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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Eliane Knorr de Carvalho

Canibalismo e normalização

Mestrado em Ciências Sociais

Dissertação apresentada à Banca


Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de
MESTRE em Ciências Sociais, sob a
orientação da Profa. Dra. Dorothea
Voegeli Passetti.

SÃO PAULO

2008
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Resumo

O canibalismo é uma invenção ocidental. Aplicado às sociedades indígenas ele

se expressa de diferentes maneiras de acordo com cada sociedade, local, tempo e

circunstância. Entre os ameríndios nos séculos XVI e XVII, estas práticas poderiam ser

reconhecidas entre os rituais guerreiros e funerários. Mas a antropofagia entre esses

índios também foi usada pelos colonizadores europeus como justificativa para a

aplicação de medidas preventivas, punitivas e técnicas de sujeição.

Nas sociedades ocidentais, o canibalismo é compreendido em circunstâncias

distintas. Os casos extremos, em que ele é o último recurso de sobrevivência,

atualmente é a única forma aceitável desta prática nestas sociedades. O canibalismo

enquanto tática de terror agrega todas estas outras formas de canibalismo. O que está em

jogo nesta circunstância não são os fatos propriamente ditos, mas o efeito do

canibalismo no discurso. A terceira circunstância analisada nesta dissertação é o

canibalismo enquadrado na categoria de crime sem razão. Categoria que serve de

justificativa para o saber psiquiátrico, e justifica a aplicação deste saber. Entre esses

chamados crimes sem razão, emerge – juntamente com novas técnicas e dispositivos de

poder próprios de uma sociedade de controle – uma outra possibilidade de canibalismo

na sociedade ocidental, um canibalismo em que a chamada vítima é voluntária.

Procuramos perceber a existência do canibalismo através de uma análise

discursiva, com base na proposta de Michel Foucault. Utilizamos como ferramenta de

análise, noções e conceitos de alguns autores, especialmente de Claude Lévi-Strauss,

Michel Foucault e Gilles Deleuze.

Palavras-chave: Canibalismo, normalização, sociedade de controle.


Abstract

Cannibalism is a Western invention. It is applied to indigenous groups and is

expressed in different ways according to each society, place, time and context. Among

Amerindians in the 16th and 17th centuries, these practices could be identified in warrior

and death rites. However, anthropophagy among the indigenous people was also used

by the European colonizers as a justification for applying preventive and punitive

measures and technologies of subjection.

In Western societies, cannibalism is understood in different contexts. Extreme

situations, in which cannibalism is the last resource for survival, are currently the only

acceptable circumstances for the practice. Cannibalism as a tactic of terror gathers all

these other circumstances. Instead of the facts, the effects of cannibalism in the

discourse are at stake. The third case analyzed in this dissertation is cannibalism as a

crime without a reason, which serves as justification for the psychiatric knowledge and

justifies its application. Along with new power technologies of the society of control,

and among the so-called crimes without a reason, another possibility of cannibalism in

Western society emerges: a cannibalism in which the victim is volunteer.

The research seeks to identify the existence of cannibalism through an analysis

of discourse, based on Michel Foucault’s propositions. It uses as analytical tool the

notions and concepts of a few authors, namely Claude Lévi-Strauss, Michel Foucault e

Gilles Deleuze.

Key words: Cannibalism, normalization, society of control.


Agradecimentos

Gostaria de agradecer ao CNPq pela bolsa. Ao Programa de Estudos Pós-

Graduado em Ciências Sociais da PUC-SP e seus funcionários.

Ao Alexandre Henz e à Carmen Junqueira, pela leitura cuidadosa e

apontamentos valiosos na qualificação.

À querida Dodi, pela orientação, pelas conversas, pelo apoio, pela paciência,

pela delicadeza, pelo cuidado, e experiências culinárias incomparáveis.

Ao Nu-Sol pelas anarquias, conversas, discussões, pelas pesquisas, pelo

trabalho. Ao Gus, Cabelo, Maurício, Edsinho, pela preocupação e ajuda no que foi

preciso. À atenção especial e preciosa de Salete (preciosíssima), Acácio, Lúcia, Thiago,

André, Bia e Parafuso. Ao Edson pelo cuidado, paciência e estimulo. À Juliana, ao

Bruno, à Natalia, ao Nildo, à Ana, ao Gabriel. Às bombas de chocolate, merengues de

morango, rabadas, sopas de insurgentes, cafés na madrugada, e conversas e companhias

suculentas.

Mais uma vez ao Edson, Acácio, Gus, Cabelo, Bruno, Bia, André, Salete, Nildo

e PH, pela experiência única e deliciosa da aula-teatro Foucault.

Ao amigo André Berger, sempre atento.

À amiga Giovanna, sempre na mesma sintonia.

À Mary, pelo cuidado e carinho, Ao Francisco pela preocupação e incentivo, a

Ana Cristina pela atenção e preocupação. Aos meus irmãos e irmãs: Leon, João,

Giovanna e Paola, e também à Mari pelo carinho, companhia, conversas e bagunça.

À Juju, pela atenção e cuidado.

Aos de Recife, Tânia em especial, sempre atentos, preocupados e interessados.

Aos anarquistas, aos guerreiros e aos amigos.


Lista de figuras e tabelas

Figura 1. Dois chefes Tupinambá com o corpo adornado por plumas 27

Figura 2. Índios Tupinambá guerreiros 27

Figura 3. Gravura de Theodore de Bry 28

Figura 4. Moquém funerário wari’ 35

Figura 5. Search for a young boy 100

Figura 6. Bernd Jürgen Brandes 102

Figura 7. Armin Meiwes 102

Figura 8. Re: looking for a man to eat me 114

Figura 9. Re: Extremmetager gesucht 115

Figura 10. Enquete 117

Tabela 1. Resultados da enquete 117


Sumário

Discursos sobre o canibalismo 9

Primeiro capítulo: Antropofagia e pacificação 17

antropofagia ritual 18

antropofagia guerreira e sociabilidade tupinambá 19

os guerreiros wari’ 30

antropofagia funerária: carne de Wari’ 32

pó de osso: a forma atenuada da antropofagia yanomâmi 38

os índios Guayaki e a sociabilidade funerária 39

comer e copular 40

crítica à sociedade ocidental 43

intervenções antropoêmicas: guerra contra os canibais 45

doutrinação das crianças 51

pacificação 53

etnocentrismo 54

Segundo capítulo: medidas contra o inconcebível 57

sinônimo de indesejável 57

o canibalismo em situações extremas 59

tática de terror 65

o tirano sanguinário e o povo bestial 69

medidas jurídicas e saber psiquiátrico 70

o crime sem razão 72

Dahmer: o mal inato 74


Gein: um problema edipiano 78

Fish: doença hereditária 82

a criminologia e seus desdobramentos 86

gradação dos conceitos: da psicopatia aos desvios saudáveis 90

Terceiro capítulo: controle e canibalismo voluntário 93

causas e fatores, uma mudança estratégica 93

fluxos, informação e controle 94

um novo perigo 97

fluxos e controle na internet 99

virtual, real e bidemensional 101

canibalismo voluntário (ou, um problema para a justiça penal) 106

o risco do contágio 110

participação e denúncia 114

o discurso jornalista e a verdade 118

a condenação insuficiente 122

voluntariedade 124

o corpo animal 125

Diferença e semelhança 128

Referências 134

Referências bibliográficas 134

Notícias 143

Filmes 151
Discursos sobre o canibalismo

Entre o final do século XV e ao longo do século XVI, viajantes da Europa

ocidental chegaram à América e estabeleceram os primeiros contatos, com os habitantes

das novas terras. Não foi necessário muito tempo para se perceber os diferentes

costumes dos ameríndios que andavam nus e que eram, em grande número, comedores

de gente.

Pierre Clastres (1995), ao buscar o significado da palavra canibal, percebe que

ela se origina no termo Karib, que se referia a alguns índios habitantes das Antilhas.

Karib significa “homem corajoso”. No entanto, afirma, por causa de costumes

guerreiros de consumir a carne dos inimigos, a palavra karib foi transformada pelos

espanhóis em canibal, atribuída então à prática destes índios nos rituais antropofágicos.

Nas sociedades modernas ocidentais, a palavra canibal é mais freqüentemente

associada à selvageria, barbárie e crueldade. No dicionário Aurélio da língua

portuguesa, canibal aparece sob a forma figurativa como “homem cruel, bárbaro feroz”,

e no Dictionnaire de l’Académie française, a palavra cannibale significa “personne

cruelle, dévoreuse, sanguinaire”. No dicionário Roget’s New Millennium Thesaurus,

foram encontrados, entre outros, os seguintes sinônimos para a palavra cannibal: brute,

bushman, cruel person, ogre, ogress, primitive, ruffian, savage, tribesman.

O termo também foi incorporado às ciências naturais com relação às práticas,

entre animais, células, constelações, etc., de devorar os da mesma espécie (ou os iguais).

Apesar do canibalismo ser usado como sinônimo de antropofagia, existe uma pequena,

mas importante, diferença. A antropofagia, do grego ánthropos, homem, e phagos,

comer, se refere a comedores de homem. O canibalismo, por outro lado é utilizado para

caracterizar aqueles que comem os da mesma espécie. No âmbito das ciências sociais o

9
termo mais usado para se referir às práticas de algumas sociedades ameríndias, é

antropofagia.

É preciso ter cuidado com a associação quase instantânea, que distingue os

costumes indígenas, ditos “selvagens”, “primitivos”, nos colocando imediatamente na

condição de “civilizados”. Como percebeu Dorothea Passetti “A palavra canibalismo

direciona a atenção para uma animalidade supostamente superada e quase extinta pela

nossa auto-domesticação. (...) Mas, mesmo nos distanciando idealmente da natureza, é

impossível esquecer que somos, apesar de tudo, seres de carne e osso” (2004a: 104).

Além do que, a palavra canibal surgiu entre os colonizadores europeus para qualificar

os índios (inimigos) por suas práticas antropofágicas.

Pierre Clastres demonstra ainda, a partir da sua experiência com os Guayaki, que

os próprios índios não chamam a si mesmos de canibais. Paulo Santilli, em seu artigo

intitulado “Trabalho escravo e brancos canibais” (2002), mostra que entre os Macuxi

existem narrativas originadas dos contatos entre índios e colonizadores que colocam os

brancos como canibais cruéis.

Além disso, o canibalismo não é uma característica exclusiva destes povos ditos

primitivos. Jean de Léry (1980), cronista francês que viveu no Brasil entre 1556 e 1558,

relata em seu livro Viagem à Terra do Brasil sobre os eventos que presenciou em Lyon

e Auxerre em 1572, considerados por este muito mais cruéis e atrozes em relação aos

costumes dos ameríndios. Segundo Léry, em nome do fundamentalismo católico,

vendia-se gordura humana e o coração assado das vítimas protestantes.

Dos acontecimentos mais recentes, é possível citar também os relatos das

práticas de canibalismo na segunda guerra, ou mesmo nos gulags da extinta URSS,

além dos casos particulares que se tem notícia durante todo o século XX.

10
Entretanto, estes rituais dentro do contexto indígena continuam a ser uma

importante referência sobre o tema do canibalismo. Afora isso, as práticas ameríndias

foram alvo de intervenções tanto por parte dos colonos europeus quanto dos jesuítas.

É fundamental que se compreenda que, embora a origem da palavra seja a

mesma para todas as circunstâncias, as diferentes perspectivas, culturas, espaços e

relações transformam o canibalismo em acontecimentos completamente distintos de

acordo com cada sociedade e ocasião.

Recentemente, o caso do alemão Armin Meiwes e seu companheiro Bernd

Jürgen Brandes proporcionou novas discussões acerca do canibalismo e dos rumos da

civilização ocidental por conter elementos inéditos, como o uso da internet em uma

forma voluntária de canibalismo.

A proposta deste trabalho é desvendar as técnicas e discursos normalizadores

que se constituíram a partir do canibalismo, e que depois – com o desenvolvimento da

psiquiatria e da medicina legal – voltaram a ser aplicados a ele, em especial com relação

ao caso do canibal Armin Meiwes uma vez que este explicita diversos elementos que

são característicos do momento que estamos vivendo agora, o de uma sociedade de

controle.

Desdobrando este objetivo, me propus também a refletir o que torna o

canibalismo tão insuportável nas sociedades ocidentais. No desenrolar da pesquisa,

ampliei a pergunta procurando entender de que forma o canibalismo foi construído, e de

que maneira ele é aplicado, para designar aquilo que é insuportável.

O que torna esta pesquisa relevante é a tentativa de compreender ao que nos leva

esta nova época e quais são estes novos mecanismos que, juntamente às práticas

anteriores, procuram capturar as resistências e perpetuar a domesticação do corpo. Mas

11
também, alertar para o cuidado com a naturalização de certos conceitos e práticas

utilizados nas sociedades ocidentais, que em sua reprodução nos fazem agentes da

perpetuação de nossa própria sujeição.

Michel Foucault (2004a) entende que em qualquer sociedade existem relações

de poder que se estabelecem e funcionam a partir da produção, acumulação, circulação

e funcionamento de um discurso. Estas relações podem se dar de maneiras distintas. Em

algumas sociedades ameríndias, por exemplo, como demonstra Pierre Clastres (2003), o

papel do chefe, longe de expressar qualquer autoridade, é tão somente o de lembrar a

todos as regras desta mesma sociedade, sem caber a ele julgar ou decidir qualquer coisa.

No entanto, a sociedade moderna ocidental, segundo Foucault, apresenta uma forma

diferenciada dentro dessas relações entre poder, direito e verdade. Para o autor, a

diferença estaria no fato de que, na chamada sociedade ocidental,

o poder não pára de nos interrogar, de indagar, registrar e


institucionalizar a busca da verdade, profissionaliza-a e a
recompensa. [...] Afinal, somos julgados, condenados, classificados,
obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de
viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem
consigo efeitos específicos do poder (2004b: 180).

O canibalismo é um conceito criado a partir da noção de certas práticas que, ao

menos a partir do século XVI, foram objeto de interferência por parte do direito, e fonte

de justificativa para a aplicação de técnicas e mecanismos de poder, além de base para

se estabelecer certos discursos de verdade.

Procurou-se fazer aqui, uma análise dos discursos que foram aplicados sobre as

práticas consideradas canibais, e dos discursos que emergem a partir destas práticas.

12
A noção de uma análise discursiva foi pensada através de uma arqueologia do

saber proposta por Michel Foucault. Segundo o autor,

trata-se de revelar as práticas discursivas em sua complexidade e em


sua densidade; mostrar que falar é fazer alguma coisa – algo
diferente de exprimir o que se pensa, de traduzir o que se sabe e,
também, de colocar em ação as estruturas de uma língua; mostrar
que somar um enunciado a uma série preexistente de enunciados é
fazer um gesto complicado e custoso que implica condições (e não
somente uma situação, um contexto, motivos) e que comporta regras
(diferente das regras lógicas e lingüísticas de construção); mostrar
que uma mudança, na ordem do discurso, não supõe “idéias novas”,
um pouco de invenção e criatividade, uma mentalidade diferente,
mas transformações em uma prática eventualmente nas que lhe são
próximas e em sua articulação comum. (FOUCAULT, 2005b: 234)

Desta forma, os autores e textos, aqui compreendidos, foram utilizados de três

maneiras: como fonte de informação, ferramenta de análise e objeto de análise.

As fontes de informação eram, ao mesmo tempo, ferramentas ou objetos de

análise.

Como ferramenta de análise, fiz uso dos conceitos e noções percebidos por

alguns autores da antropologia, da filosofia e da política, que tinham em comum uma

análise crítica das sociedades ocidentais através de uma percepção cotidiana das

relações de poder. Que enxergavam na sociabilidade a expressão dos efeitos de

dominação e sujeição, e observavam que os saberes, as regras e as práticas não são

homogêneas, que não existe uma visão geral e completa de mundo. Que compreendem

que os mundos são muitos, e que qualquer análise, qualquer percepção é perspectiva, e

que por isso não formulam teorias a serem aplicadas, mas sim análises interessadas.

Entre estes autores, as principais referências utilizadas aqui foram Lévi-Strauss, Michel

Foucault, Gilles Deleuze e Edson Passetti.

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Em uma primeira distinção com relação ao modo de operar de diferentes

sociedades fizemos uso de algumas noções de Lévi-Strauss – como a distinção entre

sociedades antropoêmicas e antropofágicas – e de Pierre Clastres – com relação à noção

das sociedades ocidentais como etnocidas.

Grande parte dos conceitos utilizados nesta pesquisa foram apropriados de

Michel Foucault e de suas análises com relação às técnicas, mecânicas e dispositivos

para o exercício de poder. O próprio conceito de normalização integra a análise de

Michel Foucault sobre as medidas disciplinares de governo que emergiram a partir do

século XVIII e tiveram seu auge no século XIX. Foucault utiliza o texto de Canguilhem

sobre O normal e o patológico para definir do que trata a normalização.

Segundo Foucault,

Neste texto, que trata da norma e da normalização, temos um certo


lote de idéias que me parecem histórica e metodologicamente
fecundas. De um lado, a referência a um processo geral de
normalização social, política e técnica que vemos se desenvolver no
século XVIII e que manifesta seus efeitos no domínio da educação,
com suas escolas normais; da medicina, com a organização
hospitalar; e também no domínio da produção industrial. E
poderíamos sem dúvida acrescentar: no domínio do exército. (...)
Vocês também vão encontrar, (...) a idéia (...) de que a norma não se
define absolutamente como uma lei natural, mas pelo papel de
exigência e de coerção que ela é capaz de exercer em relação aos
domínios a que se aplica. Por conseguinte, a norma é portadora de
uma pretensão ao poder. A norma não é simplesmente um princípio,
não é nem mesmo um princípio de inteligibilidade; é um elemento a
partir do qual certo exercício do poder se acha fundado e legitimado.
(...) a norma traz ao mesmo tempo um princípio de qualificação e um
princípio de correção. A norma não tem por função excluir, rejeitar.
Ao contrário, ela está sempre ligada a uma técnica positiva de
intervenção e de transformação, a espécie de poder normativo.
(FOUCAULT, 2002: 61 e 62)

Através da normalização, o que interessa para Foucault é pensar o exercício do

poder em sua positividade.

14
Mas, se a normalização é um dispositivo disciplinar, de que forma poderia se

falar da normalização em um período anterior ao que se entende por sociedade

disciplinar, e mesmo no que seria um período posterior, chamado de sociedade de

controle, onde a normalização daria lugar à outros dispositivos?

Em primeiro lugar, como será demonstrado nesta pesquisa, técnicas e

dispositivos de soberania, disciplina ou de controle, não são de forma alguma

excludentes. Segundo Edson Passetti (2003), elas são complementares no governo dos

corpos.

No decorrer deste trabalho, procuramos mostrar também, de que forma a

normalização, como apontara Foucault, já se insinuava através da aplicação da

pedagogia jesuítica, mas que também, esta era aplicada simultaneamente a outras

formas e exercícios de poder. Neste caso, os objetos de análise foram, principalmente,

as cartas jesuíticas e as crônicas de viajantes.

Com relação aos mecanismos que seriam de uma sociedade de controle –

conceito atribuído à Gilles Deleuze – a normalização não é descartada, mas

redimensionada. Segundo Edson Passetti, “a normalização atinge um outro ápice,

distinto daquele vivido na sociedade disciplinar” (PASSETTI, E., 2003: 263).

Desenvolvendo a noção de modulação apontada por Deleuze, E. Passetti percebe o

redimensionamento da normalização como uma espécie de normalização do normal.

Ao invés de moldes, com limites rígidos entre o normal e o anormal, a sociedade

de controle opera por modulações, cujos limites são mais flexíveis.

Os seres do planeta pensam e atuam segundo a elasticidade de


fronteiras, a vida correndo no limite, nesse instante, lugar e trajeto
inevitáveis em que se experimenta a dúvida, a incerteza. Contudo,
trava-se neste mesmo local a busca desesperada pela segurança de
viver sobre o que é móvel, exigindo o reconhecimento legal da
elasticidade, ou, como preferem os economistas, da flexibilidade. É
preciso legislar sobre a linha da fronteira, este local que escapa da
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materialidade, que é atravessado por fluxos, como vacúolos que nos
dizem onde estamos, como porto seguro e como turistas da
existência, que nos fazem divíduos divisíveis capturados nos diversos
fluxos. (PASSETTI, E.,2003: 266-267).

Os objetos de análise neste caso são, em sua maioria, as notícias de jornais, ou

artigos jornalísticos. A partir deles, procurei identificar os mecanismos disciplinares e

discursos normalizadores e as mudanças que apontavam em decorrência de mecanismos

de controle. Procurei demonstrar, ao final, de que forma, dentro das novas conjunturas o

canibal é capturado, neste fluxo normativo, e a maneira como o canibalismo continua

sendo aquilo que está no campo do inassimilável.

Os três movimentos da dissertação, a saber: 1) a emergência da noção de

canibalismo a partir dos rituais antropofágicos de alguns índios da América do Sul –

especialmente nos séculos XVI e XVII –; 2) o redimensionamento desta noção na

sociedade disciplinar e o investimento de um novo saber – o saber psiquiátrico –; e 3) os

redimensionamentos de prática e saberes, e novos problemas próprios de uma sociedade

de controle, foram desenvolvidos em cada um dos capítulos, respectivamente, a partir

destas análises e conceitos.

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Capítulo I: Antropofagia e pacificação

(...) Cunhambebe tinha à sua frente um grande cesto cheio

de carne humana. Comia uma perna, segurou-m’a diante

da boca e perguntou-me se também queria comer.

Respondi: “Um animal irracional não come um outro

parceiro, e um homem deve devorar um outro homem?”

Mordeu-a então e disse “Jauará ichê”. “Sou um jaguar.

Está gostoso”. Retirei-me dele, à vista disto. (Hans

Staden, 1988:132).

Ao refletir sobre os nossos costumes judiciários e sistema penitenciário, Claude

Lévi-Strauss opõe as sociedades antropofágicas às sociedades antropoêmicas (do grego

emein, “vomitar”). A primeira, como algumas sociedades ameríndias – entre elas os

Tupinambá –, “enxergam na absorção de certos indivíduos detentores de forças

tremendas o único meio de neutralizá-las, e até mesmo de se beneficiarem delas” (2000:

366). Diante do mesmo problema, as sociedades antropoêmicas, como as ocidentais,

“escolheram a solução inversa, que consiste em expulsar esses seres tremendos para

fora do corpo social” (ibidem).

A antropofagia é pensada, neste sentido, como sociabilidade, como modo de

operar de algumas sociedades. O encarceramento, a internação e o extermínio, são

formas que a nossa sociedade (antropoêmica) encontrou para lidar – em determinado

momento – com situações insuportáveis à sua ordem. Lévi-Strauss chama atenção, a

partir destas definições, para a possibilidade de outras maneiras de agir que não

impliquem no confinamento ou destruição do outro. Mas não é a prática literal da

antropofagia que define uma sociedade antropofágica ou antropoêmica, esta prática é

17
possível tanto em uma quanto na outra sociedade, ainda que de formas distintas.

antropofagia ritual

Nas sociedades antropofágicas ameríndias, a antropofagia se caracteriza por ser

parte de um ritual coletivo com significações sociais. Segundo Pierre Clastres, “Os

Tupi-Guarani, grandes canibaleiros, como diziam os cronistas franceses do séc. XVI,

massacravam e comiam em solenes cerimônias seus prisioneiros de guerra: eles não os

capturavam para repasto antropofágico” (1995: 230). O autor demonstra que os Guayaki

não escondiam seu gosto por carne humana, porém, não se comia alguém pela simples

vontade de comer carne, mas a partir de certas cerimônias.

Mesmo como ritual, entretanto, são diferentes as situações em que esta prática se

dá. A distinção mais comum à antropologia é entre as sociedades que praticam o

endocanibalismo, ou seja, consomem seus próprios mortos, e aquelas que praticam o

exocanibalismo, quando são os sujeitos exteriores ao grupo – inimigos – que serão

devorados no ritual antropofágico. Porém, tanto Clastres como Lévi-Strauss entendem

que esta distinção pode levar a erros se for aplicada como dois pólos excludentes.

“Entre essas formas extremas, surgem inúmeros tipos intermediários, e o contraste

inicial é abolido” (LÉVI-STRAUSS, 1986: 140).

Neste caso é possível perceber uma outra distinção através das circunstâncias em

que estas práticas ocorrem. Pelo menos no que se refere à ontologia dos índios da

Amazônia, estes rituais podem ser divididos em relativos à guerra – como entre os

Tupinambá e os Wari’ (ou Pakaa Nova) –, ou funerários – como, por exemplo, entre os

Guayaki (ou Aché), os Yanomâmi e os Wari’, mais uma vez.

18
antropofagia guerreira e sociabilidade tupinambá

Existe uma documentação sobre os rituais guerreiros tupinambá composta de

cartas, crônicas, memórias, e reflexões escritas nos séculos XVI e XVII por

aventureiros, jesuítas e outros viajantes, e uma outra, complementar, de reflexões,

coletâneas e investigações de historiadores, antropólogos, sociólogos, etc. do século

XX. No entanto, poucos, como Hans Staden, afirmam terem visto de fato estas práticas

canibais. Muito do que se sabia provinha de relatos que os próprios índios faziam por

meio das confissões – como demonstraram alguns jesuítas, dentre os quais José de

Anchieta (1964) –, ou das histórias que contavam aos seus aliados e deixavam chegar

aos ouvidos de seus inimigos.

De acordo com esta documentação, a antropofagia guerreira alimentava entre os

inimigos o sentido do que chamavam por vingança, termo usado por nossos intérpretes

da antropofagia indígena. Mais do que a antropofagia, a vingança era, para estes, o

motor de sociabilidade. Ou, da forma como coloca Viveiros de Castro em “O mármore

e a murta” (2002), era o que produzia a sociedade, era a sua própria vida. A

antropofagia, através desta vingança, da mesma forma que a troca de mulheres,

proporcionava alianças, no sentido de que era o sentimento de vingança que os unia

contra os outros.

Pouco mais de meio século antes de Viveiros de Castro, Florestan Fernandes em

Organização social dos Tupinambá, aponta para uma outra reflexão acerca da

sociabilidade tupinambá. Segundo o autor, eram os valores religiosos que uniam os

Tupinambá. Pensando nas guerras a partir da necessidade destes índios de vingarem

amigos e parentes, ele conclui que a organização social estaria fundamentada no sistema

de parentesco e a vingança seria somente o meio pelo qual estes adquiriam “novos dotes

19
carismáticos e contribuindo para re-estabelecer o estado de eunomia da vida tribal”

(1963: 354 e 355). Isso significa que, com a morte dos prisioneiros reconstituiriam o

equilíbrio no grupo por meio da vingança – a vingança como elemento secundário – e

também conquistariam grande honra diante dos mortos, assegurando que seriam bem-

vindos ao mundo destes quando a sua hora chegasse.

