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O sistema jurídico como um «fim em si mesmo»


ou as «muralhas de indiferença» da
galáxia auto ♦

1. A representação-diagnóstico e o problema
O ponto de partida: uma representação-diagnóstico do contexto cultural e social do
direito que, ao assumir-compor uma «condição implacável» de «complexidade»
(LUHMANN) e de «pluralismo» (TEUBNER, LADEUR) — ou esta como uma
tradução privilegiada dos fenómenos da «fragmentação» e da «colisão» dos discursos,
quando não já explicitamente do exercício-jogo de uma Fremdreferenz (e das
pretensões «colonizadoras» a que um tal exercício se torna vulnerável) —, nos aparece
dominada pela «modalidade» fundamental da contingência.

1.1.Uma representação-diagnóstico exemplar… desde logo porque nos obriga a


reconstituir o percurso que até agora ensaiámos (e em todas as suas dimensões
relevantes). Trata-se, com efeito, de (levando a sério o «oráculo» de Max WEBER)
reconhecer um novo «politeísmo» de «racionalidades parciais» e as pretensões
paradoxalmente «universais e totalitárias» que as distinguem … mas também e
sobretudo de mostrar que estas ameaçam especialmente a autonomia do jurídico.

α) Com um primeiro passo que nos leva a considerar sistemas de pensamento ou


movimentos académicos explícitos… e a reconhecer a procura «pragmático-
-teleológica» da variedade que (als Hinwendung zum Leben) os estimula [ Neste sentido cfr.
exemplarmente LUHMANN, Das Recht der Gesellschaft, Frankfurt 1993, capítulo 8, VII] .

Porque é tanto uma «referência estranha» aquela que invoca a herança do


Gesellschaftliche Utilitarismus… quanto aquela que explicita ou implicitamente ousa
responder ao apelo da freie Entscheidung. E se a primeira se cumpre dissociando-
-especificando um espectro de intenções inconfundíveis — em nome de uma
perspectivação pelos interesses, de uma engineering-balancing (de interests-goals ou de
social policies), do princípio da congruência de uma praxis racional ou de um critério
de maximização da riqueza...— a segunda entrega-se a exigências discursivas
mais ou menos inconciliáveis — enquanto invoca um konkretes Rechtsgefühl ou a
exigência de uma legitimação democrático-consensual, enquanto se compromete
com a dinâmica de um combate contra-hegemónico ou com um projecto
dialéctico de emancipação-reconciliação, enquanto assume uma moralidade
política de solidariedade-altruísmo ou uma ética da interpessoalidade
assimétrica… enfim enquanto assimila a experiência estética do juízo reflexivo (e
esta como possibilidade de um princípio momentâneo da justiça, se não do
regresso da justiça-dikē).
Exploração das «pressões exteriores» esta que invoca já uma multiplicidade
de dimensões (sociais, científico-tecnológicas, económicas, políticas, ético-filosó-
ficas, prático-estéticas)… mas que se alarga significativamente quando (partindo
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embora do último compromisso detectado) descobrimos als Fremdreferenz a


exigência de universalização que corresponde à procura de uma comunidade
estética-promessa (mas também de uma ratio-phronesis transformada em poiesis-
-aisthesis). Mas sobretudo quando contrapomos a esta última — e agora decerto
também como respostas-reacções mais ou menos assumidas à … experiência da
fragilidade-vulnerabilidade da sinnhafte Kommunikation (enquanto conquista
histórica)… e aos desafios da sociedade do risco… e às promessas (se não
mesmo já à «cúpula invisível») da macro-responsabilidade (e da sua «arquitectura
colectiva») — as exigências (não menos universalmente assumidas)… de defender
as «pretensões legítimas à Lebenswelt»(e os ambientes comunicacionalmente
estruturados que as preservam e alimentam)…e de recompor a prática à luz de
uma «comunidade de religiões» (que se diz vollständige ökumenische
Gemeinschaft)… enfim de permitir que as intenções da sociobiologia e da deep
ecology sejam superadas pela representação filosófico-moral de um ecologismo
personalista.

β) Mas com um segundo passo que nos mostra que todos estes «novos poderes» se
libertaram já dos universos academicamente concentracionários que os criaram (ou que
pelo menos lhes foram pela primeira vez plenamente sensíveis) para inscreverem as
pretensões de universalidade que os diferenciam em práticas sociais efectivas ... e mais
do que isso, para as projectar em abstracções socialmente vigentes, tanto mais
«implacáveis» quanto sustentadas em processos inconfundíveis de autodescrição.

1.2. Uma representação-diagnóstico exemplar não obstante também… enquanto e na


medida em que antecipa já as possibilidades da solução ou o processo de busca que as
circunscreve.

1.2.1. Um processo de busca que, com LUHMANN, se concentra na «conso-


nância» contingência/funcionalidade… ou na tentativa de descobrir (e de refor-
mular) a soziologische (systhemische)Beobachtungsweise que lhe faça justiça...

Num percurso-provação que mobiliza criticamente:


— o confronto dilemático da função e da estrutura... [por um lado (e
ainda na imanência da programação final) para nos dar conta de que há
domínios decisivos da complexidade social «que não podem ser
absorvidos pela construção estrutural», impondo assim uma articulação
Struktur/Prozeβ (Programmentscheidung/ programmierte Entschei-
dung)[cfr. «Das Dilemma von Funktion und Struktur», in Zweckbegriff und
Systemrationalität…,Tübingen 1968, 179 e ss.], por outro lado (e é este o ponto
decisivo!) para exigir que o próprio conceito de função se liberte da
representação-pressuposição (estabilizadora) da estrutura e da
inteligibilidade de «efeito causante» com que esta (enquanto ordem)
pré-determina o seu «sentido» [cfr.os textos incluídos em Soziologische
Aufklärung...,I, Opladen 4º ed., 10 e ss., 113 e ss. e muito especialmente Soziale
Systeme..., Frankfurt 1984, passim.];
— …as «insuficiências» da «reflexividade cibernética» (als Theorie
kommunikativer Systeme) [cfr. «Kybernetische Regelung», in Zweckbegriff und
Systemrationalität…,cit., 107 e ss.] mas sobretudo as«perplexidades» e os
«paradoxos» que a exigência de «adaptação covariante» (que lhe é correlativa)
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impõe ao problema-desafio da diferenciação social — tomada a sério als


Ausdifferenzierung (e então e assim sempre submetida à ameaça da
indiferenciação-Entdifferenzierung) [cfr Soziale Systeme...cit., 14 e ss, 31 e ss, 244
e ss., 296 e ss. e Das Recht der Gesellschaft, cit., 26-31, 38 e ss., 550 e ss. ];
— … e ainda o processo de simplificação-subjectivação (Subjektivierung/
/Mentalisierung/Intentionalisierung) que a modernidade-Neuzeit — superando
não obstante logradamente a ontoteleologia aristotélica e a dinâmica imanente
que a alimenta — impôs ao conceito de fim (als intentionales Zweckbegriff)
[cfr. «Selbstreferenz und Teleologie in gesellschaftstheoretischer Perspektive», in
Gesellschaftsstruktur und Semantik, vol. 2, Frankfurt 1981, 9 e ss, mas também , numa
importante associação à dimensão temporal do direito-norma —als Zeitbezug, se não
já Zeitbindung (!) —, Das Recht der Gesellschaft, cit., 195-204 (IV)].

Mas então num percurso-provação... que o próprio LUHMANN confessa


que é mais parecido com um «labirinto» do que com uma «via rápida com um fim
feliz»[cfr Soziale Systeme...cit., 16] ... e que, como veremos já a seguir, constrói (e
justifica) uma autêntica mudança de paradigma. A única que pode libertar o
conceito de função (concertando-o com o de auto-referencialidade) e então e
assim justificar um inequívoco funcionalismo de equivalência.

Para uma consideração dos pressupostos do funcionalismo (e um esclarecimento do conceito


plural de função mas também do confronto cibernética/autopoiesis), v. CASTANHEIRA NEVES,
Teoria do Direito, lições proferidas no ano lectivo de 1998/99, policop., Coimbra 1998, 127 e ss., 133-
144,149-153, 160 e ss. Para uma compreensão e avaliação crítica da «solução» pós-instrumental (e da
opção de funcionalismo sistémico que a sustenta), veja-se O problema actual do direito. Um curso de
filosofia do direito (em curso de publicação), Lisboa 1996/7, 41 e ss, 45-47, «Pessoa, direito e
responsabilidade» (1995), Revista Portuguesa de Ciência Criminal, nº 6, 1996, 9 e ss, 28-31 («O sistema
social»), «Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e “problema” — os
modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito», Revista de Legislação e
Jurisprudência, nº 3883, 298-299, nº 3884, 324 e ss, 327, 328-329 [agora também no Boletim da
Faculdade de Direito, vol. LXXIV, Coimbra 1998, 16-17, 23 e ss, 28, 30-31], «O problema da autonomia
do direito no actual problema da juridicidade» in J.A.PINTO RIBEIRO (coord.), O Homem e o Tempo. Liber
Amicorum para Miguel Baptista Pereira, Porto 1999, 102-104 e muito especialmente Quadro das
perspectivas actuais de compreensão da juridicidade, Coimbra 1995, 133-141, 157-161 (Agora também
em Apontamentos complementares de Teoria do Direito, Coimbra 1998/9, 41-53, 66-71(8)). Para um
diálogo particularmente desenvolvido (sobretudo) com a Ökologische Kommunikation de LUHMANN,
v. também Fernando José BRONZE, A metodonomologia entre a semelhança e a diferença, Coimbra
1994, 271-371 (todo o nº 15).

1.2.2. Um processo de busca que, com TEUBNER e LADEUR, se dirige por sua
vez à conexão contingência/pluralismo(-pluralidade)… e assim a um problema
de celebração das diferenças, se não já de «dissolução das realidades sociais e
jurídicas na pura discursividade»... com os fenómenos privilegiados da
«fragmentação e da clausura», da «concorrência e da colisão dos discursos» [Sem
esquecer que o próprio sistema jurídico se descobre internamente fragmentado por
pretensões de racionalidade e por ordens distintas... à partida inconciliáveis...].

