadas em processos inconfundíveis de autodescrição.
1.2.2. Um processo de busca que, com TEUBNER e LADEUR, se dirige por sua
vez à conexão contingência/pluralismo(-pluralidade)… e assim a um problema
de celebração das diferenças, se não já de «dissolução das realidades sociais e
jurídicas na pura discursividade»... com os fenómenos privilegiados da
«fragmentação e da clausura», da «concorrência e da colisão dos discursos» [Sem
esquecer que o próprio sistema jurídico se descobre internamente fragmentado por
pretensões de racionalidade e por ordens distintas... à partida inconciliáveis...].
Num diagnóstico que, nos dois Autores em causa (ainda que com efeitos
de «acentuação» distintos), pretende superar a pragmática das Philosophische
Untersuchungen — a «série» Spiel / Bedeutung / Gebrauch ou esta reconduzida à
unidade empírico-antropológica do Selbst ― para assimilar (selectivamente) a
prática reflexiva de uma pós-modernidade racionalmente plausível (postmodernité
honorable, achtenswerte Postmoderne):...
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Introduzida por LYOTARD a propósito dos «precursores» KANT e WITTGENSTEIN [«Dans le contexte
imaginé par l’Auteur, ils sont des épilogues de la modernité e des prologues à une postmodernité
honorable» (Le différend, Paris 1983, 11-12, itálicos nossos)], a expressão «pós-modernidade honrosa»
transforma-se com WELSCH num apelo recorrente de demarcação, sustentado contra as opções
pretensamente «pós-modernas» (e como tal «indignas de atenção») das «práticas» (e dos «pensamentos»)
que por um lado diz da «superficialidade» ou da impotência subjectiva (Oberflächlichkeit, Pluralität als
Lehnstuhl vor Selbstherrlichkeit) e por outro lado do «arbítrio» e da indiferenciação «por equivalência»
(Beliebigkeit, Pluralität als «anything goes») ora de tal modo que a celebração, reflexivamente
sustentada, da achtenswerte Postmoderne (als veritabler und effizienter Postmodernismus) se
responsabilize constitutivamente por um «testemunho» (-tratamento) alternativo da «pluralidade» (Was
man eine postmoderne Philosophie(...), eine pluralistische, radikal auf Vielheit setzende Philosophie(...),
sagen kann) [W. WELSCH, Unsere postmoderne Moderne (1987), Weinheim 31991, 3-4, 20-21, 35-37,
114-118, 155-156, 175 e ss, 199-201, 265 e ss., 277 e ss., 320-323]. Para um desenvolvimento desta linha
de determinação assumida por LYOTARD e fielmente seguida (e «domesticada») por WELSCH (sob o
fogo das pretensões-«divisas» modernismo, modernidade, pós-modernidade, antimodernidade e dos
argumentos de continuidade e de ruptura que as sustentam) veja-se o nosso Entre a reescrita pós-
moderna da modernidade e o tratamento narrativo da diferença..., Coimbra 2001, 216-287.
TEUBNER, G., «Altera pars audiatur: Le droit dans la collision des discours», Droit et Societé
35, 1997, 99 e ss, «The Two Faces of Janus: Rethinking Legal Pluralism», in TUORI /
/BANKOWSKI / UUSITALO (ed.), Law and Power, Liverpool 1997, 119 e ss.
«And here the bifurcation begins. While post-modernists are obviously satisfied to deconstruct
legal doctrine and are joyfully playing with antinomies and paradoxes, legal antopoiesis poses the
somewhat sobering question: After the deconstruction?» (TEUBNER, «The Two Faces of Janus
120).