Em suas palavras,

(...) a estrutura social básica estava completamente penetrada de


valores religiosos, pois o sistema religioso tribal repercutia
ativamente sobre toda a organização social. Em conseqüência, os
padrões religiosos insinuavam-se no comportamento dos indivíduos,
e sendo encarados como valores centrais da cultura motivavam
atitudes e atividades competitivas. (FERNANDES, 1963: 355)

A competitividade ficava a cargo dos prestígios sociais que o guerreiro recebia,

que lhe abriam caminho para ocupar o lugar dos chefes ou pajés. Mas sob uma ou outra

perspectiva, o uso da palavra vingança, apesar de sua imprecisão – por ser esta uma

palavra atribuída por nós, ocidentais, às práticas ameríndias –, pode explicitar uma

relação que age de forma contínua. Na inutilidade em se procurar uma origem das

guerras (que aparece no máximo no tempo mitológico) é presumível que todo inimigo já

feriu e foi ferido em algum momento, por alguma geração. Logo, o que sugere que

alguém seja inimigo é a possibilidade de se tornar alvo de vingança e, por outro lado, de

permitir que tenha motivos para vingar-se, por acontecimentos recentes ou longínquos,

mas ininterruptos.

Métraux, que publicou em 1928 A Religião dos Tupinambás onde recolheu o

máximo de informações possíveis acerca dos Tupinambá a partir dos relatos de jesuítas

e viajantes, reproduziu em seu livro a partir de Antonio Pigafetta (viajante italiano do

século XVI), o mito pelo qual os Tupinambá explicariam a origem da antropofagia:

20
Certa velha tinha um filho único, morto pelos inimigos; tempos
depois, em prosseguimento da guerra, o assassino foi feito
prisioneiro e conduzido à presença da velha. Esta, por vingança,
atirou-se ao mesmo, mordendo-lhe as espáduas qual se fora um cão
enfurecido. Porém o homem conseguiu fugir e, ao retornar a casa,
mostrou a carne rota e contou como seus inimigos tinham tentado
devorá-lo vivo. Desde então, os índios se puseram a comer, uns aos
outros, os indígenas caídos prisioneiros. (PIGAFETTA apud
MÉTRAUX,1979: 138)

Jean de Léry, cronista francês, desembarcou na América em meados do século

XVI, ainda adolescente. Era sapateiro e estudante de teologia. Calvinista, embarcou

junto com outros artesãos – e também alguns prisioneiros – com o objetivo de colaborar

com a tentativa colonizadora de Villegagnon. Segunda conta, residiu por quase um ano

junto aos Tupinambá. A principio, pretendia com suas anotações apenas informar seu

mestre, com detalhes, tudo o que vira e conhecera nestas novas terras. Porém, suas

memórias só foram publicadas 18 anos depois que voltara à França. Isso se deu porque,

por duas vezes, lhe perderam suas anotações, até que finalmente seus manuscritos

originais foram encontrados.

Léry descreve os acontecimentos em primeira pessoa, sugerindo sua presença

em muitos momentos, inclusive em rituais antropofágicos em que fora convidado a

comer da carne dos cativos. Algumas vezes, sugere que obtivera as informações de

algum ancião Tupinambá. Sobre a guerra entre os Tupinambá, Léry salienta que “os

selvagens se guerreiam não para conquistar países e terras uns dos outros, (...) não

pretendem tampouco enriquecer-se (...). Confessam eles próprios serem impelidos por

outro motivo: o de vingar pais e amigos presos e comidos no passado” (LÉRY, 1980:

183).

Mas se na sociedade ocidental a vingança está relacionada ao castigo, à punição

(como é possível verificar no dicionário Aurélio), a uma justiça, a um juízo, e tem como

objetivo dar uma solução final à um problema moral – ou seja, uma resposta

21
antropoêmica –, entre os Tupinambá, o que chamamos vingança, não é a busca de um

fim, nem uma solução, aniquilando ou imobilizando de certa forma o que seria o

problema. Ao contrário, existe nesta vingança uma continuidade. Neste sentido, o

inimigo que sofre a vingança não é necessariamente aquele que matou e comeu dos

amigos e parentes dos vingadores – mesmo que isso apareça nas palavras –, até porque,

como diziam alguns destes escritores do século XVI, como Anchieta, as alianças não

eram fixas, inimigos e aliados se redefiniam a todo momento.

Carlos Fausto (1992), em referência aos relatos dos cronistas do século XVI,

afirma que quando um era feito prisioneiro, este circulava pelas aldeias vizinhas, tanto

como presente, quanto como convite a um festim antropofágico que viria a seguir, e era

indispensável que se convidassem os aliados. Neste ritual a chamada vingança era

socializada. Todos – com exceção do matador – deveriam comer do inimigo, todos

deveriam se vingar. As mães besuntavam seu peito de sangue, para que também as

crianças que ainda eram amamentadas pudessem se vingar.

Pero de Magalhães Gândavo percebeu no século XVI, que ao final da matança,

aqueles de outras aldeias que vieram participar do ritual, separavam uma parte do morto

– um braço, uma perna – que levavam para dividir entre a gente de sua aldeia. Gândavo

viveu alguns anos no Brasil, por volta da década de 1560. Pouco se sabe sobre sua vida,

além de ser um humanista e renascentista, engajado na defesa da língua portuguesa,

como esclarece Sheila Melo Hue na introdução da recente re-edição brasileira do livro.

Segundo Hue, o cronista procurou dar um tom de impessoalidade à sua obra, e além de

suas observações, utilizou “relatos de fontes por ele consideradas fidedignas” (HUE in

GÂNDAVO, 2004: 17). Levou dez anos para publicar a versão final de sua obra.

Durante este tempo escreveu quatro versões, procurando sempre aperfeiçoar e retirar

dela tudo que parecia impreciso e fantástico. Não se sabe, no entanto, se o que expõe

22
sobre o canibalismo são observações próprias ou declarações de terceiros.

Hans Staden, viajante do século XVI, fora aprisionado por índios tupinambá –

segundo consta – na região de São Vicente e, tendo vivido muitos anos entre estes como

cativo, escrevera um largo relato em agradecimento a Deus por ter escapado com vida e

voltado para casa. Staden observa que era importante que todos comessem o corpo do

cativo, mas se ele era morto antes que os convidados estivessem presentes ou antes da

cauinagem, a carne era preparada e deixada sobre a fumaça até que ficasse seca para ser

consumida depois.

Conforme indica de Léry, por maior que fosse o número de convidados, todos

saiam dali com um pedaço da carne. Mas assim como Clastres ressaltou em 1972 – com

relação aos Guayaki – Léry notara que estes Tupinambá “não comiam a carne, como

poderíamos pensar, por simples gulodice, pois embora confessem ser a carne humana

saborosíssima, seu principal intuito é causar temor aos vivos. Move-os a vingança”

(LÉRY, 1980: 200).

Da forma como se refere o autor, é possível pensar que o canibalismo entre os

Tupinambá – e possivelmente entre outras etnias na mesma época –, independente de

seu papel ritual, era usado também como estratégia diante do inimigo para anunciar sua

ferocidade, e causar-lhes medo.

Quanto ao ritual, segundo Léry, mesmo àquele que não comia – o matador – o

sacrifício exercia um papel fundamental. Matar um outro guerreiro era uma grande

honra, e conferia àquele que matava um certo status, que era consolidado com a

aquisição do nome do morto.

Antes da matança existia ainda uma série de rituais que começavam com a

chegada do prisioneiro. Hans Staden afirma que os inimigos que morriam no campo de

batalha eram comidos ali mesmo ou no acampamento mais próximo, e que, durante a

23
viagem dos guerreiros de volta à aldeia, os prisioneiros que se encontravam mais

gravemente feridos eram comidos no caminho. Mas os rituais como o de nomeação só

eram concluídos com o regresso dos guerreiros à aldeia.

Staden, Léry e Gândavo, descrevem, segundo suas observações ou relatos

recolhidos, que os prisioneiros levados para as aldeias eram recebidos pelas mulheres e

por aqueles que não haviam ido para a guerra. Assim que chegavam eles eram alvos de

afrontas, pontapés e agressões. Eram amarrados no pescoço por duas cordas e levados

por toda a aldeia para que todos pudessem ver o objeto de vingança.

Florestan Fernandes acrescenta ainda, com base na documentação de jesuítas e

viajantes dos séculos XVI e XVII, que os cativos eram recebidos com gestos como bater

a mão na boca, ou mordendo os próprios braços, como sinal da intenção de devorar o

inimigo. As mulheres, além de recebê-los com pancadas, pontapés, afrontas e agressões,

dançavam em volta dos prisioneiros enquanto estes se encontravam amarrados pelas

cordas em seu pescoço.

Passado este primeiro momento, esta recepção, Léry aponta que o cativo

geralmente recebia uma mulher. Por vezes, esta era a esposa daquele que seria vingado.

Em geral, as expedições de guerra eram justificadas por acontecimentos recentes. A

morte de algum guerreiro tornava-se então o mote comum da chamada vingança.

Quando a capturada era uma prisioneira, esta costumava ser incorporada ao

grupo de mulheres do chefe. Segundo Gândavo, quando acontecia da cativa ser tomada

como mulher por alguém do grupo, dificilmente ela era sacrificada, porém, assim que

morria de morte natural, alguns elementos do ritual – que será descrito logo adiante –,

como o golpe na cabeça, eram retomados em seu funeral.

Gândavo coloca ainda que não era incomum que as mulheres dos cativos, ou as

próprias cativas, engravidassem e tivessem filhos. De acordo com Florestan Fernandes,

24
era esperado dos cativos que engravidassem as mulheres, desta forma esses Tupinambá

poderiam vingar-se mais uma vez. Quando tivessem idade para tal, as crianças – filhos

dos prisioneiros – passavam pelo mesmo ritual que seus pais, a não ser que se tratasse

de uma menina. Neste caso, havia uma chance de que fosse preservada, assim como as

cativas de um modo geral. Diferentemente dos filhos das cativas com os homens da

aldeia, os filhos dos cativos eram considerados inimigos, pois as crianças carregavam

sempre o sangue do pai, como notou Jean de Léry.

Além de receber mulheres, acrescenta Léry, os cativos eram bem alimentados, e

eram satisfeitas todas as suas necessidades. Se acontecia de serem bons caçadores e

pescadores, ou, no caso das mulheres, boas para tratar do cultivo ou da coleta,

conservavam-nos um certo tempo antes de matá-los. Gândavo descreve que estes

viviam livres e bem tratados até o momento de sua morte.

Florestan Fernandes acrescenta ainda que

(...) embora lhes seja possível fugir à vista da liberdade de que


gozam, nunca o fazem apesar de saberem que serão mortos e
comidos dentro em pouco. E isso porque, se um prisioneiro fugisse,
seria tido em sua terra por (...) covarde, e morto pelos seus entre mil
censuras por não ter sofrido a tortura e a morte junto dos inimigos,
como se os de sua nação não fossem suficientemente poderosos e
valentes para vingá-lo (FERNANDES, 1970: 254-5).

Fernandes refere-se a tortura, mas é preciso tomar cuidado com o uso de

algumas palavras pois, como já manifestaram os próprios cronistas e jesuítas, os cativos

eram bem tratados, e não morriam sob tortura, mas com um só golpe certeiro. Além do

que as palavras que utilizamos para descrever certos ritos e costumes indígenas são

sempre transcriações com base no uso que nós mesmo fazemos destas palavras – que

por vezes nem existiam no vocabulário indígena –, como é o caso da palavra vingança.

Carlos Fausto (1992) – também com base na documentação produzida nos

25
séculos XVI e XVII sobre os Tupinambá – coloca que a preparação da cerimônia de

sacrifício começava dias antes. O sacrificante deveria passar por um ritual de

purificação. Este ritual consistia em um período de resguardo em que lhe eram

proibidos certos alimentos e atividades. Ele era também escarificado, tatuado e

despossuído de seus bens, para então, receber um novo nome que seria declarado após o

resguardo.

Gândavo salienta que, alguns dias antes do ritual de sacrifício, produzia-se uma

bebida feita de aipim, da qual todos bebiam para festejar, inclusive aquele que seria

sacrificado. Léry acrescenta ainda que no próprio dia da execução, todas as aldeias

circunvizinhas eram avisadas, e todos, até mesmo o cativo – que se comportava como

um dos mais alegres convivas – dançavam, bebiam e cantavam.

Esta bebida era produzida por meio da cauinagem. Florestan Fernandes observa

que a cauinagem constituía em um processo pelo qual as mulheres produziam o cauim,

bebida fermentada, freqüentemente utilizada em rituais. Mas este processo não é

exclusivo nem dos rituais guerreiros, nem dos Tupinambá e tampouco do século XVI, já

que até hoje encontramos relatos sobre esta prática em diferentes grupos indígenas.

Durante o tempo da cauinagem, expõe Gândavo, o cativo era levado para uma

nova choça, e no dia da execução, pela manhã, lavavam-no em uma ribeira, e guiavam-

no ao centro da aldeia, aonde amarravam na cintura as cordas que antes se encontravam

em seu pescoço. Segundo Léry, depois de amarrado pela cintura, o cativo era levado por

toda a aldeia – da mesma forma de quando chegara. Era pintado, decorado e preso, à

espera do guerreiro que iria matá-lo. Tanto Gândavo quanto Léry confirmam que ao

cativo era dado alguns objetos – pedras ou frutos –, para que este pudesse atirar

naqueles que lhe provocavam e diziam injúrias.

A honra não era só do matador, mas também do prisioneiro que poderia

26
demonstrar sua coragem. Claude d’Abbeville (religioso do século XVII), segundo

Métraux, esclarece que se o prisioneiro era dado ao filho do guerreiro que o capturara

para que este pudesse ser iniciado no ritual antropofágico, o cativo apresentava certa

resistência como se fosse isso uma afronta à sua qualidade de guerreiro.

Figura 1. Dois Chefes Tupinambá com os Corpos Adornados por Figura 2. Índios Tupinambá Guerreiros
Plumas. À esquerda segurando um ibirapema. Ilustração do livro "Duas (de Jean de Léry). O primeiro, à frente,
Viagens ao Brasil" de Hans Staden (1557). Fonte: segurando um ibirapema.
http://www.dominiopublico.gov.br/ Fonte: http://www.dominiopublico.gov.br/

O executor, devidamente ornamentado, travava então um breve diálogo com o

inimigo. Nas palavras do padre Claude d’Abbeville: “Não sabes tu (...) que tu os teus

mataram muitos parentes nossos e muitos amigos? Vamos tirar a nossa desforra e vingar

essas mortes. Nós te mataremos, assaremos e comeremos" (apud FAUSTO, 1992: 392).

O prisioneiro respondia: "Pouco me importa (...) Tu me matarás, porém eu já matei

muitos dos teus. Se me comerdes, fareis apenas o que já fiz eu mesmo. Quantas vezes

me enchi com a carne de tua nação! Ademais, meus irmãos e primos me vingarão”

27
(idem, ibidem).

Figura 3. Gravura de Theodore de Bry (1592). Fonte: http://www.answers.com/topic/cannibals-23232-jpg-1

28
Com o Ibirapema (figuras 1 e 2) – o tacape cerimonial –, o matador ameaçava

alguns golpes no ar, do qual o inimigo se esquivava, até que com um só golpe certeiro,

o prisioneiro caia no chão, como indica Carlos Fausto. Logo as velhas se aproximavam

para recolher o sangue e os miolos para que não houvesse desperdício algum. Neste

momento, “está uma índia velha pronta, com um cabaço na mão, e quando o padecente

cai, acode muito depressa a meter-lho na cabeça para tomar os miolos e o sangue”

(GÂNDAVO, 2004: 160).

Léry acrescenta ainda que quando o morto caia no chão, a mulher que com ele

vivera, levantava um curto pranto. Logo, as outras mulheres se juntavam à ela e

escaldavam o corpo com água fervendo, para retirar-lhe a pele. Os homens abriam o

corpo, retiravam todas as entranhas e cortavam em pedaços para serem assados no

moquém.

Ao contrário do ibirapema, o moquém é utilizado também em circunstâncias não

cerimoniais. Para sua construção, erguem-se quatro estacas de madeira do chão, aonde

se dispõe outras madeiras na horizontal. A parte em que a carne será preparada deve

ficar alta o suficiente para que o fogo não a alcance diretamente, como é possível

observar na figura 3. Ainda segundo Léry, tudo no cadáver era aproveitado, mesmo as

tripas, depois de bem lavadas. As mulheres, em especial as “gulosas velhas”, ficavam

em torno do moquém para recolher a gordura que escorria. A figura 3, gravura de

Theodore de Bry – que ilustrou o livro de Hans Staden – mostra também Hans Staden

ao fundo presenciando um banquete antropofágico.

Carlos Fausto chama a atenção que, em um ritual antropofágico, se acontecia da

comida ser pouca – como era o caso quando a vítima ainda era criança –, faziam um

caldo para que houvesse repasto para todos; já se havia fartura, era comum que os

29
convidados levassem para suas casas pedaços moqueados. Sobre os executores, Léry

acrescenta que, “(...) depois de praticada a façanha retiram-se em suas choças e fazem

no peito, nos braços, nas coxas, e na barriga das pernas sangrentas incisões” (1980:

200). Gândavo esclarece que as escarificações se davam para poupar da morte o

sacrificante.

Métraux compreende que os rituais, a que era submetido o matador, deveriam

protegê-lo da vingança do espírito do morto, da qual também seus parentes ficavam

expostos. A aquisição do nome seria a precaução mais importante, acompanhada de um

período de resguardo em que a alimentação se limitava à farinha de mandioca e água.

os guerreiros wari’

Os relatos de rituais antropofágicos ameríndios não se restringem aos séculos

XVI e XVII. Em 1986 Aparecida Vilaça deu início a sua pesquisa de campo entre os

Wari’, em especial àqueles localizados na aldeia do Rio Negro-Ocaia, em Rondônia. Na

mesma época – entre 1985 e 1987 – Beth Conklin também realiza seus estudos de

campo em algumas aldeias desta etnia. Em um verbete que se encontra no site do

Instituto Socioambiental, as autoras afirmam que a primeira menção à existência dos

Wari’ data de 1798, mas até o início do século XX estes se mantiveram isolados –

provavelmente pelo difícil acesso e pouco interesse econômico em suas terras.

Antes dos grandes conflitos com os não-índios e da pacificação, Vilaça e

Conklin explicam que os Wari’ praticavam o canibalismo decorrente das guerras contra

seus inimigos. Segundo as autoras, entre eles, “o inimigo era pensado como um que se

distanciou espacialmente e com quem as trocas foram interrompidas” (VILAÇA &

CONKLIN, 1998: online). Durante as guerras, os inimigos eram flechados e mortos. Os

30
matadores – que eram todos aqueles que participaram da expedição de guerra – levavam

para as aldeias partes dos inimigos que seriam assadas e comidas por todos aqueles que

permaneceram na aldeia, homens e mulheres. Apenas as crianças, além dos matadores,

não podiam comer do inimigo.

As informações descritas acerca dos rituais antropofágicos em circunstância de

guerra são baseadas nos relatos dos próprios índios. Não existem outros documentos

sobre o canibalismo wari’ que não sejam relatos deles, o que poderia levantar dúvidas

sobre a veracidade deste canibalismo. Entretanto, o simples discurso em torno do

canibalismo – seja para amedrontar inimigos ou enganar antropólogos –, se coloca

como fato interessante para analisar as repercussões e as relações que se formam em

torno dele.

Segundo Vilaça (1990), a carne do inimigo – assada no moquém – era comida

com vivacidade, em grandes pedaços, muitas vezes ainda presa aos ossos e, diferente

dos rituais funerários wari’, os ossos eram jogados no mato, e nunca enterrados.

Assim como no caso dos Tupinambá, os matadores Wari’, como descrevem

Vilaça e Conklin (1998), entravam em um período de resguardo em que pouco se

mexiam e ficavam a maior parte do tempo deitados na casa-dos-homens. Porém,

diferente dos Tupinambá que provocavam escarificações, os Wari’ evitavam

especialmente se ferir, para não perder o sangue do inimigo morto de seus corpos.

A chicha – bebida como o cauim, porém feita de milho – não fermentada,

segundo as autoras, era praticamente o único alimento dos matadores, que deveria

engordá-los junto com o sangue do inimigo que mantinham em seu corpo. Até as

relações sexuais eram proibidas, para que os guerreiros não passassem este sangue pelo

sêmen. Vilaça e Conklin salientam que a reclusão acabava quando as mulheres se

cansavam de produzir a chicha e quando os homens se sentiam suficientemente gordos.

31
Carlos Fausto expõe que as aldeias vizinhas tupinambá eram marcadas por uma

relação de hostilidade ou de parentesco, e estas relações estavam sempre se alternando,

como já foi dito anteriormente. Em um dia era-se aliado, no outro inimigo. José de

Anchieta (1964), padre da Companhia de Jesus no século XVI no Brasil, menciona

algumas vezes sobre índios que eram aliados dos portugueses, mas que logo se viraram

contra estes, como os Tamoio e os Guaimuré, ou, ao contrário, inimigos que tornaram-

se aliados.

Segundo Vilaça e Conklin antes da invasão das suas terras por seringueiros, no

século XX, os Wari’ faziam guerra com povos vizinhos, que eram, em sua maioria, da

família linguística Txapakura – da qual também faziam parte – e do tronco Tupi.

Enquanto os relatos sobre os rituais antropofágicos dos Tupinambá descrevem

somente as circunstâncias relacionadas à guerra, os relatos dos Wari’ expandem-se

também para as cerimônias funerárias.

antropofagia funerária: carne de Wari’

Em Arqueologia da Violência, Pierre Clastres salienta que os rituais funerários

não devem ser confundidos com culto aos mortos. Se os antepassados estão

relacionados a um tempo mitológico e são pensados como a própria vida da sociedade –

e por isso motivos de celebrações –, os mortos recentes apresentam um risco à esta

sociedade. Neste sentido, os rituais funerários são mais um meio de proporcionar a

separação entre vivos e mortos.

Em O canibalismo funerário Pakaa Nova, Aparecida Vilaça descreve o ritual

funerário wari’ a partir da exposição dos próprios índios sobre a maneira que estes

rituais aconteciam – antes da pacificação de 1956 a 1969, quando o canibalismo foi

32
abolido destas práticas –, e a partir das próprias observações sobre como os rituais

ocorrem na atualidade.

De acordo com a autora, o ritual funerário começa com o canto fúnebre. Quando

um Wari’ fica doente, os parentes mais próximos (cônjuge, filhos, pais e irmãos), o

cercam procurando aliviar a sua dor. Se há sinais da gravidade da doença, os parentes

começam a chorar e acompanham este choro com um canto que estará presente até o

fim do luto.

Segundo Vilaça a melodia é única, mas a letra – sobre os feitos do morto – é

criada por cada um no momento em que se canta, e cada um se refere ao morto de

acordo com o termo da relação de consangüinidade específico que o identifica (1990). O

corpo deve ser chorado, preferencialmente, na casa de um parente mais velho, um irmão

ou pai, por exemplo. Quando ainda se praticava o canibalismo, afirma a autora, o

mesmo local em que o corpo é chorado era também o local onde seria construído o

moquém e consumido o morto.

Vilaça coloca ainda que, quando alguém é declarado morto, um parente próximo

pede a algum jovem – por meio do canto – que avise, o mais rápido possível, aos outros

parentes próximos que vivem em outras aldeias. Vilaça indica que os Wari’ fazem uma

distinção entre os parentes próximos, ou verdadeiros, e os parentes distantes, ou não-

parentes.

Os Wari' concebem a possibilidade do parentesco em diferentes


graus. No sentido mais amplo possível, dizem-se todos parentes entre
si, por fazerem parte de uma mesma "natureza". Partilhar uma visão
de mundo implica necessariamente parentesco. (...) Para os Wari', a
simples constatação de que se vê o mundo do mesmo jeito (fala-se a
mesma língua, têm-se os mesmos hábitos) supõe alguma
consubstancialidade, que é o caráter definidor das relações de
parentesco. E essa consubstancialidade, como já vimos, não é um
dado genético, mas fruto da convivência, seja direta, de pessoas que
vivem juntas, seja indireta, mediada por pessoas que são parentes.
33
(...) No sentido mais restrito, entretanto, parentes são aqueles que
vivem juntos ou próximos, e com quem se pode traçar laços
genealógicos precisos, especialmente os membros da família nuclear,
com ênfase nos germanos de mesmo sexo. Possuem o mesmo corpo,
dizem os Wari'. Avós, pais, irmãos dos pais e seus filhos, germanos,
filhos, filhos dos germanos e netos, além dos cônjuges, seriam
essencialmente o que os Wari' chamam de "parentes verdadeiros"
(VILAÇA, 1998: 19-20).

Esta distinção se torna mais explícita com relação às tarefas de cada um no

funeral.

Durante um período, aponta Vilaça, somente os parentes próximos, ou

verdadeiros, é que poderiam tocar no morto. Estes ficavam chorando e abraçando-o,

mas não participavam da preparação do ritual – cortar, assar e comer o cadáver –, o

consumo do cadáver era, inclusive, proibido. A preparação ficava por conta dos

parentes distantes.

O cadáver não deveria ser cortado ou assado antes que os outros parentes

verdadeiros chegassem, e até que isso ocorresse passavam-se de dois a três dias, tempo

suficiente para que o cadáver começasse a apodrecer. Quando estavam todos presentes,

os parentes abraçavam o morto, choravam, se jogavam no chão e perdiam os sentidos, e

cabia ao restante do grupo controlar estes acessos de desespero.

“(...) As crianças pequenas mortas eram sempre levadas ao fogo antes do

apodrecimento, possivelmente pelo fato de sua morte causar menos comoção e suportar

um lamento mais breve” (VILAÇA, 1998: 24), o que dificilmente acontecia com os

adultos. Apenas em situações extraordinárias, em que a vida dos outros estivesse em

risco é que se comia o cadáver antes do apodrecimento, como ressalta Vilaça (1990).

34
Figura 4. Moquém funerário desenhado pelo Wari’ Wem Quirio’. De acordo com Conklin, os pedaços do corpo
eram pintados com urucum antes de ir ao fogo, e os órgãos internos eram embrulhados em folhas de palmeira.
Fonte: http://www.vanderbilt.edu/exploration/news/news_cannibalism_nsv.htm

Vilaça explica que, com os parentes próximos todos presentes, um irmão, ou o

pai do morto – de preferência – pedia, cantando solo, para que se providenciasse o

moquém funerário (figura 4) e a lenha necessária. O moquém funerário é formado por

um esteio de cada casa da aldeia e pintado de urucum. A lenha é uma madeira de

combustão lenta que é amarrada em feixes, também pintada com urucum e enfeitada

com penas de aves. O uso do urucum no corpo e nos aparelhos funerais tinha como

objetivo impedir a contaminação pela poluição do cadáver. Na figura 4, o Wari’ Wem

Quirio’ mostra a partir de seu desenho, a forma como eram preparadas as carnes, a

lenha e o moquém funerário.