Num diagnóstico que, nos dois Autores em causa (ainda que com efeitos
de «acentuação» distintos), pretende superar a pragmática das Philosophische
Untersuchungen — a «série» Spiel / Bedeutung / Gebrauch ou esta reconduzida à
unidade empírico-antropológica do Selbst ― para assimilar (selectivamente) a
prática reflexiva de uma pós-modernidade racionalmente plausível (postmodernité
honorable, achtenswerte Postmoderne):...
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Introduzida por LYOTARD a propósito dos «precursores» KANT e WITTGENSTEIN [«Dans le contexte
imaginé par l’Auteur, ils sont des épilogues de la modernité e des prologues à une postmodernité
honorable» (Le différend, Paris 1983, 11-12, itálicos nossos)], a expressão «pós-modernidade honrosa»
transforma-se com WELSCH num apelo recorrente de demarcação, sustentado contra as opções
pretensamente «pós-modernas» (e como tal «indignas de atenção») das «práticas» (e dos «pensamentos»)
que por um lado diz da «superficialidade» ou da impotência subjectiva (Oberflächlichkeit, Pluralität als
Lehnstuhl vor Selbstherrlichkeit) e por outro lado do «arbítrio» e da indiferenciação «por equivalência»
(Beliebigkeit, Pluralität als «anything goes»)  ora de tal modo que a celebração, reflexivamente
sustentada, da achtenswerte Postmoderne (als veritabler und effizienter Postmodernismus) se
responsabilize constitutivamente por um «testemunho» (-tratamento) alternativo da «pluralidade» (Was
man eine postmoderne Philosophie(...), eine pluralistische, radikal auf Vielheit setzende Philosophie(...),
sagen kann) [W. WELSCH, Unsere postmoderne Moderne (1987), Weinheim 31991, 3-4, 20-21, 35-37,
114-118, 155-156, 175 e ss, 199-201, 265 e ss., 277 e ss., 320-323]. Para um desenvolvimento desta linha
de determinação assumida por LYOTARD e fielmente seguida (e «domesticada») por WELSCH (sob o
fogo das pretensões-«divisas» modernismo, modernidade, pós-modernidade, antimodernidade e dos
argumentos de continuidade e de ruptura que as sustentam) veja-se o nosso Entre a reescrita pós-
moderna da modernidade e o tratamento narrativo da diferença..., Coimbra 2001, 216-287.

… com TEUBNER a aceder à «guerra civil da linguagem» conduzido pela


tectónica dos «regimes de frases» e dos «géneros de discurso», pelo contraponto
intradiscursivo/interdiscursivo e pela «dissecção jurídica» litígio/diferendo
(LYOTARD) [e não obstante a reagir negativamente ao «rótulo» pós-moderno] …;

TEUBNER, G., «Altera pars audiatur: Le droit dans la collision des discours», Droit et Societé
35, 1997, 99 e ss, «The Two Faces of Janus: Rethinking Legal Pluralism», in TUORI /
/BANKOWSKI / UUSITALO (ed.), Law and Power, Liverpool 1997, 119 e ss.

…com LADEUR a mobilizar as lições de VATTIMO, DERRIDA e LYOTARD


mas sobretudo a entregar-se às seduções da transversale Vernunft de WELSCH
para — confirmando a «descentralização» irreversível do «sujeito» na pluralidade
dos «jogos de linguagem» — combater o Projekt der Moderne de HABERMAS ou
este através da pressuposição discursiva da «intersubjectividade comunica-
cional»...;

LADEUR,K.-H., Postmoderne Rechtstheorie. Selbstreferenz — Selbstorganisation — Prozedura-


lisierung,Berlin 1992 , «Abwägung  ein neues Rechtsparadigma ? Von der Einheit der
Rechtsordnung zur Pluralität der Rechtsdiskurse», Archiv für Rechts und Sozialphilosophie, 1983,
463 e ss, «From the Deductive to the Argumentative Rationality of Law», in P. NERHOT (ed.),
Law, Interpretation and Reality, Dordrecht 1990, 169 e ss, «The Analogy between Logic and
Dialogic of Law», in P.NERHOT (ed.), Legal Knowledge and Analogy, Dordrecht 1991, 12 e ss,
36-41 (notas 105-109).

…sendo certo que, na mediação de uma perspectiva simultaneamente


positiva e crítica («não eufórica») da pluralidade, os dois diagnósticos acabam por
convergir (e por suscitar soluções paralelas). E muito simplesmente porque
enfrentar o problema do pluralismo juridicamente relevante é para TEUBNER
como para LADEUR (não obstante o estandarte pós-moderno que este último
agita) por um lado partilhar um diagnóstico desconstrutivo logrado e por outro
lado responder-lhe com uma «reconstrução» plausível (que assuma a alternativa
«auto-referencial» e «autopoiética» do sistema).
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«And here the bifurcation begins. While post-modernists are obviously satisfied to deconstruct
legal doctrine and are joyfully playing with antinomies and paradoxes, legal antopoiesis poses the
somewhat sobering question: After the deconstruction?» (TEUBNER, «The Two Faces of Janus
120).

1.3. Uma representação-diagnóstico enfim... que se «simplifica» num problema. O da


autonomia do direito e o dos limites-fronteiras da juridicidade.
Entenda-se, numa procura de fronteiras horizontais (as que delimitam as
pretensões de relevância do jurídico enquanto o separam da moral e da arte, da política
e da economia). Ora numa procura …
—… que não só exceda o «contraponto dos argumentos» preocupados com «a
natureza» ou com as «qualidades» intencionalmente específicas da autonomia do
direito…
—… mas que também absorva e torne inútil o problema das possíveis fronteiras
verticais (as que se estabelecem entre o direito e «aquela memória» a que chamamos
sociedade).
Em que termos? Mostrando que a noção de sociedade interpelada directamente
pelo direito — como uma realidade que lhe é exterior (envolvida por um processo-véu
de desjuridicização) — integra, sem salvação hoje possível, as «sementes do seu próprio
desaparecimento», entenda-se, da sua própria irrelevância teorética (society as a sort of
virtual desktop or container of a plurality of programmes)[W.T.MURPHY].
Muito simplesmente — e a lição é agora a do próprio LUHMANN (na
introdução a Ökologische Kommunikation) — porque, se o nosso problema deixou de
ser o de «criar uma base para melhores possibilidades de acção» (sustentada numa
procura de «justificações»-fundamentos ou na invenção de «padrões de coerção e de
liberdade»), a solução plausível também não pode já passar pelo «apelo a um discurso
livre de dominação» ou pela exigência de «remover as barreiras que impedem o
consenso racional ou a coexistência harmoniosa»... A solução está com efeito na
«aquisição de um novo tipo de abordagem», que procure a diferenciação lograda do
direito nos seus próprios «atributos(?) sistémicos». Mas então na aquisição-aprendi-
zagem de uma perspectiva nova. Ora esta cumpre-se reduzindo a (pressuposição da)
sociedade:
—…a uma soma de comunicações funcionalmente coordenadas, ainda que
porventura com diferentes níveis ou mesmo diversas fases de coordenação [possibi-
lidade que o evolucionismo jurídico de TEUBNER não deixará de projectar na
representação de um hiperciclo (infra, 3.2.1.1.)]...
—… a uma soma de comunicações assim que se assumem e tratam-seleccionam
reciprocamente como ambiente(s) e ruído [e ao ponto de incluir nestes as
«comunicações não coordenadas funcionalmente ou apenas ambiguamente
coordenadas» (que alguns «dizem Lebenswelt»)]...
—…mas então de tal modo que a sociedade seja iluminada como um sistema
global sem fronteiras exteriores... ou o que é o mesmo, com fronteiras apenas
interiores, auto-referencialmente reconstruídas por cada um dos seus subsistemas
(direito, ciência, economia, arte, política, religião, educação,moral...).

«Todos os sistemas sociais (...) se vêem forçados a


constituir os seus elementos últimos como comunicações.
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(...) O sistema social integra (...) todas as comunicações e


apenas comunicações. Como os outros sistemas sociais,
o direito só existe como comunicação, quer dizer, como
uma síntese de informação ( produção de um conteúdo
informativo), de mediação-transmissão (difusão) e de
compreeensão-aceitação; é ao organizar a sua própria
clausura recursiva (...) que o sistema jurídico determina a
relevância específica (estruturalmente específica) das
comunicações que o integram — ora isto à custa de
processos de auto-reprodução mas também de auto-
-observação e autodescrição (...) que asseguram ao
jurídico uma dinâmica de variação gradual...» (N.
LUHMANN,«Die Einheit des Rechtssystems»,
Rechtstheorie 14 (1983),129 e ss., trad. francesa in
Archives de Philosophie du Droit, 31-1986, 163 e ss).
A especificação de TEUBNER: a sociedade como sistema autopoiético superior ( a receber
informações-comunicações de sistemas neuronais inferiores e a transformar as unidades
comunicacionais emergentes em elementos sistémicos autoproduzidos) ... mas que se pode
considerar de primeiro grau (enquanto sistema de significação) quando se confronta com os
subsistemas específicos que nela se diferenciam («o problema da autopoiesis na autopoiesis») ...
e decerto porque é constituída por «comunicações que produzem outras comunicações»; o
direito como um «circuito comunicacional especializado», que, «produzido» pelo «circuito
comunicacional geral», adquiriu a independência e a diferenciação de um sistema autopoiético,
como tal de segundo grau. Para um desenvolvimento desta compreensão, cfr. muito
especialmente os caps. III , V-III e VI-II de Recht als autopoietisches System, Frankfurt 1989
[trad. port. O direito como sistema autopoiético, Lisboa 1989, prefácio de José ENGRÁCIA
ANTUNES].

2. A aquisição-aprendizagem de uma perspectiva nova


Uma abordagem sociológica justificada como teoria dos sistemas autopoiéticos
e então e assim capaz de assimilar the theory of the living organisation e a logic and
epistemology of reality que Humberto MATURANA e Francisco VARELA
desenvolveram a partir das «produções químicas» dos organismos vivos («explicando os
processos moleculares ao nível da actividade celular e os processos neuronais ao nível do
sistema nervoso»). O regresso a um sistema fechado? Antes a exigência de pensar a
relação sistema/meio superando a tradução cibernética input/output (e a cumplicidade
com a Zweckrationalität e a programação final a que a noção de «sistema aberto»
irresistivelmente se entrega).

