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E se Fish tivesse razão?

De acordo com a compreensão do Autor de Doing What Comes Naturally (1989), as


práticas juridicamente relevantes (como quaisquer outras práticas) distribuem-se por
experiências colectivas auto-subsistentes e pelos critérios (mais ou menos explícitos) de
«correcção profissional» que as distinguem, estabilizando-se assim em torno de
projectos interpretativos e das «rotinas» que estes institucionalizam. Poderíamos neste
sentido falar da comunidade interpretativa dos juízes e das situações institucionais que
a autonomizam, distinguindo-a das comunidades interpretativas dos advogados, dos
juristas académicos (dogmáticos ou metadogmáticos), dos não juristas, etc, etc. Sendo
certo que por comunidade interpretativa se entende assim um conjunto dinâmico de
referentes (cânones, códigos linguísticos  e extralinguísticos, projectos de realização,
materiais canónicos, processos de textualização-retextualização, intenções de leitura,
canais expressivos, representação de auditórios), em permanente reformulação (as if
ploughing  over the same ground in ever deeper furrows), com uma capacidade decisiva
de assimilação-conversão de padrões exteriores. Toda e qualquer tentativa de reflexão
metodológica com uma intenção prescritiva ou crítica estaria condenada à
improdutividade de um cálculo teorético, dominado por exigências e códigos
discursivos estranhos à prática em que pretende intervir. O que eventualmente se
poderia admitir —desde que fossem respeitados os limites de uma «intensificação da
atenção» puramente interna (as a heightened degree of attention while performing in
the practice) — seria afinal uma análise explicitante rigorosamente imanente, capaz de
respeitar o dito doing what comes naturally e de evitar qualquer suspensão
distanciante[«Insofar as one is ever critically reflective, one is critically reflective within
the routines of a practice. (…) What most people want from critical reflectiveness is
precisely a distance on the practice rather than what we might call a heightened degree
of attention while performing in the practice. (…) Insofar as critical self-consciousness
is a possible human achievement, it requires no special ability and cannot be cultivated
as an independent value apart from particular situations: it’s simply being normally
reflective. It’s not an abnormal, special – that is, theoretical - capacity…» [«Fish Tales:
A Conversation with “The Contemporary Sophist”» (entrevista concedida por FISH a
Gary OLSON)“, JAC Online (12-02-
1992), http://www.cas.usf.edu/JAC/122/olson.html(extraído em 11-04-2003)]. [«[An]
increasing divergence in canon construction among (…) sociolegal (…) groups may be
a sympton of an increasing differentiation in purposes among academics, lawyers, and
judges (in addition to the professional differentiation that has always existed between
lawyers and citizens). Each interpretative community may have its own canon (or set of
canons), and although these canons surely overlap, they may also diverge in particular
respects…» (BALKIN/ LEVINSON, «Legal Canons: An Introduction», in BALKIN /
LEVINSON (ed.), Legal Canons, New York, 2000, p.11)].

Mesmo que esta reflexão se mostrasse concludente, ela não escaparia no entanto hoje a
uma outra dificuldade: a das ameaças que se dirigem à integridade destres grupos e
micro-grupos. Ameaças que comprometem a unidade dos sociolectos e dos
cânones profissionalmente mobilizáveis e a plausibilidade das situações institucionais
que estes garantem (se não mesmo a clausura que sustenta os respectivos instrumentos
de persuasão e a relação com os auditórios que estes pressupõem), na mesma medida
em que fragmentam o projecto interpretativo e as finalidades que o iluminam: como se
tivesse deixado de fazer sentido falar por exemplo do modus operandi e dos
procedimentos canónicos que distinguem (em bloco) a comunidade (ou o grupo
semiótico) dos juízes…  e estivéssemos condenados a reconhecer (e a demarcar) os
territórios-projectos do juiz administrador (consagrado pelo Estado Providência) e do
juiz-«centro do sistema» (justificado pela reprocessualização pós-instrumental), do juiz
político do grande consenso constitucional (táctico comprometido com uma grande
estratégia material) e do juiz (ou juízes) da comunidade dos princípios, sem esquecer
decerto  aqueles que vinculam o julgador a um critério de maximização da riqueza ou
que o responsabilizam por uma estratégia política alternativa… mas também aqueles
que o incitam a convocar o exemplum da ética da alteridade (se não a mergulhar
num continuum «prático-poiético»). Esta situação de pluralidade radical (como
dimensão da crise do direito e do pensamento jurídico que hoje vivemos) torna a
reflexão crítica (ainda que reflexão crítica interna, como tal levada a sério como
verdadeira auto-reflexão) absolutamente indispensável…

    

I) Introdução.  O problema metodológico-jurídico. Normatividade jurídica e


metodologia jurídica – os termos e o significado de uma relação.

(a) A pergunta «de que modo?» [revisitando «O papel do jurista no nosso tempo» de
Castanheira Neves (Boletim da Faculdade de Direito XLIV, 1968, pp. 83-142)].