Quando o moquém e a lenha estavam ao agrado dos parentes verdadeiros, um

deles pedia então que se cortasse o cadáver em pedaços. O corpo era cortado com uma

35
lâmina de bambu em cima de uma esteira de palha. Era importante que aquele que

estava preparando o corpo do morto se assegurasse de não deixar o sangue ou qualquer

outro fluido espirrar em sua boca, pois antes de assado, a ingestão do morto é entendida

com uma espécie de auto-canibalismo, o que significa a morte certa daquele que

ingeriu. Segundo Vilaça, esta restrição se baseia no mesmo princípio que impede os

Wari’ de comer um parente próximo no ritual funerário, ou o xamã de comer a carne de

animais da mesma espécie que seu duplo.

Vilaça aponta que, segundo os relatos dos Wari’, as entranhas eram atiradas

diretamente ao fogo, juntamente com o sexo do morto; porém, o fígado e o coração

eram geralmente colocados para assar em recipientes de folhas costuradas. O cabelo e as

unhas eram inseridos em um recipiente de barro e jogados no fogo para queimar.

Aquele encarregado de cortar o cadáver deveria se ocupar também de assar o corpo.

As mulheres, não-parentes, se encarregavam de preparar e assar a pamonha que

seria comida com a carne do morto. E, segundo contam os Wari’, era necessário um dia

todo para assar a carne. O coração e o fígado eram comidos primeiro com a pamonha, e

a carne só era consumida algumas horas depois. A carne era desfiada por algum parente

próximo sobre uma esteira, e a pamonha também era cortada em pedaços pequenos. A

carne, juntamente com a pamonha, era comida pelos não-parentes com um palito, ou era

servida para cada um por algum parente próximo, mas de qualquer forma, não deveria

ser tocada por aqueles que comiam.

Segundo Vilaça, para os Wari’ era importante que se comesse a carne com

delicadeza, para diferenciar desta forma, a carne dos seus, da carne de caça ou do

inimigo, que por vezes era comida presa ainda aos ossos. A autora acrescenta ainda que

não era necessário que todos comessem da carne e nem que esta fosse completamente

consumida, mas era importante que pelo menos parte dela fosse comida pelos não-

36
parentes, o resto era queimado no fogo, então os parentes verdadeiros convidavam aos

outros para chuparem os miolos e comerem os olhos assados diretamente do crânio.

Os Wari’ ainda contam, de acordo com a autora, que os ossos poderiam ser

torrados e enterrados junto com o jirau, ou triturados, misturados com mel e ingeridos

pelos não parentes. O que seria feito ficava a cargo dos parentes próximos, que

orientavam os próximos passos através do canto.

O ritual wari’ não terminava com o fim dado ao corpo do morto. Também seus

pertences, casa, e tudo mais que tinha relação direta com este, ou com a sua memória,

inclusive os objetos usados no ritual, eram destruídos. Segundo Vilaça, o nome do

morto deveria ser passado rapidamente a um outro parente próximo, de preferência mais

jovem, mas enquanto isso não acontecia o nome não deveria ser pronunciado.

O “varrer” – como era chamada esta prática de apagar a memória do morto –

acrescenta Vilaça, era uma atividade de longa duração, pois tudo o que tinha relação

com o morto deveria ser destruído. Por vezes chegavam mesmo a abandonar a aldeia.

Além de apagar a lembrança do morto, esta atividade deveria impedir que o espírito

deste viesse fazer algum mal aos vivos, principalmente aos parentes.

Os Wari’, depois da destruição, entravam em um luto prolongado que poderia

durar de meses a anos, de acordo com a proximidade de cada parente com o morto.

Quando estes decidiam sair do luto, parentes e não-parentes saíam em uma caça

coletiva. Repetia-se então o ritual fúnebre com as presas, sem deixar, porém, que a

carne apodrecesse. Depois disso, dançavam, cantavam e a vida voltava ao normal.

Finalmente, o espírito do morto iria viver no mundo subaquático dos mortos, da mesma

forma como acontece hoje, e quando o espírito quer fazer uma visita torna-se queixada,

para ser caçado e comido por seus parentes, e regressar então ao mundo dos mortos.

37
pó de osso: a forma atenuada da antropofagia yanomâmi

Além dos Wari’, do oeste de Rondônia, os Yanomâmi da Amazônia venezuelana

e os Guayaki do Paraguai – os Yanomâmi de forma mais atenuada, como indica

Clastres (2004) –, levavam ao extremo esta separação entre vivos e mortos, privando

seus mortos, por meio da antropofagia, desta última fixação no espaço que seria um

túmulo.

É a partir dos relatos de Elena Valero, que Pierre Clastres (2004) analisa os

rituais antropofágicos dos Yanomâmi. De acordo com o autor, nos anos 30, ainda

criança, Elena Valero foi raptada por índios Yanomâmi. Depois de adulta, já com quatro

filhos e tendo vivido com dois maridos sucessivamente, resolveu voltar a viver entre os

brancos. Foi quando escreveu suas memórias destes vinte e poucos anos de sua vida

entre esses índios.

Segundo Clastres, os rituais antropofágicos no noroeste amazônico apareciam de

forma mais atenuada que em outras regiões. Neste caso, era preciso que se suprimisse a

carne antes do consumo. Queimavam imediatamente o cadáver, ou esperavam que a sua

carne desaparecesse sozinha após deixar o corpo em um cesto fechado, pendurado em

uma árvore. Logo em seguida, recolhiam-se os ossos, que eram moídos, reduzidos a pó

e conservados em uma cabaça.

Jacques Lizot descreve a partir dos relatos dos próprios Yanomâmi que, quando

um morria, primeiramente, cada pessoa declarava a este o seu pesar invocando o

parentesco que os unia em vida, de forma similar aos Wari’. Um mensageiro deveria,

então, avisar os parentes que estavam longe. Os objetos do morto eram trazidos e

distribuídos entre alguns para serem usados, posteriormente, no ritual. Seus pertences

seriam destruídos no fogo, pois nada mais deveria lembrá-lo. A partir de então sua

38
lembrança deveria ser apagada, esquecida. Na manhã seguinte, as danças, choros e

lamentos em torno deste eram retomadas. As mulheres, em luto, enegreciam a face. A

lenha da fogueira era disposta de forma que fosse possível depositar dentro dela o corpo

do morto. Junto ao corpo eram colocados alguns objetos, e tudo era queimado.

A partir das informações dos Yanomâmi, Lizot afirma que os ossos eram

recolhidos e pilados para, ao final, serem distribuídos em cabaças entre alguns dos

parentes. Aproximadamente um mês depois todos se reuniam. Era preparado um purê de

bananas e também carne de caça. Parte do purê era consumido com a carne pela

maioria, mas uma outra parte era separada para ser misturada às cinzas do morto e ser

consumida pelos parentes. Ao contrário do que se sabe sobre os Wari’, entre os

Yanomâmi eram justamente os parentes que deveriam comer os restos do morto. No

entanto, quem comia a carne de caça não deveria comer das cinzas. Nem toda a cinza

era consumida ali. Parte dela era guardada para ser comida em um outro momento em

que a cerimônia fosse realizada mais uma vez, talvez dentro de alguns anos.

os índios Guayaki e a sociabilidade funerária

Pierre Clastres viveu por alguns meses, de fevereiro a setembro de 1963 entre os

índios Guayaki. A partir dos relatos dos Guayaki, o autor sustenta que a prática

funerária parecia se reproduzir de forma oposta aos Yanomâmi, mas a teoria acerca

desta era a mesma. O cadáver retalhado era assado em uma grelha com palmito, e era

aos ossos que se abandonava após queimá-los ou quebrá-los.

Clastres constata também que “nessas duas tribos os parentes mortos são

comidos coletivamente em grandes festas às quais são convidados amigos mesmo

distantes, e que, poeira dos ossos ou carne assada, o morto nunca é consumido

39
isoladamente, mas sempre misturado a uma substância vegetal” (CLASTRES, 2004:

62).

Nestes três exemplos de antropofagia funerária – dos Guayaki, Yanomâmi e

Wari’ – é interessante notar que a carne é sempre consumida com vegetais, pois pura ela

se torna perigosa, como já apontara Clastres em Crônica dos Índios Guayaki.

Acrescenta-se assim mais uma forma de endocanibalismo às que Pierre Clastres

percebeu nos rituais entre os Yanomâmi e os Guayaki. Também entre os Wari’ o

canibalismo funerário aparece como uma técnica suplementar de luta contra as almas

dos mortos.

A comensalidade funerária, segundo Carlos Fausto, era um dos elementos

decisivos para estabelecer as redes de aliança entre os diferentes grupos Guayaki

(2002). De acordo com Clastres (2004), entre os Guayaki, ser esquecido em um ritual

destes era um convite à guerra, pois todos aqueles que eram aliados deveriam participar

do funeral antropofágico.

Mais uma vez a antropofagia ritual parece desempenhar um papel importante

com relação à sociabilidade, e não somente com o fim dado ao corpo, ou o afastamento

dos espíritos.

comer e copular

Entre os Wari’ e os Guayaki’, os parentes cujas relações eram intermediadas

pela proibição do incesto não podiam comer uns aos outros. Com relação aos Wari’, a

regra não era tão rígida para as crianças, como demonstra Vilaça (1998), já que estas,

devido a sua pouca memória ou experiência, não tinham consolidado completamente

seus laços de parentesco. Com os Yanomâmi a regra parece se inverter, já que são os

40
parentes que comem os restos do morto, e a proibição fica com aqueles que na ocasião

comem a carne da caça, que são geralmente, os não-parentes.

Segundo Carlos Fausto, no canibalismo, os processos que se desencadeiam

podem ser relacionados a o que (ou quem) se come, e com e como quem. “Comer como

alguém e com alguém é um forte vetor de identidade, assim como se abster por ou com

alguém" (2002: 14, grifos meus). A distinção entre matadores e comedores, no caso dos

Tupinambá, estaria relacionada, portanto entre quem é a comida, e quem é parente.

Comer um inimigo era uma forma de produzir uma aliança, ou um parente, enquanto

que nos rituais funerários existia sempre alguma proibição no consumo da carne que

estava diretamente ligada às regras de parentesco. Ou a carne era proibida àqueles a

quem o sexo também o era, ou, como no caso dos Yanomâmi, a proibição do consumo

estava para aqueles que não tinham parentesco com o morto, em outras palavras, que

não estavam interditados pela proibição do incesto. Mas é importante lembrar também

que entre os Yanomâmi não era a carne que era consumida, mas somente a poeira dos

ossos.

Dorothea Passetti (2004a) nos lembra que ingerir um alimento ou manter

relações sexuais tem a ver com a vida. Não é à toa, que em diversas línguas existem

palavras que relacionam estes dois sentidos da palavra “comer” em nosso vocabulário.

"(...) essas aproximações nada mais fazem que ilustrar, em casos particulares, a analogia

profunda que, em todo o mundo, o pensamento humano parece fazer entre o ato de

copular e o de comer" (LÉVI-STRAUSS, 2002: 105).

Em Crônica dos Índios Guayaki, Pierre Clastres expõe a história de um homem

que teria sido flechado porque uma mulher tinha vontade de comer carne humana.

Entretanto, é importante esclarecer que este Guayaki mantinha relações incestuosas com

sua filha. Como ele tomara gosto em possuí-la, criou uma grande indisposição entre os

41
Aché. Uma mulher então, exigiu que seu marido o matasse, e explicou a ele que deveria

fazê-lo, pois ela tinha vontade de comer carne de Aché.

O que indispunha estes Guayaki era o fato de um homem manter relações

incestuosas com sua filha. “Para descrever a ação de Bujamiarangi, os Aché utilizavam

muito menos o termo adequado meno – fazer amor – que seu equivalente, mas bem

mais brutal e selvagem no próprio espírito dos índios: uu, ou bem tyku – comer”

(CLASTRES, 1995: 231).

É possível encontrar nas diversas culturas relações entre comer e copular. Na

antropologia, estas relações são percebidas por meio de suas expressões em regras e

interdições. O canibalismo, nas várias circunstâncias em que aparece, pode ser

entendido enquanto forma extrema destas relações. Como também chama à atenção José

Carlos Rodrigues, o comportamento individual está subordinado a certos códigos. As

muitas formas e relações possíveis entre comer e copular, são, portanto, estabelecidas de

acordo com os valores, crenças e costumes de cada sociedade.

Manter relações sexuais ou alimentar-se está além da reprodução da espécie ou

do sustento biológico do corpo. O corpo é onde a cultura e a natureza dialogam.

Rodrigues alerta ainda que, “enganam-se os que pensam que o sistema gastrointestinal é

aquele por meio do qual o corpo se relaciona fundamentalmente com objetos” (2006:

64), pois são as convenções que decidem quem pode comer o que e quando, e o mesmo

vale para as relações sexuais. Até mesmo o que é considerado bom, ruim, ou prazeroso

é determinado não só pelo corpo, mas pelas regras culturais.

Pensando nas relações de comensalidade na Amazônia indígena, Carlos Fausto

toma a alimentação “como um dispositivo de produção de corpos aparentados” (2002:

9). Em muitos casos, comer como alguém, ou mesmo comer o que o outro come, pode

significar assumir uma identificação com este outro. Comer com é aceitar a

42
aproximação com o outro – uma aliança –, enquanto que recusar-se a comer com

alguém pode levar a uma guerra. Este é também o caso da comensalidade nos rituais

antropofágicos dos Guayaki, de acordo com Clastres.

Lévi-Strauss constata que “o consumo de alimento é, com efeito, uma atividade

visivelmente social. São raros os povos que, assim como os índios Paressi do Brasil

Central, comem sozinhos, escondidos para encubrir o ato impudico de se alimentar”

(2008: online, tradução livre).

crítica à sociedade ocidental

Na sociedade ocidental, ainda segundo Pierre Clastres, o horror por estas

práticas indígenas dava espaço para leis que, desde os primeiros contatos dos

colonizadores, justificavam o extermínio ou a captura dos índios que se soubessem

canibais. Porém, não menos horrorizados ficavam os Tupinambá diante do

procedimento dos brancos, para eles completamente absurdo e bárbaro, de privar o

prisioneiro de sua liberdade encerrando-os em calabouços, como já alertou Michel de

Montaigne, em meados do século XVI.

Em épocas diferentes, Montaigne e Claude Lévi-Strauss elaboraram algumas

reflexões sobre certas práticas ocidentais, contrapondo-as aos costumes ameríndios,

tomados como bárbaros pelos europeus. Montaigne (1987) declara que as práticas

antropofágicas lhe parecem muito menos cruéis e bárbaras que as torturas e os suplícios

cometidos por seus conterrâneos. Parece-lhe muito mais humano o que fazem os

habitantes das novas terras que, até o dia de sua execução, tratam muito bem ao

prisioneiro e, antes que este seja comido, é assassinado de um só golpe para que não

sinta a dor.

43
Pensando nos acontecimentos em Lyon e Auxerre na França, em 1572, Jean de

Léry, contemporâneo de Montaigne, se manifesta da seguinte maneira:

Não abominemos portanto a crueldade dos selvagens antropófagos.


Existem entre nós criaturas tão abomináveis, se não mais, e mais
detestáveis do que aquelas que só investem contra nações inimigas
de que têm vingança a tomar. Não é preciso ir à América, nem
mesmo sair de nosso país para ver coisas tão monstruosas. (LÉRY,
1980: 204)

Lévi-Strauss (2000) expressa sua crítica pensando nas formas que as duas

sociedades – a nossa sociedade ocidental e algumas sociedades indígenas – lidam com

situações indesejadas, distinguindo-as entre sociedades antropoêmicas e antropofágicas.

As reflexões de Lévi-Strauss e Montaigne se cruzam na crítica que fazem ao modo de

operar, muito mais cruel e terrível – do ponto de vista dos autores – desta sociedade dita

civilizada.

Nos rituais ameríndios destas sociedades antropofágicas, a antropofagia (relativa

à guerra ou funerária) não aparece como algo indesejado pela sociedade, ao contrário.

No ritual guerreiro ela é esperada com vivacidade, e no ritual funerário – ainda que a

mesma vivacidade não seja vista com bons olhos – é preferível que se coma o morto ao

deixar que seus restos apodreçam e se tornem comida de vermes, ou que se tornem um

perigo aos vivos, servindo de elo de contato com as almas dos defuntos.

Lévi-Strauss aponta, no resumo do curso “Canibalismo e disfarce ritual”

apresentado no Collége de France entre os anos de 1974 e 1975, que enquanto nas

sociedades ditas primitivas estas práticas estão ligadas a um movimento de superação,

nas sociedades ditas civilizadas as mesmas tem como objetivo “envilecer a vítima,

violando todas as regras morais” (LÉVI-STRAUSS, 1984: 141).

No ritual funerário, o consumo parece inevitável. Ou o corpo do morto será

consumido por homens, vermes ou outros animais, ou é a alma dos vivos que será
44
consumida. E diante da morte inevitável e indesejável é preferível que os corpos dos

mortos se dissolvam entre os corpos de sua própria gente. Neste caso, a própria

antropofagia estaria relacionada à uma solução antropofágica, no sentido da

sociabilidade.

Com relação aos rituais guerreiros, se pensarmos em nossas própria guerras, em

contraposição aos relatos acerca das guerras entre os Tupinambá, perceberemos que não

há nestes últimos uma pretensão – ou mesmo uma vontade – de aniquilar ou subjugar

todos os outros povos. Isso não significa que entre estas sociedades antropofágicas não

exista um sentimento de superioridade, um caráter etnocêntrico. A própria forma como

se referem uns aos outros – como já haviam observado diversos cronistas do século

XVI, entre eles Gândavo (2004) –, em que se colocam como os “homens”, os “bons”,

“excelentes”, “completos”, enquanto seus inimigos, ou aqueles de outras aldeias ou

etnias, são chamados de “maus”, “malvados”, “macacos da terra”, “ovo de piolho”, etc.

(LÉVI-STRAUSS, 1989), demonstra que há uma projeção de superioridade. No

entanto, esta superioridade não se afirma pelo enfraquecimento, pelo extermínio do

outro. Um bom guerreiro, só pode ser considerado como tal, diante de um inimigo forte.

É a batalha que importa e não o extermínio. Por este motivo mesmo, um bom guerreiro

está destinado a morrer na guerra e a ser devorado por um inimigo à sua altura.

intervenções antropoêmicas: guerra contra os canibais

Sob os olhos da sociedade ocidental, esta mesma antropofagia foi, desde o

século XVI, associada à uma animalidade primitiva ainda não superada, justificativa

para os investimentos jesuíticos de domesticação e para o extermínio ou escravização

por parte dos colonizadores.

45
Durante o processo de ocupação de terras ameríndias por colonizadores

europeus, a guerra aos grupos indígenas foi por um momento interditada e reputada

ilegal, porém, segundo Pierre Clastres, ela volta a se tornar legítima e mesmo

recomendável caso soubessem se tratar de índios canibais. Assim, “a reputação de

antropofagia era rapidamente adquirida nos séculos XVI e XVII e a lista das populações

canibais se estendia à proporção da necessidade de escravos colonos” (1995: 225).

Segundo o padre Antonio Vieira, a partir da lei de 1595, proibiu-se a

escravização de qualquer índio no Brasil, e foi estabelecido que todos que vivessem em

cativeiro deveriam ser libertos. Mas a pressão dos colonos, que justificavam-se pelos

prejuízos e dificuldades que teriam se libertassem todos os índios de uma só vez, fez

com que, aproximadamente 60 anos depois, a lei fosse reformulada. A partir de então

foram estabelecidos quatro casos em que os índios poderiam tornar-se cativos:

(...) primeiro, em guerra defensiva ou ofensiva que nós dermos aos


ditos índios; segundo, se eles impedirem a pregação do sagrado
evangelho; terceiro, se estiverem presos à corda para serem
comidos; quarto, se forem tomados em guerra justa, que uns tiverem
com os outros (VIEIRA, 1992: 7).

Em outras palavras, se os índios atacavam os colonos, ou eram atacados por

estes com o consentimento do governador poderiam ser aprisionados. Se não

permitissem em suas aldeias ou acampamentos a pregação dos padres e jesuítas e se

agissem contrários a doutrinação, também deveriam ser feitos cativos. No caso de se

encontrarem presos às cordas, como se dava nos rituais antropofágicos, também

poderiam ser escravizados, já que adquiriam desta forma uma dívida com aquele que o

resgatara do que considerava uma morte cruel. E finalmente, era permitido capturar para

o trabalho compulsório aqueles apanhados em guerras justas, segundo a determinação

do rei e permissão do governador. Eram consideradas justas, por exemplo, as guerras

46
contra todos aqueles que praticavam o canibalismo.

Antonio Vieira chegou ao Brasil aos 6 anos de idade. Em 1623, aos 15 anos,

ingressou na Companhia de Jesus. Por se colocar ao lado de escravos e índios contra os

interesses de colonizadores portugueses, foi levado à julgo pela inquisição no Brasil,

porém, em Roma recebeu um Breve papal que isentava-o.

A partir de certo momento, as missões jesuíticas tiveram um importante papel na

própria preservação dos índios, que além de serem tragados pelas epidemias trazidas

pelos brancos – inclusive pelos próprios missionários –, eram exterminados ou

consumidos pelo confinamento e exploração de seus corpos.

Vieira descreve um episódio de 1655 em que passam por juízo alguns índios que

foram feitos cativos, para se examinar se o foram “justamente”. Antes de encaminhá-los

ao ouvidor, Vieira conta que o governador quis ouvir por si mesmo o que tinham a dizer

os índios. “(...) Responderam todos que eles eram cativos, e estavam presos de corda

para ser comidos, e que já tinham comido a outros companheiros” (1992: 15). Surpreso

com a resposta o governador perguntou mais uma vez individualmente, e desta e de

outras vezes estes continuaram a afirmar a mesma coisa. Oito dias depois, chegaram

alguns principais – como coloca Vieira – de aldeias indígenas aliadas pedindo que

devolvessem aqueles dos seus que foram tomados como cativos.

Provada tão claramente a liberdade destes índios, tornou o


governador a mandá-los chamar e perguntou-lhes, suposto que eram
forros, qual fora a causa porque todos lhe tinham dito que eram
cativos; e responderam que o disseram assim, porque o seu senhor
que os tinha lhes mandara ensinar que dessem aquela resposta, e os
ameaçara, que se dissessem outra coisa, os havia de matar a açoites
(VIEIRA, 1992: 16-17).

Vieira manifesta ainda, que o que imobilizava estes índios frente às ameaças dos

portugueses, é que em um período de quase quarenta anos, foram dizimados mais de

47
dois milhões de índios e mais de quatrocentas povoações. E as histórias que corriam

sobre aqueles que se rebelavam, é que recebiam um tratamento tão terrível que alguns

chegavam mesmo a se matar.

O padre José de Anchieta aponta em 1584 que,

o que mais espanta aos índios e os faz fugir dos portuguêses, e por
consequência das igrejas, são as tiranias que com êles usam
obrigando-os a servir tôda a sua vida como escravos, apartando
mulheres e maridos, pais e filhos, ferrando-os, vendendo-os, etc., e se
algum, usando de sua liberdade, se vai para as igrejas de seus
parentes que são cristãos, não o consentem lá estar, de onde muitas
vêzes os índios, por não tornarem ao seu poder, fogem pelos matos, e
quando mais não podem, antes se vão dar a comer a seus contrários;
de maneira que estas injustiças e sem razões foram a causa da
destruição das igrejas que estavam congregadas e o são agora de
muita perdição dos que estão em seu poder (ANCHIETA, 1964: 53).

Em meados do século XVII, o padre Antonio Vieira descreve a situação dos

índios no Maranhão:

(...) sendo o Maranhão conquistado no ano de 1615, havendo achado


os portugueses desta cidade de S. Luis até o Gurupá mais de
quinhentas povoações de índios, todas muito numerosas e algumas
delas tanto, que deitavam quatro a cinco mil arcos, quando eu
cheguei ao Maranhão, que foi no ano de 1652, tudo isto estava
despovoado, consumido, e reduzido a mui poucas aldeolas, de todas
as quais não pode André Vidal ajuntar oitocentos índios de armas, e
toda aquela imensidade de gente se acabou ou nós a acabamos em
pouco mais de trinta anos, sendo constante estimação dos mesmos
conquistadores que, depois de sua entrada até aquele tempo eram
mortos dos ditos índios mais de dois milhões de almas. (VIEIRA,
1992: 86).

Com relação a intervenção sobre os Tupi-Guarani ao longo destes primeiros

séculos, Pierre Clastres (2003) relata, com base nas cartas de Jesuítas e do padre Sepp

em especial, que em 1730 na região de Assunção, as aldeias que não haviam sido

submetidas pelos jesuítas desapareceram completamente, tanto por causa da escravidão,

quanto das epidemias que as assolaram. Clastres, como os outros antropólogos, afirma

48
que além da escravidão e das chacinas, as epidemias foram grandes responsáveis pelo

drástico decréscimo destas populações.

No entanto, se as epidemias e os portugueses se ocupavam da destruição dos

corpos, poder-se-ia dizer que à igreja restava a aniquilação dos “espíritos”. Por meio da

catequização, transformavam guerreiros “selvagens” e antropófagos em ovelhas do

rebanho divino. Mas este processo não foi tão simples, e por vezes, as dificuldades em

eliminar os costumes considerados bárbaros destes povos ditos selvagens eram

utilizadas como justificativa para a aplicação de punições, e coerções através do medo.

Segundo Serafim Leite (1954), o historiador da Companhia de Jesus no Brasil,

para a educação dos índios segundo o evangelho, era preciso sujeitá-los, tirando-lhes,

principalmente a liberdade de comer carne humana que, segundo o autor, é contra as leis

naturais, e proibindo-lhes a possibilidade de terem mais de uma mulher. De acordo com

Leite, em 1557, o Governador Mem de Sá vem facilitar o estabelecimento da civilização

ocidental.

Em comemoração ao quarto centenário da cidade de São Paulo, S. Leite

organizou em vários tomos, todas as cartas dos jesuítas no Brasil no período do primeiro

centenário. Dentre estas, foram utilizadas aqui apenas as cartas de um breve período de

anos, 1553 à 1558, suficientes para expor as primeiras relações entre os índios e a

Companhia de Jesus.

Em carta ao padre Miguel Torres, em maio de 1558, o padre Manuel da Nóbrega

(apud LEITE, 1954) estabelece seis leis que norteiam a educação que deve ser aplicada

aos índios. A primeira defende que os índios não devem comer carne humana e nem

guerrear sem a licença do Governador. A segunda pretende que tenham uma só mulher.

