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ASPECTOS BÁSICOS DAS LESÕES


DE NERVOS PERIFÉRICOS

Fernando Henrique Morais de Souza


Silvya Nery Bernardino
Flávio Leitão Filho

INTRODUÇÃO recuperação sensitiva-motora normal. 18·28 Portanto, no-


vas estratégias são necessárias para potencializar simul-
Lesões de nervos periféricos podem resultar em uma taneamente a regeneração axonal, a reinervação seletiva
perda funcional significativa, assim como em piora da do órgão-alvo e a modulação da reorganização central. 19
qualidade de vida com graves consequências sociais pela Neste capítulo, discutiremos os mecanismos envol-
necessidade constante de cuidados e pela incapacidade vidos na lesão e regeneração, a fisiopatologia e a classifi-
laborativa permanente desses pacientes. 15,22,25 cação das lesões traumáticas de nervos periféricos, deta-
Após a lesão de um nervo, a capacidade de regene- lhando as alterações clínicas e eletrofisiológicas, além do
ração e recuperação funcional é diretamente relaciona- comportamento celular durante a lesão e a regeneração.
da a idade, nervo comprometido, local e tipo de lesão,
distância entre a lesão e músculo inervado, tempo entre FISIOPATOLOGIA
a lesão e o reparo cirúrgico e técnica operatória.24 Três
mecanismos podem compensar os déficits funcionais Mecanismos envolvidos na lesão e regeneração
causados pela lesão: reinervação por regeneração dos
axônios lesados, reinervação por ramificação de axônios A fim de tornar didática a descrição dos mecanis-
normais presentes na proximidade da lesão e remodela- mos envolvidos na regeneração do nervo periférico, as
ção das redes neuronais relacionadas às funções perdi- alterações serão descritas em cinco locais: corpo celular,
das. 22 A integração entre o sistema nervoso central e o axônio proximal à lesão, local da lesão, axônio distal à
periférico é pronunciada após a lesão do nervo, quando lesão e órgão-alvo.9 É importante ressaltar que essas al-
há profunda modificação central e reorganização neu- terações ocorrem de forma concomitante após a lesão.
ronal.16 Conexões ao longo do sistema nervoso desem-
penham papel importante na regulação da expressão de Alterações presentes no corpo celular
características neuronais adequadas, incluindo morfolo-
gia da arborização dendrítica e axonal, propriedades elé- Após a lesão de determinado nervo, o corpo do neu-
tricas da membrana e produção de neurotransmissores. rônio correspondente apresenta incremento de volume
Os mecanismos de plasticidade e reorganização dos cir- por aumento da atividade metabólica e pode ser identi-
cuitos espinhal e cerebral relacionados com o nervo peri- ficado 4 a 20 dias após o traumatismo. Essa atividade me-
férico lesado são complexos, podendo resultar em altera- tabólica aumentada reflete o aumento da síntese protei-
ções funcionais adaptativas benéficas ou, contrariamente, ca, cujos produtos serão transportados à periferia para
causar modificações inadequadas, originando sintomas promover a reparação axonal.
como dor, disestesias, hiper-reflexia e distonia, que com- Até seis horas após a lesão, o núcleo migra para a pe-
prometem o quadro clínico. riferia da célula e os corpúsculos de Nissl, retículo endo-
Apesar da existência desses mecanismos compensa- plasmático rugoso, não são mais identificados, pois há
tórios à lesão de nervo, evidências clínicas e experimen- dispersão dos ribossomos pelo axoplasma. Esse conjun-
tais mostram que a recuperação funcional nem sempre é to de transformações, ingurgitamento celular, desloca-
satisfatória, especialmente depois de lesões graves, e ain- mento do nucléolo para periferia e degeneração dos cor-
da não há nenhuma técnica de reparo que possa garantir púsculos de Nissl é denominado cromatólise (Figura 1).
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cias que os neurônios do sistema nervoso central têm a


capacidade de se regenerar em um ambiente periférico
e que os neurônios periféricos perdem essa capacidade
A quando colocados em um meio que simula o sistema
nervoso central.4