2.1. Tratando-se para LUHMANN (nos termos fixados em «Die Einheit des
Rechtssystems») de assumir como desafio a concepção de um sistema que se quer auto-
-referencial, isto é, capaz de produzir (herstellen) a sua própria unidade («de produzir
como unidade aquilo que mobiliza-utiliza como unidade»): de tal modo que esta não
resulte da convocação de um princípio (Prinzip, Idee, Gesetz) mas da circularidade e
recursividade imanente aos elementos que o integram (da «conexão autofinalizada,
auto-organizada e autoconstitutiva» dos próprios elementos, «sustentada por uma
invariância estruturalmente institucional de processos») [«unidade do sistema /
unidade dos elementos últimos /unidade dos procedimentos»]. Sendo certo que por
estes elementos (últimos) se entendem sempre «comunicações dotadas de sentido».
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Mas tratando-se também de justificar a transposição (teoretico-sociologicamente


relevante) das exigências de um sistema que se diz autopoiético («capaz de constituir-
produzir os elementos que o compõem através dos elementos de que se compõe») —...
e de tal modo que «a unidade (que para o sistema é indecomponível ) de cada um dos
elementos só possa ser constituída através do sistema»... mas de tal modo também que
as «fronteiras» que o sistema impõe sejam rigorosa e implacavelmente «as suas».

«There are systems that are defined as unities as


networks of productions of components that (1) recursively,
through their interactions, generate and realize the network that
produces them… and (2) constitute, in the space in which they
exist, the boundaries of this network as components that
participate in the realization of the network…»
(MATURANA)

Uma assimilação-transposição difícil ... e que não se cumpre sem a resistência (se não
oposição) dos dois epistemólogos em causa. Basta ter presente que MATURANA pensa
os sistemas sociais à luz de uma representação «antropocêntrica» (constituted by the
interactivity of their participants... and not as apriori abstract units... and so realized
primarily in linguistic consensual domains) e que VARELA considera um «erro
lamentável» pretender aplicar a hipótese científico-natural da autopoiesis ao problema das
«instituições humanas». A autopoiesis é para este último de resto apenas um caso
especial da autonomia, que só pode ser reconhecida a um sistema se e na medida em que
se puder aí falar de uma vinculação topológica (topological boundary),entenda-se, de um
constrangimento empírico (comprovado) que afecte necessariamente a determinação do
ambiente-espaço em que o organismo se move... [Para uma consideração destas dificuldades e
resistências ver (para além de TEUBNER, Recht als autopoietisches System, cit., cap. II), Randall
WHITAKER, «Autopoietic Theory and Social Systems: Theory and Practice»,
http://www.acm.org/sigois/auto/ /AT&Soc.html].

«It seems very farfetched to describe social interactions in terms of


production of components(…). The kinds of relations that define units
like a firm … or a conversation … are better captured by operations other
than productions. Such units are autonomous, but with an organizational
closure that is characterizable in terms of relations such as instructions
and linguistic agreement…»(VARELA)

2.2. Desafio (theoretical turn) este que, no percurso-provação que desencadeia, exige
decerto um «território intermédio» de especificações (entenda-se, de «transformações
no aparelho categorial»). Todas elas ocupadas com a tentativa de mostrar que a auto-
-referência e a auto-poiesis dos sistemas de comunicação socialmente relevantes estão
«longe de constituir um processo cego».
Tratando-se decerto de surpreender um dos mais complexos (e plurais...)
contributos da «galáxia auto», aludamos apenas às especificações mais significativas
para o problema do jurídico — construídas... e reconstruídas pelos esforços paralelos
(nem sempre convergentes no entanto!) de LUHMANN e TEUBNER… mas também
de LADEUR. A saber…

2.2.1. A decomposição da auto-referência em três níveis:


α) o da auto-organização e auto-regulação que se dirige às estruturas,
enquanto exercício-ordinans (mas também enquanto critério-regra)
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assumidamente interno de construção-estabilização (Selbstorganisation) e de


transformação (Selbstregulation) de uma ordem de procedimentos ( im Sinne
systemeigener Bestimmung und Veränderung von Strukturen);
β) o da reflexão que se dirige ao subsistema, permitindo que a identidade
autoconstituída [supra, neste número, α)] e autodescrita [infra, 2.2.2. β)] deste sistema «possa
servir de critério para a escolha das estruturas»(Reflexion als Thematiesierung des
Systems)...
β)’…reflexão que encontra a sua etapa-degrau culminante na
auto-reflexão (Selbstreflexion) — na «capacidade»(?) de determinar
(-iluminar) a posição do subsistema «no processo global da
diferenciação» e de assim mesmo (num «exercício»-ordinans já
manifestamente autopoiético) justificar um autêntico contrôle social
(com mecanismos que fixam as premissas organizacionais e
procedimentais das decisões sistemicamente relevantes)...
[especificação esta última com uma importância decisiva na compreensão do
chamado direito reflexivo e da racionalidade alternativa que este reivindica
(infra,3.2.2.3. )].
γ) o da autopoiesis propriamente dita que se relaciona directamente com as
comunicações-elementos e com a assunção lograda da sua unidade
indecomponível (als selektive Bildung emergenten Einheiten).

LUHMANN, Soziale Systeme..,cit, 297 e ss, Das Recht der


Gesellschaft, 42-54 (III), 496 e ss.; TEUBNER, «Reflexives Recht.
Entwicklungsmodelle des Rechts in vergleichender Perspektive»,
Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie, 68, 1982, 13 e ss.

2.2.2. A compreensão da autopoiesis como uma «articulação» particularmente


exigente de «três níveis de auto-referencialidade»(TEUBNER):
α) a auto(-re)produção («requisito mínimo»), que constitui (e insere numa
economia operativa lograda) as componentes que o sistema mobiliza (as
unidades de comunicação emergentes mas também os processos e desempenhos
que o delimitam e correspondem à sua funcionalidade específica) e que assim e só
assim organiza neste («na fundação material, energética e informativa» que o
sustenta) o «fio causal» das determinações e dos acontecimentos «produzidos no
meio» (sem esquecer a «incidência activa» dos sistemas psíquicos);
β) a auto-observação[β)’] — com dois graus-etapas culminantes na
autodescrição[β)’’] (quando «cristaliza uma autêntica ordem-estrutura no interior
do sistema») e na autoconstituição [β)’’’] (quando assegura que aquela ordem
«idealmente» concebida seja operacionalmente assimilada pelas «decisões
funcionais») — que é por assim dizer responsável pelo contrôle racional da
auto(-re)produção e assim mesmo (as a second order cybernetics) capaz de
articular os seus elementos («referindo-se à diferença sistema/meio e aos distintos
processos funcionais») mas sobretudo de iluminar («seguir», «reconstruir») as
operações próprias que distinguem o sistema [ora de «as iluminar (e à identidade
sistémica) mobilizando por sua vez operações que não são menos específicas
(menos próprias) do que as primeiras»];
γ) a auto-conservação enfim, que LUHMANN caracteriza como uma
preservação ( como uma garantia de continuidade) da equivalência funcional (e
não das estruturas!)… mas na qual TEUBNER ( e mais uma vez com
consequências relevantes para o subsistema direito) pretende descobrir um
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«encadeamento hipercíclico reiterado de componentes sistémicas constituídas


ciclicamente».

TEUBNER, Recht als autopoietisches System, cit., caps. 2 e 3,mas


também (pela sua concentração exemplar) «Episodenverknüpfung.
Zur Steigerung von Selbstreferenz im Recht», in BAECKER/
/MARKOWITZ …(Hg.),Theorie als Passion, Frankfurt 1987, 423-
-446.
O confronto LUHMANN/ TEUBNER: a exigência de uma autopoiesis integral
(sustentada num big bang de «tudo e de nada») contraposta a uma possibilidade
de autopoiesis parciais, que se compreendem como cisões (material e
temporalmente) plausíveis das operações α), β) e γ) e que assim mesmo permitem
entender «o processo de autonomização gradual dos subsistemas sociais».

2.2.3. A entrada do sujeito descentra(liza)do na «galáxia auto» como uma


exigência de repensar a «capacidade de autodescrição» do sistema (LADEUR).
Um sujeito-variável que se impõe como «personalidade relacional» (no horizonte de
uma heterarchische Gesellschaft)… e então e assim como um indispensável «elo de
conjunção» (Bindeglied,relator) de elementos linguísticos.
Um elo no tecido de uma linguagem... e de uma linguagem que renunciou à sua
função de determinação realístico-referencial e «que perdeu a transparência e a
universalidade»... para se auto-organizar numa pluralidade de Sprachspiele e de
regimes-géneros, entenda-se, numa «combinatória incomensurável de encadeamentos-
-Verkettungen e de malhas-Netzwerken» (eine Sprache auf Konnektivität gebaut). Mas
então um elo que impõe o sentido-Sinn «como um excesso-excedente de referência ou de
possibilidades de reenvio» capaz de produzir «novas relacionações». E que como tal, não
sendo elemento do subsistema (Nicht Individuen, sondern Kommunikationen Elemente
sozialer systeme sind), não deixa de «participar» nele — nas possibilidades de
comunicação-conexão que o iluminam como uma auto-organização de formações
(também elas) sem centro. Sendo precisamente esta «participação» (sempre contingente)
que nos permite descobrir (determinar) uma «situação de complexidade» especificamente
pós-moderna (e as condições-expectativas que a satisfazem)...
Passando a «solução» plausível pela necessidade teorética de reformular (de tornar
mais complexo e flexível) o aparelho categorial da autodescrição. O que aqui e agora
significa acentuar o desenvolvimento da «capacidade de aprendizagem» (Lernfähigkeit)
do sistema e com ela o núcleo de uma mutabilidade mas também permeabilidade
creativas. E então... ter que construir « modelos não lineares»... modelos que possam
traduzir (e simultaneamente assegurar-orientar...) os «processos de desequilíbrio ou de
equilíbrio desigual» com que os diversos subsistemas sociais se confrontam (die
Konstruktion nicht-linearer Ungleichgewichtsmodelle).

LADEUR, Postmoderne Rechtstheorie: Selbstreferenz-Selbstorganisation-Prozeduralisierung,


cit., 33-50,147-150, 167-175, «Auflösung des Subjekts in der differentiellen Bewegung der
Funktionsysteme…», Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie, 1994, 407 e ss.