A terceira lei diz que devem se vestir. A quarta que devem tirar-lhes os feiticeiros. A

quinta lei pretende que se ponham em justiça – de acordo com as leis de Portugal –

49
entre si e com relação aos cristãos. E finalmente, a última, se emprega contra o

nomadismo dos índios, demandando que estes se estabeleçam em uma moradia fixa.

Anchieta (1964) constata que à todos estes obstáculos dos costumes indígenas

existe uma solução fácil se houver temor e sujeição, mas que entre os povos que são

nômades a maior dificuldade é o fato destes nunca pararem muito tempo no mesmo

lugar, o que é um impedimento à freqüência e contato constante com os missionários da

Companhia.

Sobre a conversão dos índios nos séculos XVI e XVII, Viveiros de Castro sugere

que “a palavra de Deus era acolhida por um ouvido e ignorada com displicência pelo

outro. O inimigo aqui não era um dogma diferente, mas uma indiferença ao dogma”

(2002: 185).

Em relato aos padres e irmãos de Coimbra em julho de 1555, Antônio Blazquez

lamenta:

Ó meus irmão em Jesus Cristo caríssimo, quantas lágrimas


derramariam seus olhos se vissem estas criaturas de Deus viver
quase a maneira de animais sem rei, sem lei e sem razão, sedentos
em comer carne humana e tão impregnados desta brutalidade, que
preferirão perder o que possuem à dar-nos um negro cativo que
pretendem comer. Entre eles não há amor nem lealdade (...). Não tem
a quem obedeçam além de suas vontades, e aqui fazem o que querem
inclinando-se a vícios imundos e tão imorais que prefiro que se
calem sob o silêncio do que escrevendo expor maldades tão grandes
(BLAZQUEZ apud LEITE, 1954: 252, tradução livre).

De acordo com S. Leite, com a aliança entre o Governador Mem de Sá e o padre

Manuel da Nóbrega, as leis cristãs de Nóbrega começaram a se impor entre os índios,

pelo menos onde quer que chegasse a influência das autoridades. Na carta a Miguel

Torres, Nóbrega afirmava que os nativos destas terras eram

(...) tão cruéis e bestiais, que assim matam aos que nunca lhes
fizeram mal, (...) tão carniceiros de corpo humano, que sem excepção
de pessoas a todos matam e comem, e nenhum benefício os inclina
nem abstém de seus maus costumes, antes parece e se vê por
50
experiência, que se ensoberbecem e fazem piores com afagos e bom
tratamento. (NÓBREGA apud LEITE, 1954: 447)

Ele pedia que se delegasse aos índios um Protetor, alguém que os castigasse

quando merecessem e os protegesse quando necessário. Justificava que só era possível

fazer com que se humilhassem e sujeitassem com castigo e severidade. Segundo S.

Leite, a conversão dos índios adultos era considerada quase impossível, e por este

motivo dava-se preferência a catequização das crianças e jovens. Anchieta pensava do

mesmo modo, pois para ele a conversão dos índios em 1584 na Bahia teve efeito “ao

menos nos filhos dos índios, porque os pais estavam ainda então muito duros e agrestes"

(ANCHIETA, 1964: 29)

doutrinação das crianças

Em Julho de 1554, Pero Correia coloca em carta ao padre Brás Lourenço que se

encontrava no Espírito Santo, sobre os avanços do padre Manuel da Nóbrega em sua

peregrinação ao sertão de São Vicente. Quando entrava nas aldeias, um dos métodos

que usava, era dar à um dos meninos da Companhia uma cruz pequena, que estes

levavam erguida “(...) e vão cantando as ladainhas de maneira muito agradável, e logo

as crianças dos lugares se juntam com eles, (...) e algumas destas crianças deixavam

seus pais para se juntarem a eles”. (CORREIA apud LEITE, 1954: 67, tradução livre).

Além disso, Correia menciona que em Piratininga tinham já um lugar de índios

convertidos, e que neste mesmo lugar havia uma Escola de Meninos Índios, aonde o

Irmão Antônio Rodrigues os ensinava a ler, escrever e, à alguns, a cantar. Sobre estes

meninos, relata que “são alguns destes jovens tão vivos e tão bons e tão atrevidos, que

quebram as cumbucas cheias de vinho para que os seus não bebam” (ibidem: 70,

tradução livre).
51
Segundo Foucault (2003b), nos séculos XVI e XVII, a pedagogia jesuítica já

empregava técnicas de governo que se exerciam por meio da disciplina. Na América, se

as dificuldade eram grandes com relação aos adultos – já tão impregnados de seus

velhos costumes –, as crianças, quando educadas desde cedo, acabavam tornando-se

pequenos agentes da catequização jesuítica. Foucault afirma que, nesta época, esta linha

descendente de controle, que agia no cuidado da conduta de cada indivíduo de acordo

com a moral do rei (ou do Estado), é o que seu nome ao que hoje continuamos a chamar

de polícia.

Em dezembro de 1554, o padre Luis da Grã, 2º Provincial do Brasil que

substituirá Nóbrega em 1560, manifesta ainda que “nos meninos temos muita esperança,

porque têm habilidade e disposição, e tomados antes de irem às guerras, (...) e mesmo às

mulheres, e antes que bebam e caiam em desonestidade” (apud LEITE, 1954: 133,

tradução livre).

Entre técnicas de conversão estavam as ladainhas, missas, procissões, e

batismos, principalmente de moribundos. Quando alguém tido como moribundo

sobrevivia depois do batismo dizia-se que era milagre de Deus. Quando um morria,

dizia-se que fora salvo à tempo de ir aos reinos dos céus. E se um que não era

moribundo morria depois do batismo, era comum que se dissesse que sua fé não era

verdadeira, ou que pecara, e por este motivo estava sendo punido. Da mesma forma que

ainda hoje se fazem as escolas, a educação era baseada também em discursos de

punição e recompensa.

Em carta ao padre Inácio de Loyola, José de Anchieta constata:

Tendo o nosso Padre [Nóbrega] decidido que levássemos à sua terra


alguns índios, que chamam Carijós, para que ajudassem os restantes
a converter-se à fé de Cristo, atacou-os doença súbita de que
morreram quase todos. Ora soubemos depois que eles não estavam
bem dispostos connosco e tinham assentado apartar-se de nós,
52
quando estivessem na própria terra, ou fazer-nos outro mal maior
(ANCHIETA apud LEITE, 1954: 108).

Por vezes, como afirma Anchieta (1964), os homens da Companhia

acompanhavam governadores e capitães nas "guerras justas", e neste momento

procuravam converter e batizar não somente a gente da aldeia, mas principalmente

àqueles que deveriam ser mortos.

pacificação

Quase um século depois das cartas de Anchieta, Nóbrega e Pero Correia, entre

outros, e grande parte da população indígena dizimada ou feita escrava, as chamadas

guerras justas tornaram-se um dos únicos meios de se tomar os índios como cativos.

Neste momento, além da conversão dos índios, passou a existir também uma

preocupação quanto à sua preservação, desde que não se tratasse de canibais. A maneira

pela qual eram tratados aqueles que se sabiam ou pensavam canibais, fica explícita nas

advertências acerca do cativeiros dos índios escritas por Vieira em 1655:

Primeiro que tudo se deve fazer informação se a nação que tiver


índios cativos os costuma matar e comer, como nós fazemos aos
animais. E constando ser assim, sem mais exame de justiça e seu
cativeiro, se deve julgar em consciência que podem ser resgatados
como verdadeiros escravos, ainda que atualmente não estejam
presos ou em corda, como dizem, para serem mortos e comidos
(VIEIRA,1992: 191).

Quatrocentos anos depois da pacificação jesuítica dos Tupinambá e de outros

índios da costa das Américas, de acordo Vilaça e Conklin (1998), o boom da borracha

intensificou os conflitos entre os Wari’ e os não-índios na região do rio Pacaas Novos.

Segundo as autoras, os seringalistas faziam expedições de extermínio e em contrapartida

53
os Wari’ atacavam com chuvas de flechas. O grande número de mortes nos conflitos,

fez com que algumas organizações interviessem com o objetivo de pacificar. Desta

forma, “o primeiro contato pacífico só foi estabelecido em 1956, com a participação dos

missionários fundamentalistas da Missão Novas Tribos do Brasil” (1998). A

participação dos missionários consistia em impor aos índios as leis de Deus, obrigando-

os a se desfazerem de muitos de seus costumes. A partir deste momento, a antropofagia

wari’ foi suprimida, os mortos não eram mais comidos e muito menos os inimigos.

Vilaça e Conklin (1998), explicam que o processo de pacificação, que consistia

em trazer os índios para perto, durou mais de dez anos, já que os Wari’ viviam

espalhados, e devido principalmente às epidemias – que na época do contato eliminaram

grande parte da população wari’ –, retornavam freqüentemente para dentro da floresta.

No site da Missão Novas Tribos do Brasil, no pequeno texto intitulado “A

realidade missionária indígena”, alerta-se que, “o saudoso missionário Abraão Koop, da

Missão Novas Tribos dizia que os Paacas Novos receberam os primeiros missionários

com flechas”. O alerta se refere ao cuidado que os missionários devem ter quando

entrarem em contato com estes povos, considerados bárbaros. No mesmo texto,

referindo-se ao uso da palavra bárbaros explicam que “há uma forte campanha para

evitar termos como estes, mas sempre existiram culturas de costumes primitivos, menos

desenvolvidas em relação ao desenvolvimento normal do mundo. São os chamados

‘povos isolados’”.

etnocentrismo

O problema que se levanta com a intervenção da Companhia de Jesus nos

séculos XVI e XVII, e mais recentemente, da Missão Novas Tribos (MNTB), não está

54
relacionado com uma corrupção dos costumes indígenas, como se esses fossem puros e

estáticos.

Eric Wolf problematiza o conceito de cultura, alertando para o fato que “os

conjuntos culturais – e conjuntos de conjuntos – estão continuamente em construção,

desconstrução e reconstrução, sob o impacto de múltiplos processos que operam sobre

amplos campos de conexões culturais e sociais” (2003: 297). Os contatos e influências

em si, dessa forma, não seriam mais do que um processo comum a qualquer ser ou

cultura que esteja vivo.

Da mesma forma, Lévi-Strauss já constatara que o etnocentrismo é comum a

qualquer sociedade. Cada cultura vê a si como melhor e superior a outra. No caso das

declarações feitas pela MNTB, esta atribui aos índios um subdesenvolvimento em

decorrência do isolamento destes, o que não é real, já que, com relação aos Wari’ (ou

Pakaa Novos), o próprio conflito com os seringalistas já mostra que o contato existia,

isso para não falar do contato com os demais povos indígenas com os quais mantinham

contatos regulares.

Lévi-Strauss ressalta em “Raça e História” que algumas sociedades partilham de

diferenças e semelhanças as vezes muito mais pelo contato – direto ou indireto – do que

por uma origem biológica comum. Ele acrescenta ainda que,

(...) a diversidade das culturas humanas não deve ser concebida de


uma maneira estática. (...) É indubitável que os homens elaboraram
culturas diferentes por causa do afastamento geográfico, das
propriedades particulares do meio e da ignorância que tinham do
resto da humanidade; mas isto só seria rigorosamente verdadeiro se
cada cultura ou cada sociedade tivesse nascido e se desenvolvido
isoladamente de todas as outras. (...) E, ao lado das diferenças
devidas ao isolamento, existem aquelas, também muito importantes,
devidas à proximidade: desejo de se oporem, de se distinguirem, de
serem elas mesmas. (LÉVI-STRAUSS, 1989: 332-333)

Mas se a diversidade é um fenômeno tão comum, e mesmo natural no

55
desenvolvimento das culturas, Lévi-Strauss acrescenta que as diferenças entre as

nações, sociedades e culturas são vistas, no entanto, como piores, inferiores e, por

vezes, monstruosas.

O que se deve cuidar, portanto, são as formas de lidar com esse etnocentrismo,

com estas diferenças. Pierre Clastres também admite que o etnocentrismo é imanente à

própria cultura, “(...) a alteridade cultural nunca é apreendida como diferença positiva,

mas sempre como inferioridade segundo um eixo hierárquico” (2004: 86). A diferença

estaria então no fato de que “(...) se toda a sociedade é etnocêntrica, somente a ocidental

é etnocida” (ibidem).

Talvez a sociedade ocidental não seja a única etnocida, mas essa é uma diferença

fundamental entre algumas sociedades ameríndias e a ocidental. Enquanto o

etnocêntrico acredita em sua superioridade, o etnocida crê que é preciso salvar as outras

sociedades de sua inferioridade. Dessa forma, afirma Clastres, “a espiritualidade do

etnocídio é a ética do humanismo” (2004: 84). Pelo bem do outro, ou pelo bem comum,

a alteridade, ou, em época de multiculturalismo, a má alteridade deve ser extirpada.

56
Capítulo II: medidas contra o indesejável

Do encontro entre europeus e ameríndios, o canibalismo serviu aos primeiros

como justificativa para matar e sujeitar os outros. Mesmo que entre os ameríndios estas

práticas tivessem significações diferentes, relacionadas a circunstâncias rituais

específicas, foi a partir dos valores dos próprios ocidentais que o canibalismo se tornou

alvo de investimentos penais. Nas sociedades ocidentais, o canibalismo fomentou

diversas intervenções que se modificaram, deslocaram e redimensionaram, de acordo

com as épocas, discursos e situações em que se encontravam.

sinônimo de indesejável

Em 1979, o livro de William Arens, The Man-Eating Myth, “(...) brilhante mas

superficial, que teve grande sucesso junto ao público mal informado (...)” (LÉVI-

STRAUSS, 2006: 17), retomou a discussão do canibalismo – a partir das idéias,

admitidas na época, sobre a doença do kuru – de forma oposta ao que aconteceu entre os

séculos XVI e XVIII.

Conforme Lévi-Strauss, a doença do kuru foi descoberta em 1956 pelo biólogo

americano Carleton Gajdusek em suas pesquisa em pequenas aldeias na Nova Guiné.

Primeiramente o biólogo acreditou que a doença era de origem genética, mas depois

demonstrou que ela era promovida pela ação lenta de um vírus que causava a

degeneração do sistema nervoso central. Os meios de contaminação, no entanto, eram

um mistério, já que a proporção de contaminados era maior entre mulheres e crianças.

Somente com a entrada de etnólogos na região é que novas hipóteses puderem ser

levantadas:

57
Antes de passar ao controle da administração australiana, os grupos
vitimados pelos kuru praticavam o canibalismo (...). As mulheres,
responsáveis pelo trincho dos cadáveres e pelas outras operações
culinárias, apreciavam particularmente essas refeições macabras.
Pode-se supor que elas se contaminavam ao manipular os cérebros
infectados e que, por contato corporal, contaminaram suas crianças
pequenas. (LÉVI-STRAUSS, 2006: 15).

Lévi-Strauss acrescenta ainda que, depois que o canibalismo foi extirpado com a

presença dos brancos, o kuru diminuiu até quase desaparecer. Entretanto, esta hipótese

de canibalismo não foi bem recebida por todos.

Enquanto nos séculos seguintes ao descobrimento procurou-se atribuir ao maior

número possível de etnias a prática antropofágica a fim de justificar a escravidão e

mesmo a matança dos índios, no final da década de 1970, Arens se empenhou em

comprovar que o canibalismo, como prática ritual de outras sociedades, era uma

invenção de colonizadores e pesquisadores. Segundo o autor,

é seguro afirmar que todas as culturas, subculturas, religiões, seitas,


sociedades secretas e qualquer outro tipo possível de associação
humana, foram qualificadas de antropofágicas por alguém. À luz
desta comprovação emerge o descuidado problema antropológico da
contemporaneidade. O fenômeno universal é a idéia dos “outros”
como canibais, e não o canibalismo. (ARENS, 1981: 128, tradução
livre)

Mikita Brottman expõe brevemente em seu livro Meat is Murder! – em que se

propõe a explorar em um único volume a cultura canibal, da antropologia à literatura

com maior ênfase nos filmes de canibalismo –, que Arens encabeçou as acusações de

que relatos como o de Hans Staden seriam estratégias para desqualificar as culturas

americanas provando a superioridade da cultura ocidental.

Arens afirma que

é mais razoável concluir que a idéia da natureza canibal dos outros é


um mito no sentido que, primeiro, tem uma existência independente,
58
sem relação alguma com a realidade histórica, e segundo, contem e
transmite mensagens culturais significativas para que o
mantenham.(...) As noções equivocadas sobre o modo de vida
selvagem caíram, uma atrás da outra, perante seu questionamento,
mas o canibalismo permanece inviolado, nunca visível e nunca
esquecido. Em certo sentido, antropólogos sociais de todas as
escolas, se absteriam de aplicar suas próprias lições ao estudo de
sua própria disciplina como o objetivo de manter uma oposição
rígida entre “nós” e “eles”. Como conseqüência, o tom geral do
comentário antropológico moderno sobre o canibalismo surge como
pouco mais que uma re-interpretação em jargão científico. (ARENS,
1981: 164 e 165, tradução livre)

Se, por um lado, o discurso inverso ao dos colonizadores europeus na época do

descobrimento – negando a existência do canibalismo – não passa da reprodução do

mesmo preconceito com relação ao canibalismo, caracterizando-o como prática de seres

inferiores, por outro lado é possível, a partir daí, pensar o canibalismo não

simplesmente como uma prática, mas como um conceito etnocêntrico de

desqualificação do outro. Neste sentido, as circunstâncias em que se identifica a prática

canibal são – de uma perspectiva ocidental – indesejáveis por princípio,

independentemente se praticadas por etnias indígenas ou não.

Até o final do século XX foi possível identificar pelo menos três destas

circunstâncias em que o conceito se aplica em sociedades ocidentais. A primeira delas

se refere à prática do canibalismo como último recurso de sobrevivência. A segunda

situação, que de certa forma abrange todas as outras, pode ser colocada como tática de

terror, uma forma de sujeição pelo do medo ou desqualificação do outro. A terceira

emerge a partir de um saber médico-jurídico, que encontra na figura do canibal o

indivíduo perigoso.

o canibalismo em situações extremas

O canibalismo enquanto último recurso contra a fome em situações extremas é a

59
única forma desta prática que pode se tornar aceitável na sociedade ocidental. Ainda

assim existem aqueles que colocados em tal situação, vêem na morte uma saída menos

terrível.

No artigo “Cannibalism: The Ancient Taboo in Modern Times”, Rachel Bell –

psicóloga, estudiosa da psiquiatria forense e escritora no site Crime Library – relata a

história de um grupo de peregrinos liderado por George Donner, que pretendia

atravessar as montanhas de Sierra Nevada em 1846. Em um site dedicado aos 150 anos

da tragédia, Daniel M. Rosen, autor do site, ressalta que a caravana de Donner, saíra do

leste dos EUA, com o objetivo de ocupar o oeste, para tomá-lo do governo mexicano.

Durante o percurso outras pessoas, entre elas alguns índios, se juntaram ao grupo.

Segundo Bell, o grupo, constituído por homens, mulheres e crianças, foi obrigado a

alterar a sua rota devido a uma nevasca. Devido ao imprevisto, as pessoas começaram a

morrer pela falta da comida e de outros recursos. Antes que resolvessem comer os seus

mortos, metade dos viajantes já havia morrido. Ao serem resgatados, os sobreviventes

sofreram severas represálias. Foram chamados de monstros e tiveram que cumprir uma

pena de seis meses de prisão antes que pudessem voltar para suas casas.

Em 1972, mais de um século depois do incidente em Sierra Nevada, um time de

rugby amador uruguaio, partia em um avião da força aérea em sentido a Santiago, no

Chile. A história é uma das mais conhecidas e difundidas em todo o mundo. Mikita

Brottman (2001) narra que, durante a viagem o mau tempo fez com que o avião se

chocasse contra uma montanha nos Andes. Dos 45 a bordo (time, familiares, amigos e

tripulação), 32 sobreviveram ao choque do avião. A comida e a bebida eram escassas.

Mais de uma semana depois, famintos e sem notícias de resgate, decidiram comer os

que estavam mortos. Dez dias depois do acidente, ouviram pelo rádio que as buscas

estavam oficialmente canceladas. Clara Tahoces – escritora especializada em temas

60
sensacionalistas – acrescenta, em um artigo para a internet, que grande parte dos que

ainda resistiam em comer seus companheiros de viagem mortos acabaram cedendo, mas

mesmo assim alguns poucos preferiram a morte. Os passageiros do avião só foram

resgatados mais de dois meses depois, quando alguns deles – que resolveram sair em

busca de ajuda – conseguiram alcançar um povoado em um vale abaixo das montanhas

andinas. Ao final, apenas 16 sobreviveram.

Segundo Brottman, por algum tempo estes tentaram ao máximo não falar sobre o

ocorrido, no entanto o fato de terem resistido tanto tempo a tais circunstâncias acabou

gerando uma pressão para que seus atos viessem à tona. Mas mesmo na época, salienta

Brottman, grande parte dos comentadores se mostrou muito compreensiva com a

situação desesperadora pela qual os sobreviventes haviam passado, sem repreendê-los

pelos atos de canibalismo. A compaixão foi tanta que dois filmes, o mexicano

Superviviente de los Andes e o americano Alive!, sendo o segundo um filme de grande

circulação, foram feitos para contar de forma heróica a tragédia dos Andes. Além disso,

segundo uma reportagem no site Correio Web, os sobreviventes declararam que “antes

de consumir a carne dos companheiros mortos, o grupo rezava e lembrava o ritual

católico da comunhão” (CORREIO BRAZILIENSE, 22/03/2001). Em 2002, alguns dos

sobreviventes se reuniram para refazer o trajeto que deveria ter sido feito no dia do

acidente de avião e jogar uma partida simbólica com o time que acabaram não

enfrentando. Segundo as declarações feitas à agência de notícias Reuters (11/10/2002),

a maioria dos sobreviventes não se arrepende das atitudes que tomaram naquele

momento. Depois de terem sido inspiração para filmes, os sobreviventes saíram pelo

mundo contando a sua história.

O fato dos sobreviventes terem tido uma repercussão favorável na mídia, tanto

nos noticiários quanto no cinema, ajudou na aceitação do público. Além disso, os

61
canibais dos Andes não eram nômades, estrangeiros, ou aventureiros (características

indesejáveis pelo seu caráter incerto, duvidoso), ao contrário, possuíam residência fixa,

tinham trabalho, família, praticavam esportes e eram cristãos. Em outras palavras, não

apresentavam perigo para a ordem social burguesa.

Em 2001, o site de notícias do jornal Correio Braziliense divulgou outro caso de

canibalismo em circunstâncias extremas. Foi noticiado que a guarda costeira haitiana

avistara três sobreviventes junto de alguns corpos no mar. De acordo com as

informações contidas na notícia, é comum que barcos carregando imigrantes ilegais da

República Dominicana em direção aos EUA, naufraguem matando grande parte de seus

passageiros. No entanto, conforme as palavras utilizadas para descrever o acorrido, “(...)

o verdadeiro drama só seria conhecido num hospital em Porto Príncipe, onde um deles

morreu: comeram carne humana para sobreviver” (CORREIO BRAZILIENSE,

22/03/2001). Um dos sobreviventes contou que os outros passageiros tiveram que se

alimentar daqueles que iam morrendo para poderem sobreviver, mas negou que ele

mesmo tivesse comido, o que depois foi refutado pelos médicos que o atenderam, pois

disseram que este não teria sobrevivido só com a água do mar, conforme seu próprio

depoimento.

Em julho de 2004 a história se repete. A imprensa divulga outro caso em que um

navio de imigrantes ilegais vindos da República Dominicana em direção a Porto Rico

(EUA) naufraga. Segundo os sites dos jornais da Folha (JIMENÉZ, 12/08/2004) e do

Estado (ESTADAO, 11/08/2004), alguns sobreviventes teriam afirmado que se

mantiveram vivos a partir da ingestão de carne humana, sangue e leite de uma mulher

que acabara de dar a luz. Desta vez o número de sobreviventes foi maior e os relatos de

canibalismo também. Alguns dos náufragos continuaram insistindo que não haviam

comido carne humana. Afirmaram não só que não haviam comido, como também que

62
teriam feito um juramento para que nenhum deles comesse: "Se vamos morrer,

morreremos todos" (JIMENÉZ, 12/08/2004).

Este tipo de declaração, esta negação, presente nos dois casos de naufrágio,

mostra que mesmo entre estes canibais, o canibalismo é prática repugnante, ou ao

menos, que existe uma preocupação de que, a vista dos outros, o canibalismo os tornaria

repugnantes. A prática canibal é intragável para grande parte da população nas

sociedades ocidentais, e isso é explicitado pelo próprio repórter quando, diante da

morte, ele expressa que o drama maior ainda estava por vir, em referência ao

canibalismo.

No livro da jornalista Anne Applebaum (2003) sobre os gulags soviéticos, a

autora se refere a relatos dos anos de 1930 e 1940, de prisioneiros que eram

abandonados na ilha de Nazino com suprimentos insuficientes, sem abrigos ou

ferramentas. Dos mais de seis mil prisioneiros abandonados, pouco mais de mil

sobreviveram à custa da carne dos companheiros mortos. Estes sobreviventes, no

entanto, foram punidos mais uma vez, acusados de canibalismo.

Os prisioneiros nos gulags eram tidos como criminosos naquele momento,

naquelas circunstâncias, em que eram os inimigos, e também parte do modo de

produção comunista – já que os gulags eram, além de tudo, campos de trabalho forçado

–, da URSS. Agora, e sob nova perspectiva, é que estes prisioneiros canibais foram

transformados em vítimas, do canibalismo e da ditadura comunista.

Os elementos que unem todos estes exemplos não são as situações, mas as

perspectivas, hoje em dia, destes relatos. A partir deles é possível, portanto, analisar o

que significa o canibalismo em situações extremas hoje.

Sob esta perspectiva é possível afirmar que nas situações em que o canibalismo

foi impulsionado pela fome existe certa compaixão com os canibais. Eles acabam sendo

63
vistos como vítimas de circunstâncias sempre traumáticas. Mesmo assim há uma

hierarquia entre as vítimas, determinada pelas motivações e características destas

pessoas em cada caso. Com relação ao incidente de Sierra Nevada, ainda que na época

os canibais tenham sido presos, hoje retoma-se a história com pesar do trágico

acontecimento daqueles que foram submetidos a esta situação na tentativa de tomar as

terras das mãos dos estrangeiros, em um ato patriótico. Os canibais dos Andes, que

eram esportistas e católicos, logo foram transformados em vítimas heróicas, verdadeiros

mártires. Os imigrantes ilegais da República Dominicana, quando muito, são colocados

como mentirosos, mesmo que também os uruguaios dos Andes tenham mentido sobre o

canibalismo em determinado momento. Adiciona-se ainda o fato de que os uruguaios

foram recebidos na própria terra, enquanto que os náufragos eram estrangeiros que

fugiam de sua.