Alterações presentes no axônio proximal à lesão

Na região proximal à lesão são observadas modifi-


B cações na primeira hora após o traumatismo. O segmen-
Macrófago
to axonal proximal à lesão sofre um processo de degene-
..
i ração cuja intensidade é diretamente proporcional à
' •
- - i."i-;· o
o o ........
- •o •o
intensidade do traumatismo. Essa degeneração proximal
0 0
f# C5lii) ºe> o
o ..,.. pode ser mínima, limitada até o nódulo de Ranvier mais
e .. .
. = '""' ..
.t proximal ou pode se estender até o corpo celular. Se a
Célula de
Schwann
morte celular ocorrer, como na lesão de grave intensida-
Figura 1 Desenho esq uemát ico represent ando as modifica- de, todo o segmento proximal sofre degeneração e é fa-
ções q ue ocorrem após a lesão. (A) A fibra ne ural é constituída gocitado por mastócitos e pelas próprias células de Sch-
pe lo axônio e pelas cé lulas de Schwann. (B) Imediatamente wann. 21 Histologicamente, é possível observar redução
após a lesão, passam a ocorrer modificações no local da lesão
do segmento proximal do axônio e do diâmetro e da es-
e nas regiões proximal e distal a ela. (C) No corpo do neurônio,
as alt erações caract erizam o processo de cromatólise, que pessura da camada de mielina, entre o décimo e o vigé-
consist e no ingurgitamento celular, no deslocam ento do nu- simo dia após a lesão.6•9
cléolo para periferia e na degeneração da subst ância de Nissl.
Essas alterações refletem o increment o da síntese de prot eínas
envolvidas na regeneração axonal. Na região distal, as alterações Alterações presentes no local da lesão
caracterizam a degeneração wal leriana que inclui a fagocitose
de fragment os de m ielina e membrana axonal pelos macrófagos O processo de regeneração do nervo é complexo e
e células de Schwann. envolve diferentes etapas bioquímicas e celulares. No lo-
cal da lesão duas estruturas podem se reconstituir após
a ocorrência dela: a bainha de mielina e o axônio. A re-
Simultaneamente às alterações do corpo celular, há composição da bainha de mielina, denominada remieli-
resposta proliferativa perineuronal de células gliais, pro- nização, pode ocorrer como um processo isolado quan-
cesso sinalizado por meio de produtos liberados duran- do a neuropraxia é o tipo de lesão predominante. A
te a cromatólise. remielinização ocorre também ao longo dos axônios em
Os seguintes fatores têm influência sobre a resposta regeneração distal à área da lesão e demora, geralmente,
do corpo do neurônio:6 de 2 a 12 semanas. Apesar de ser um processo altamen-
te eficaz, a mielina formada nunca é da mesma qualida-
• Intensidade da agressão traumática: quanto mais de em relação àquela presente anterior ao traumatismo,
intensa a lesão, maior é a degeneração retrógrada, que é o que tem repercussões sobre a condução nervosa, que
a causa da morte celular. será mais lenta depois do reparo cirúrgico.30
• Proximidade entre a interrupção do axônio e o Processos intracelulares que promovem a reparação
corpo do neurônio: quanto mais próxima a lesão do cor- e regeneração são ativados imediatamente após a lesão. 10
po neuronal, mais provável será a morte celular. Nas lesões em que a continuidade dos axônios é inter-
• Volume do neurônio: neurônios mais volumosos rompida, parcial ou totalmente, a partir da extremidade
toleram melhor a agressão. do coto proximal surgem protuberâncias denominadas
• Idade do doente: em crianças há maior potencial brotos axonais. Esses brotos se expandem com o acúmu-
de regeneração axonal em comparação com os adultos e lo de mitocôndrias e vesículas e passam a ser denomina-
a distância entre os neurônios medulares e os órgãos ter- dos cones de crescimento. No local da lesão são origina-
minais é mais curta. dos milhares de cones de crescimento, considerados como
a extremidade de axônios que progridem em direção à
Após lesão do nervo, até 20 a 50% dos corpos celu- extremidade distal do nervo. Os cones de crescimento
lares do gânglio da raiz dorsal apresentam morte celular, originam extensões digitiformes denominadas filópodes,
que ocorre pelo processo de apoptose. Existem evidên- que, através da interação entre proteínas de superfície e
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substâncias sinalizadoras presentes no local da lesão, são a interleucina-6 (IL-6) e fator transformador de cresci-
direcionadss ao coto distal por meio da ativação de fila- mento beta-1 que se relacionaram com maior crescimen-
mentos de actina.7•1º Após estabelecer interações mole- to axonal durante a regeneração. 22 Diversas outras subs-
culares, o cone adere à lâmina basal da célula de Sch- tâncias participam do processo de degeneração e