2.1. Tratando-se para LUHMANN (nos termos fixados em «Die Einheit des
Rechtssystems») de assumir como desafio a concepção de um sistema que se quer auto-
-referencial, isto é, capaz de produzir (herstellen) a sua própria unidade («de produzir
como unidade aquilo que mobiliza-utiliza como unidade»): de tal modo que esta não
resulte da convocação de um princípio (Prinzip, Idee, Gesetz) mas da circularidade e
recursividade imanente aos elementos que o integram (da «conexão autofinalizada,
auto-organizada e autoconstitutiva» dos próprios elementos, «sustentada por uma
invariância estruturalmente institucional de processos») [«unidade do sistema /
unidade dos elementos últimos /unidade dos procedimentos»]. Sendo certo que por
estes elementos (últimos) se entendem sempre «comunicações dotadas de sentido».
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Uma assimilação-transposição difícil ... e que não se cumpre sem a resistência (se não
oposição) dos dois epistemólogos em causa. Basta ter presente que MATURANA pensa
os sistemas sociais à luz de uma representação «antropocêntrica» (constituted by the
interactivity of their participants... and not as apriori abstract units... and so realized
primarily in linguistic consensual domains) e que VARELA considera um «erro
lamentável» pretender aplicar a hipótese científico-natural da autopoiesis ao problema das
«instituições humanas». A autopoiesis é para este último de resto apenas um caso
especial da autonomia, que só pode ser reconhecida a um sistema se e na medida em que
se puder aí falar de uma vinculação topológica (topological boundary),entenda-se, de um
constrangimento empírico (comprovado) que afecte necessariamente a determinação do
ambiente-espaço em que o organismo se move... [Para uma consideração destas dificuldades e
resistências ver (para além de TEUBNER, Recht als autopoietisches System, cit., cap. II), Randall
WHITAKER, «Autopoietic Theory and Social Systems: Theory and Practice»,
http://www.acm.org/sigois/auto/ /AT&Soc.html].
2.2. Desafio (theoretical turn) este que, no percurso-provação que desencadeia, exige
decerto um «território intermédio» de especificações (entenda-se, de «transformações
no aparelho categorial»). Todas elas ocupadas com a tentativa de mostrar que a auto-
-referência e a auto-poiesis dos sistemas de comunicação socialmente relevantes estão
«longe de constituir um processo cego».
Tratando-se decerto de surpreender um dos mais complexos (e plurais...)
contributos da «galáxia auto», aludamos apenas às especificações mais significativas
para o problema do jurídico — construídas... e reconstruídas pelos esforços paralelos
(nem sempre convergentes no entanto!) de LUHMANN e TEUBNER… mas também
de LADEUR. A saber…
«Eine Form des Paradoxie managements also: Die zweiwertige Codierung benötigt mehr
als zwei Werte...»(Ibidem,384)
3.1.4. Uma exigência de clausura operativa... que se especifica nos desafios («à
partida paradoxais») dos binómios auto-orientação/orientação para o ambiente
(Selbstorientierung/ Umweltorientierung), redundância/variedade (Redundanz/
Varietät),auto-referência/hetero-referência(Selbstreferenz/Fremdreferenz), indi-
ferença/irritação-irritabilidade (Indifferenz/Irritierbarkeit). Mas então na explici-
tação metafórica de uma «ordem interna» construída (também) com os ruídos do
ambiente (the external noise). De tal modo que os «acontecimentos exteriores»
sejam transformados em condições das operações do sistema.
Neste sentido cfr. Das Recht der Gesellschaft, cit., todo o cap.4 (Codierung und
Programmierung) e ainda «Le droit comme système social», Droit et Société, 11-12 (1989), 53-
66 e «Gesellschaft als Differenz», in Zeitschrift für Soziologie 23(1994), 477-481.
«As leis valem como normas apenas porque está previsto que sejam mobilizadas-
aplicadas(angewandt) nas decisões na mesma medida em que as decisões exprimem um
juízo normativo relativo a uma situação apenas porque tal possibilidade está prevista nas
leis : entre a regra-Regel e a decisão de aplicação-Anwendungsentscheidung há, no que diz
respeito à qualidade normativa, uma relação circular. Decerto porque a autopoiesis opera
para além de toda e qualquer dedução e de toda e qualquer causalidade. E não há nenhuma
recondução das normas a princípios últimos ou a instâncias últimas, nos quais ou nas quais
a normativo e o cognitivo (Normativität und Kognitivität), o valor e o ser se fundam. A
normatividade é sempre e em toda a parte igual, enquanto preservação de expectativas não
falsificáveis...» («Die Einheit...»,cit.,140-141).