Estes canibais, depois de suprimida a necessidade de comer a carne dos outros

(com a condição que estes outros já estivessem mortos), dificilmente voltam a fazê-lo.

Isso lhes garante a condição de vítima. O canibal enquanto vítima é suportável, pois a

vítima não tem vontade, ela é submetida à uma situação arbitrária fora de seu controle.

Qualquer elemento de desejo é anulado quando se confere a alguém esta condição. Mas

se por algum outro motivo que não for de extrema necessidade como o que passaram,

estas pessoas voltarem a praticar o canibalismo, perdem seu status de vítima, e passam a

ser consideradas loucas, criminosas, monstruosas, anormais.

Na própria URSS, alguns outros relatos de canibalismo mostram esta pequena

linha que separa o canibal, vítima da fome, do assassino criminoso. Ainda no livro de

Applebaum, há uma descrição de casos que eram consideravelmente correntes, de fugas

das prisões relacionadas ao canibalismo. Segundo a autora,

64
Muitas fugas de criminosos (a maioria, provavelmente) envolviam
violência. Os fugitivos atacavam os guardas armados, sufocavam-
nos e atiravam neles, e faziam o mesmo com os trabalhadores livres
e os moradores. Também não poupavam os companheiros de prisão.
Um dos métodos-padrão de fuga dos criminosos comuns1 era o
canibalismo. Uma dupla de criminosos combinava fugir com um
terceiro homem (a “carne”), cujo destino era tornar-se o sustento
dos outros dois durante a jornada (APPLEBAUM, 2003: 455).

tática de terror

Expresso principalmente em situações de guerra ou rebeliões, o canibalismo

como tática de terror é uma maneira de sujeitar o outro pelo medo ou de justificar o uso

de medidas coercitivas para sua destruição. Enquanto tática esta forma tem em comum,

nas sociedades ocidentais, o uso do canibalismo como sinônimo do indesejável. Uma

situação indesejável ou uma identificação indesejável. As suas variações se expressam

com relação aos objetivos à que esta tática é empregada. Assim, deixa de ser muito

relevante se uma pessoa foi de fato devorada por outra, o que importa são os efeitos

desta atribuição.

Desde 1998, o Congo se encontrava em uma guerra civil entre os chamados

Grupos Rebeldes e os grupos de outras etnias como os Pigmeus. Segundo o artigo para

o Le Monde de Jean-Philippe Rémy (27/02/2003), a ONU e organizações não-

governamentais teriam recebido denúncias de Pigmeus que presenciaram membros do

grupo Movimento de Libertação do Congo (MLC, de Jean-Pierre Bemba) e seus

aliados, praticando atos de canibalismo contra os Pigmeus, e mesmo obrigando estes a

comerem a carne de seus próprios parentes e amigos. No entanto, em depoimento ao

1
No seu livro, a autora faz uma diferenciação entre presos políticos e criminosos comuns, baseada nos
relatos dos prisioneiros. Sobre esta distinção, Michel Foucault afirma: “Antes de saber se os detentos que
ali estão são ‘políticos’, a instalação do campo, nesse lugar tão visível, e o terror que ele exala são, em si,
políticos. O arame farpado que prolonga os muros das casas, os feixes de luz que se entrecruzam e o
passo das sentinelas à noite, isso é político. E é uma política.” (FOUCAULT, 2003d: 190)
65
serviço Francês da BBC (16/01/2003), alguns líderes rebeldes afirmaram que as

acusações eram falsas, que teriam o intuito de derrubar o grupo político, já que, segundo

estes, haveria um conflito de interesses entre a ONU e eles. Em setembro de 2004 a

Monuc (Missão de Observação das Nações Unidas), continuava afirmando sobre os atos

de canibalismo, no entanto, Angali Saleh (porta-voz dos Pigmeus) “pediu perdão ao

líder da MLC, Jean-Pierre Bemba, na atualidade um dos quatro vice-presidentes da

RDC [República Democrática do Congo] em virtude dos acordos de paz, e disse que os

Pigmeus foram ‘manipulados por políticos que queriam sujar’ o nome dos rebeldes.”

(EFE, 25/09/2004).

Se o canibalismo ocorreu de fato nesta guerra entre os diferentes grupos

congoleses não parece ser a questão mais importante, já que estas mesmas denúncias se

modificaram conforme as circunstâncias políticas. No primeiro momento, houve um

grande investimento das Nações Unidas em mostrar que tais atos aconteciam e

denunciá-lo perante toda a imprensa mundial. Num segundo momento, em que um

acordo de paz estaria sendo selado entre os Pigmeus e os Rebeldes, as denúncias foram

formalmente retiradas, mas não por parte das Nações Unidas, que segundo estes

mesmos Rebeldes, estariam interessadas em uma outra conjuntura política. Mas se o

canibalismo não era a questão principal no conflito, ele serviu ao menos como

estratégia, num determinado momento, para desqualificar publicamente o inimigo. É

possível também, que o canibalismo tenha sido usado como discurso dos grupos

rebeldes para amedrontar os adversários da ocasião.

No Brasil, durante a rebelião no presídio de Ribeirão Preto em 2001, presos de

facções opostas foram acusados de terem arrancado o coração de um deles, e depois

assado e comido com pinga. Segundo os depoimentos que deu ao jornal Folha de São

Paulo (FOLHA ONLINE, 30/03/2001), um tenente da polícia militar, que fôra feito

66
refém, disse que durante a rebelião, dois presos de facções opostas aos demais foram

decapitados. Enquanto um teve o coração arrancado, assado e comido com pinga, o

outro teve a cabeça exposta fincada em um estilete. Neste caso, a cabeça exposta

explicita o papel do canibalismo nesta situação: amedrontar e servir de exemplo, e

afirmar a superioridade, a soberania sobre o outro, seu poder de fazê-lo viver e deixá-lo

morrer. Por outro lado, as notícias são também uma forma de imputar aos detentos a

bestialidade e a maldade por meio do canibalismo.

Entre os séculos XVI e XVIII os suplícios eram utilizados como práticas oficiais

de repressão penal. Segundo a análise de Michel Foucault, o suplício tinha a função de

servir como exemplo, de marcar no próprio corpo do condenado o castigo que

representava.

(...) o suplício, mesmo se tem como função ‘purgar’ o crime, não


reconcilia; traça em torno, ou melhor, sobre o próprio corpo do
condenado sinais que não devem se apagar; a memória dos homens
(...) guardará a lembrança da exposição, da roda, da tortura ou do
sofrimento devidamente constatados. E pelo lado da justiça que o
impõe, o suplício dever ser ostentoso, deve ser constatado por todos,
um pouco como seu trunfo. (FOUCAULT, 2003a: 31-32).

O suplício era pautado no exercício do poder do soberano. Foucault salienta

ainda, que pelo suplício o rei expunha a sua superioridade perante a vida de qualquer

um. O excesso das medidas punitivas também tinha o papel de mostrar a distância entre

o poder do rei e de seus súditos. Se na sociedade de soberania estava em jogo a defesa

do soberano, o suplício deveria restaurar o seu poder lesado.

Mas se o suplício desapareceu como prática legal, sendo substituído pelos

internamentos, penas capitais indolores (ou menos dolorosas), ou – bem mais

recentemente – por controles a céu aberto, seus resíduos ainda se exercem em situações

como guerras, rebeliões, ou práticas privadas (na escola, em casa, no cárcere, etc.).

67
Em 1995, em Rondônia, a ocupação de uma fazenda por famílias de sem-terras

resultou na execução, tortura e prisão de dezenas de pessoas. Segundo o artigo para uma

revista eletrônica de Geografia e Ciências Sociais da geógrafa H. A. de Mesquita

(2002), o acampamento na Fazenda Santa Elina em Corumbiara foi cercado por policias

e jagunços e atacado com gás lacrimogêneo e balas. Algumas pessoas morreram na

hora, outras, enquanto tentavam fugir. Entre os que sobreviveram, aqueles que não

conseguiram escapar foram torturados e obrigados a comer cérebro dos companheiros

mortos e terra ensangüentada. Neste caso, o canibalismo tem como função desqualificar

a vida de outros. Entre as diversas formas de humilhação que foram aplicadas a estas

pessoas, como obrigá-las a se despir, proibí-las de defecar e urinar, pisar sobre as suas

cabeças, o canibalismo serviu como uma forma de mortificação pela desonra.

Os relatos, de organizações ou pessoas favoráveis às vítimas do massacre, faz

transparecer o canibalismo como elemento de humilhação. Além disso, o canibalismo é

percebido por aqueles que se colocam em defesa das vítimas do massacre como o que

seria um abuso de poder, no sentido que foram usadas medidas que extrapolaram as

medidas de violência legitimada do Estado. A fonte de informação permite ainda,

analisar o canibalismo como estratégia (não importa se ele ocorreu de fato ou não), por

parte das vítimas, de pedir medidas punitivas para os seus algozes, como é possível

verificar no manifesto (ver em anexo) que relembrava os 12 anos do massacre:

“Impunidade, descaso e arrogância dos poderes constituídos de Rondônia desafiam a

lei, a população e o estado democrático de direito” (OLIVAR, 2007).

68
o tirano sanguinário e o povo bestial

Na França do final do século XVIII, a propósito da Revolução – como salienta

Foucault (2002) – circulavam textos e panfletos em que Luis XVI e Maria Antonieta

eram retratados como o casal monstruoso, o chacal e a hiena. Havia nesta época toda

uma literatura que se dedicava a apresentar a figura real, por intermédio de práticas tidas

como monstruosas. Foucault descreve que, mais do que Luis XVI, era Maria Antonieta

quem cristalizava esta figura do monstro. Em primeiro lugar, o fato de ela ser

estrangeira fazia com que se creditasse à ela interesses não franceses, e deste modo,

potencialmente perigosos à França. Além disso, nos panfletos da época, ela era descrita

como escandalosa, depravada, incestuosa, ávida de sangue e homossexual.

Mas, se por um lado, como bem percebe Foucault, a literatura jacobina

procurava encontrar na realeza a figura do monstro, alvo de seus investimentos penais e

políticos, por outro lado, a literatura anti-jacobina, contra-revolucionária, se encarregava

de depositar no povo revolto a imagem dos antropófagos, ferozes e cruéis. De um lado,

atribuía-se à realeza a libertinagem e a sede de sangue, a fim de desmoralizá-la e

justificar a sua queda. De outro lado, era o povo revolto, que perdera a razão e

transformara-se de vez em bestas ferozes que comem carne de gente como se fossem

animais.

Conforme demonstra Foucault, as figuras do monstro antropófago e do

depravado incestuoso foram usadas, no momento da Revolução Francesa, de forma

estratégica nas literaturas revolucionárias e contra-revolucionárias, com o intuito de

desqualificar cada uma delas, e justificar as intervenções contra este dois personagens.

Assim, “foi em torno do problema do direito e do exercício do poder de punir que essas

duas figuras do monstro apareceram” (FOUCAULT, 2002: 124).

69
As figuras do povo revolto e do rei tirano são, enfim, como explicita Foucault, as

duas grandes imagens do fora da lei de acordo com o pensamento e a política burguesa,

a partir deles que se instituirão os anormais e as anomalias. É portanto, a partir do par

antropofagia-incesto, que a psiquiatria e a psiquiatria criminal irão se constituir ao longo

do século XIX, de onde surgirão também as noções de anormal e do indivíduo perigoso,

conforme Foucault.

(...) essas figuras é que foram os pontos de organização, de


deflagração, de toda medicina legal: figuras da monstruosidade
portanto, da monstruosidade sexual e antropofágica. São esses
temas, sob a dupla figura do transgressor sexual e do antropófago,
que vão correr ao longo de todo século XIX, que encontraremos
perpetuamente nos confins da psiquiatria e da penalidade, e que
darão toda a sua estatura a essas grandes figuras da criminalidade
do fim do século XIX. (FOUCAULT, 2002: 127)

medidas jurídicas e saber psiquiátrico

A terceira circunstância a que se aplica a noção de canibalismo nas sociedades

ocidentais emergirá de um problema colocado pela nova mecânica do poder de punir. Se

antes o poder de punir se fundava na figura do soberano, de modo que qualquer crime

era um crime contra o rei, e a punição deveria – em seu excesso – mostrar a força deste

sobre qualquer um que o desafiasse. No século XVIII,

o desenvolvimento (...) da demografia, das estruturas urbanas, do


problema da mão de obra industrial havia feito aparecer a questão
biológica e médica das “populações” humanas, com suas condições
de vida, de moradia, de alimentação, com sua natalidade e
mortalidade, com seus fenômenos patológicos (epidemias, endemias,
mortalidade infantil). (FOUCAULT, 2004a: 9).

Em outras palavras, estas novas tecnologias eram centradas na vida e, desta

forma, o poder soberano de fazer morrer e deixar viver, é substituído pelo poder de

70
fazer viver e deixar morrer. As tecnologias disciplinares que emergiram daí exigiam

novos dispositivos punitivos (diferentes do suplício, do excesso) sob uma lógica

utilitarista. Segundo Foucault (2004a), a nova economia do poder de punir procura não

mais a verdade na aplicação do procedimento do suplício como forma de punir a ofensa

ao soberano, tampouco parte em busca da verdade sobre o fato, mas opera um

deslocamento da figura do infrator para a construção da figura do criminoso e

similarmente, não se trata mais da infração, mas desta transformada em crime. Logo, o

que passa a estar em jogo nesta composição de forças, não é tanto o ato cometido e sim

a virtualidade do ato transformado em conduta que respaldará a justificativa penal para

perigo projetado. A prevenção geral passará a situar a transmutação da lei em norma e

incidirá naqueles identificados como um perigo para a sociedade.

(...) no novo sistema penal, o que torna o crime mensurável, o que


por conseguinte permite que se ajuste a ele uma punição medida, o
que fixa e determina a possibilidade de punir (...) é o interesse
subjacente que se pode encontrar no nível do criminoso e da sua
conduta. (...) o que poderá ser anulado são todos os mecanismos de
interesse que suscitaram, no criminoso, esse crime e que poderão
suscitar, nos outros, crimes semelhantes (FOUCAULT, 2002: 143).

Desta forma, o postulado da racionalidade fica fortalecido. A partir deste

momento, para que se possa aplicar a punição, será preciso provar não só a razão do

sujeito (sua racionalidade), mas a razão do crime (os motivos). Há, portanto, ressalta

Foucault, “(...) uma inadequação entre a codificação dos castigos, o sistema legal que

define a aplicabilidade da lei criminal e o que eu chamaria de tecnologia punitiva ou de

exercício do poder de punir”. (ibidem: 145). Esta inadequação entre o discurso e a

prática exigirá a intervenção de um novo saber.

Em 1894, o fundador da antropologia criminal, César Lombroso, explicita, esta

mudança no sistema penal por meio de uma observação no prefácio de seu livro O

71
Homem delinqüente. Segundo o autor, há

(...) uma contradição singular [que] reina neste mundo: o juiz, de um


lado, separa de algum modo o delinqüente do delito para julgar,
como se o delito fosse um fato completo em si mesmo e como se
formasse, na vida do agente, um incidente que não suspeita repetir-
se. (LOMBROSO, 2001: 21)

Ao final do século XVIII e início do XIX, expõe Foucault, a psiquiatria ainda

não havia se constituído como saber médico. Ela surge como um ramo especializado da

higiene pública. Foram necessárias duas codificações simultâneas, para que a psiquiatria

se estabelecesse como saber científico, isso é, um saber que detém uma legitimidade

sobre a verdade. Foi preciso codificar a loucura como doença e perigo ao mesmo tempo.

Em linhas gerais, a psiquiatria, por um lado, fez funcionar toda uma


parte da higiene pública como medicina e, por outro, fez o saber, a
prevenção e a eventual cura da doença mental funcionarem como
precaução social, absolutamente necessária para se evitar um certo
número de perigos fundamentais decorrentes da existência mesma da
loucura. (FOUCAULT, 2002: 149)

o crime sem razão

Foucault percebe que a intervenção da psiquiatria no sistema jurídico penal

acontece, no início do século XIX, em decorrência de uma série de casos, na Europa,

que alertavam para um mesmo problema.

Em cada caso, acentua-se o fato de que nada havia previamente,


nenhuma perturbação anterior do pensamento ou da conduta,
nenhum delírio; tampouco havia agitação ou desordem como no
furor; e de que o crime havia surgido dentro do que se poderia
chamar de grau zero da loucura. (FOUCAULT, 2004a: 6)

72
Acrescenta-se a estes crimes o fato de todos eles terem sido cometidos sem

motivação nenhuma, “sem razão”. É exatamente este problema, colocado para a

economia do poder de punir, o crime sem razão, que constitui a terceira circunstância da

prática do canibalismo.

O código penal – cujo edifício teórico é fundado na soberania – sustenta que

somente a demência impede a aplicabilidade da pena. Nestes crimes, em que a justiça

penal não consegue estabelecer os interesses, segundo Foucault (2002), não existe

nenhuma característica explícita da loucura e tampouco existe um motivo, algo que

comprovaria a racionalidade do crime. O canibalismo nestas circunstâncias, além de ser

a priori considerado absurdo e irracional, apenas pela sua constituição conceitual,

apresenta-se em casos sem motivações fisiológicas – como a fome – e nem políticas,

como é o caso das guerras, rebeliões, massacres, em que o canibalismo é uma tática.

O saber psiquiátrico agirá de duas formas nesta circunstância. Do lado da

acusação, como indica Foucault (2002), a psiquiatria tentará comprovar, como o sujeito

se parece e sempre se pareceu com o seu crime, como se toda sua vida tivesse sido

preparada para aquele momento grandioso, o do crime. A defesa, por outro lado, se

apoiando nos mesmos elementos, tenta mostrar como o sujeito, na verdade não se

parece consigo mesmo, transformando o momento do crime em um momento de

ruptura, acrescenta Foucault. Desta maneira, todos os sinais, que eram entendidos pela

acusação como sinais de uma periculosidade inata, de uma monstruosidade moral, são

usados, na defesa, para demonstrar os primeiros sintomas de uma doença.

Se cada um desses casos tem sua peculiaridade, o saber médico-legal procura

encontrar em todos eles uma universalidade, uma regra geral, para que possa se

justificar como discurso verdadeiro, como saber científico. Segundo Michel Foucault,

“o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as leituras ou os sistemas de

73
dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos

apoderar” (2005a: 10).

Por este motivo, o saber psiquiátrico busca elementos em comum que

justificariam a categoria de indivíduo perigoso como algo natural, como conceito

universal e inquestionável. Atribuindo a causa à loucura (então não seria o indivíduo

perigoso, mas a doença que precisa ser curada) ou à uma natureza criminosa, (que cada

vez mais é explicada por meio da genética).

Dahmer: o mal inato

Dentre estes casos de canibalismo, alguns tiveram maior repercussão na mídia

por trazerem algum elemento médico ou jurídico que até então não havia aparecido.

Jeffrey Dahmer, conhecido como “o canibal de Milwaukee”, foi condenado a 957 anos

de prisão, por ter matado 17 homens e garotos entre os anos de 1978 e 1991. O

canibalismo foi utilizado em seu julgamento, somente como um elemento a mais para

avaliar a sua ‘sanidade’.

Segundo Marilyn Bardsley (s/d a) – publicitária fundadora do site Crime Library

– Dahmer foi uma criança muito amada e, apesar da gravidez complicada, era um garoto

normal e saudável, cujo nascimento foi celebrado. Gostava de brincar com blocos de

madeira e bichinhos de pelúcia, e tinha um cachorro que amava chamado Frisky. A

autora conta, com base nos depoimentos do pai de Dahmer, que apesar das constantes

infecções no ouvido e na garganta, ele era um garoto feliz. Seu pai se lembra de um dia

em que eles cuidaram de um passarinho machucado e depois o soltaram, e de como os

olhos de Jeffrey Dahmer brilhavam de alegria. No entanto, quando tinha 4 anos, o pai

de Dahmer lembra-se que varria os restos de um animal morto que encontrara de baixo

74
das escadas, e que o barulho dos osso parecem ter estranhamente fascinado o garoto.

Deste dia em diante, o pai de Dahmer sentia que algo malicioso e obscuro crescia dentro

do menino.

Aos seis anos, descobriram que o pequeno Jeffrey sofria com uma hérnia dupla

inguinal (na virilha) e que precisava de cirurgia. Bardsley menciona que depois disso,

ele nunca mais recuperou sua alegria e vivacidade, que passou a parecer menor e mais

vulnerável. Neste mesmo ano, sua mãe engravidou do seu irmão David e seu pai

arrumou emprego em outra cidade, forçando-os a se mudarem. Um medo terrível

pareceu brotar em Dahmer. “O garotinho que antes parecia tão feliz e seguro de si fôra

substituído por uma pessoa diferente, agora extremamente tímido, distante,

praticamente incomunicante” (BARDSLEY, s/d a: online, tradução livre).

A princípio, segundo a autora, o pai de Dahmer achou que o comportamento do

menino era normal por causa da situação, já que ele mesmo era mais tímido quando

criança. Entretanto, entre os seus 10 e 15 anos, Jeffrey parece ter se tornado mais

solitário e introspectivo, se afastando inclusive, do único amigo que tivera. A morte,

deve ter se tornado seu primeiro objeto de desejo sexual, e a impossibilidade de falar

sobre tão estranhas fantasias com alguém, deve ter cortado de vez os seus laços com o

mundo exterior, constata Bardsley.

Ao contrário do que poderia se esperar de alguém com fantasia tão estranhas,

aponta Bardsley, Dahmer não se rebelou durante a adolescência mostrando sinais de

doença mental, na verdade ele se tornou cada vez mais quieto e passivo. Na escola seus

colegas o consideravam um alcoólatra. Ao mesmo tempo, seus pais passaram a ter mais

brigas e discussões, até que se separaram quando ele tinha 18 anos.

O pai de Dahmer se casou novamente, e como seu problema de alcoolismo se

tornou cada vez mais evidente, depois de uma tentativa frustrada de colocá-lo na

75
universidade, seu pai o alistou forçadamente no exército. Dahmer, porém, foi expulso

por permanecer bêbado grande parte do tempo. Em 1989 Jeffrey Dahmer foi

sentenciado por abuso de crianças, mas conseguiu uma licença para trabalhar de dia e

voltar à prisão à noite, e, de acordo com Bardsley (s/d a), dez meses depois foi liberado

por bom comportamento.

O primeiro assassinato foi em 1978, quando matou o namorado que queria ir

embora, fez sexo com o cadáver, depois desmembrou e enterrou. Só em 1987 é que iria

matar a sua segunda vítima. Dahmer conheceu um rapaz num bar gay, e disse que

quando acordou o rapaz estava morto e havia sangue em sua boca. Levou então o

cadáver para o porão de sua avó, fez sexo com ele depois desmembrou e jogou no lixo.

Alguns meses depois, levou para casa e matou um garoto de programa de 14 anos. Em

1988 matou um jovem mexicano e também um rapaz negro. Segundo Bardsley (s/d a)

foi a partir de Jamie Doxtator, a terceira vítima, que começou a seguir um ‘padrão’,

achava sua vítimas em bares gays ou ‘casas de banho’, levava para casa para tirar fotos

ou assistir vídeos e tomar cerveja. Dava algum sedativo, estrangulava e se masturbava

ou fazia sexo com o cadáver. Desmembrava o corpo e por vezes guardava algum

“souvinir”, em geral o pênis – que preservava no formol - ou o crânio – que depois de

limpo pintava de cinza para que parecesse falso. Bardsley acrescenta que Jeffrey

Dahmer gostava de fazer experiências com os cadáveres, entre elas experiências

culinárias, daí o canibalismo.

Em 1991, foi descoberto por dois policiais que resolveram investigar as

acusações de um homem que escapara de Dahmer. Além dos pênis em formol e crânios

pintados, os policiais encontraram pedaços de carne do freezer e diversas fotos que

Jeffrey gostava de tirar de todo o processo.

Durante o julgamento, de acordo com a autora, Jeffrey Dahmer alegou

76
insanidade, contrariando sua própria defesa que tentava ainda negar os crimes.

Enquanto o advogado de defesa teria que provar agora que apenas um doente mental

faria as coisas que Dahmer fez, a acusação tentava mostrar que ele “(...) era um

psicopata maléfico que enganou suas vítimas e as matou a sangue frio” (BARDSLEY,

s/d a: online, traduçãolivre).

Enquanto Boyle, o advogado de defesa, levantou a dúvida sobre Dahmer ser

doente ou mal, alegando que um homem são jamais faria as coisas que Dahmer fez,

como necrofilia, canibalismo, alcoolismo, masturbação com cadáver, etc. McCann, da

acusação, procurou chamar a atenção que durante o exército e a universidade, Dahmer

não matou ninguém – logo não era o impulso que o movia, mas um decisão pensada – e

que além de tudo era um homem bem articulado e manipulador que já havia enganado

dezenas de pessoas. A questão dos advogados, sustentadas pelos psiquiatras, era decidir

se Dahmer era ou não legalmente responsável por seus crimes. Ao final, o júri levou

mais de 5 horas deliberando para chegar a um acordo sobre a sentença. Jeffrey Dahmer

foi considerado culpado e são, e sentenciado a 957 anos de prisão.

A autora defende a tese de que Dahmer é um criminoso nato, e que talvez a

única explicação para seus crimes esteja na genética. Durante a descrição sobre a vida

de Jeffrey Dahmer, os obstáculos que teve em sua infância, como as complicações na

gravidez, os problemas de saúde e mesmo o divórcio dos pais, são colocados apenas

para mostrar como não tiveram influência na formação da personalidade de Dahmer, e

que a maldade do garoto estava além do controle de seus pais.

Em seu julgamento, não coube apenas ao júri decidir sobre sua culpabilidade ou

não, mas decidir também sobre sua sanidade.

Foucault já alertara em Os anormais que,

77
(...) mesmo se o sujeito em questão é culpado, o que o juiz vai poder
condenar nele, a partir do exame psiquiátrico, não é mais
precisamente o crime ou o delito. O que o juiz vai julgar e o que vai
punir, o ponto sobre o qual assentará o castigo, são precisamente
essas condutas irregulares, que terão sido propostas como a causa, o
ponto de origem, o lugar de formação do crime, e que dela não forem
mais que o duplo psicológico e moral (FOUCUALT, 2002: 22).

Segundo Bardsley , o Dr. James Fox, reconhecido especialista em serial killers,

alegou que Jeffrey Dahmer era um caso especial, pois enquanto para grande parte dos

serial killers, a morte é ponto final, onde cada ato, cada movimento leva, finalmente, à

morte da vítima, para Dahmer, tudo começava com a morte e a partir daí é que se

desenrolavam suas fantasias e experiências. A declaração do especialista, explicíta a

tentativa de um saber jurídico-psiquiátrico em estabelecer uma universalidade, um

padrão, diante da conduta dos indivíduos, o que pode justificar tanto uma intervenção

médica – quando o padrão é avaliado enquanto doença – quanto uma intervenção legal.