wann e a usa como um guia em direção distal. regeneração. As caderinas são moléculas de adesão pro-
A progressão axonal ocorre numa velocidade de 1 a teica dependentes de cálcio, cuja atividade é relacionada
3 mm por dia e, dependendo do nervo considerado, pode à neurogênese. Entre os diversos subtipos descritos, a N -
demorar até 18 meses para se completar.30 A taxa de cres- -caderina é a que está relacionada à regeneração de ner-
cimento axonal é maior em crianças e jovens e, após o vos, pois promove o crescimento de novos brotos de axô-
reparo cirúrgico, ela é mais lenta em comparação com a nios por meio da adesão entre axônio e células de
regeneração espontânea.6 Schwann. Derivados do ácido araquidônico, como pros-
Conforme previamente mencionado, a regeneração taglandinas e leucotrienos, também atuam no processo
ocorre somente se houver preservação do corpo celular, de regeneração.
localizado no corno anterior da medula e no gânglio da Diversas estratégias e substâncias foram estud.a das,
raiz dorsal quando considerados os axônios motores e especialmente em nível experimental, para incrementar
os sensoriais, respectivamente. Inúmeros estudos de- a regeneração axonal, como imunossupressores, oxigê-
monstram que várias moléculas tróficas, como o fator de nio hiperbárico, hormônios, exercício, ultrassom e laser
crescimento neural, o fator neurotrófico derivado do cé- de baixa potência.2 •13•32 Apesar de alguns resultados ani-
rebro e outros fatores liberados pelas células de Schwann, madores, a utilização prática dessas terapêuticas ainda
influenciam a sobrevivência celular após lesão. 14•33•34 não é factível em humanos.
As células de Schwann desempenham um papel fun-
damental na regeneração, aumentando a síntese de mo- Alterações presentes distais à lesão
léculas de adesão na superfície celular e proteínas da ma-
triz extracelular, como a laminina e a fibronectina. 7 Essas Ocorrendo a secção do nervo e seus axônios há in-
duas substâncias têm papel significativo no processo de terrupção do fluxo axoplasmático e o axônio e a bainha
regeneração e estão implicadas na orientação da progres- de mielina começam a fragmentar-se concomitantemen-
são dos cones de crescimento axonais. Dentro de pou- te à proliferação de células de Schwann. O processo de
cos dias após a lesão, as células de Schwann começam a degeneração axonal distal à lesão é denominado dege-
se dividir e alteram o seu fenótipo, passando a expressar neração walleriana (Figura 1). 31 Esse processo se inicia
produtos de células de Schwann imaturas ou pré-mieli- nos primeiros minutos após a lesão e, após as primeiras
nizadas. Sem contato com o axônio, essas células produ- 24 horas, essa degeneração já é evidente. A rapidez com
zem proteínas como PMP22, PO e conexina 32, funda- que a degeneração se instala é diretamente proporcional
mentais no processo de remielinização e reparo axonal. 3 à intensidade da lesão. Durante a degeneração walleria-
Essas células de Schwann não diferenciadas regulam a na, ocorrerá disfunção da barreira hematonervosa, reor-
expressão de fatores neurotróficos, citosinas e outros ganização endoneural e um intenso processo inflamatório.
compostos que levam a própria célula de Schwann à di- Nesse processo, os microtúbulos e os neurofilamentos
ferenciação. Os fatores neurotróficos interagem com re- do axônio se desorganizam e desaparecem em aproxi-
ceptores de membrana tirosina-quinase, desencadean- madamente duas semanas, ao mesmo tempo em que há
do numerosas reações bioquímicas intracelulares que degeneração da mielina, que termina por se fragmentar. 8
culminam com a ativação de genes específicos. A ativi- As células de Schwann alteram o seu fenótipo e a expres-
dade dos fatores neurotróficos é também mediada por são de receptores, tornando-se células metabolicamente
outras células durante o processo de regeneração. Ma- ativas. Essas células proliferam e participam da fagoci-
crófagos, por exemplo, migram para o coto distal por tose de fragmentos do axônio e mielina, cuja presença é
meio da ação da interleucina-1 (IL- 1), induzindo aumen- inibitória para o crescimento axonal. Essa atividade fa-
to na transcrição de fator neurotrófico neural e incre- gocitária, que persiste por cerca de três a seis semanas
mentando a densidade de receptores desse mesmo fator após a lesão, ocorre em associação com células inflama-
nas células de Schwann. tórias, principalmente macrófagos, que migram para o
As células inflamatórias e seus produtos também local da lesão.5
contribuem para a sobrevivência neuronal e regenera- Um fator crítico para a correta orientação dos axô-