3. O direito como sistema autopoiético

3.1. O direito da sociedade como systhemischer Eigenwert (LUHMANN)


10

3.1.1. A exigência de partir da positividade constitutiva do jurídico… que não é


senão a de esclarecer («contextualizar») sociológico-sistemicamente o seu
«sentido».

Tratando-se assim por um lado de libertar a representação da positividade


do «beco sem saída» do decisionismo e por outro lado de recusar como ponto de
partida a Typologie-confronto normas/valores-princípios (e a «diferença de
base» que esta impõe). Mas também de evitar uma teoria «jurídica» do sistema
cognitivamente «dirigida a textos» — ocupada com as estruturas estáticas
(Regeln, Normen, Texte) que identificam objectivamente «o direito».
Para que a «diferença de base» seja «procurada no confronto System/
/Umwelt». Ou mais claramente, para que vejamos no sistema não um conjunto de
enunciados normativos (mais ou menos linguisticamente diferenciados) mas uma
conexão-Zusammenhang de operações facticamente consumadas (die als
soziale Operationen Kommunikationen sein müβen). E de tal modo que o
problema condutor seja afinal...
―… o de perceber a circularidade de tais operações [«como é que estas
operações produzem a diferenciação sistema/meio?», «como é que, sem
dependerem de nenhumas estruturas exteriores que as orientem, sabem afinal
quais são as operações que pertencem ou não ao subsistema jurídico?»] …
—… mas então também o de (à luz de um conceito puramente funcional de
função) entender a relação de recursividade que elas estabelecem com as suas
próprias estruturas... que vão construindo... e pressupondo... e transformando...

«Temporalmente perspectivadas, as operações são acontecimentos-Ereignisse,


na verdade actualizações de possibilidades (suceptíveis de serem observadas)
que, no momento da sua realização, voltam a desaparecer. Como
acontecimentos não beneficiam as operações de qualquer estabilidade, a não
ser porventura do mínimo de duração necessário para as observar (...). Todos
os processos de estabilização, todas as possibilidades de mudança e todas as
estruturas têm que ser como tal produzidas no sistema, e isto através das
operações que o sistema disponibiliza como suas. Não existe, por outras
palavras, qualquer determinação exterior de estruturas. Só o direito ele
próprio pode dizer o que é (o) direito. A produção de estruturas é por sua vez
também circularmente construída (-instalada) e decerto porque as operações
elas próprias, com o propósito de se relacionarem recursivamente com outras
operações, acabam por pressupor estruturas. A produção de (uma) operação
através de (outra) operação mas também e por maioria de razão a
condensação e a confirmação de estruturas através de operações, que por
sua vez se orientam por essas estruturas...: eis a realização-Vollzug da
autopoiesis! Nesta perspectiva podemos dizer que o sistema jurídico é
também um sistema auto-(especificamente)-estruturado...»[LUHMANN,
Das Recht der Gesellschaft, cit., 50 (ver também38-41)]

De tal modo que o problema condutor seja afinal... o da clausura operativa


(operative Geschlossenheit) do sistema jurídico (na clausura operativa do
sistema social).

3.1.2. Uma exigência de clausura operativa (e ainda e indiscriminadamente de


positividade constitutiva do jurídico) que vemos logo protegida-confirmada por
11

uma afirmação de validade-vigência (als Rechtsgeltung). Ou por esta afirmação


dirigida ao sistema como um todo (a lição de ROSS!) e assim mesmo — num
confronto explícito com a Faktizität und Geltung de HABERMAS — afirmada na sua
impoluta pureza «jurídica» (livre das seduções de uma nicht justiziabel
Diskursethik). Como um Symbol axiologicamente vazio, que nada nos saberá
dizer sobre a «qualidade material» (justiça, justeza, eficácia, adequação social) de
«uma lei, de uma sentença ou de um contrato»… e que não obstante confirma a
juridicidade destes e das comunicações que os integram! Que não é sequer uma
Grundnorm... ou uma qualquer outra condição hipotético-transcendental do
direito... porque se descobre «como pura forma…» — como o lado interior da
forma (sendo o lado exterior o da não validade!). Decerto porque (tal como o
símbolo dinheiro) esta validade (als ein Symbol ohne intrinsischen Wert) se
limita a «simbolizar a aceitação da comunicação e com ela a autopoiesis das
comunicações do sistema jurídico»(na sua implacável reprodução-variação
temporal) .
Ibidem,98-110(cap.2,VIII). Para um desenvolvimento da noção de
temporalisierter Komplexität, ligada ao problema da instabilidade
(sendo esta a condição que força o sistema social a construir-se como
um sistema autopoiético), cfr. Soziale Systeme, cit., 166 e ss. Ver
ainda o conjunto de textos seleccionados em A improbabilidade da
comunicação, Lisboa 1993.

3.1.3. Uma exigência de clausura operativa... que se alimenta de duas aquisições


básicas (indissociáveis, «enquanto se estimulam reciprocamente»). Que aquisi-
ções-Errungenschaften?
α) A possibilidade (als orientierung an der Funktion) de determinar um
esquema regulativo que, sob a perspectiva unitária de um um problema social
específico, nos permita descobrir na multiplicidade dos fenómenos concretos
(irrepetíveis, incomparáveis) «autênticas prestações equivalentes», permutáveis
entre si (die funktionale Spezifikation des Rechts).
β) A assunção performativa de um «modo-forma de comunicação» («livre
de qualquer densidade ontológica») que se esgota na künstliche Zweiwertigkeit de
um código: numa «imagem do mundo»…
—…que começa por se impor «como um ideal» (pressuposto e assumido
para «determinar e ordenar diferenças»)…
—…mas que logo se converte «num paradoxo» [que é o de pretender
iluminar unitariamente o «campo social a que se dirige» baseando-se numa
diferença (que lhe é dada pela forma binária elementar que o constitui)]...
—… antes de por fim se nos impor «como uma função» ou como um
operador funcional, tanto mais indispensável quanto capaz de «identificar o ruído»
e de assim, combatendo logradamente as «improbabilidades» da comunicação,
«normalizar» a descontinuidade material das estruturas sociais.
Um código Recht/Unrecht que se descobre assim como um esquema
regulativo equifuncional e na medida em que prevê-projecta uma valência
positiva (lícito, legal, «justo»…→→ juridicamente positivo) e uma valência
negativa (ilícito, ilegal, «injusto»...→→ juridicamente negativo, «contra o
direito») [ «Se um jurista quiser saber se uma comunicação pertence ou não ao sistema jurídico,
terá sempre que mostrar-comprovar que se trata de uma comunicação integrada no domínio do
código juridicamente lícito/juridicamente ilícito» (Das Recht der Gesellschaft, cit.,60)].
Com uma importante especificação introduzida pela dimensão temporal (die
Zeitdimension als Grundlage der Funktion des Rechts). Que leva LUHMANN a
12

invocar a analogia do subsistema científico (e da ponderação-cálculo was wäre


wenn) para admitir-introduzir uma espécie de terceira valência, representada pela
indeterminação (den Wert «unbestimmbar» als dritten Wert in die Logik
einzuführen). Tratando-se de chamar a atenção para a especificidade das decisões
jurídicas («insusceptíveis de correcção») ― em confronto com a permanente
revisibilidade das prognoses científicas ― e então e assim de mostrar que o
sistema de direito supera a rigidez do código levando a sério e enquanto leva a
sério as características de artefacto que o distinguem. Quer dizer, enquanto
assume a contingência da decisão e a vertigem da mudança... e faz suas as
operações (e os processos–regra) dessa mudança.

«Eine Form des Paradoxie managements also: Die zweiwertige Codierung benötigt mehr
als zwei Werte...»(Ibidem,384)

3.1.4. Uma exigência de clausura operativa... que se especifica nos desafios («à
partida paradoxais») dos binómios auto-orientação/orientação para o ambiente
(Selbstorientierung/ Umweltorientierung), redundância/variedade (Redundanz/
Varietät),auto-referência/hetero-referência(Selbstreferenz/Fremdreferenz), indi-
ferença/irritação-irritabilidade (Indifferenz/Irritierbarkeit). Mas então na explici-
tação metafórica de uma «ordem interna» construída (também) com os ruídos do
ambiente (the external noise). De tal modo que os «acontecimentos exteriores»
sejam transformados em condições das operações do sistema.

Os contactos entre o sistema e o seu nicho-ambiente são reais «mas os


constrangimentos exercidos por este ambiente não são externamente definidos na sua
realidade espácio-temporal»; é antes o sistema que determina os «constrangimentos
ambientais» (recebendo-projectando-transformando expectativas e recriando pertur-
bações e compreendendo estas últimas à luz das primeiras) como outros tantos
exercícios de «realização» positiva ou negativa e assim também como oportunidades
de co-evolução.

Sendo certo que a«solução» passa pelo contraponto expectativas


normativas/expectativas cognitivas.

A expectativa «beneficia de uma qualidade normativa (Sollqualität) sempre que,


ao compreendê-la, se determina também que ela não terá que ser alterada quando se
experimenta a sua frustração,violação ou não realização (im Enttäuschungsfalle)».
Para as expectativas cognitivas (que exprimem uma Wissensqualität) as exigências são
precisamente as opostas (a falsificação é aqui determinante).Ora o sistema de direito
«precisa» desta distinção» para «combinar a clausura da autoprodução recursiva com
a abertura da sua relação com o meio».

É que o direito constrói um sistema normativamente fechado e


cognitivamente aberto : normativamente fechado porque «livre de fins» ou de um
«fim» materialmente traduzível e de tal modo que só o sistema confere «quali-
dade normativo-jurídica» aos seus elementos; cognitivamente aberto porque
submetido à exigência de («em relação a cada um dos elementos do sistema e em
relação à sua reprodução permanente») ter que determinar se certos «pressu-
postos»(«factuais») se cumprem ou não.
13

«Nenhum acontecimento juridicamente relevante recebe a sua normatividade do meio-


Umwelt mas da auto-reprodução do sistema(...) A qualidade normativa serve a
autopoiesis do sistema, a sua autopreservação na diferença perante o meio. A
qualidade cognitiva serve a exigência de coordenação (sintonização, sincronização)
com o meio...» («Die Einheit...»,cit.,139). «A acentuação da tese de que o direito opera
em termos normativamente fechados dirige-se desde logo contra a pretensão de que a
moral possa valer imediatamente no sistema jurídico...»(Das Recht der Gesellschaft,
cit., 78)

3.1.5. A função do direito (als Immunsystem der Gesellschaft) recompreendida à


luz da dimensão temporal.