A partir de então, os indivíduos que apresentarem condutas consideradas semelhantes

serão investidos de ações pré-determinadas.

No caso de Jeffrey Dahmer, aonde as causas, motivações, razões para o crime

não foram encontradas, estabelece-se que se trata de uma característica nata, que talvez

a genética possa explicar se tratando da falta de algum gene moral.

Gein: um problema edipiano

Um outro caso de canibalismo como crime sem razão é o de Edward Gein.

Diferente de Jeffrey Dahmer, procurou-se atribuir a Gein uma anomalia causada pela

seu histórico de vida. Ed Gein nasceu em uma pequena comunidade rural, no interior de

Wisconsin, EUA. De acordo com Bell & Bardsley, Gein era filho de uma mulher

controladora, dominadora, fanática religiosa, que procurava afastar os filhos de qualquer

78
contato com o mundo exterior, tentando assim, livra-los do pecado e da imoralidade. Na

casa da família Gein, apenas a mãe tinha voz, o pai e os meninos somente obedeciam,

era ela inclusive que fornecia o dinheiro para a família. As crianças na escola não

tinham muito contato com Eddie, e os poucos que se aproximavam eram escorraçados

pela mãe de Gein, a quem ele não se opunha. Até tornarem-se adultos Ed Gein e seu

irmão só tinham a companhia um do outro. Quando seu pai morreu em 1940, ele e seu

irmão tiveram que cuidar da casa e da mãe, e começaram a prestar serviços para a

comunidade. Gein, por vezes, cuidava das crianças da vizinhança, com quem ele se

entendia melhor por ser social e emocionalmente retardado, conforme as autoras.

Bell & Bardsley expõem que, ao contrário de Gein, seu irmão criticava a mãe

por vezes brigava com ela. Em 1944, o irmão de Gein foi encontrado morto com uma

pancada na cabeça. Quem denunciara o sumiço fora o próprio Gein. No entanto a

polícia não acreditou que ele pudesse ter matado o irmão e arquivou o caso.

Segundo Brottman (2001), a mãe de Gein morreu no ano seguinte à morte do

irmão, devido a uma série de derrames, e ele ficou sozinho e trabalhando na fazenda da

família. Com a morte da mãe, Eddie “perdeu sua única amiga e verdadeiro amor”

(BELL & BARDSLEY, s/d: online, tradução livre). Ele passou a receber subsídios do

governo e parou de trabalhar na fazenda. Mesmo vivendo nela, deixou-a abandonada,

fazendo um ou outro trabalho para os moradores da comunidade. Dizem que depois da

morte de sua mãe, trancou o quarto dela e o deixou da mesma forma que era, sem nunca

mexer nele. Lacrou também a maior parte dos outros cômodos vivendo apenas em um

dos quartos e na cozinha. Conhecido como weird old Eddie (o estranho velho Eddie),

Brottman menciona que Gein começou a manifestar uma curiosidade pela anatomia

feminina que alimentava com de livros de medicina, revistas pornográficas, e histórias

de horror. Segundo Brottman (2001), Eddie demonstrou um interesse particular nas

79
atrocidades cometidas pelos nazistas na segunda guerra.

Bell & Bardsley destacam que rumores de que Eddie colecionaria pedaços de

cadáver acabaram isolando-o do resto da comunidade. O desaparecimento de algumas

pessoas na região em que Gein vivia, ficara sem resposta até o momento da morte de

Berenice Worden, mãe do delegado local. Porém a busca na casa de Gein levou a

descoberta não só do corpo de Worden, como de diversas outras pessoas, em forma de

abajours, cinto de umbigos, narizes, vaginas e outros pedaços secos, guardados em

caixas. Cabeça e outras partes do corpo também preservadas. Brottman (2001) expõe

que o corpo da mãe do delegado foi encontrado decapitado, preso a um gancho de

açougue, e sem os órgãos internos. A cabeça e os intestinos foram encontrados em uma

caixa e o coração estava sobre um prato na mesa de jantar.

A princípio Edward Gein negou todos os assassinatos, mas depois de vários dias

de interrogatório acabou assumindo alguns deles, dizendo, no entanto, que não se

lembrava do momento da morte, pois fora tomado por uma confusão em sua cabeça.

Segundo Bell & Bardsley, E. Gein não mostrou nenhum sinal de emoção ou remorso

durante o interrogatório, “ele não tinha a menor noção da enormidade de seus crimes”

(BELL & BARDSLEY, s/d: online, tradução livre). Durante o julgamento, a sanidade

de Gein foi colocada em questão. Depois de uma série de testes psicológicos psicólogos

e psiquiatras chegaram a conclusão de que Edward Gein era esquizofrênico e “psicopata

sexual”. Na década de 1950, Ed Gein recebeu grande notoriedade, e seu caso se tornou

um dos mais discutidos entre os psicólogos e psiquiatras envolvendo canibalismo,

necrofilia, travestismo e fetichismo.

Depois de passar por um período de 30 dias numa instituição mental, Gein foi

avaliado como mentalmente incapacitado, não podendo, deste modo, ser julgado por

assassinato em primeiro grau. Passou mais 10 anos na mesma instituição mental, até que

80
foi considerado capaz de responder à um julgamento, a partir do qual se pretendia

decidir se ele era ou não culpado da morte de Worden. Novamente julgado, foi

declarado culpado. No entanto, constatado que na época do crime sofria de distúrbios

mentais, foi declarado não culpado por insanidade e mandado ao hospital para Central

State Hospital for the Criminally Insane, onde, segundo o superintendente gera do

hospital, era um paciente modelo, e talvez mais feliz do que ele já foi em toda sua vida.

O caso de Gein, traz um problema familiar à psicanálise. A alusão à uma relação

considerada doentia entre Gein e sua mãe é colocada constantemente. Se no caso de

Dahmer, posterior a Gein, a resposta foi encontrada por meio da medicina genética, este

caso incita a intervenção da psicanálise freudiana. O caso de Gein retoma a velha

questão – tão cara à psiquiatria e à psicanálise – da antropofagia e do incesto, questão

que deu base a todo argumento freudiano, culminando nas perversões, que seriam

resultado de momentos mau-resolvidos no desenvolvimento humano, tanto do

desligamento da criança com a mãe (em uma alusão ao incesto), como – no caso do

canibalismo – à uma fase de desenvolvimento oral que não foi superada.

O psicanalista Antonio Carlos Pacheco e Silva Filho expõe em Perversões

Sexuais, de 1987, a partir da teoria freudiana do desenvolvimento da personalidade, que

a evolução psicossexual se daria em três fases: a oral (relacionada à amamentação e à

dentição, também chamada de fase canibalística por alguns autores), a anal (expulsiva

ou retentiva) e a genital (associada ao medo da castração e ao complexo de Édipo). Sob

esta perspectiva os chamados desvios e perversões estariam ligados à alguma problema

com relação a superação de uma destas fases. Para a psicanálise, portanto, o problema

edipiano, consistiria na recusa de dividir o amor da mãe com o pai e no medo de que

este pai o pudesse castrar.

O psicanalista afirma ainda que “temores da fase fálica condicionam, com suas

81
raízes pré-edipianas, a necessidade de vias parafílicas para a satisfação sexual, das quais

a mais comum é evidentemente a homossexualidade” (SILVA FILHO, 1987: 18).

Segundo a psicanálise e a psiquiatria, parafilias são todos os comportamentos eróticos

não convencionais e, segundo Silva Filho, são desvios sexuais. A psicanálise

apresentada pelo autor, utiliza a noção de desvios comportamentais sob o pressuposto

de que existiriam padrões de comportamentos corretos.

Com relação à Ed Gein, pode-se pensar que os conceitos psicanalíticos já estão

tão incorporados à cultura ocidental, que não há a necessidade de se explicitar as teorias

freudianas. Comportamentos considerados desvios, anormalidades, são justificados de

maneira não explícita à uma pressuposta relação doentia com a mãe.

Bardsley, assim como grande parte dos jornalistas e escritores vinculados à

grande mídia, adota termos e noções da psicanálise e da psiquiatria – as vezes retirados

do próprio julgamento – como se fossem dados e elementos naturais à constituição

humana, e não construções permeadas por valores, e utilizadas de forma estratégicas

com significados e usos próprios a cada época e objetivo.

Fish: doença hereditária

Anterior ao caso de Gein, Albert Fish explicita nos tribunais uma questão que se

torna importantíssima para o saber psiquiátrico, que traz novos elementos para a sua

justificativa enquanto saber médico. Esta questão é a da hereditariedade.

Bardsley (s/d b) relata que Albert Fish perdeu o pai quando tinha 5 anos. Foi

criado em um orfanato até aproximadamente seus 9 anos, onde ele e os outros garotos

apanhavam “sem piedade” e, segundo declara, eram obrigados a fazer coisas que não

deveriam. Quando finalmente adquiriu um apartamento, em Washington, levou a mãe

82
para viver com ele, e foi lá também que conheceu sua esposa. Teve 6 filhos com ela, até

que ela fugiu com outro homem, o abandonou levando todos os móveis da casa, não

deixando nem os colchões para as crianças. Fish casou-se outras três vezes.

Os filhos de Fish contam, segundo Bradsley, que depois que sua mulher o

deixou, suas experiências excêntricas tornaram-se mais freqüentes. Albert Fish fazia

experiências de todo o tipo com excrementos. Costumava também, colcar algodão com

álcool no ânus e atear fogo. Além disso, Albert Fish, em seu julgamento, confessou que

durante anos vinha enfiando agulhas na região entre o saco e o ânus, e algumas agulhas

que não conseguia retirar ainda se encontravam dentro do seu corpo. Diante da

declaração que parecia absurda, os médicos resolveram tirar um raio X da sua pélvis, e

tiveram uma grande surpresa quando encontraram mais de 25 agulhas na região.

A autora relata ainda, que os filhos de Fish o viam se batendo com uma pá cheia

de pregos até que estivesse banhado em sangue, gritando ao mesmo tempo ‘eu sou

Cristo’. Segundo ela, a partir dos 55 anos, Fish começou a ter alucinações em que Deus

pedia para ele que atormentasse e castrasse meninos.

Em 1924, um senhor grisalho assistia a alguns meninos jogarem bola. Chamou

Francis McDonnel, de 8 anos, e os dois desapareceram. Francis foi encontrado no mato,

perto de umas árvores todo machucado, com as roupas arrancadas de seu corpo,

estrangulado por seus suspensórios.

Em 1927, em New York. Billy Gaffney, de 4 anos brincava com seu vizinho

Billy de 3 anos, quando os dois sumiram. O menor foi encontrado sozinho no telhado do

prédio onde vivia, chorando que ‘o homem do saco’ teria levado seu amiguinho. Fish

levou o garoto para um depósito de lixo, tirou suas roupas e o amarrou. Chicoteou suas

costas até sangrar e cortou suas orelhas, nariz e sua boca (de uma orelha à outra).

Arrancou seus olhos, enfiou uma faca em seu umbigo e chupou o sangue. Cortou ele em

83
vários pedaços e jogou uma parte no rio em um saco cheio de pedras. Outra parte ele

levou para casa, cozinhou e comeu.

Em 1928, nos EUA, contratou Edward Budd para tomar conta de sua fazenda

sob o nome de Frank Howard. Desta forma se aproximou da família Budd, que

creditava a ele um rosto muito simpático e confiável. Um dia perguntou se poderia levar

a pequena Gracie (irmã de Edward) à uma festa infantil. Os pais consentiram e homem

nunca mais apareceu com Gracie. Seis anos depois, em 1934, os pais de Gracie

receberam uma carta na qual Albert Fish descrevia em detalhes o que tinha feito à

Gracie. A família Budd entregou a carta à polícia. Na carta ele contava a história de que

se comiam crianças na China na época de fome, em 1894, explicando por este episódio

da onde surgira sua vontade de comer carne de criança.

Bardsley ressalta, que antes de ser preso pela morte da menina Gracie, por meio

da carta que mandara, Fish já havia sido preso algumas vezes por roubo e por escrever

cartas obscenas. Em seu julgamento, disse que já tinha atacado centenas de crianças, e

que em geral escolhia as afro-americanas, já que a polícia não ligava muito quando estas

desapareciam. Disse também que morou em 23 estados e que matou pelo menos uma

criança em cada um.

Segundo o Dr. Wertham, o psicólogo da defesa, a perversidade de Albert Fish,

seria única nos anais da psiquiatria e literatura criminal, e acrescenta ainda em seu

diagnóstico: “caracterizo sua personalidade como introvertida e extremamente

infantilistica… diagnostico sua constituição mental anormal e sua doença mental

enquanto psicose paranóica.” (BARDSLEY, s/d b: online, tradução livre).

Outros dois psicólogos da defesa concluiram que Fish sofria de insanidade,

entretanto, os quatro psicólogos da acusação alegaram que ele era são. Entre os

psicólogos da acusação se encontrava o chefe do hospital que o havia liberado alguns

84
anos antes com o certificado de “são e inofensivo”. Durante o julgamento, os advogado

de defesa, segundo Bardsley, alegavam que os psicólogos tinham interesses particulares

em afirmar a sanidade do réu para não admitir um erro em seu diagnóstico anterior.

O discurso da acusação consistia em declarar que Fish era legalmente são, que

apesar de ser sexualmente anormal, e ser medicalmente diagnosticado como pervertido

sexual, ou psicopata sexual, todos os seus atos contra a menina foram premeditados, e

que Fish sabia que o que estava fazendo era errado.

A defesa por outro lado, tentava mostrar como Fish não se parecia consigo

mesmo diante do crime. Segundo Bardsley, a defesa alegava que Albert Fish era um

bom pai, bom vizinho, e que cuidar bem de suas crianças quando sua mulher o

abandonou. Descrevia ainda, que a doença de Fish era de caráter hereditário, e mostra

como a psicose é um fator comum em seu histórico familiar. O seu tio, por exemplo,

fôra diagnosticado com uma psicose religiosa e morrera num hospício. Um meio irmão

também morreu em um hospício. Um outro irmão mais novo morreu de hidrocefalia. A

mãe era considerada muito excêntrica e dizia ouvir e ver coisas. Uma tia era

considerada completamente louca, outro irmão sofria de alcoolismo crônico, e a irmã

tinha um tipo de tormento mental, como descreve a autora.

Foucault expõe de forma precisa que,

na teoria da hereditariedade psiquiátrica, está estabelecido que não


apenas uma doença de certo tipo pode provocar nos descendentes
uma doença do mesmo tipo, mas que ela também pode produzir, com
idêntica probabilidade, qualquer outra doença de qualquer outro
tipo. (FOUCAULT, 2002: 399)

O Júri declarou Fish culpado. Bardsley observa que a princípio o veredicto não

animou muito o réu, porém, quando soube que seria executado na cadeira elétrica, seus

olhos se encheram de alegria, e ele agradeceu ao júri pela sentença.

85
A descrição feita por Bardsley contribui com o diagnóstico psicótico feito pela

defesa e pela acusação no tribunal. A escrita jornalística tem esse caráter de descrever

os fatos sem atribuir, supostamente, nenhum julgamento. Porém, a própria escolha dos

termos e disposição das palavras e acontecimentos em um texto, direcionam as

conclusões e reflexões sobre o tema. Foucault constata em A arqueologia do saber, que

o jogo de deslocamentos e incompreensões coerente e necessário à essas formas

discursivas, consiste em

(...) mascarar a crise em que estamos envolvidos há muito tempo e


cujo âmbito não para de crescer: crise em que estão comprometidas
a reflexão transcendental com a qual se identificou a filosofia desde
Kant; a temática da origem, da promessa do retorno pela qual
evitamos a diferença e nosso presente; um pensamento antropológico
que consagra todas as interrogações à questão do ser do homem, e
permite evitar a análise da prática; todas as ideologias humanistas;
e – enfim e sobretudo – o status do sujeito. (FOUCAULT, 2005b:
229)

Em outras palavras, estes discursos que se pretendem imparciais, colaboram com

a perpetuação de técnicas e mecanismos normativos de assujeitamento, por meio da

concepção e aplicação de conceitos e valores universais, estabelecendo metas

exemplares de comportamentos. Conferindo aos desajustados, por meio de saberes

específicos, uma monstruosidade que tem sua origem no mal, como valor universal.

a criminologia e seus desdobramentos

Foucault observa em Os anormais, que a loucura se constitui de fato como

doença e como perigo, durante os séculos XIX e XX, quando o saber psiquiátrico e a

justiça penal se encontram efetivamente ajustadas, sob “(...) um só e o mesmo tipo de

discurso, um só e o mesmo tipo de análise, um só e o mesmo corpo de conceitos (...)”

86
(2002: 149). A criminologia emerge sob esta conjuntura com a finalidade explicar a

origem do crime e da delinqüência.

O conceito de delinqüência...

deriva de uma lógica que constrói a figura do delinqüente como um


sujeito que traz o mal incrustado em sua alma, carrega o delito em
seu caráter e personifica o ato tido como criminoso em seus traços
biológicos, psicológicos e sociais. A figura do delinqüente emerge no
século 19 como redimensionamento do infrator, do anormal e da
sub-raça. A delinqüência é o que diferencia uma parte da população
vista como degenerada e perigosa do restante tido como
politicamente dócil e economicamente útil. (NÚCLEO DE
SOCIABILIDADE LIBERTÁRIA, s/d a)

Para a psiquiatria e para a criminologia, não há dúvidas sobre a existência de

uma maldade intrínseca a estes sujeitos. Em um site didático de psiquiatria coordenado

por Ballone, o autor descreve que, “alguns identificam nessas pessoas naturalmente

más, portadores de Transtorno Anti-Social da Personalidade, ou Sociopatas, ou

Psicopatas e coisas assim” (2005).

César Lombroso, um dos principais responsáveis pela fundação da ciência

intitulada criminologia, desenvolveu no fim do século XIX diversas pesquisas que

defendiam a partir de uma séria de características físicas e comportamentais o indivíduo

perigoso e a sua periculosidade.

A respeito da prática do canibalismo, ele afirma que teria nascido da necessidade

de nutrição, se consagrado pela religião, e se tornado hereditário por causa da gula. O

canibalismo seria o último degrau da ferocidade humana, quando se suprime a diferença

essencial entre o homem e a besta. Sobre o canibalismo nas sociedades ocidentais,

Lombroso salienta que, “Esses costumes execráveis desaparecem diante da civilização.

Veremo-los, porém, reaparecer, de longe, nas situações extremas, por exemplo, nas

cidades sitiadas, na fome, nos naufrágios (...)” (LOMBROSO, 2001: 93), e acrescenta,

87
“Não podemos estudar a evolução natural dessa terrível forma de homicídio se não entre

os selvagens apenas” (ibidem).

As afirmações de Lombroso sobre o canibalismo alertam para o horror destas

práticas que, diante da chamada civilização, mais do que indesejáveis, são

inconcebíveis. O fato de Lombroso ignorar qualquer outra forma de canibalismo nas

sociedades ocidentais que não estejam ligadas à situações extremas permite retomar a

questão dos crimes sem razão. Enquanto o canibalismo estivesse inserido em situações

extremas, a motivação do crime estaria dada pela própria circunstância.

Por muito tempo a antropologia criminal, da qual trata Lombroso, foi a medida

de técnicas jurídicas e psiquiátricas, e ainda hoje é utilizada, mesmo quando travestida

em tecnologias biológicas, médicas e jurídicas. Aliás, hoje mais do que nunca, nas

práticas do direito entende-se que para compreender um indivíduo perigoso, é

necessário se apoiar em elementos bio-psico-sociais.

O psiquiatra Geraldo Ballone, explicíta esta tendência quando afirma que

já existiram várias tendências causais na criminologia. Baseado em


Rousseau, a criminologia deveria procurar a causa do delito na
sociedade, baseado em Lombroso, para erradicar o delito
deveríamos antes, encontrar essa eventual causa no próprio
delinqüente, e não no meio. Investigava-se o arquétipo do criminoso
nato (um delinqüente com determinados traços morfológicos).
Isoladamente, tanto as tendências eminentemente sociológicas,
quanto as psicológicas e orgânicas fracassaram. Hoje em dia fala-se
no elemento bio-psico-social. (BALLONE, 2005: online)

Na tentativa de explicar a origem de uma personalidade sociopática, Ballone

expõe que “(...) no desenvolvimento da personalidade, os fatores genéticos, ambientais

ou combinações de ambos, capazes de influenciar nos traços de agressividade e

impulsividade, atuariam diferentemente em diferentes pessoas” (2004a: online).

Lombroso classifica os chamados criminosos a partir de algumas regras gerais.

88
Ele os distingue entre o criminoso nato, que continha em sua substância resquícios do

homem selvagem. Era por este motivo quase que um subumano. O criminoso louco, ou

alienado, seria aquele que, além do comportamento delinqüente, apresentasse distúrbios

mentais com relação à moral. Ou ainda, o criminoso profissional, que assim se tornava

devido a pressões geradas dentro de seu próprio meio. Um criminoso primário poderia

até conter em si uma predisposição hereditária para o crime, porém só era levado a

cometê-lo perante fatores circunstanciais. E finalmente, o criminoso por paixão, que

seria aquele controlado por suas emoções que se deixa levar por seus impulsos violentos

como uma solução para suas crises.

Mesmo que as teorias de Lombroso tenham sido consideradas racistas e ditas

ultrapassadas, é possível perceber que as questões que ele levantava apenas foram

redimensionadas para serem respondidas por saberes considerados mais científicos, que

tem como objetivo criar medidas de prevenção contra os perigos, ou melhor, os

indivíduos perigosos à sociedade.

Foucault (2002) observa, que as noções de perigo e de indivíduo perigoso

permitem justificar e fundar em teoria a existência de uma cadeia ininterrupta de

instituições médico-judiciárias. Lombroso, por exemplo, estabelece características

físicas a partir de estatísticas que levantara entre prisioneiros (partindo do pressuposto

que estas pessoas por seus comportamentos anti-sociais seriam más), encontrando na

biologia a origem do mal, sem, no entanto, questionar a própria noção de maldade. Mas

se as teorias lombrosianas foram consideradas ultrapassadas, a idéia de indivíduo

perigoso continua a fomentar novas, ou redimensionar velhas, teorias e conceitos.

Com relação aos chamados psicopatas, Ballone explica que,

o déficit do Psicopata na capacidade de apegar-se ou vincular-se aos


outros pode também ser melhor conceitualizado por vias
neurológicas inespecífica ou uma configuração incomum de
89
genes.Outra opção causal sugere um defeito que resulta numa
superabundância de impulsos agressivos ou um defeito nas funções
psíquicas inibitórias, ou ainda, na combinação de
ambos.(BALLONE, 2004b: online)

Se Lombroso justificava o chamado comportamento criminoso com base na

biologia, Ballone serve de exemplo de como, ainda hoje, os saberes médico-jurídicos –

com base na neurologia e na ciência genética –, sustentam a relação entre certos

comportamentos e a criminalidade no sujeito

A medicina da saúde mental criou uma infinidade de conceitos que, podendo ser

ajustados a uma escala de leve a grave, são utilizados no momento em que se procura

encontrar no autor do crime, elementos que já apontavam para a sua criminalidade.

gradação dos conceito: da psicopatia aos desvios saudáveis

As práticas de canibalismo das quais se tem notícia ao longo do século XX, são

geralmente classificadas como psicopatias, ou ao menos como distúrbios mentais e

geralmente relacionadas com desvios sexuais.

Na psiquiatria, atualmente, segundo Ballone (2003), uma psicopatia sexual pode

ser percebida, ou ao menos suposta, através de um comportamento transgressivo, anti-

social, voluntário, consciente e erotizado. Em outras palavras, qualquer um que não se

adapte aos padrões de comportamento exigidos nas sociedades ocidentais, tornam-se, no

mínimo, suspeitos. Todos seriam perigosos em potencial e passíveis de intervenções

preventivas.

O próprio conceito de perversão é hoje entendido pela psiquiatria e pela

psicanálise como impróprio por estar associado à maldade e corrupção, como declara,

por exemplo, o psicanalista Silva Filho. Porém, ele alega que: “Longe de mim querer

defender as perversões sexuais reais (...), oriundas de defeitos estruturais graves da


90
personalidade, com conseqüências nocivas tanto para o parafílico como para o objeto de

sua perversão” (1987: 3), e isto comprova que a noção de desvio sexual permanece,

apenas travestida com o nome de parafilia.

Os conceitos de sadismo e masoquismo, apropriados da literatura libertina de

Sade e Sacher-Masoch, foram primeiramente classificados como desvios sexuais

nocivos. Segundo Jorge Leite, o sadismo passou a ser uma patologia quando “o

libertinismo decidido do Marquês transformou-se no sadismo doente de Kraft-Ebing,

que não reconheceu nele um escritor, apenas um caso clínico” (2006: 241).

Atualmente, estes mesmos conceitos, podem até ser considerados como um

elemento positivo na relação de um casal, como explicita ainda Silva Filho:

(...) muita perversão se transformou em variação do normal,


suscetível de contribuir para melhor entrosamento e de consolidar o
amor (afeto recíproco) entre pessoas do sexo diferente, o único a
exprimir maturidade emocional. (SILVA FILHO, 1987: 3).

Hoje em dia, a própria distinção entre normal e anormal foi substituída, na

medicina, por saudável e não-saudável. A anomalia é portanto associada à doença. Os

limites do que se considera normal foram apenas um pouco ampliados, e o que se

costumava chamar de normal – o sexo heterossexual, monogâmico com fins para um

prazer momentâneo ou procriação –, é chamado agora de convencional, como observa

G. J. Ballone (2003).

Não exige-se mais que alguém considerado sadio só realize o sexo convencional,

ao contrário, é comum, pelo que se pode perceber por meio de revistas direcionadas à

jovens ou mulheres, ou ainda em alguns programas de TV, que saudável passou a ser o

acréscimo de algum tempero, de vez em quando, às relações, mas tudo dentro de um

limite considerado são. É possível dizer que estes elementos são normalizados no

sentido de se preservar a moral familiar.


91
Hoje, na psiquiatria, como ressalta Ballone (2003), nem todo o indivíduo

caracterizado como parafílico é considerado perigoso. Edson Passetti observa que,

atualmente, com a emergência de novos dispositivos de governo, “os fluxos de

penalidades se expandem para normalizar os normais, provocando o apreço pelos

controles e abjuração a qualquer desvio.” (PASSETTI, E., 2007: 28).

Ballone esclarece que, quando as parafilias se expressam de forma moderada,

elas são toleradas pela sociedade. De uma forma geral, elas são entendidas como

fantasias e comportamento não convencionais, que potencialmente podem criar

situações desfavoráveis a vida familiar. Para ele, isso depende exclusivamente do grau

em que este comportamento se encontra. São os casos classificados como graves, como

explica o autor, que interessam aos psiquiatras forenses, e que estão diretamente

relacionado aos ditos psicopatas.