ção axonal após a lesão. As citocinas desempenham um nios em crescimento é a distância entre os cotos proxi-
papel importante. Observou-se, depois de axonotomia mal e distal quando se considera a reconstrução com en-
experimental, uma maior expressão de compostos como xertos. Esse tipo de reparo usa enxertos livres, que são
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dependentes da vascularização, originada a partir de neo- destruição tecidual mais intensa e é associada a maior
formação vascular dos tecidos vizinhos. Quanto mais processo inflamatório.
longo for o enxerto, maiores são a isquemia e a forma- • As lesões de nervos causadas por projétil de arma
ção de tecido fibrocicatricial, que dificulta a progressão de fogo raramente causam lesão com laceração, mas são
dos axônios e resulta em regeneração ineficiente e aber- frequentemente associadas à transmissão de energia do
rante.7'12 projétil ou ao fenômeno de cavitação e, por conseguin-
te, não são submetidas à reparação imediata. Cerca de
Alterações presentes nos órgãos-alvos 90% das lesões nervosas periféricas associam-se com fra-
turas da extremidade superior, destacando a relação en-
A partir da terceira semana após a lesão, modifica- tre lesão de nervo radial e a fratura do úmero. Em 80%
ções ocorrem nas células musculares das unidades mo- das lesões de nervos periféricos associadas a fraturas há
toras correspondentes, que se iniciam e culminam com recuperação espontânea da função. Outros traumatis-
atrofia muscular de evolução progressiva. Os miócitos mos do sistema locomotor, que apresentam associações
reduzem de diâmetro, por conta da diminuição no nú- com lesões de nervos periféricos, são as luxações do jo-
mero e tamanho das miofibrilas, retraem e perdem pro- elho e a luxação posterior da articulação coxofemoral,
gressivamente a capacidade de contração. O processo em que há lesão de nervo em aproximadamente 18 e 13%
progressivo de degeneração muscular pode se estabili- dos casos, respectivamente.6
zar se a desnervação for incompleta. A reinervação es- • Isquemia: pode ser aguda ou crônica, como a que
pontânea, normal ou aberrante, e uma possível inerva- ocorre nas síndromes compressivas. Síndrome compar-
ção contralateral, em lesões do nervo facial, por exemplo, timental, edema muscular pós-traumatismo e tração po-
embora não sejam suficientes para execução da função dem contribuir para a ocorrência de isquemia. Na lesão
motora, podem manter o trofismo muscular. 1Com o pas- por tração o dano ocorre por estiramento do tecido ner-
sar do tempo e na ausência desse tipo de reinervação, os voso e, em última análise, dos axônios e dos vasos, com
miócitos se degeneram definitivamente e são substituí- consequente isquemia associada. Esse tipo de lesão é fre-
dos por fibrose ou gordura. Alterações fibróticas podem quente no traumatismo do plexo braquial.
ser detectadas no músculo já a partir da terceira sema- • Lesão química: é causada pelo contato com qual-
na após lesão. 17 Se o músculo não é reinervado, a fibro- quer substância neurotóxica em torno do nervo ou quan-
se progride gradualmente e substitui o músculo comple- do há injeção intraneural.
tamente dentro de cerca de dois anos. Assim, o atraso na • Lesão térmica: é causada pelo frio ou pelo calor.
reinervação no período de 12 a 18 meses pode resultar • Lesão por radiação.
em lesões atróficas musculares irreversíveis.6•17 A rege-
neração axonal não é sinônimo de retorno da função. A O dano causado por um dos agentes etiológicos men-
fibrose intramuscular pode limitar a eficiência de con- cionados dependerá principalmente do tempo e da in-
tração e a regeneração aberrante pode reduzir a sinergia tensidade. Assim, o dano de um nervo causado por com-
de contração e, consequentemente, mesmo quando a rei- pressão ocorrida em um curto período e de intensidade
nervação é bem-sucedida, a força muscular raramente pequena não será o mesmo dano de lesão causada por
retorna ao normal.27 compressão intensa por um período prolongado. Adi-
cionalmente, cada fibra nervosa (estrutura definida como
MECANISMOS E CLASSIFICAÇÃO DAS o axônio e sua bainha de mielina) é comprometida de
LESÕES DE NERVOS PERIFÉRICOS forma diferente. Assim, na compressão, por exemplo, ha-
verá acometimento inicial das fibras mielínicas de maior
Mecanismos da lesão calibre, com maior quantidade de mielina, e localizadas
na periferia, para depois ocorrer acometimento das fi-
A lesão do nervo pode ser causada por diversos me- bras de menor calibre e localizadas no centro do nervo.
canismos. Os principais mecanismos envolvidos estão
listados a seguir:5 Classificação