3.1.5.1. Uma (e apenas uma!) função (com várias dimensões analíticamente


autonomizáveis) de estabilização de expectativas normativas (ou de regulação
do processo que generaliza e garante estas expectativas)...

3.1.5.2.… e que exige uma relação específica código/programa…

É que o código impõe distinções mas não consegue por si só torná-las


«autopoieticamente produtivas» («as valências juridicamente lícito/ /juridicamente ilícito não
são em si mesmas critérios para a determinação do juridicamente lícito e do juridicamente ilícito
...»), precisando por isso mesmo de «novas distinções sistemicamente interiores», «a começar
por aquela que contrapõe codificação e programação». O programa com efeito é um critério...
uma «semântica suplementar» capaz de nos dizer «se (e como é que) as valências do código são
correctamente aplicadas». Para isso o programa vai ter que «abalar a transparência do código,
garantida pela sua lógica binária », para interpretar as valências como possibilidades (uma
interpretação por sua vez não arbitrária, inscrita nos processos de autodinamização temporal
oferecidos pelo sistema).

Neste sentido cfr. Das Recht der Gesellschaft, cit., todo o cap.4 (Codierung und
Programmierung) e ainda «Le droit comme système social», Droit et Société, 11-12 (1989), 53-
66 e «Gesellschaft als Differenz», in Zeitschrift für Soziologie 23(1994), 477-481.

3.1.5.2. Que relação específica? Aquela que assume que os programas do


sistema jurídico são sempre programas condicionais (Konditionalprogramme),
os únicos que, ao estabelecerem uma relação selectiva do tipo «se...então» entre
as condições (cognitivamente mediatizadas) e a atribuição-estabilização de
qualidades normativas, podem orientar-instruir «a conexão Selbstreferenz/
/Fremdreferenz na sua implacável continuidade» e assim «conferir à
Umweltorientierung uma forma cognitiva (que a autopoiesis do sistema possa
por sua vez apresentar-justificar-conter nos limites de inteligibilidade de um
«juízo lógico-dedutivo»). A exclusão dos Zweckprogramme (que só hão-de
intervir no contexto ou sob a perspectiva rigorosa de Konditionalprogramme)
projectada na denúncia da disfuncionalidade do consequencialismo metódico
[denúncia que não impede evidentemente que o sistema assuma-seleccione tais
efeitos como «ruído», «manifestações de variedade» e em último termo como
«sinais» de «alarme»].
14

3.1.5.3. Condicionalidade que sustenta inevitavelmente uma representação da


norma enquanto forma de uma «função de estabilização geral», capaz de
articular «modos incomensuráveis de confirmação e de estabilização de
expectativas» («uma das grandes aquisições “evolucionárias” do desenvol-
vimento social»)...

3.1.5.4....Sem que a pressuposição programática desta forma (ou a possibilidade


de a reconstituir) em todas as instâncias do sistema afecte a recursividade
necessariamente simétrica dos elementos deste (que é uma das dimensões da
autopoiesis)... e nomeadamente a relação circular que, no plano estritamente
normativo (na perspectiva da Normqualität que as distingue como elementos do
sistema), importa reconhecer entre a norma legal e a decisão judicial. Decerto
porque a «qualidade normativa de cada elemento se deve por inteiro à qualidade
normativa dos outros elementos», numa teia de reciprocidades que exclui
hierarquias. Decerto também porque as assimetrias (nomeadamente aquelas
que se cristalizam numa «teoria das fontes») irrompem apenas na
institucionalização da dinâmica sistémica e através de uma aprendizagem
cognitivamente mediatizada (que não põe em causa a Ausdifferenzierung).

«As leis valem como normas apenas porque está previsto que sejam mobilizadas-
aplicadas(angewandt) nas decisões na mesma medida em que as decisões exprimem um
juízo normativo relativo a uma situação apenas porque tal possibilidade está prevista nas
leis : entre a regra-Regel e a decisão de aplicação-Anwendungsentscheidung há, no que diz
respeito à qualidade normativa, uma relação circular. Decerto porque a autopoiesis opera
para além de toda e qualquer dedução e de toda e qualquer causalidade. E não há nenhuma
recondução das normas a princípios últimos ou a instâncias últimas, nos quais ou nas quais
a normativo e o cognitivo (Normativität und Kognitivität), o valor e o ser se fundam. A
normatividade é sempre e em toda a parte igual, enquanto preservação de expectativas não
falsificáveis...» («Die Einheit...»,cit.,140-141).

3.1.5.5....Recursividade enfim que, articulada com a relação Codierung/


/Programmierung e com a exclusividade dos programas condicionais, nos
permite entender o desempenho sistémico (die neue Stellung) da jurisdição
(submetida à conexão assimétrica de uma proibição de denegação de justiça)…
Trata-se evidentemente de enfrentar um problema de «diferenciação
interna»... e assim de mostrar que também aí, no limite dos hard cases (latissimo
sensu), a especificação das alternativas de decisão se impõe orientada pelos
programas do sistema... Pelas regras de procedimento? Certamente. Desde que
possamos incluir nestas a própria exigência da diferenciação sistémica. Para que
a decisão final seja encontrada apenas nas valências do código Recht/
/Unrecht― e não à custa da « interferência de perspectivas morais e políticas»
que a «orientação pelos (e a selecção dos) efeitos sociais» sempre determina.

Sem esquecer que a produtividade autopoiética deste código determina


que a decisão em causa seja inscrita nas possibilidades lógicas de um
programa condicional (com as exigências de generalização de expectativas
que lhe correspondem). O que significa decerto insistir numa compreensão
normativística do princípio da universalização... só que para a justificar
sistemicamente enquanto necessidade de «consistência» ... e em nome de
um princípio da igualdade... que por sua vez não é senão uma «expressão
15

plausível da clausura operativa e das suas possibilidades de auto-evolução


(Der Vergleich unter dem Gesichtpunkt gleich/ungleich in bezug auf
Unterscheidungen, die immer neu getroffen werden müssen, scheint diese
Funktion erfüllen).

Mas trata-se também de traduzir a circularidade jurisdição/ legislação (ou


mais rigorosamente de descrever as relações do subsistema judiciário com o
subsistema jurídico) convocando um esquema funcional centro/ periferia
(Zentrum/Peripherie) [autopoieticamente repensado e assim livre de qualquer
«conotação hierárquica ou orgânica»]. Para que a periferia (que inclui todas as
nicht-gerichtlichen Arbeitsbereiche, e muito especialmente as comunicações
legislativas e contratuais) possa assumir a abertura cognitiva do sistema,
preservando a sua autonomia (sem se ver constrangida a decidir) [«In der
Peripherie werden Irritationen in Rechtsform gebracht― oder auch nicht. Hier
garantiert das System seine Autonomie durch Nicht-Entscheiden-Müssen…»].
Para que a jurisdição (que ocupa o centro) ― através do (muito maior) grau de
auto-isolamento cognitivo que a pressuposição (mais ou menos explícita) dos
programas condicionais-textos lhe proporciona ― possa assumir a responsa-
bilidade-constrangimento de decidir e de decidir em nome (da diferenciação e
autonomia) do sistema. E de tal modo que a proibição de denegação da justiça
se revele como um operador funcional decisivo (no qual todo o sistema aparece
afinal implicado)[«Das Zentrum bedarf dieses Schutzes ― gerade weil es unter
der entgegengesetzten Prämisse operiert. Deshalb arbeiten Gerichte, verglichen
mit Gesetzgebern und Vertragschlieβenden, unter viel stärkerer kognitiven
Selbstisolation»]
Das Recht der Gesellschaft, cit., 297 e ss.,320-
-325(V),338 e ss.

3.1.5.6. E no entanto o núcleo (auto-descritivo) deste Zentrum aparece consti-


tuído por comunicações argumentativas... que por sua vez podem praticar um
exercício predominante de auto-referência (formale Argumentation als Bezug
auf Texte und Begriffe) ou entregar-se a um processo de hetero-referência
(substantielle Argumentation als Bezug auf Interessen). Seja qual for o
significado desta «hesitação» (que importará reconstituir nos seus diversos
equilíbrios históricos), é no entanto como um patamar interior de «complexi-
zação» que a trama multiforme dos argumentos (enquadrada por regras
procedimentais) deverá ser absorvida pelo sistema.

A argumentação não tem com efeito nada a ver com «uma explo-
ração-aproveitamento(-Ausnutzung) teleológico-instrumental do recurso
complexidade»; o seu espaço temático é antes o da pergunta que pretende
saber como é que o «sistema se consegue manter (zurechtzukommen) e
reproduzir-se (em termos operativamente fechados)» numa relação com o
meio que ― desafiada por expectativas plurais e fragmentadas («que cada
vez mais resistem a uma transformação normativa») ― enfrenta «um
processo evolutivo de crescente complexidade» (um processo por sua vez
que importa recontruir e reflectir como Eigenrisiko).

Pelo que é à dogmática ― a uma dogmática capaz de, na sua rigorosa


«abstracção categorial-classificatória», sustentar uma «experimentação reflexi-
16

va» racionalmente livre (e de assim assimilar as experiências comunicativas


multiformes prosseguidas pela argumentação) ― que cabe por assim dizer a
última palavra.
«Os conceitos constroem uma segunda rede
de segurança (esta agora metatextual) para a
redundância do sistema...»(Ibidem,389)
Exactamente aquela palavra que nos autoriza a compreender que o sistema
jurídico trabalhe «com um estrato superior de organização de redundâncias»
(pressupondo uma rechtseigene Begrifflichkeit) na mesma medida em que se
submete («contínua e implacavelmente») às exigências de uma auto-
-especificação histórica. Mas então também aquela que nos leva a encontrar na
Justiz a Kontingenzformel do próprio sistema.