Mas se os comportamentos considerados anormais estão cada vez mais

normalizados, a questão da razão, da motivação de um ato, ainda é determinante na

classificação de um sujeito perigoso.

92
Capítulo III: Controle e canibalismo voluntário

Até o final do século XX, pode-se dizer que o problema da psiquiatria forense e

da criminologia era determinar qual a origem da delinqüência. Quais as causas, os

motivos, que levavam um sujeito a cometer transgressões e ter atitudes anti-sociais.

Determinar, enfim, a origem da maldade, ou da personalidade criminosa, de um sujeito.

causas e fatores, uma mudança estratégica

Atualmente, segundo o psiquiatra Geraldo Ballone (2004), a criminologia, assim

como outras ciências, está mais interessada em descobrir não mais as causas, mas os

fatores – que podem ser múltiplos –, que tornariam ‘o delinqüente’ um delinqüente.

Sem levantar dúvida sobre a existência do mal, o autor questiona se há, ou não,

uma personalidade propensa ao crime, que infringiria muitas vezes aos seus

‘portadores’, transtornos psicopáticos, sociopáticos, ou outro mal designado de forma

semelhante. O problema deste conceito, segundo Ballone, estaria no fato dele permitir a

atribuição de fatores externos à culpa do sujeito. Logo, coloca-se um problema penal:

como definir precisamente o que seria a doença e o que seria o ‘caráter’, para que a pena

possa ser aplicada com mais exatidão?

O deslocamento da determinação das causas para a procura dos fatores que

poderiam desencadear a ação destes ‘seres malignos’ amplia as possibilidades de

intervenções preventivas. Os fatores se encontram numa zona determinada como zona

de vulnerabilidade. Sob uma perspectiva abolicionista penal, o conceito de

vulnerabilidade emerge do modelo de contenção de risco ao contágio, gerido a partir da

peste.

93
Sua operacionalização, na sociedade de controle, provém de
resultados de pesquisas voltadas ao combate à pobreza, no início da
década de 1990, e baseia-se na qualidade de vida, articula a
educação voltada à responsabilidade social; a estatística
redimensionada em georreferenciamento; o cálculo do algorítimo do
risco, proveniente da matemática, projetando índices de zonas e
pessoas preferencialmente expostas a sofrer ou cometer
determinados crimes; referências metodológicas extraídas da
medicina epidemiológica e investimento em equipamentos sociais,
articulando polícia, comunidade, Ong’s e governos. (NÚCLEO DE
SOCIABILIDADE LIBERTÁRIA, s/d b: online)

A mudança de foco na criminologia, em conjunto com uma nova série de

práticas e discursos, está relacionada, especialmente, com a emergência de novos

dispositivos e mecanismos de poder.

fluxos, informação e controle

Gilles Deleuze (2004a) parte da análise de Michel Foucault sobre as sociedades

disciplinares, e de suas inquietações acerca destas novas técnicas que começaram a

despontar depois da Segunda Guerra, para elaborar em um breve artigo a noção de

sociedade de controle.

Enquanto a sociedade disciplinar, de acordo com Foucault (2004b), atuava por

meio do confinamento, a partir de lugares bem determinados, como a escola, a fábrica, o

hospital e a prisão, criando e seguindo moldes, Deleuze (2004b) expõe que a sociedade

de controle atua a partir de modulações e do inacabado. As disciplinas agem em lugares

fechados, limitados espacialmente, aonde os corpos devem ajustar-se a certos modelos.

Mesmo dentro da hierarquia as posições estão ligadas a espaços determinados a serem

ocupados. O controle, acrescenta Deleuze, opera através de uma modulação “como uma

94
moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada instante (...)” (2004b:

221).

Na lógica disciplinar do confinamento, poder-se-ia dizer que o poder atua sobre

o sujeito de forma ‘massificante’ e ‘individuante’: estabelecendo os lugares

determinados de cada um, formando um corpo homogêneo alvo de intervenções e

medidas específicas, e moldando particularmente a individualidade destes sujeitos, que

se expressarão, respectivamente, pelo número de posicionamento dentro da massa, e

através de uma assinatura.

Na sociedade de controle, “os indivíduos tornaram-se ‘dividuais’, divisíveis, e as

massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou ‘bancos’” (DELEUZE, 2004b: 222).

A questão, agora, é o acesso à informação. O acesso de certas pessoas à certas

informações é determinado por uma senha. Além da assinatura e do código numérico, é

a partir das senhas que se pode identificar o sujeito, são elas que identificam a

possibilidade de acesso.

Não que a emergência desta sociedade tenha suprimido a existência de uma

outra. As técnicas de soberania, disciplinares, ou de controle coexistem e se

complementam no governo dos corpos. Assim como, com relação às sociedades

indígenas, é necessário se ter cuidado com a distinção entre endo e exocanibalismo,

também quando se trata de identificar mecanismos de controle e disciplinares, é

importante estar atento ao fato de que estes mecanismos não são excludentes. Segundo

Edson Passetti,

ela [sociedade disciplinar] criou positividades de poder,


caracterizando-se como uma sociedade diferente da sociedade de
soberania que a antecedeu e não suprimiu, acrescentando-lhe novos
trajetos. Da mesma maneira, a sociedade de controle não destrói o
que a antecedeu: redimensiona o domínio de maneira mais sutil
(PASSETTI, E., 2004: 154).

95
O autor desenvolve a noção de sociedade de controle, partindo das reflexões de

Foucault e Deleuze. Segundo Edson Passetti (2003), a sociedade de controle exige a

participação e o fluxo inteligente. O lugar (fixo, rígido) cede espaço aos fluxos (virtuais,

instantâneos, velozes). A comunicação é contínua e as avaliações constantes. Na

sociedade de controle, o prazo é curto e a rotação é rápida, é preciso se atualizar sempre.

Deleuze (2004b) já chamara a atenção para o papel do marketing nesta

sociedade: a ‘alma’ da empresa. Se de certa forma, como observa Edson Passetti, a

sociedade é gerida pela lógica empresarial (ainda que, para o autor, esta afirmação seria

muito restritiva), o marketing, a propaganda, ou esta exposição de um produto (coisa,

gente, saúde), tornam-se o guia, a medida, o mapa do itinerário da vida.

Não existe coincidência, portanto, no fato da fundadora do site Crime Library –

utilizado como fonte e objeto de análise nesta pesquisa –, dedicado a expor o máximo

de informação possível sobre os considerados crimes graves ou peculiares, e seus

agentes, ser uma publicitária. Para a continuidade de qualquer sistema é necessário que

haja sua promoção. A exposição dos chamados criminosos e seus crimes contribui para

a justificativa da aplicação do sistema penal.

Mas se a própria vida é gerida pelos moldes empresariais, cada vez mais as

empresas ocupam espaço na vida de seus empregados. O trabalho e a formação são

contínuos, o que possibilita que os espaços da casa e do trabalho se fundam. Segundo

Edson Passetti (2003), a empresa cria uma comunidade constituída nos moldes dos

campos de concentração – entendendo estes campos como uma prática de contenção,

uma tática de controle territorial (NÚCLEO DE SOCIABILIDADE LIBERTÁRIA, s/d

c). Procura trazer aos seus trabalhadores tudo o que eles necessitam, da formação (deles

e de seus filhos) ao lazer. A sociedade de controle chama o trabalhador para um trabalho

contínuo e ininterrupto, pois o tempo é flexível e o espaço é, quase sempre, virtual. Em

96
outras palavras, na sociedade de controle, o mercado funciona 24hs por dia para atender

à demanda global, e a virtualização do espaço, permite que decisões avaliações, ou

quase qualquer outra atitude com relação ao trabalho, seja executada de onde quer que

haja um aparelho ligado à rede. Além disso, a flexibilização do tempo também atende à

demanda do trabalho intelectual, estimulando a criatividade dos empregados em prol da

empresa.

A sociedade disciplinar, através dos investimentos no corpo-máquina e da

automatização dos trabalhos, já tinha se ocupado de potencializar a dessacralização do

tempo e, como constata Edson Passetti (2004), é a partir da flexibilidade de fronteiras,

territórios, sob a chamada globalização, que a sociedade de controle caracterizará a

dessacralização do espaço. Se a sociedade disciplinar investia na produtividade do corpo

e na docilidade política,

na sociedade de controle pretende-se integrar as forças políticas por


meio da materialidade econômica em fluxos, fazendo com que cada
um participe criando e reformando programas.(...) Integra por meio
da cultura de telecomunicação, da cultura de informática pela
internet, uma emergente cultura biotecnologia que funde trabalho,
lazer, corpo, política, escola. Trata-se de uma nova diversidade de
assujeitamentos que se anuncia, ultrapassa e cria na
instantaneidade, na atualização de outra virtualidade (PASSETTI,
E., 2003: 250)

um novo perigo

As mudanças no modo de operar da sociedade de controle não alteraram

somente as técnicas e mecanismos de poder, mas proporcionaram outras formas de

relacionamento entre as pessoas. A internet é hoje o principal meio de comunicação e

possibilita o encontro de pessoas do mundo inteiro de acordo com suas afinidades.

Segundo o psiquiatra Sérgio Telles,

97
(...) a rede mostra seu incrível poder de agregar pessoas que de
outra forma jamais, ou muito dificilmente, se encontrariam. As salas
de bate-papo, com seu sigilo aparente (desde que é possível rastreá-
las, se necessário for), permitem a exposição de fantasias e desejos
os mais bizarros e a possibilidade de encontrar alguém com
interesses semelhantes. (TELLES, 2003: online)

Talvez muito mais eficazes que as salas de bate-papo que ainda exigem, no

momento do bate-papo, a presença ‘física’ (mesmo que do outro lado do computador)

de outra pessoa, os sites de relacionamento – como o orkut, my space, os diversos

fóruns de discussão, entre outros – necessitam apenas que se depositem as informações

pessoais. Estas ficarão disponíveis para serem vistas, agregadas, espiadas, selecionadas,

consultadas, 24hs por dia.

Telles propõe esta análise ao se deparar com um caso peculiar de canibalismo,

que só se tornou possível a partir destes dispositivos específicos de uma sociedade de

controle.

No dia 12 de dezembro de 2002, o site de notícias DW-World, publicou uma

matéria intitulada “Canibalismo entre homossexuais choca Alemanha”. A princípio,

apesar de rara, a manchete não é totalmente inédita na história da jornalismo, nem na

história da Alemanha. Mas, outros casos de canibalismo na Alemanha também se

tornaram conhecidos. Como o de Fritz Haarmann que – junto com seu amante – matou,

fez sexo, esquartejou, e vendeu parte da carne para os açougues e mercados de

Hannover (guaradando sempre uma porção para si), no período entre-guerras

(GILBERT, s/d ). Ou, o caso do outro alemão Joachim Kroll que, entre os anos de 1955

e 1976, matou, mutilou, fez sexo, e comeu da carne de 14 mulheres jovens e crianças

(RAMSLAND, s/d ).

O que tornou o caso dígno de repercussão mundial e de interesse para

psiquiatras, psicanalistas, criminalistas, sociólogos, antropólogos, etc., não foi um


98
elemento, mas uma sequencia de elementos que começam com o encontro virtual dos

dois envolvidos, em um site de relacionamentos, até a denúncia do caso via internet, por

um estudante austríaco.

fluxos e controle na internet

Segundo as informações vinculadas aos sites de notícias DW-World, BBC e

Folha Online, no ano de 2001, Armin Meiwes e Bernd Jürgen Brandes se conheceram

na internet através de um dos anúncios (figura 5) que ele publicou em um site de

relacionamentos, para “simpatizantes de canibalismo”. Meiwes, sob o codnome Franky,

procurava um homem jovem, com o corpo normal ou bem constituído, entre 18 e 30

anos que desejasse ser esquartejado e devorado. Outras pessoas já teriam respondido ao

anúncio, mas segundo a reportagem na revista Veja (10/12/2003), Meiwes teria achado

que as intenções de Brandes eram mais sérias o que a dos outros, já que algumas das

pessoas com quem ele tinha se encontrado, apenas queriam “brincar” de canibalismo,

mas sem chegar às últimas consequências.

A internet é uma ferramenta que se desenvolveu a partir das tecnologias criadas

no período pós-guerra com o intuíto de interceptar informações inimigas, permitir

infiltrações em sistemas de segurança, capturar agentes espiões etc., e que somente com

o fim da ameça socialista foi utilizada para facilitar a troca de pesquisas nos E.U.A.

(CARVALHO, 2006). Na internet, o espaço é virtual, as atualizações são constantes, as

informações se movem em fluxos cibernéticos quase que instantaneamente. Poder-se-ia

dizer que a internet é o ‘espaço’ do controle por excelência, onde se reunem

informações, depositadas a todo instante, por pessoas do mundo todo, seguindo certos

protocolos, disponíveis através de senhas, mais ou menos restritas.

99
Figura 5. Uma das mensages publicada no fórum Cannibal Cafe por ‘Franky’: “Publicado por Franky em 19 de
Novembro de 2001 às 14:36:11. Procuro rapaz jovem entre 18 e 25 anos. Se você tiver um corpo normal eu irei
abatê-lo e comer sua deliciosa carne. Franky”. (Tradução livre)

Neste cyber-espaço, em especial nos sites de relacionamento, as pessoas

assumem identidades (ilimitadas) e são convidadas a participar através de fóruns, salas

de bate-papo, etc. São cadastradas, cifradas, e em geral necessitam de senhas de acesso.

A rapidez, a velocidade em que as informações chegam e se tornam obsoletas, não

permitem grandes aprofundamentos. Edson Passetti afirma que “a democracia nos

meios de comunicação, como também localizou Carlo Freccero, acaba funcionando

como totalitarismo; não há respiração sequer para reflexão, apenas o convite para se

filiar a uma corrente de opniões” (PASSETTI, E., 2003: 272).

Os sites de relacionamento reproduzem comunidades, porém em espaços

virtuais. Campos de concentração cibernéticos. A sociedade de controle é também a

sociedade da segurança, garantida pela prevenção geral e pelo auto-encarceramento em

prédios, condomínios, comunidades de bairro, guetos, etc.

No espaço virtual da internet é possível se proteger dos riscos do corpo e buscar

o que se deseja de acordo com modelos pré-estabelecidos: jovem, saudável, atlético. Os

modelos de corpo são configurados a partir da idéia de prevenção e cura/correção, como

percebe Paula Sibilia (2006). Trata-se do policiamento de si. É preciso gerenciar o


100
próprio corpo evitando doenças, gorduras, defeitos, e para os defeitos que já se

instalaram, ou inerentes a este corpo, existem as cirurgias plásticas e corretivas.

Na sociedade de controle, a fluidez, os fluxos exigem uma superficie lisa não

compatível com a rugosidade do corpo. O que é muito profundo, obscuro, deve ser

trazido à superfície, para onde há luz. A velocidade exigida na sociedade de controle

não permite que se aprofunde em nada.

Ao mesmo tempo que a informação e a tecnologia devem ser sempre atualizadas

e renovadas, o corpo do homem e do planeta precisam ser conservados. Mas a aparente

contradição se desfaz, se pensarmos que renovações e atualizações tem o objetivo de

manter alguma coisa, alguma ordem. Estas procuram dar permanência, continuidade, a

algo. A perfectibilidade (sem vincos ou rugas), como enfatiza Edson Passetti (2003), é a

meta na sociedade de controle.

virtual, real e bidimensional

Pouco tempo depois de se conhecerem na internet, Bernd Jürgen Brandes,

engenheiro de 42 anos, tomou um trem para Rotenburg, cidade em que vivia Meiwes, o

técnico em informática de 41 anos (figuras 6 e 7). Os dois fizeram sexo e então

resolveram dar início à dupla-fantasia. Segundo a agência France Presse na Folha

Online, Brandes tomou alguns analgésicos com Whisky para que Meiwes pudesse lhe

amputar o pênis, como era seu desejo (FRANCE PRESSE, 03/12/2003). Outras fontes

como BBC, Estadão e DW-World, confirmam esta informação. De acordo com a

descrição publicada na revista Veja,

Meiwes e Juergen fizeram sexo e, depois, o engenheiro tomou dez


analgésicos. "Ele me pediu que cortasse seu pênis para comermos

101
juntos, mas me fez prometer que eu só o mataria quando ele estivesse
inconsciente", contou. O técnico arrancou o pênis do engenheiro com
uma faca de cozinha, cortou ao meio e fritou em óleo. Depois, serviu
com vinho. Não comeram tudo porque a carne ficou rígida,
intragável. Nesse momento, Juergen desmaiou. Foi então que o
canibal decidiu esquartejá-lo. (VEJA, 10/12/2003: online)

Conforme ainda a agência de notícias Reuters e a DW-World, os dois teriam

tentado flambar o pênis, temperado com sal e pimenta, antes de resolver fritá-lo. Em

recente entrevista à emissora RTL, na Alemanha, Meiwes teria afirmado que, "a carne

humana tem o mesmo sabor daquela de porco, é apenas levemente mais amarga, mas

mais substanciosa e muito boa" (FOLHA ONLINE, 16/10/2007: online).

Figura 6. Bernd Jürgen Brandes Figura 7. Armin Meiwes


(EF, 03/12/2003) (DEUTSCHE WELLE, 30/01/2004)

Mesmo entre os controversos canibais, com exceção de terem levado o ato às

últimas conseqüências, a fantasia do canibalismo não se distanciou muito dos modelos e

clichês à disposição na sociedade de controle: da escolha do parceiro sob certos padrões

de beleza à escolha do pênis como objeto de desejo a ser devorado. Por mais que a

‘vítima’ não correspondesse aos pré-requisitos (Meiwes comentou nos tribunais seu

desapontamento pelo fato de Brandes ter mentido sobre a idade, afirmando ter 36 anos.

CRESCENTI, 08/12/2003), a relação que se estabeleceu entre os dois partiu de uma

iniciativa de lógica empresarial, em que um oferece um ‘serviço’, ou procura um

produto, através da exposição (ou marketing) na internet. Entre as possibilidades,

102
avalia-se qual é a mais vantajosa, tendo como critérios a ‘certeza’ (ou credibilidade) do

‘cliente’/produto, e a proximidade com o ideal desejado.

De acordo com a notícia da France Presse, publicada na Folha Online, Meiwes

declarou que outras pessoas se ofereceram para ser comidas, porém, entre elas, um era

muito gordo e outros apresentaram dúvidas. Quanto ao fato de comerem o pênis, remete

a noção pré-estabelecida do sexo na sociedade ocidental. O sexo é geralmente reduzido

à penetração.

Isso faz mais sentido se pensarmos que existe uma resitência muito maior ao

sexo entre dois homens do que entre duas mulheres, já que entre homens a penetração é

possível, enquanto que entre mulheres a pentração de objetos, por exemplo, é vista

como um elemento masculino ou, se não há penetração, não é sexo.

Foucault observa em O uso dos prazeres, que

(...) a relação sexual – sempre pensada a partir do ato modelo da


penetração e de uma polaridade que opõe atividade e passividade – é
percebida como do mesmo tipo que a relação entre superior e
inferior, aquele que domina e aquele que é dominado, o que submete
e o que é submetido, o que vence e o que é vencido.(...) E pode-se
compreender a partir daí, que há, no comportamento sexual, um
papel que é intrinsicamente honroso e que é valorisado de pleno
direito: é o que consiste em ser ativo, em dominar, em penetrar e em
exercer, assim, a sua superioridade. (FOUCALT, 2003c: 190)

A partir do momento em que se compreende as chamadas relações sexuais como

relações de dominação onde há, necessariamente, um elemento ativo que deve penetrar

e um elemento passivo que deve ser penetrado, a ausência da penetração

deacaracterizaria uma relação sexual.

Depois de terem cortado e comido o pênis de Brandes, Armin Meiwes esperou

que este desmaiasse, esfaqueou seu pescoço e retalhou sua carne, registrando tudo em

vídeo (LK, 12/12/2002), fato também confirmado pelas outras fontes (BBC, Estadão,

103
Folha Online, DW-World). Por aproximadamente um ano, Armin Meiwes comeu 20

dos 30kg de carne do parceiro em suas refeiçõe regulares, e assistiu aos videos para

satisfação pessoal. Conforme Paula Sibilia,

no Ocidente moderno, como se sabe, para além da representação, a


visão ostenta a capacidade de objetivar, “criar o visível” e “tornar
real” aquilo que focaliza. Munido de toda essa tradição objetivante
que o legitima como um mecanismo detentor da verdade, portanto, o
olhar monopoliza a sinestesia e acaba empobrecendo toda a riqueza
sensorial na apreciação da beleza, da espessura e da potência dos
corpos. (SIBILIA, 2006: online)

Os canibais saíram da forma virtual de suas fantasias e tornaram-na concreta,

carnal. Simultaneamente, a prática era bidimesionalizada por meio de uma câmera de

vídeo perdendo, desta maneira, o seu volume, a sua carne, mas ao mesmo tempo

acrescentando ao acontecimento a sensação de verdadeiro. A imagem gravada é também

a prova do acontecimento. A experiência do canibalismo se ‘torna real’ através de uma

tela na medida que ela existe porque pode ser vista, mesmo se apenas por seu executor.

Jeffrey Dahmer, no final do século XX, fotografava cada etapa de sua ‘obra’ para poder

apreciar depois. Tanto para Dahmer quanto para Meiwes, as imagens que eram usadas

para seus prazeres pessoais, tornaram-se provas de seus atos e acusações contra eles.

Claude Lévi-Strauss, pensando na arte na sociedade ocidental e no papel do

signo, observa que enquanto a ciência, e o conhecimento em geral, se propõe a estudar

os objetos (coisas, pessoas, planeta) pelas partes, desmembrando-os, nas artes (ou nas

representações) o todo é reduzido não a um pedaço, mas a uma outra escala. Um

modelo reduzido (não importa se é uma obra de arte ou um filme caseiro), “por ser

quantitativamente diminuído, ele nos parece qualitativamente simplificado” (LÉVI-

STRAUSS, 2002: 39). Isso porque ele pode, mesmo que ilusoriamente, dar a dimensão

de um objeto em sua totalidade, permitindo a sensação de poder sobre o mesmo. Neste

104
mesma reflexão, o autor não faz menção à arte em movimento, como o cinema, por

exemplo, mas poder-se-ia pensar neste meio como uma outra forma de modelo

reduzido, pois ele reduz o seu objeto à escala bidimensional, mesmo se em movimento.

Aquilo que pode ser visto em sua totalidade, aquilo que é mais completamente

conhecido, é mais controlável. E conforme o autor, “(...) mesmo que isso seja uma

ilusão, a razão desse procedimento é criar ou manter essa ilusão, que gratifica a

inteligência e a sensibilidade de um prazer que, nessa base apenas, já pode ser chamado

de prazer estético” (ibidem).

Lévi-Strauss refere-se às artes quando aponta este prazer estético, mas talvez não

seja um disparate pensar na relação de poder e controle que se estabelece com um

objeto, ou um acontecimento, através destas capturas de imagem. O autor compreende

um modelo reduzido como algo que implica na renúncia de certas dimensões de um

objeto, seja a cor, a textura, o cheiro, volume, etc., e tanto um registro fotográfico,

quanto uma vídeo caseiro, cumprem este papel. Ainda que não se possa negar que, mais

do que as outras técnicas, a técnica de vídeo faz crer na realidade dos fatos, em função

de reproduzir a imagem em movimento.

No caso do canibal, o registro em vídeo é ao mesmo tempo a produção de um

modelo reduzido, no sentido em que coloca Lévi-Strauss, proporcionando uma visão do

todo para deleite posterior, e uma bidimensionalização, da forma como expõe Paula

Sibilia, em que deve ser consumido apenas visualmente.

Mas além da iniciativa de Meiwes, esta bidimesionalização partiu também da

iniciativa de terceiros, que – durante o julgamento – produziram um filme sobre a sua

vida. O alemão conseguiu proibir a exibição do filme, no qual sua vida havia sido

reduzida a uma história de terror (AFP, 03/03/2006), mas não descartara a possibilidade

de ter sua vida nas telas do cinema (BBC, 12/01/2006).

105
Talvez seja possível dizer que o modelo reduzido da arte, ou a

bidimensionalização, redimensionados na sociedade de controle, contribuem para a

criação de estereótipos, tipos, modelos, por meio da publicidade, da propaganda. Na

televisão, é através dos estereótipos que cada um se reconhece e se sente representado

no mundo da propaganda. Na internet, por outro lado, os estereótipos, tipos, modelos, se

tornam aglutinadores, formando comunidades, mas cada um individualmente tem a

chance de aparecer através de blogs, fotologs, orkut, youtube, etc.

Na sociedade de controle ser convocado a participar é também ser convidado a

aparecer. Quem participa aparece, existe. Quem aparece mais, vira celebridade,

exemplo, alvo. Armin Meiwes foi preso depois de anunciar em fóruns na internet, que já

havia matado e comido alguém. Neste sentido, ser capturado pode ser uma forma de

ficar em evidência. A internet também incita a confissão espontânea.

Além do ato, Meiwes registrou e guardou o depoimento do consentimento de

Brandes (SCHWARTSMAN, 05/02/2004). Precaução de alguém que sabe dos riscos de

sua aventura e, talvez, mesmo que por um momento, até quisesse ser descoberto.

canibalismo voluntário (ou um prolema para a justiça penal)

Os vídeos, como mostram as informações nos sites e agências de notícias citados

até o momento, foram usados no processo judiciário tanto como prova incriminatória

pela acusação, quanto prova de absolvição pela defesa. A grande questão que este caso

trouxe para a justiça penal foi o fato da chamada vítima ter sido voluntária e o fato do

canibalismo não constar no código penal alemão. Isso gerou um problema na

qualificação do ato enquanto crime – e consequentemente em sua punição – já que o

caso não tratava nem precisamente do que seria uma eutanásia, considerada ilegal na

106
Alemanha (de onde a defesa tirava sua base), nem do que se classificaria como

homicídio arbitrário (como tentava provar a acusação).

O caso de Armin Meiwes, com todas as suas particularidades, ainda se relaciona

com a instituição jurídica como “crime sem razão”. Um ato considerado tão irracional,

tão absurdo, que não haveria a necessidade (pelo menos até o momento) de classificá-lo

nas categorias jurídicas. No entanto, se o canibalismo não se enquadra no código penal,

e a confissão de Brandes dificulta a qualificação do ato como arbitrário, acusação e

defesa tiveram que encontrar outros meios para dobrar o dito crime e classificá-lo de

alguma forma.

Segundo o site Terra Uruguay (02/12/2003), a defesa de Meiwes alegava que o

réu matara à pedido. A pena para o que seria crime de eutanásia, ou de morte à pedido

da chamada vítima, na Alemanha, é de 6 meses à 5 anos. Para fundamentar seu

argumento, a defesa tentava mostrar a partir do depoimento de conhecidos, como

Meiwes era um bom sujeito e que de forma alguma se parecia com seu crime, e que

mesmo não sendo doente mental, sua infância difícil o teria marcado com alguns

traumas que poderiam ter sido resolvidos por um psiquiatra (FOLHA ONLINE,

16/10/2007: online).