• Traumatismo: é uma das principais causas de le- Além dos prolongamentos das células nervosas, os
sões de nervos e pode ocasionar diversos tipos de com- nervos periféricos são compostos por grande quantida-
prometimento. Um deles é a secção traumática, que pode de de tecido conjuntivo que forma envoltórios denomi-
ser parcial ou total e é provocada por instrumento cor- nados epineuro, perineuro e endoneuro. O epineuro pode
tante ou cortocontuso. A laceração ocorre quando há ser dividido em epineuro externo, que delimita o nervo,
1096 Tratado de Neurocirurgia

e epineuro interno, que separa os fascículos ou grupos conta da compressão intrínseca ou extrínseca, de curta
de fascículos. O perineuro delimita o fascículo e o endo- duração e que provoca uma anóxia local nos neurônios
neuro constitui o tecido conjuntivo que envolve os axô- por compressão dos vasos sanguíneos. No local da lesão
nios dentro de um fascículo. Grupos de fibras neurais, a estrutura macroscópica do nervo está praticamente pre-
cada uma delas formada pela união do axônio com a cé- servad.a, mas, sob visão microscópica, há edema e, pos-
lula de Schwann, formam fascículos que se arranjam de teriormente, ocorre adelgaçamento da fibra nervosa e des-
forma reticular ao longo do nervo. A Figura 2 detalha as mielinização focal. A condução nervosa está preservada
principais divisões do nervo periférico. Por conta dessa
estrutura complexa, associada à grande variedade de for-
ças que podem atingir o nervo após traumatismo, a clas-
sificação das lesões nem sempre pode ser realizada cor-
retamente. Entretanto, quando a avaliação da lesão é
realizada de maneira precisa, pode-se estabelecer um
prognóstico em relação à evolução da lesão.9
As lesões dos nervos foram classificadas com base
na intensidade do comprometimento das estruturas do
nervo e das manifestações clínicas em três graus por Sed-
don (neuropraxia, axonotmese e neurotmese).26 Poste-
riormente, Sunderland classificou-as em cinco graus,
subdividindo a neurotmese em três graus (Tabela 1).27

Lesão de primeiro grau (neuropraxia)


Figura 2 Desenho esquemático demonstrando as principais
A neuropraxia ocorre pelo bloqueio da transmissão estruturas do nervo pe riférico. a: Ep ineuro; b: perineuro; c :
do impulso nervoso no local da lesão, geralmente por fascícu los; d: vasos sanguíneos.

Tabela 1 Classificação das lesões de nervos e suas correlações clínicas, patológicas e achados eletrofisiológicos21
Seddon Neuropraxia Axonotmese Neurotmese Neurotmese Neurotmese
Sunderland Tipo 1 Tipo li Tipo Ili Tipo IV Tipo V
Achados patológicos Continuidade Interrupção da Interrupção da Interrupção da Divisão completa do
anatômica preservada continuidade axonal continuidade axonal e continuidade axonal do nervo
e desmielinização Ountamente com a do endoneuro endoneuro e do