«Nas sociedades desenvolvidas só é possível falar de justiça no sentido de uma


complexidade adequada das decisões consistentes. Ora o problema da adequação
resulta da relação do sistema jurídico com o sistema social (...) e então de um
processo de (...) irritabilidade (perturbability, Sensitivität, Resonanz). O sistema
jurídico, na sua própria complexidade, não pode ter em conta todos os fenómenos
sociais. Como todo e qualquer sistema em relação com o meio-Umwelt, o nosso
tem que reduzir a complexidade mas também que proteger a sua própria
construção da complexidade, erguendo para isso altas muralhas de indiferença. A
reconstrução interior do meio-Umwelt pode não obstante ser mais ou menos
complexa. Seja como for, a exigência-Erfordnis da justiça só corresponde a esta
complexidade interna quando for compatível com um consistente decidir...»
(Ibidem,225-226)

Das Recht der Gesellschaft, cit.,caps. 5 e 8; v. também «Gerechtigkeit in den Rechtssystemen


der modernen Gesellschaft», Rechtstheorie 4 (1973), 131-167 e «Risiko und Gefahr», in Wolfgang
KROHN/Georg KRÜCKEN (Hrsg.),Riskante Technologien: Reflexion und Regulation, Frankfurt 1993,
138-185; mas ainda os desenvolvimentos indispensáveis de Rechtssystem und Rechtsdogmatik, Stuttgart
1974 e Soziologie des Risikos, Berlin 1991.

3.2. A alternativa do reflexives Recht perante os desafios do pluralismo das


comunicações jurídicas, do confronto racionalidade formal/racionalidade material e
da colisão interdiscursiva (exterior) dos subsistemas (TEUBNER).

3.2.1. A possibilidade de «autopoiesis parciais» comprovada pelo processo de


autonomização gradual do subsistema jurídico — constituindo a análise deste
processo (nas três fases de construção hipercíclica que o definem) uma «grelha
reflexiva» indispensável, menos decerto para entender a evolução histórica do
direito do que para enfrentar os fenómenos de pluralismo (as a dynamic
interaction of a multitude of «legal orders» within one social field) que
caracterizam a nossa situação presente.

3.2.1.1. As três fases de construção do hiperciclo.

α) A fase do direito socialmente difuso, cujas componentes sistémicas são


ainda produzidas pela sociedade — «com elementos, estruturas, processos e
17

limites discursivos que se confundem com a comunicação geral da sociedade»


(direito hetero-referencialmente produzido) —, que se atinge no entanto
sempre que há uma representação da controvérsia (enquanto «divergência-
-conflito de expectativas») acompanhada de uma exigência de a superar (tratar-
-decidir) que mobiliza o código de valências binárias Recht/Unrecht.
β) A fase do direito parcialmente autónomo — com componentes
sistémicas já auto-referencialmente constituídas (norma-estrutura, acto-
-elemento, processo, doutrina) — que se atinge com a intervenção lograda de
uma ordem de critérios secundários, correspondendo assim à emancipação de
um nível referencial de auto-observação (já também como autodescrição e
autoconstituição) [supra, 2.2.2. β)’, β)’’, β)’’’].
γ) A fase do direito autopoiético [supra, 2.2.2. γ)] que só se consuma
quando as componentes acima identificadas compõem círculos auto-referenciais
harmonizados (o círculo de positividade da norma e do acto-decisão, o círculo
de vigilância-contrôle da dogmática e do processo) e quando estes círculos por
sua vez se encadeiam num hiperciclo reprodutor (numa teia de reciprocidades e
de conexões funcionalmente diferenciadas que desencadeiam «uma produção
efectiva de comunicações jurídicas a partir de outras comunicações»).

TEUBNER, Recht als autopoietisches System, cit., cap. 3, mas também «Hyperzyklus in Recht und
Organisation...»(1990), cit. na trad. francesa «L’hypercycle en droit…», in Droit et réfléxivité…,
Bruylant 1996.

3.2.1.2. O novo pluralismo jurídico como a irrupção de comunicações muito


diversificadas, que se produzem independentemente de um enquadramento
institucional formalmente reconhecível e das hierarquias relacionais que este
estabelece (as a non-legalistic, non-hierarchy, and non-institutional dark side of
the majestic rule of law). Um «fenómeno dominante» que permite a
TEUBNER pôr o problema dos limites da juridicidade (Where do we stop
speaking of law and find ourselves simply describing social life?)... mas apenas
para ensaiar o linguistic turn que lhe é oferecido pela teoria dos sistemas, na sua
mais ou menos assumida face pós-moderna (the move from structure to process,
from norm to action, from unity to difference and, most important for the legal
proprium, from function to code). Decerto porque esta viragem o autoriza a
traduzir o «carácter eminentemente procedimental» do jurídico e a experimentar
nos seus limites a relevância funcional da clausura operativa, para concluir... que
o pluralismo em causa já não é definível-determinável como um conflito entre
«normas ou critérios sociais» (que disputam um determinado território)... mas
«como uma multiplicidade de processos comunicativos diversos... que obser-
vam-perspectivam a acção social de acordo com o código binário legal/ilegal,
lícito/ilícito...». E de tal modo que o que nos autoriza a descobrir o direito já
«não seja (já não possa ser) a estrutura nem mesmo a função ... mas apenas o
código» (as the line that the discursive practice of law draws between itself and
its environment). Com resultados que falam por si...

«It is the — implicit or explicit — invocation of the legal code which constitutes
phenomena of legal pluralism, ranging from the official law of the State to the unofficial
laws of markets and mafias. (…)The binary code legal/illegal is not peculiar to the law
of the State. This is not at all a view of “legal centralism”. It refutes categorically any
18

hierarchically superior position of the official law of the State, but invokes rather the
imagery of a heterarchy of diverse legal discourses. “Tax laws” of a local mafia which
grants its “protection” to the merchants are the case in point. Clearly, in their
“illegality”, they are excluded from any “recognition” by the official law of the State.
Nevertheless, mafia rules are an integral part of legal pluralism in our semi-autonomous
social field insofar as they use the binary code of legal communication. They belong to
the multitude of fragmented legal discourses , be they state law, rules of private justice,
regulations of private government or outright “illegal” laws of underground
organisations, that play a part in the dynamic process of mutual constitution of actions
and structures in the social field. The multiple orders of legal pluralism always produce
normative expectations in the sociological sense, excluding however merely social
conventions and moral norms since they are not based on the binary code legal/illegal
(…). Thus, interdiscursivity occurs in two diverse forms: between legal discourses
(State Law vs. “private law” and mafia law) and between legal and non-legal discourses
(legal vs. moral, economic, political phenomena)…» (TEUBNER,«The Two Faces of
Janus…»,cit., 128, 132)

3.2.2. A procura de uma «nova racionalidade»

3.2.2.1. A disfuncionalidade das relações que se estabelecem entre os vários sub-


-sistemas sociais (as external interdiscursivity) experimentada na denúncia do
trilema regulatório.
«Toda a intervenção regulatória do jurídico que enquanto influência
exterior ultrapasse as linhas e os limites da auto-regulação e da
autoconservação dos subsistemas envolvidos...
— …ou não é pertinente (incongruência, indiferença mútua)…
— …ou provoca efeitos de desintegração que afectam o campo social
regulado (sobrelegalização)...
— … ou provoca efeitos de desintegração que afectam o próprio direito
regulatório (sobressocialização do direito,desintegração do direito pela
sociedade)…»
Sendo certo que em todos estas hipóteses se diagnostica uma incapacidade
de respeitar o equilíbrio abertura cognitiva/clausura normativa.

3.2.2.2. A solução construída num diálogo negativo com os pólos da


implementação intervencionista (Renate MAYNTZ) e da redução (desregu-
lação) normativa «neoliberal» (HAYEK, Law & Economics)…e num diálogo
positivo(selectivo embora) com HABERMAS e sobretudo com WIETHÖLTER.
Sob a «fórmula mágica» de um direito reflexivo, capaz de deixar «intacta a
autonomia dos subsistemas sociais, sem deixar simultaneamente de os orientar
numa direcção precisa». Que direcção? A de um respeito recíproco das
autonomias funcionais correspondentes e destas como processos autopoiéticos
de diferenciação. Não se tratando assim de assumir uma «perspectiva clássica de
integração normativa » (que envolva uma projecção-realização de normas e
valores comuns a todos os sistemas sociais) mas de «definir as premissas
jurídicas» estruturais de uma «integração descentralizada». O que se pretende
conseguir através de uma orientação procedimental...
19

...« [A de] um direito não só capaz das auto-alterações justificadas pela


sua aprendizagem, pela consideração dos seus resultados, como de uma
regulação que preserve a autopoiesis também dos sub-
sistemas com que esteja em conexão, dos subsistemas regulados, e que,
além disso ou para isso mesmo, aceitasse uma sua “processualização”
(ou “procedimentarização”), se convertesse a uma índole só
procedimental e não já material. Que, em lugar de regular a material
determinação da acção ou dos comportamentos, prescrevesse apenas
regras sobre a organização, o processo e as competências para a decisão
e a acção — não as normas sobre o conteúdo da acção mas as regras
sobre as condições da decisão. Assim, contingência material, porque
sujeita à contínua reconstituição por auto-referência poiética, e apenas
invariância procedimental-formal, porque aquela reconstrução
haveria de operar no quadro das condições e modos pré-definidos. Por
outras palavras, preservação da reflexiva estrutura funcional na
fungibilidade ou equivalência também funcional das prestações
materiais...» (CASTANHEIRA NEVES, O problema actual do
direito...,cit., 47)
Para uma consideração desenvolvida das «pré-condições jurídicas estruturais» da auto-
-regulação em causa, com três dimensões inevitáveis — a primeira a proteger a
autonomia social (mobilizando uma «constituição externa» ou um operador
equivalente), a segunda a delimitar os «efeitos sociais» intrasistemicamente relevantes
(justificados pelas exigências da abertura cognitiva), a terceira enfim a disciplinar o
interdiscurso externo (os processos de mediação dos conflitos, os operadores
funcionalmente plausíveis de negociação e de harmonização dos subsistemas) — v.
TEUBNER, «Verrechtlichung ...» (1984), cit. na trad. francesa «La juridicisation…»,
in Droit et réfléxivité…,51 e ss.,89-98(Contrôle d’autorégulation) mas também Recht
als autopoietisches System, cit., caps. 5 e 6.