Revisitar «O papel do jurista no nosso tempo» incidindo no momento


da reconstrução (superadora da «dúvida») significa na verdade aceder à especificação
estruturante de uma interpelação-Erfragtes, interpelação matricial esta dirigida quer ao
«jurista» quer ao «direito»… e por agora distribuída por três grandes perguntas:
(1) a pergunta pelo «porquê?» que, ao referir-se ao fundamento, abre a possibilidade-
oportunidade do reencontro com uma ordem de validade e com esta enquanto «projecto
de ser» — manifestação decisiva do autotranscender interrogante de uma prática (e do
mundo que esta prática inventa) a cuja realização responsabilizante o homem-
pessoa (numa comunidade de pessoas) é constitutivamente chamado;

(2) a pergunta pelo «para quê» que, ao invocar o problema da função humano-social do
jurídico, nos expõe, no nosso tempo, à exigência de assumir «criticamente» (contra a
prepotência do poder) a realização histórico-concreta da «ideia de direito» (e desta
como «projecto comunitário») — com um «dizer não» à «lei injusta» que só a «função
judicial» e as «universitárias instituições da juridicidade» (levando a sério  os
«compromissos vitais» de uma autêntica «consciência ética», quando não o projecto
institucional de um Richterstaat ) estarão hoje em condições de garantir;

(3) a pergunta «de que modo?» que, last but not least, nos reconduz em pleno ao
problema metodológico da realização do direito e à exigência de reconhecer no «caso
concreto da vida» (na sua autonomia prático-normativa) o verdadeiro «prius metódico»
de um «fundamentado constituir» (este compreendido como unidade «noético-
normativa») — com a implicação decisiva de, no esquema metódico a desenvolver (e
com a reflexão metodológica a impor-se-nos já como núcleo gerador de uma
recompreensão da juridicidade, da sua racionalidade e do seu sentido), se excluir assim
a descontinuidade (normativisticamente sustentada) entre os momentos
da interpretação (em abstracto), da aplicação e da integração e de se reconhecer na
decisão jurídica concreta «uma nova»e irrepetível «síntese de juridicidade» (isto é, uma
«nova assimilação jurídico-judicativa da realidade», mobilizando «critérios normativos
que, embora referidos através da norma, transcendem na sua intenção e projecção
normativas a própria norma»).

[Confrontem-se estas perguntas («O papel do jurista do nosso tempo», pp. 84 e ss.) com
aquelas que (com uma distribuição temática distinta e uma outra radicalidade reflexiva)
se nos expõem na etapa final de A crise actual da filosofia do direito no contexto da
crise global da filosofia. Tópicos para a possibilidade de uma reflexiva
reabilitação (Coimbra, Coimbra Editora, 2003), pp. 145-147.]

(b) A dimensão da validade normativa e a dimensão metodológica como dois momentos


ou duas faces inseparáveis da emergência do jurídico (as quais «terão de considerar-se
conjuntamente e numa convergência integrante, convergência que exactamente se pode
dizer dialéctica») — uma dialéctica que exige uma mediação institucional adequada,
capaz de assumir em pleno a sua historicidade constitutiva (e a inserção no contexto
comunitário e societário) [Castanheira Neves, «O sentido actual da Metodologia
Jurídica» (1999), Boletim da Faculdade de Direito, volume comemorativo do 75º tomo,
2003, pp. 115-150].

(c) Metodologia jurídica e «conceito de direito»: a admitir-se que a reflexão


metodológica mobiliza como meta um concept of law (não é de modo algum necessário
que assim seja!), este não deverá nunca ser tratado como um conceito de classe, mas
como um conceito-arquétipo, iluminado por intenções ou exigências de sentido (se
não promessas ou desiderata).

 Conferir a este conceito a inteligibilidade de um «arquétipo» significa, com efeito,


desde logo, distingui-lo dos conceitos baseados na representação-delimitação de
uma classe (archetyp concepts versus class concepts): se os últimos exigem respostas de
tudo ou de nada  — tratar o conceito de direito como um class concept significa esperar
que este nos disponibilize um acervo fechado de características (que tenham de estar
preenchidas em bloco para se poder distinguir umaordem,  sistema ou decisão
juridicamente relevantes)! —, os arquétipos expõem-nos antes e em contrapartida a uma
experiência de aproximação em degraus, internamente diferenciadora das ordens,
sistemas ou decisões que vão ocupando esses degraus (something can constitute an
instance of law (…) by its approximation to the archetype (…) while nevertheless
falling short of full compliance with the requirements of that concept). Assim sendo,
poder-se-á dizer que o conceito-arquétipo que identifica a juridicidade está em
condições de se nos oferecer simultanea e incindivelmente como um «critério» de
demarcação (das «instâncias» sociais que contam como «jurídicas»)e como um «ideal
orientador» («por referência ao qual tais instâncias e as suas respostas possam
ser materialmente julgadas») [Nigel Simmonds, Law as a Moral Idea, Oxford, Oxford
University Press, 2007, pp. 53 e ss.]

(d) Metodologia (meta-odos-logos) ou metodonomologia (meta-odos-nomos-logos)? A


proposta de Fernando José Bronze.