seletiva na zona de bainha de mielina) penneuro
lesão
Degeneração walleriana Não Sim Sim Sim Sim
Déficit motor Completo Completo Completo Completo Completo
Déficit sensitivo Parcialmente afetado Completo Completo Completo Completo
Déficit autonômico Maior parte das Completo Completo Completo Completo
funções poupadas
Atrofia muscular Discreta Progressiva com o Progressiva com o Progressiva com o Progressiva com o
tempo tempo tempo tempo
Sinal de Tinel Ausente Presente Presente Presente Presente
Alterações Condução normal Ausência de condução Ausência de condução Ausência de condução Ausência de condução
neurofisiológicas proximal e distal à lesão distal ao local da lesão distal ao local da lesão distal ao local da lesão distal ao local da lesão
Sem condução no local Ondas de fibrilação Ondas de fibrilação Ondas de fibrilação Ondas de fibrilação
da lesão presentes presentes presentes presentes
Ausência de ondas de
fibrilação
Recuperação espontânea Completa Completa Variável Não Não
Cirurgia Não Não Possível Sim Sim
Taxa de recuperação Dias (até 3 meses) Lenta e dependente do Lenta e dependente do Apenas após cirurgia Apenas após cirurgia
crescimento axonal crescimento axonal na dependência da taxa na dependência da taxa
(1 ,0 mm/dia) (1 ,0 mm/dia) de crescimento axonal de crescimento axonal
(1 ,0 mm/dia) (1 ,O mm/dia)
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proximal e distal ao local da lesão e não há degeneração compressão mais intensa ou mais prolongada das arte-
walleriana, o que possibilita obter resposta muscular a es- ríolas e da drenagem venosa neural, que causa um au-
tímulo elétrico aplicado distalmente ao local da lesão. O mento da pressão intraneural suficiente para bloquear
bloqueio à condução do estímulo pode ser parcial ou com- completamente a passagem dos influxos de nutrientes
pleto e, em função disso, poderá ocorrer uma resposta di- através do axoplasma. Esse fenômeno desencadeia o pro-
minuída ou não ocorrer resposta motora à estimulação cesso degenerativo do axônio (axonotmese) e da bainha
proximal à lesão. A função motora é mais comprometi- de mielina com preservação do tubo endoneural, o ar-
da que a sensorial e, nesta, as sensibilidades conduzidas cabouço de sustentação da fibra neural. Nessa situação
por fibras mais grossas (propriocepção e tato) são mais não se observa resposta muscular à estimulação do seg-
atingidas que as conduzidas por fibras mais finas (dor e mento do nervo proximal à lesão, mas a estimulação do
temperatura), corroborando o comprometimento local segmento distal pode provocar resposta motora por al-
da bainha de mielina. Uma vez removido o processo com- guns dias, após os quais desaparece.
pressivo, há remielinização e a condução nervosa reapa- O quadro clínico é de uma paralisia sensitivo-moto-
rece em curto período de tempo, em torno de seis sema- ra completa. Na fase aguda há quadro eletrofisiológico
nas, resultando em recuperação completa da função. I 7 semelhante ao da neuropraxia, denominado pseudoblo-
Nos estudos eletrofisiológicos, a avaliação da neuro- queio de condução. Entretanto, após o quinto dia de le-
condução sensitiva (NCS) revela redução da velocidade são, os potenciais motores e sensoriais se tomam anor-
de condução sensitiva, da amplitude, dispersão tempo- mais distalmente à lesão. Após a segunda semana,
ral e a neurocondução motora (NCM) pode demonstrar potenciais de desnervação passam a ser identificados em
redução da velocidade de condução motora, bloqueio de grande quantidade. Por causa da redução do calibre axo-
condução ou dispersão temporal. Tanto a condução sen- nal, a velocidade de condução está diminuída no segmento
sitiva como a motora distais à lesão podem estar nor- proximal à lesão. A eletromiografia mostra potenciais de
mais. A eletromiografia (EMG) mostra a atividade de in- desnervação com fibrilações que são detectados duas ou
serção normal, confirmando que não há desnervação três semanas após a lesão. Os potenciais de inserção de-
pela ausência de fibrilações e ondas agudas positivas e a saparecem e não há potenciais de ação à tentativa de con-
tentativa de movimentos voluntários pode desencadear tração voluntária. Qu.a ndo a regeneração se inicia, a am-
diminuição do recrutamento dos potenciais de unidade plitude dos potenciais de ação motores aumenta e
motora. 23 potenciais de reinervação ou potenciais nascentes (po-
Em alguns casos, a lesão é mista (neuropraxia e axo- tenciais de unidade motora polifásicos e de pequena am-
notmese), ou seja, algum grau de degeneração axonal plitude) podem ser observados na EMG de agulha com
acompanha a desmielinização segmentar e o diagnósti- contração voluntária. II
co eletrofisiológico pode ser mais difícil. Potenciais de A regeneração axonal e a restituição da bainha de mie-
desnervação são observados com frequência na EMG e lina ocorrem se a compressão for removida, permitindo
fibrilações podem ser observadas em pequena quantida- recuperação espontânea da função. O processo de regene-
de e são devidas à axonotmese associada de algumas fi- ração demanda período de tempo variável com duração
bras. de semanas a meses, dependendo principalmente da dis-
Alguns exemplos típicos de neuropraxia são as pa- tância a ser percorrida pelo axônio entre o local da lesão e
ralisias parciais do nervo fibular que ocorrem após pos- o órgão efetor, além de outros fatores, como a idade do pa-
tura prolongada com as pernas cruzadas, as paralisias do ciente. Uma vez que os tubos endoneurais estão preserva-
cordão posterior do plexo braquial ou do nervo radial dos, a regeneração de cada axônio deverá ocorrer dentro
resultantes do apoio prolongado da cabeça sobre o en- do seu respectivo tubo, garantindo a reinervação das es-
costo de uma cadeira (paralisia do sábado à noite) e a pa- truturas dentro do padrão original, com recuperação com-
ralisia do nervo interósseo posterior por compressão ao pleta ou quase completa da função. 27 Os principais exem-
dormir com a cabeça apoiada sobre o antebraço. 17 plos desse tipo de lesão são as lesões secundárias às fraturas
ósseas, mononeuropatias compressivas crônicas e neuro-
Lesão de segundo grau (axonotmese) patias secundárias à tração. A recuperação é mais demo-
rada em relação à que ocorre na neuropraxia.29
A axonotmese caracteriza-se pela presença de dege-
neração walleriana distalmente ao local da lesão e, em Lesões de terceiro a quinto graus (neurotmese)
pequena extensão, proximal à lesão, com adelgaçamen-
to dos axônios pela distância de alguns centímetros a Neste grupo estão incluídas as lesões em que há al-
partir da lesão. Geralmente a axonotmese ocorre por gum comprometimento da estrutura de sustentação con-
1098 Tratado de Neurocirurgia