3.2.2.3. Uma orientação pelo procedimento... que reivindica um desempenho


normativo específico, inconfundível com os modelos de racionalização
consagrados (exigidos) pelo Estado demo-liberal e pelo Estado Providência.
Não se tratando com efeito...
—…nem de «delimitar negativamente as esferas de autonomia dos actores
privados» (função proscritiva da racionalidade formal, prosseguida em nome de
uma «intenção político-jurídica não intervencionista»... e através de
Konditionalprogramme e de uma «orientação pela norma»... mas também de um
edifício categorial-classificatório concebido pela dogmática... )…
—…nem de «regular directamente os resultados dos processos sociais»
(função prescritiva da racionalidade material-instrumental, legitimada por uma
exigência político-ideológica de correcção das injustiças do mercado... e imposta
através de Zweckprogramme ... mas também de standards e de cláusulas
gerais... e de uma «argumentação tópica aberta»)...
—… mas antes de «regular indirecta e abstractamente» os «processos de
auto-regulação (e auto-reflexão) dos diversos subsistemas sociais» (função de
facilitação-contrôle, assegurada por uma «inscrição normativa reflexiva e por
normas de organização, de processo e de competência»... mas também pela
«lógica dos sistemas auto-regulatórios»... e agora com o propósito de determinar
as premissas jurídicas da integração funcional).
20

Por uma «inscrição normativa reflexiva»? Certamente. E no sentido que


já conhecemos: o de uma auto-reflexão do sistema, simultaneamente auto-
-referencial e auto-poiética [supra, 2.2.1. β)] . De tal modo que a expressão
culminante deste reflexives Recht se descubra no problema do interdiscurso
externo (ou no modo como este projecta externamente a experiência privi-
legiada do pluralismo interno), entenda-se, nas exigências e nos meios de uma
«regulação contextual descentralizada» [infra, 3.2.3.]. Mas de tal modo também que
este plano de compreensão da racionalidade jurídica reflexiva (o da sua imediata
inteligibilidade sistémica) se projecte (e se especifique) noutros dois: o de uma
tradução normativa — enquanto procura de uma autonomia regulada,
sustentada em mecanismos compensatórios («promoção activa dos sistemas
sociais que aprendem») — e o de uma tradução interna — enquanto exigência
de superar a alternativa programas condicionais/programas finais...

«A “racionalidade interna” do direito reflexivo (...) não se baseia com efeito nem num
sistema de normas e de conceitos jurídicos definidos com precisão nem na lógica meio-
-fim dos programas jurídicos materiais. O direito reflexivo tende antes a objectivar-se
em programas procedimentais mais abstractos, que se dirigem tanto ao metanível da
regulação de processos quanto à repartição e redefinição dos direitos de controle e das
competências de decisão...» (ID.,«Reflexives Recht...», cit.,28)

...mas então também enquanto possibilidade de preservar a exigência de


autonomia do jurídico (defendida pelo conceptualismo alla WINDSHEID)
assumindo as «aquisições irredutíveis da jurisprudência sociológica» (agora
enquanto tentativa para procurar-descobrir nos dispositivos do sistema uma
«recepção lograda» da variedade do ambiente).

«Ao aderir à reflexividade, o direito descobrir-se-ia a si próprio como um sistema


num ambiente e reconheceria os limites da sua capacidade de regulação dos outros
sistemas sociais. Neste quadro, a relação das ciências jurídicas e das ciências sociais
não se caracterizaria nem por uma “recepção” nem por uma “separação” mas antes pela
tradução do saber próprio de um contexto social num outro saber (próprio de um outro
contexto). Ora por uma tradução orientada por regras determinadas, entenda-se,
orientada por critérios de selectividade especificamente jurídicos.(...) Os modelos
compreensivos de uma “política social” seriam então substituídos por modelos que
combinariam análises jurídico-sociológicas e processos de interacção, na perspectiva
(ou com o objectivo) de uma solução dos problemas sociais...» (ID.,«Reflexives Recht...»,
cit., 58-59)

3.2.3. O direito reflexivo perante a colisão interdiscursiva (exterior) dos


subsistemas.

A impossibilidade de pensar numa unidade integradora (impossibilidade


justificada pela morte das metanarrativas e pela «regra do diferendo) a impor
uma solução «descentralizada, (obtida) no interior de cada discurso particular» (a
analogia com o Direito Internacional Privado e com a «gigantesca teia dos
reenvios»).

Os dois planos de solução plausíveis:


21

α) a hipótese da incorporação enquanto re-entry, entenda-se, enquanto


reconstrução jurídica interna de materiais semânticos exteriores (capaz de
converter os diferendos em litígios)... uma re-entry não obstante sustentada
num «consequencialismo limitado e realista» (e neste como um contrôle
discursivo das consequências);
«Comment la norme juridique est-elle traduite dans les autres jeux de
langage sociaux concrets, comment la re-entry de la décision juridique dans la
société et la seconde lecture des normes juridiques dans les discours sociaux se
présentent-elles? Et comment le jeu de langage du droit peut-il y réagir, après
troisième lecture, par des normes d’un nouveau genre ? Selon moi, la formule
de recherche d’un conséquentialisme réaliste et limité devrait intégrer ces
questions…»(ID.,«Altera pars audiatur: Le droit dans la collision des discours»,
cit.,118)
«Since interdiscursivity means structural coupling in a situation
of autopoiesis within autopoiesis, mere perturbation does not
suffice to grasp the specific closure/openness of social
subsystems. In the relation between social discourses, I suggest
to replace perturbation by productive misreading…»(ID.,«The
Two Faces of Janus…»,cit.,124)

β) a hipótese da exteriorização, segundo a qual as colisões são tematizadas


e decididas por outros sub-sistemas, competindo não obstante ao jurídico
«constituir discursivamente contra-instituições» (capazes de contrariar as
«pretensões totalitárias de universalidade» dos «discursos sociais» em causa).
Que contra-instituições?
β)’ Num primeiro plano (e então e assim latíssimo sensu)... os direitos do
homem e (ou) o controle jurisdicional da constitucionalidade que os convoca
(ou que convoca uma representação relevante dos seus conflitos) enquanto
limita(m) a intervenção da «universalidade política» — uma intervenção aberta
pelo processo-acto jurídico da legislação mas a cuja unidimensionalidade esta,
assumida embora como uma tradução ou leitura específica (e como tal
erradamente produtiva), não consegue afinal escapar [a dupla face do processo
legislativo enquanto fonte social de produção jurídica e enquanto aquisição-
tradução jurídica (productive misreading) de um saber estranho (implícito na
racionalidade parcial da política)]...
O paralelo inevitável com LUHMANN e com a concepção da legislação submetida aos desafios
de programação de dois códigos (Regierung/Opposition, Recht/Unrecht) e assim a impor-se
como um mecanismo de compensação-compromisso (Ausgleich) temporal, do qual toda a
sociedade beneficia (Gesetzgebung als Ort der Transformation von Politik in Recht und als
Ort der rechtlichen Beschränkungen von Politik,, die die wichtige Funktion eines
gesamtgesellschaftlichen Zeitausgleichs übernommen hat)[o equlíbrio entre a temporalidade
acelarada da política (na sua apetência pelo novo, ditada pela Zeitalter der Massmediem) e a
temporalidade desacelarante do jurídico (imposta pelos seus processos dogmáticos de auto-
descrição mas também pela lentidão constitutiva do Richterrecht);o Estado de direito a assumir-
-institucionalizar uma «relação de reciprocidade parasitária direito/política» ]. Neste sentido cfr.
todo o cap.9 (Politik und Recht) de Das Recht der Gesellschaft, cit., 407 e ss. e muito
especialmente as pp.426-431(III).
Mas também (numa linha de desenvolvimento rigorosamente análoga,
agora a dar-se conta da dupla face do contrato, como aquisição-
-misinterpretation de um saber económico e como inscrição normativa da
22

unidimensionalidade deste)... o controle jurisdicional do conteúdo dos


contratos e das claúsulas gerais...
«En ce sens, l’on peut qualifier les droits fondamentaux de la
Constitution et les clauses générales du droit privé comme des
normes de conflits rectifiant l’universalité unidimensionnelle de
la politique ou de l’économie par l’incorporation d’éléments
polycontexturels…» (TEUBNER, «Altera pars audiatur: Le droit
dans la collision des discours», cit.,121)
Para uma consideração exemplar do problema das cláusulas gerais e da
«transformação» da sua função, à luz das exigências de um direito reflexivo — nas
fronteiras de um «conflito inextricável entre a informação e a interferência» mas então
também como uma «hipótese» privilegiada de manifestação de um «direito funcional
dos conflitos» (no ponto de equilíbrio da «clausura operacional radicalmente
hipercíclica» e da não menos «radical abertura»)—, cfr. Recht als autopoietisches System,
cit., cap.6.

...e ainda (et pour cause,à luz das lições do pluralismo)... o contrôle
jurisdicional (que importa consagrar ou amplificar nas suas possibilidades
normativas) dos «critérios internos das organizações» e dos standards que
correspondem a um «saber técnico-profissional» (nos limites do sub-sistema
ciência).

β)’’ Num segundo plano (agora em sentido rigoroso), aquelas que se


desenvolvem como núcleos exteriores ao direito mas com o objectivo de, na sua
missão «consultiva» e «conciliatória» — sobretudo lograda se mobilizar um
saber local (a lição do intelectual específico de FOUCAULT!) —, «ajudar»
aquele direito a defender a «policontextualidade social». Exemplarmente, as
pequenas «comissões de ética» inseridas nas «clínicas, empresas ou
universidades» ou estas enquanto se libertam da tentação de reproduzir um
pluralimo político-económico (un pluralisme d’intérêts) , entenda-se, enquanto
assumem um autêntico (e localizado... e situacionalmente «irrepetível»)
pluralismo de discursos (se não de jogos de linguagem) — um pluralimo capaz
de resolver autonomamente os conflitos e de assim resistir à
unidimensionalidade dos «discursos dominantes» (a medicina, a economia, a
ciência...). Competindo ao direito precisamente a institucionalização regulativo-
-procedimental (dos modos de argumentação-participação, das regras de
comprovação, dos processos de decisão) de tais «espaços» e das suas exigências
particulares.