 O neologismo metodonomologia permite-nos na verdade identificar uma reflexão


metodológica que, sem corresponder às pretensões de uma «metodologia jurídica
global», nos apareça rigorosamente concentrada no problema da realização jurisdicional
do direito. A formulação em causa, ao fazer convergir o significante nomos com os
outros três —já explícitos na formulação metodologia  (meta, odos, logos) — está
longe, com efeito, de se nos expor como uma referência neutra ao modus operandi do
julgador, antes identificando — com a ajuda insuspeita da interpretação de Hayek (e da
sua celebração da ordem espontânea do nomos…por oposição ao racionalismo
construtivo de um modelo de thesis) — uma certa concepção deste modus operandi,
precisamente aquela que lhe atribui a identidade de um  «decisório juízo concreto»  —
de tal modo que o significante escolhido possa em bloco (e na sua plenitude de sentido)
sintetizar «o caminho racionalizantemente percorrido pela reflexão judicativa para
que in concreto se realize a intenção prático-normativa (…) do direito» [«Breves
considerações sobre o estado da questão metodonomológica», BFD LXIX, pp. 177-
199].

 (e) A relação entre o logos e o método: os três grandes tipos intencionais (exterioridade


construtiva/ imanência constitutiva /reconstrução crítico-reflexiva) e a sua projecção
prático-cultural em momentos exemplares da história do pensamento jurídico europeu.

 Proposta de trabalho -- Ler, à luz das distinções invocadas, o seguinte excerto da


Introdução à Questão-de-facto—questão-de-direito (Coimbra, Almedina,
1967): «[E]mbora o nosso estudo tenha um sentido metodológico, nem por isso será a
descrição, e muito menos a prescrição, de um método, no seu significado comum, um
caminho que se traça de fora como um simples dever-ser, uma técnica ou um conjunto
de regras de correcto proceder, determinado pela teleologia de uma certa eficácia
procurada. É antes a auto-compreensão de algo — o Direito — que no modo por que
realiza o seu sentido específico já em si mesmo se releva como acto, como
o processo perscrutante (fundamentante) de um logos — algo que no seu próprio ser
é meta-odos-logos…»

 A importância da dialéctica entre um momento analítico-descritivo e um momento


normativo (prático-constitutivo) [ Castanheira Neves, Metodologia Jurídica, cit., pp. 14-
17]. A atenção a uma pragmática de pluralidade como dimensão do momento
normativo.

(f) O campo temático do problema metodológico: ainda a rejeição de uma «metodologia


jurídica global».

Alusão exemplar à convergência entre duas propostas oponentes: a


do formalismo normativista (a pureza jurídica da norma e a pré-determinação em
abstracto das significações do direito, na sua universalidade racional) e a do
teleologismo tecnológico de Hans Albert  (a unidade metódica das decisões legislativa,
administrativa e judicial, baseada na planificação planificação auto-subsistente da
estratégia social e na especificidade da execução táctica).O confronto entre as
especificações de uma tese de continuidade e as defesas de uma tese de
descontinuidade.

O contraponto nomos («o direito da liberdade»)/thesis  («a lei do legislador»), tal como


este é assumido por Friedrich Hayek (1899-1992): a representação de uma ordem
espontânea, referida a critérios implícitos, capaz de se manifestar numa espécie de
equilíbrio «natural» de expectativas, com uma dinâmica de crescimento paulatino e com
transformações que nunca se impõem como rupturas, ordem esta atribuída
exemplarmente ao English Common Law ou a uma etapa deste e assim mesmo ligada ao
«ideal da liberdade individual» (law as nomos); o contraponto com a experiência de
uma ordem racionalmente construída , auto-subsistentente prescrita por uma autoridade-
potestas, com uma intenção de transformação que passa pela possibilidade da ruptura
radical (law as thesis) [O thesist camp (na sua intenção de substituir o nomos)
representado pelos contributos exemplares de Hobbes, Bentham e Austin].  Alguma
reflexão crítica sobre este contraponto, mostrando até que ponto este se mantém
vinculado a uma concepção a-culturalmente moderna do direito (o
próprio nomos envolve uma inteligibilidade abstracta, a qual encontra na liberdade do
«mercado» o seu modelo!). A necessidade-exigência de distinguir deste nomos aquele
que a perspectiva jurisprudencialista mobiliza quando identifica a jurisdictio (e
reconhece no direito-jus uma ordem de validade).

(g) O objecto intencional e o sentido problemático: ainda o juízo-julgamento. 

 
 

Elementos de estudo:

Castanheira Neves, Metodologia Jurídica, cit., pp. 9-34

Fernando Bronze, Metodologia do Direito, cit., pp. 46-51 (2,3 e 2.4.), 78-111

Ver ainda o apêndice (nos Materiais - repositório ) «E se Fish tivesse razão?»

Nos mesmos materiais encontram também os power points que apoiaram a aula

Leitura complementar:

C NEVES  Entre o «legislador», a «sociedade» e o «juiz» ou entre «sistema», «função»


e «problema» - os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do
direito BFD 74 (1998), p. 1-44 (disponível em
https://www.uc.pt/fduc/corpo_docente/galeria_retratos/castanheira_neves/pdf/
doutrina_LXXIV_1998.pdf)

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