juntiva do nervo que, associada à lesão axonal, caracte- mente, duas semanas. Nenhuma melhora da condução
riza o quadro de neurotmese. As lesões com aparente nervosa motora ou potencial de reinervação podem ser
continuidade do tronco nervoso, mas com comprome- observados na EMG realizada algumas semanas ou me-
timento total dos elementos neurais, ocorrem com fre- ses após o trauma e, portanto, é impossível distinguir
quência semelhante em relação às transecções. axonotmese de neurotmese nas primeiras semanas após
A lesão de terceiro grau ocorre no interior do fascí- a lesão. Quando a regeneração começa a ocorrer na axo-
culo e inclui também a lesão do tubo endoneural. A le- notmese, observa-se melhora da amplitude dos poten-
são de quarto grau ocorre quando o fascículo é gravemen- ciais motores e o surgimento dos potenciais de reinerva-
te comprometido ou seccionado, com ruptura do ção. Na neurotmese, no entanto, nenhuma reinervação
perineuro, e a lesão de quinto grau se caracteriza pela rup- é observada, pois não há continuidade das fibras lesadas.
tura completa do nervo, incluindo o epineuro.27•29 De uma Alguma recuperação espontânea pode ocorrer apenas
forma geral, nessas lesões, em consequência do compro- quando a lesão é de terceiro grau e há proximidade dos
metimento do arcabouço conjuntivo de sustentação, ocor- cotos dos tubos endoneurais comprometidos. Mesmo as-
re a perda da continuidade das fibras nervosas. A reação sim, a recuperação funcional nem sempre é satisfatória
inflamatória ao trauma provoca a formação de tecido ci- em decorrência da possibilidade de desalinhamento en-
catricial no interior do fascículo ou do nervo, o que difi- tre as fibras em regeneração e seus respectivos cotos nos
culta a regeneração axonal. Nas lesões de terceiro grau os tubos distais. Nas lesões de quarto e quinto graus não
axônios podem entrar em tubo endoneural que leva a ocorre regeneração por conta da perda de continuidade
uma terminação aferente ou músculo diferentes dos ha- dos fascículos ou do próprio tronco nervoso. 11
bituais ou, ainda, a diferentes músculos ao invés de um
único. Dessa forma, sempre que o tubo endoneural for REFER:SNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
comprometido, a regeneração poderá ser errática. 1 A con-
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sequência desse fato é a perda da função do nervo e um ralysis. Webmed Central Ophthalmology 2011; 2: WMCOO 1856.
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na neurotmese são semelhantes àqueles observados na 15. Jaquet JB, Luijsterburg AJ, Kalmijn S, Kuypers PD, Hofman
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vidade espontânea anormal ocorre após, aproximada-

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