A argumentação não tem com efeito nada a ver com «uma explo-
ração-aproveitamento(-Ausnutzung) teleológico-instrumental do recurso
complexidade»; o seu espaço temático é antes o da pergunta que pretende
saber como é que o «sistema se consegue manter (zurechtzukommen) e
reproduzir-se (em termos operativamente fechados)» numa relação com o
meio que ― desafiada por expectativas plurais e fragmentadas («que cada
vez mais resistem a uma transformação normativa») ― enfrenta «um
processo evolutivo de crescente complexidade» (um processo por sua vez
que importa recontruir e reflectir como Eigenrisiko).
TEUBNER, Recht als autopoietisches System, cit., cap. 3, mas também «Hyperzyklus in Recht und
Organisation...»(1990), cit. na trad. francesa «L’hypercycle en droit…», in Droit et réfléxivité…,
Bruylant 1996.
«It is the — implicit or explicit — invocation of the legal code which constitutes
phenomena of legal pluralism, ranging from the official law of the State to the unofficial
laws of markets and mafias. (…)The binary code legal/illegal is not peculiar to the law
of the State. This is not at all a view of “legal centralism”. It refutes categorically any
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hierarchically superior position of the official law of the State, but invokes rather the
imagery of a heterarchy of diverse legal discourses. “Tax laws” of a local mafia which
grants its “protection” to the merchants are the case in point. Clearly, in their
“illegality”, they are excluded from any “recognition” by the official law of the State.
Nevertheless, mafia rules are an integral part of legal pluralism in our semi-autonomous
social field insofar as they use the binary code of legal communication. They belong to
the multitude of fragmented legal discourses , be they state law, rules of private justice,
regulations of private government or outright “illegal” laws of underground
organisations, that play a part in the dynamic process of mutual constitution of actions
and structures in the social field. The multiple orders of legal pluralism always produce
normative expectations in the sociological sense, excluding however merely social
conventions and moral norms since they are not based on the binary code legal/illegal
(…). Thus, interdiscursivity occurs in two diverse forms: between legal discourses
(State Law vs. “private law” and mafia law) and between legal and non-legal discourses
(legal vs. moral, economic, political phenomena)…» (TEUBNER,«The Two Faces of
Janus…»,cit., 128, 132)
«A “racionalidade interna” do direito reflexivo (...) não se baseia com efeito nem num
sistema de normas e de conceitos jurídicos definidos com precisão nem na lógica meio-
-fim dos programas jurídicos materiais. O direito reflexivo tende antes a objectivar-se
em programas procedimentais mais abstractos, que se dirigem tanto ao metanível da
regulação de processos quanto à repartição e redefinição dos direitos de controle e das
competências de decisão...» (ID.,«Reflexives Recht...», cit.,28)
...e ainda (et pour cause,à luz das lições do pluralismo)... o contrôle
jurisdicional (que importa consagrar ou amplificar nas suas possibilidades
normativas) dos «critérios internos das organizações» e dos standards que
correspondem a um «saber técnico-profissional» (nos limites do sub-sistema
ciência).
4.1.2. Mas então também aquelas de que AMELUNG e JAKOBS se apropriam para
legitimar dogmático-racionalmente um direito penal preventivo (e determinar
funcionalmente um subsistema de culpabilidade)...
4.1.3. Sem esquecer aquelas que malgré lui afectam o percurso reflexivo de
LUHMANN. Dois exemplos apenas.
4.2. Mas então uma abordagem que — se abstrairmos da reciprocidade selectiva destas
interferências para a levar a sério como uma concepção de direito — se preocupa com
o problema da identidade e da autonomia do jurídico (num contexto que as ameaça)...
na mesma medida em que renuncia a poder descobrir nessa autonomia uma
verdadeira «auto-subsistência de sentido»…