4. Breve juízo crítico


4.1. Uma abordagem que, na sua «observação» do sistema jurídico, pretende manter-se
nos limites de uma perspectiva exterior [… inscrita (como uma disciplina embora com
exigências e... possibilidades únicas) na inteligibilidade auto-referencial do sistema
científico e então e assim capaz de «evitar toda e qualquer implicação normativa» (Der
Adressat der Rechtssoziologie ist die Wissenschaft selbst,(...)die Analysen der folgenden
Kapitel normative Implikate strikt vermeiden)] …
23

Sem esquecer que o sistema-objecto que tematiza «se auto-observa e auto-


descreve a ele próprio» e que portanto a teoria sociológico-sistémica deve dirigir-
-se-lhe reconstituindo a sua perspectiva interior e esta já como uma observação de
segunda ordem (als Beobachtung zweiter Ordnung)... [LUHMANN, Das Recht der
Gesellschaft, cit.,15-18, 31—33, 496 e ss. (todo o cap.11)]

…e que no entanto não consegue impedir interferências perturbantes... (num jogo


complexo de processos selectivos recíprocos).

4.1.1. Aquelas interferências que a alternativa prospectiva do reflexives Recht de


TEUBNER e LADEUR (comme un modèle analytique et normatif à la fois)
assumidamente acolhe e reconhece, propõe e estimula ? Certamente. Com
exemplos que para além das sugestões específicas que já considerámos envolvem a
generalização-tratamento da negociação colectiva (enquanto «regulação
negociada»), as diversas experiências de mediação neo-corporativista (até ao
limite do duty to bargain), as especialidades institucionais da «prática como
processo de descoberta» ensaiada para o direito do consumo, as estratégias de
flexibilização dos processos informáticos (nas fronteiras de uma network economy,
se não de uma transformation of the legal system in the internet economy ), o
desenvolvimento das linkage institutions (ocupadas com a harmonização dos
diversos sub-sistemas ou com a preservação das opções de racionalidade que
internamente os fragmentam), enfim — na cúpula do edifício — as especificações
constitucionais da responsive law e das exigências dos programas relacionais
(constituição de organização, constituição reflexiva, constituição processual).

V. por todos GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra


3
1998, 1292-1295 [mas também 1078 e ss, 1287 e ss, 1331 e ss], Direito Constitucional, 6ª edição
revista, Coimbra 1993, 9 e ss [todo o cap. 1, «Modos transitivos: os paradigmas da modernidade e
da pós-modernidade no âmbito do Direito Constitucional e na Ciência Política» (também publicado
como «OAB – Sociedade e Estado», in P.L. SARAIVA, coord., Antologia Luso-Brasileira de Direito
Constitucional, Brasília 1992)] e «“Mal-estar” da Constituição e pessimismo pós-moderno»,
Vértice, II, série 7, 1988, 9 e ss. E ainda João C. LOUREIRO, O procedimento administrativo entre
a eficiência e a garantia dos particulares (Algumas considerações), Coimbra 1995, 17 e ss (nº 4, 9
e 11), 23-24, 104 e ss, 149 e ss, 172 e ss. Cfr. também BORN/GOLDSCHMITT«La creation légale de
systèmes autopoïétiques. Le cas du risque», Droit et societé, 35-1997, 125 e ss. E ainda, a propósito
das estratégias de flexibilização de LADEUR, «The Internet and the Legal System...»,
http://www.iue.it/LAW/ladeur.

4.1.2. Mas então também aquelas de que AMELUNG e JAKOBS se apropriam para
legitimar dogmático-racionalmente um direito penal preventivo (e determinar
funcionalmente um subsistema de culpabilidade)...

V. CASTANHEIRA NEVES, «Pessoa, direito e responsabilidade» (1995), Revista Portuguesa de


Ciência Criminal, nº 6, 1996,29-30 mas também «O princípio da legalidade criminal», Digesta,
vol. 1º, 399 e ss., e ainda FIGUEIREDO DIAS, Temas básicos da doutrina penal, Coimbra, 2001,
16-22, 74-78, 105-108.
24

4.1.3. Sem esquecer aquelas que malgré lui afectam o percurso reflexivo de
LUHMANN. Dois exemplos apenas.

α) A conclusão de que é indispensável superar as auto-descrições da unidade


do jurídico baseadas nas perspectivas da razão-Vernunft e da positividade-
-Positivität — ambas herdeiras das Traditionformeln do Iluminismo... a primeira a
remeter-nos para os princípios ou para uma articulação praxis-argumentação/
/princípios-fundamentos (gute Gründe, vernünftiger Prinzipien, letzte Werte als
Sollswerte des Systems), a segunda a refugiar-se nas possibildades da metáfora
fontes de direito e a exigir uma determinação político-constitucional
correspondente, eventualmente aberta aos modos constitutivos da dogmática e do
Richterrecht... (ein Positivismus der sich auf die Verfassung bezieht und eine
darüber hinausgehendde Referenz auf Rechtsquellen vermeiden)… Sendo certo
que uma tal superação se consegue... mobilizando os ensinamentos da perspec-
tiva sistémica. Como? Evitando o erro de fazer intervir no problema do sistema
jurídico uma dimensão que lhe é exterior… uma dimensão ou acervo de dimensões
que usa as máscaras do direito subjectivo, do sujeito, do Homem tout court…ou
estas enquanto traduzem compromissos valorativos fundamentais… Não podemos
com efeito esquecer que o apelo a estas dimensões implica sempre uma hetero-
-referência: que pode impor-se-nos já económica ou politicamente codificada (se
não programada) — se os sujeitos forem compreendidos como mónadas de
interesses (individual ou colectivamente traduzidas)... capazes de sustentar
estratégica ou tacticamente uma posição «reivindicante» —, que pode apresentar-
-se-nos dissolvida na pluralidade insuperável dos programas morais e no
relativismo implacável das experiências éticas — não obstante a unidade
preservada do código Gut/Schlecht,Gut/Böse —...e que no limite pode suscitar o
problema da inclusão no sistema jurídico das pessoas enquanto sistemas psíquicos
(consciências auto-referenciais e autopoiéticas) — uma inclusão que o sistema
formalizado de programas-procedimentos juridicamente auto-subsistentes está
cada vez menos em condições de realizar (ou de pretender realizar)...
Der Recht der Gesellschaft, cit.,76 e ss (VI), 481-490(V), 530-538(VI e VII). Cfr. também
TEUBNER, Recht als autopoietisches System, cit., 72-74.

β) A pressuposição — aproblematicamente assumida porque sustentada nos


mesmos «ensinamentos da perspectiva sistémica» — de que a autodinamização
temporal cumprida pelo sistema jurídico se deve entender à luz de uma
interpretação-especificação programática das valências do código (que as
transforme em possibilidades realizáveis). Ou esta pressuposição concertada com
outra (não menos aproblematicamente assumida): uma pressuposição que percorre
a teia num sentido inverso... e isto na medida em que parte do problema da
relação de reciprocidade parasitária direito/política (institucionalizada pela
diferenciação funcional do Estado-de-direito ) — isto é, do entendimento desta
diferenciação e daquela relação à luz da teoria sistémica — para não obstante
«absolutizar» (generalizar, projectar universalmente... ainda que porventura
também selectivamente) a resposta que o pensamento jurídico do século XIX
(mobilizando a herança jusracionalista) concebeu para este problema. O que
significa evidentemente entender a conexão Selbstreferenz/Fremdreferenz à luz da
experiência histórica circunscrita da autonomização do Método Jurídico...
justificando assim (na sua eternidade analítica!)... uma concepção funcional do
direito dominada pela «segurança das expectativas» e pela «igualdade de
25

tratamento», uma representação constitutiva da textualidade (Das Recht muβ sich


immer an Rechtstexten als Recht ausweisen), uma compreensão da dogmática
como rede metatextual de redundâncias funcionais-categoriais, uma localização da
jurisprudência jurisdicional num centro cognitivamente protegido, enfim e muito
especialmente... uma prescrição insuperável (com a consequente recuperação do
esquema subsuntivo) da exclusividade rigorosa dos programas condicionais...
Para uma abordagem do confronto programas condicionais/programas finais dominada pela
exigência de lhes opor uma intenção teleológica com um sentido axiológico-normativo, v.
CASTANHEIRA NEVES, O instituto dos «Assentos» e a função jurídica dos supremos tribunais,
Coimbra 1983, 443 e ss.

4.2. Mas então uma abordagem que — se abstrairmos da reciprocidade selectiva destas
interferências para a levar a sério como uma concepção de direito — se preocupa com
o problema da identidade e da autonomia do jurídico (num contexto que as ameaça)...
na mesma medida em que renuncia a poder descobrir nessa autonomia uma
verdadeira «auto-subsistência de sentido»…

Decerto porque renuncia à possibilidade de procurar essa especificidade em


fundamentos e critérios materiais e na validade que os sustenta... mas também
porque recusa comprometer-se com a opção-aposta (antropológico-cultural) que
confere o sentido decisivo a esta validade.
Neste sentido, cfr. CASTANHEIRA NEVES, «O problema da autonomia do direito no actual
problema da juridicidade», cit.90-91(II) e 103 mas também Apontamentos complementares de
Teoria do Direito, cit., 66-71(δ)).
E ao ponto de nos oferecer uma tradução puramente funcional dos direitos do
Homem... que os descobre como «correlato da abertura ao futuro que se impõe
estruturalmente às modernas sociedades»...
Der Recht der Gesellschaft, 110-117(IX). V. também, ainda que numa abordagem
significativamente distinta, LADEUR, Postmoderne Rechtstheorie. Selbstreferenz —
Selbstorganisation — Prozeduralisierung, cit., 176 e ss («Zur Funktion der Grundrechte unter
Bedingungen gesteigerten Komplexität»)

O que significa partir de um ensemble diferenciado de comunicações …e da auto-


reflexão (autopoieticamente lograda) que no-lo impõe… para chegar à auto-especifi-
cação de um autêntico sistema imunizante… que subsiste enquanto afirma uma
procedimentalmente inconfundível redução da complexidade (capaz de tornar
equivalentes todas as dimensões materiais)…

Um sistema imunizante capaz de diminuir (de tornar toleráveis) os riscos


estruturais que «a improbabilidade da comunicação» cada vez mais nos impõe
(LUHMANN)... e não obstante também ocupado em assegurar a diversidade dos
contextos e o «politeísmo cultural»... ou estes como condições de um equilíbrio
auto-reflexivamente possível (TEUBNER, LADEUR).

Como se a última palavra fosse afinal a formulação tautológica de uma autonomia


(Recht ist,was das Recht als Recht bestimmt)... ou mais rigorosamente a especificação
que (convocando a autodeterminação temporal ) converte tal formulação num paradoxo
(Die zweiwertige Codierung benötigt mehr als zwei Werte)..

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