Em uma das manchetes sobre o caso lia-se: “Canibal alemão queria casar e ter

filhos, dizem testemunhas” (BBC, 09/01/2004: online). A notícia expõe as declarações

de duas testemunhas que teriam tido um relacionamento com Meiwes. Duas mulheres.

Estas afirmam que ele era atencioso, gentil, porém um pouco infantil. As declarações

das testemunhas, usadas a favor do alemão, tentam caracterizá-lo como um ‘homem de

bem’, longe de suas perversões, educado, polido, gentil, bom trabalhador, eficiente e

heterossexual. Fica clara a intenção da defesa de diferenciar o sujeito de seu ato tido

como criminoso, mas não na tentativa de qualificá-lo como inimputável diante de sua

107
demência, já que desde o princípio este foi considerado totalmente responsável em suas

capacidades metais, mas de atribuir a ele um distúrbio grave.

O discurso da defesa procura mostrar como Meiwes é um homem diferente de

seu ato, mas que ainda assim, há na base de suas estruturas uma disfunção. O próprio

Meiwes declarou em seu julgamento – como é possível observar nas informações da

BBC, DW-World, Folha Online, Estadão, entre outras – que teria problemas por ter sido

abandonado pelo pai e pelo irmão durante a sua infância, e que a partir daí criou a

fantasia de poder ter alguém bem próximo, dentro de si.

Em contra-partida, a acusação faz uso dos mesmos elementos para mostrar como

o sujeito perigoso é na verdade dissimulado. Rhodes (2004), ressalta com relação aos

encarcerados tidos como psicopatas, que considera-se que nenhum bom comportamento

partindo deles é verdadeiro. Sobre Collins, um destes prisioneiros, Rhodes observa que

suas atitudes eram sempre entendidas como inadequadas e prova de sua psicopatia, pois

para os psiquiatras e carcereiros, “O que torna Collins perigoso é a sua capacidade de

imitar as exigências do seu ambiente (...) enquanto oculta uma vontade patológicamente

perturbada” (2004: 64).

Ao mesmo tempo, é importante perceber de que forma os outros casos de

canibalismo anterior a este passam a servir de modelo na tentativa de qualificação do

ato de Meiwes como crime. Existe uma tentativa de assemelhar o canibalismo de

Meiwes com casos anteriores. Em uma notícia se lê que “o caso do alemão se assemelha

ao de Jeffrey Dahmer, um canibal homossexual” (SYDNEY, 29/12/2003: online,

tradução livre). A tentativa de assemelhar Meiwes a Dahmer através do

homossexualismo é explícita, e também é possível perceber a estratégia de relacioná-lo

a outros casos como o de Ed Gein, através da tentativa da promotoria de estabelecer

entre Meiwes e sua mãe morta, a mesma relação que de Ed Gein e sua mãe. Utiliza-se o

108
modelo do pai fraco ou ausente, e a mãe severa, autoritária e super-protetora (GMAX,

19/01/2004). Ou, também, é possível considerar que Gein tornou-se um exemplo

ilustrativo das teorias psicanalíticas para os casos considerados psicopáticos.

Os exames psiquiátricos mostraram que Meiwes não era doente mental, já que o

ato foi inteiramente premeditado, mas que talvez sua vítima o fosse (Terra Uruguay,

02/12/2003). Até então, as condenações de práticas de canibalismo apoiavam-se

principalmente na questão da sanidade mental do considerado agressor, em que a defesa

tentava alegar insanidade – tornando o dito crime inimputável –, e a acusação tentava

mostrar que o réu sabia exatamente o que estava fazendo, que era um sujeito

simplesmente mal. No caso de Armin Meiwes, a defesa não se empenhou em conferir

ao réu o estatuto de doente mental, já que tinha ao seu lado a confissão do

consentimento da chamada vítima, por outro lado, a promotoria levantou a dúvida sobre

a sanidade desta mesma vítima (FRANCE PRESSE, 03/12/2003). Assim como a

loucura é utilizada para descaracterizar o que se chama de crime, ela é usada aqui para

desqualificar a vontade daquele considerado a vítima.

Segundo o site da Folha Online “o promotor Marcus Koehler alegou que

Meiwes sempre teve a intenção de matar e que explorou um problema mental que

deixou Brandes com desejo de morte” (FRANCE PRESSE, 03/12/2003: online). De

acordo com a mesma fonte, o promotor afirmaria ainda que “em um certo ponto, ele

[Brandes] teria hesitado, mas foi convencido a continuar” (ibidem).

Não é à toa, que a partir do caso de Meiwes, começou-se a questionar a inclusão

do canibalismo no código penal. Se a internet possibilita estes encontros, o sistema

judiciário cuida em procurar novos elementos para que o canibalismo como ato

criminoso seja punido. Em uma reportagem divulgada em DW-World.de (MW,

17/01/2003), é atribuída à ministra da Justiça alemã, Brigitte Zypries, a declaração de

109
que "Notícias assim têm de ser levadas a sério", já que a internet seria “meio

relativamente fértil para crimes do tipo” (MW, 17/01/2003: online).

Na mesma reportagem, encontram-se ainda outras declarações em que se alerta

para a necessidade de, a partir do caso de Meiwes, pensar novos dispositivos de controle

e punição. “Para o procurador Horst Roos, do Ministério Público de Trier, desde o

episódio de Rotenburg, não pode mais haver tabu nesta questão” (ibidem). Também,

o professor Rudolf Egg, da Central de Criminalística de Wiesbaden,


não só reconhece a existência de canibais na Alemanha, como estima
em várias centenas o número de pessoas que participam, ao menos
passivamente, de práticas ocultistas bizarras no país. (MW,
17/01/2003: online)

Ainda mais explícita, a notícia do jornal Correio da manhã levanta a questão: “e

se não tivesse havido homicídio, ao abrigo de que parâmetro legal se condenaria alguém

que ingeriu carne humana?” (CORREIO DA MANHÃ, 15/12/2002: online).

o risco do contágio

Após as repercussões do caso de Armin Meiwes, num espaço muito curto de

tempo, outros casos de canibalismo (ou de ameças de canibalismo) também vieram à

tona. O primeiro deles foi o de outro alemão, Ralph Meyer.

Em 2005, antes ainda do segundo julgamento de Meiwes, Meyer procurou a

polícia pedindo ajuda, pois matara um homem e estava prestes a comê-lo (BOYES,

04/05/2005). A vítima era Joe Ritzkowsky, 33 anos, professor de música. De acordo

com o site Times Online, os dois se conheceram em uma sala de bate-papo na internet.

Joe, foi ao apartamento de Meyer e pediu que o amarrasse. Enquanto faziam sexo,

Ralph enfiou uma chave de fenda no pescoço da vítima. Abriu o corpo, alimentou seu

110
gato com os pulmões, cortou, temperou e guardou o pênis na geladeira, e colocou

alguns orgãos na frigideira. Depois disso procurou a polícia (BOYES, 04/05/2005).

Na notícia, a relação com o caso de Armin Meiwes é explicitada logo no início:

“Ralf Meyer, 41, decorador, estava claramente imitando Armin Meiwes” (BOYES,

04/05/2005: online, tradução livre). Em seguida, há uma declaração de seu advogado

que teria enfatizado que, “diferente de Meiwes, Meyer não chegou a comer nenhum dos

orgãos” (ibidem).

O fato do advogado de defesa enfatizar que não houve canibalismo, ainda que o

réu tivesse matado, cortado, temperado, e até alimentado seu gato, mostra, mais uma

vez, que no caso de Armin Meiwes era o canibalismo que estava sendo julgado. Meyer

foi condenado por assassinato baseado em causas emocionais, com motivação sexual.

Segundo as informações contidas na notícia, “a polícia temia a algum tempo que

o caso de Meiwes pudesse enfraquecer o tabu contra comer carne humana” (BOYES,

04/05/2005: online, tradução livre), como se o caso de Meiwes pudesse estimular as

pessoas a querer comer carne humana, e como se o fato de Meiwes ter procedido desta

forma, sugeriria que o ato de comer carne humana fosse banalizado – discurso

semelhante que se usa com relação à liberação das drogas.

Ao contrário de Meiwes, o fato do canibal em potencial ter procurado a polícia e

declarado que ainda tinha desejos de canibalismo e temia não conseguir se segurar,

contribuiu para que seu caso fosse encarado como um distúrbio mental.

Em janeiro de 2006 foi divulgada outra notícia. Desta vez o caso de um sueco

que no ano anterior havia matado duas mulheres, bebido o sangue e comido a carne. O

canibal foi diagnosticado como portador de graves distúrbios psiquiátricos (FOLHA

ONLINE, 28/01/2006). Não houve, na notícia, referência ao caso de Armin Meiwes.

111
Também em 2006, a Folha Online (16/04/2006) publicou outra notícia em que

quase ocorreu um ato de canibalismo. Neste caso, o corpo de uma menina foi

encontrado em uma caixa plástica no apartamento de seu vizinho. O corpo estava

inteiro, mas como a polícia encontrou instrumentos para churrasco e amaciante de

carne, deduziu que o ato, "parece fazer parte de um plano de seqüestrar uma pessoa,

estuprá-la, torturá-la, matá-la, cortar sua cabeça, tirar sangue do corpo, estuprar o

cadáver, comer o corpo e então tirar seus órgãos e ossos" (FOLHA ONLINE,

16/04/2006: online). A intenção de canibalismo não foi admitida pelo acusado.

Além destes, é possível citar uma série de outros casos. Alguns ainda fazem

menção ao “canibal de Rotemburg”, como um que só foi divulgado em 2004, de um

australiano que, também em 2001, teria matado outro em um camping, e comido sua

perna e seu pênis (FOLHA ONLINE & FRANCE PRESSE, 06/05/2004). Ou, o caso da

mulher russa, que teria matado um homem e, junto com seus dois filhos, o teria

cozinhado e comido (FOLHA ONLINE & AGÊNCIAS INTERNACIONAIS,

17/11/2005). Também, em 2007, foi divulgada a história de um sem teto que teria

matado seu companheiro do abrigo e comido suas vísceras (BBCBRASIL, 29/08/2007).

Ainda em 2007, mas sem referência ao caso de Meiwes, no México um homem

foi acusado de ter matado e comido duas mulheres (ANSA & FRANCE PRESSE,

15/10/2007). Um Outro, na Espanha, de um inglês que admitiu ter matado e comido sua

namorado em 2004 (BBCBRASIL, 09/11/2007). Além de dois casos recentes, em 2008,

um de um homem matou uma adolescente e comeu seus órgãos quando, segundo a

polícia, estava drogado, nas Filipinas (EFE, 05/08/2008), e também, desta vez no Texas,

um homem que matou e comeu a namorada alegando que atendia a um pedido divino

(FRANCE PRESSE, 08/01/08). Esta lista ainda poderia continuar.

112
A quantidade de novos casos de canibalismo na mídia possibilita, pelo menos,

dois tipos de reflexão. A primeira, é que a internet e os meios de comunicação

globalizados, permitem ter acesso mais facilmente à notícias do mundo todo, dando a

impressão de que os casos aumentaram, quando na verdade só teriam ficado mais

acessíveis. A outra, é que a repercussão de um caso de canibalismo poderia ter

alimentado a busca e a atenção para outros. De qualquer forma, as duas possibilidades

apontam para o desenvolvimento de necessidades recentes, criando novas intervenções

jurídicas.

A partir da justificativa do medo do contágio, estas declarações e a grande

exposição de casos de canibalismo alertam para a necessidade colocada pela justiça

penal de aplicar uma punição mais severa à Meiwes, para que sua punição sirva de

exemplo aos outros que pensarem em tomar atitudes semelhantes.

Foucault compreende que no Ocidente houve dois grandes modelos de controle

político, o modelo da exclusão do leproso e da inclusão do pestífero. Uma e outra

prática tinham como objetivo erradicar o mal impedindo que ele se alastrasse entre os

corpos considerados sãos. Mas se o modelo da lepra atua simplesmente pela expulsão

dos doentes, dos portadores do mal, o modelo da peste vai mais além. Ele insere a

prática de um mecanismo de controle contínuo e minucioso, e justifica o mapeamento e

o policiamento constante, como medidas para evitar e corrigir. Procura identificar o mal

a tempo de evitar o contágio. Segundo Foucault, “o momento da peste é o momento do

policiamento exaustivo de uma população por um poder político, cujas ramificações

capilares atingem sem cessar o próprio grão dos indivíduos, seu tempo, seu habitat, sua

localização, seu corpo” (FOUCAULT, 2002: 59).

O risco do contágio do canibalismo justificaria intervenções mais duras com

relação à Armin Meiwes. Se a peste justificou a aplicação de um controle contínuo, o

113
caso de Armin Meiwes é utilizado para se justificar uma pena mais agressiva ou mesmo

a inclusão do canibalismo no código penal, como prevenção à futuras práticas de

canibalismo. Depois que Armin Meiwes foi condenado a 8,5 anos de prisão, as notícias

de canibalismo exerceram um papel importante na justificativa da elevação de sua pena.

Neste sentido, uma pena mais dura, serviria de exemplo impedindo que outros casos

como este voltassem a ocorrer. De fato, a pena inicial de Meiwes foi anulada e ele foi

condenado à prisão perpétua.

participação e denúncia

A sociedade de controle alimenta, através da participação, a confissão, a

denúncia e o policiamento de todos por todos.

Figura 8. “Publicado por Franky em 18 de Agosto de 2002 às 13:26:37. Em resposta à: procurando por um homem
que me coma publicado por slaveboymeat em 16 de Agosto de 2002 à 06:11:53. Oi, estou muito interessado em
você, me envie mais detalhes seus por e-mail, altura, peso... Eu sou Franky da Alemanha e um Canibal de verdade.

114
Me escreve em: antrophagus@hotmail.com. Seu açougueiro. Franky. : Tenho 16 anos e adoro pensar em um homem
comendo minha deliciosa carne para dentro de sua barriga. Eu realmente quero muito ser comido, então por favor,
me diga como você irá me cozinhar e eu retornarei o contato. Aguardo sua sugestão pelado e pronto para ser
desmembrado.” (Tradução livre).

Figura 9. “Publicado por Franky em 10 de Setembro de 2002 às 10:11:09. Em resposta à Extremmetager gesucht,
publicado por Hänsel em 08 de Setembro de 2002 à 13:35:09. Olá Hänsel, Imaginar-se ser assado vivo é uma
fantasia muito bonita, ainda mais com você como vítima. Mas, considere que, em função de seu peso, você tem
cerca de 35 k de carne. Se portanto cada canibal comer umas 500 g de sua carne na refeição (o que é uma porção
muito grande), serão necessárias cerca de 70 pessoas para comê-lo. Afinal, nada de sua preciosa carne deverá sobrar
e estragar. Juntar um grupo tão grande de comensais seria bem difícil. Se você se decidir a deixar-se abater e
destrinchar “normalmente”, então entre em contato comigo antrophagus@hotmail.com. Eu o abaterei e destrincharei
profissionalmente, e depois o comerei completamente com outros amigos canibais. Aguardo ansiosamente por sua
resposta, Seu mestre açougueiro. Franky. Bin 25/1.82/68- quem quer me assar vivo no forno – procuro açougueiro
gay” (Tradução por Dorothea Passetti).

Depois da primeira experiência canibal, Armin Meiwes continuou a publicar

anúncios (figuras 8 e 9) nos mesmos sites de relacionamento afirmando, algumas vezes,

que já havia comido um homem. Frequentador de um destes sites, um estudante

austríaco de Innsbruck, preocupado com as declarações do canibal, resolveu denunciá-lo

à polícia através da própria internet, conforme as notícias nos sites da BBC e DW-

115
World. Seguindo as pistas do estudante, a polícia foi até a casa de Meiwes e encontrou

videos e pedaços de carne congelados, que não permitem dúvida quanto ao ocorrido

(EF, 03/12/2003).

A sociedade de controle convida à participação, mas também à denúncia, ou

melhor, à denúncia como forma de participação. Segundo Edson Passetti,

vivos, na sociedade de controle, são todos os que participam:


produtivos voluntários, filantropos, formadores de opinião,
assujeitados. Até os que não fazem nada, a não ser permanecer
prostrados diante da televisão, participam ativamente, não são mais
os alienados. Emitem opiniões, fazem naufragar
paradigmas.(PASSETTI, 2003: 257).

A participação permite a constante atualização de dados, posições, informações.

Cada vez há menos espaços obscuros, desconhecidos, livres de controle. O policiamento

é cada vez mais ‘democrático’. Todos são convocados a ser polícia dentro de suas

comunidades (reais ou virtuais). A polícia, enquanto instituição, é cada vez mais

inserida de forma positiva (ou não repressiva) no cotidiano da comunidade, como é o

caso da polícia comunitária, e cada um, cada vez mais, é convocado a policiar os que

estão à sua volta, através de dispositivos como o disque-denúncia.

Os sites de notícias também convidam à participação através de enquetes e links

para denúncias. Fora do mundo virtual esta participação pode ser através de e-mails

disponibilizados para estes fins, ou ainda pelo telefone.

Atrelada à notícia “Canibal condenado a oito anos de prisão”, o site DW-World

propunha uma enquete em que colocava a questão: “Você concorda com a sentença de

8,5 anos de prisão para o canibal de Rotenburg? Caso contrário, que pena você daria?”

(figura 10). Mais do que convocadas à participar, as pessoas são convocadas à julgar, a

tomar posições determinadas sobre a vida alheia. E, além das enquetes, também é

116
comum, nas fontes de informação acessadas pela internet, existem espaços dedicados ao

comentário dos leitores.

Enquete

Você concorda com a sentença de 8,5 anos de prisão para o canibal de Rotenburg? Caso

contrário, que pena você daria?

1. Sim, é justa

2. Cinco anos bastariam

3. A pena deveria ser mais longa

4. A prisão deveria ser perpétua

5. Internação em clínica psiquiátrica

6. Pena de morte (não prevista na Alemanha)

7. Se a vítima quis morrer, ele é inocente

8. Não quero ou não posso julgar

______________________________________________________

Figura 5. Enquete do site DW-World (Deutsche Welle, 30/01/2004)

1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. Número
(%) (%) (%) (%) (%) (%) (%) (%) total de
votos
Resultado em
5,5 3,7 9,2 18,6 25,8 23,7 8,4 5,1 511
18/09/2004

Resultado em
9,9 11,0 11,4 14,5 18,5 15,2 10,2 9,3 1.689
13/03/2006

Resultado em
9,5 10,3 12,6 13,0 20,3 13,9 9,8 10,7 2.108
06/08/2008
__________________________________________

Tabela 1. Resultados da enquete em diferentes dias.

117
Até o dia 13/03/2006, 1.689 participaram da enquete, sendo que até o dia

18/09/2004, 511 pessoas tinham participado. No ano de 2004, o alemão tinha sido

condenado à 8,5 anos de prisão, mas quando a segunda consulta aos resultados foi feita

o alemão era julgado pela segunda vez, sob o risco de prisão perpétua. As enquetes,

além de incitar à participação, ajudam a manter viva a memória de certos

acontecimentos. Nos dois momentos em que os resultados foram consultados, os

números mais altos eram – em ordem decrescente – para a internação em clínica

psiquiátrica (25,8%; 18,5%; e 20,3%), pena de morte (23,7%; 15,2%; e 13,9%) e prisão

perpétua (18,6%; 14,5%; 13%). Em uma nova consulta, no dia 06/08/2008, 2.108

pessoas haviam votado (um aumento menos significativo), mas a porcentagens mais

altas continuavam na mesma ordem (tabela 1).

Disponibilizada no site logo após a primeira condenação de 8 anos e meio, a

enquete ainda abre a possibilidade para uma alternativa que nem foi colocada – a pena

de morte –, incitando, de maneira camuflada, uma prática de extermínio do sistema

penal. Além disso, esta possibilidade inexistente foi a segunda mais votada, só perdendo

para a internação em clínica psiquiátrica.

A participação através da denúncia é ainda uma convocação ao juízo. O cidadão

participante é polícia e é juiz, ou ao menos acredita ser o juiz, sem pensar que as opções

e possibilidades já estão colocadas de antemão segundo o julgamento de outrem.

o discurso jornalista e a verdade

Na velocidade dos fluxos da sociedade de controle, as informações não cessam

de se atualizar. A expressão intelectual compatível com esta velocidade não é mais

aquela dos especialistas. Os especialistas se asseguram de um conhecimento limitado e

118
profundo, conhece muito sobre um pouco. Os divíduos na sociedade de controle, devem

ser pluri, multi. Também as fronteiras do conhecimento de expandiram, deve-se

conhecer pouco – o suficiente – sobre muito, sobre tudo. Neste sentido, quem melhor

expressa o saber intelectual na sociedade de controle é o jornalista.

Além disso, o real, o verdadeiro, é aquilo que está em evidência, que aparece na

mídia. O jornalista, sob o discurso da imparcialidade, da neutralidade ideológica, expõe

verdades inquestionáveis. Ele traduz ao público o saber dos especialistas (juízes,

cientistas, psicólogos, etc.).

O jornalista é o intelectual do humanitarismo na sociedade de


controle, na qual tudo é verdade; com certeza, efeito da veracidade
da comunicação fundada na justificativa com base na isenção de
valores, na apresentação nua e crua dos acontecimentos, a ausência
do juízo: certeza e verdade se identificam na busca e difusão da
utopia da paz eterna. Como disse Maquiavel, no ápice renascentista,
o importante é parecer ser. (PASSETTI,E., 2003: 257).

Com relação ao caso de Armin Meiwes, as notícias puderam ser utilizadas de

duas formas: como fonte de informação e como objeto de análise. O saber e os

discursos são sempre interessados. A forma como as coisas são colocadas, os estudos

que são propostos, têm como base certos valores e objetivos de quem os apresenta.

Por exemplo, os mesmos dados estatísticos, dependendo da perspectiva de

análise, podem mostrar resultados completamente incompatíveis. Se o propósito é

mostrar que a polícia funciona como redutor da violência, em uma comunidade onde

não há registros de homicídio (quando se toma a quantidade de homicídios como

medidor) antes de uma intervenção policial, e depois desta intervenção aumentam os

registros de homicídio, é possível alegar que antes da intervenção da polícia a violência

era tão extrema que temia-se fazer qualquer denúncia. Sob uma outra perspectiva,

assumir-se-ia que a intervenção policial foi a disparadora das mortes que ocorreram.

119
Mas mesmo a escolha prévia dos números que devem ser conhecidos para então serem

interpretados, não é imparcial.

Quando noticia-se um acontecimento considerado crime monstruoso, em que é

conferido ao ator o estatudo de psicopata – como acontece com aqueles associados ao

canibalismo –, é de praxe que, a partir do ato, a vida do sujeito considerado criminoso

seja exposta de forma que todos os mínimos acontecimentos não tenham outro sentido

além de acusação da execução do ato delituoso. Conforme já foi exposto no capítulo

anterior, é disso que trata Foucault (2002) ao constatar que a psiquiatria tem o papel de

dobrar o delito fazendo com que o sujeito se pareça com seu crime.

Durante os dois julgamentos de Armin Meiwes, a imprensa acompanhou de

perto todo o processo. Segundo a Redação do site Terra, no dia do priemeiro veredicto,

a imprensa pôde filmar e fotografar a sala quando o réu foi


apresentado, mas teve de abandonar o recinto antes da leitura do
veredicto. A sessão começou com meia hora de atraso por causa do
grande número de fotógrafos e câmeras de televisão na sala, que
estava lotada pelo público (TERRA, 30/01/2004: online).

Sobre a repercussão do caso, o site da BBCBrasil informou que “a opinião

pública alemã acompanha o julgamento com a curiosidade mórbida de quem vê um

filme de terror. Jornais sensacionalistas já anunciaram que vão divulgar todos os

detalhes do processo” (CRESCENTI, 03/12/2003: online).

A cobertura detalhada do julgamento não atende à imparcialidade da divulgação

jornalística. Tanto na exposição das informações, quanto na sua interpretação – ao

menos com relação às grandes fontes de notícias –, reproduz-se ou o discurso da

acusação ou o da defesa. Parte-se do princípio que estes saberes são verdades

científicas, sem nem atentar para o fato que, em toda a história ocidental, nem as

ciências mais exatas estiveram livres de enganos.

120
Na melhor das hipóteses, quando as informações na mídia apenas reproduzem os

discursos jurídicos, não existe preocupação em questionar os conceitos como crime,

delinqüência, psicopatia, etc., assumindo que estes seriam verdades universais

consolidadas por saberes ciêntíficos e imparciais. É neste sentido que apenas perpetuam

o sistema penal.

As informações do julgamento de Armin Meiwes foram divulgadas, pelos meios

de comunicação, imediatamente após o seu acontecimento. Outras informações também

eram divulgadas em seguida ao acesso que se tinha a elas. Em uma notícia vinculada ao

site DW-World.de, no dia 12 de dezembro de 2002, há um exemplo desta velocidade de

publicação das informações: segundo a notícia, “o caso veio a público somente nesta

quinta-feira (12), depois que a polícia divulgou ter preso na quarta o suspeito de um

caso de canibalismo que, nesse meio tempo, confessou e se encontra em prisão

preventiva.” (LK, 12/12/2002: online) As datas expostas na notícia surpreendem. Mas

esta rapidez está relacionada ao elemento da internet, já que, com este dispositivo é

possível tornar qualquer infromação pública a qualquer momento. No mesmo dia a

notícia já circulava pela agência Reuters (12/12/2002), no jornal Folha Online, onde

haviam outros dois links para outras informações sobre o mesmo caso.

Em sites internacionais, como a BBC ou DW-World, é possível verificar que as

notícias foram prontamente traduzidas para diversas línguas

Mais uma vez o caso Armin Meiwes e suas repercussões ajudam explicitar

mecanismos próprios da sociedade de controle, como a velocidade das informações, de

forma globalizada, e instantâneamente, através dos fluxos da internet.

O fato da notícia ser divulgada, quase que simultaneamente, nos mais diversos

cantos do mundo, proporciona a sensação de que já não há fronteiras, ou que as

fronteiras são mínimas, desobstruídas pela internet. No entanto, não são todos, nem tudo

121
que é permitido atravessar estas fronteiras, mesmo cibernéticas. Para muitas

informações se solicitam senhas de acesso, outras informações são simplesmente

bloqueadas dentro de alguns territórios, como é o caso da China, do Vietnã, de Cuba, da

Coréia do Norte, entre outors. Em uma reportagem recente do jornal Estado de S. Paulo,

o jornalista Renato Cruz afirma que “as iniciativas de controle da internet por governos

aumentam em todo o mundo” (CRUZ, 24/05/2008: online). Alguns acessos são negados

dentro das, empresas, escolas ou residências. Apesar da falsa impressão, de que as

fronteiras seriam cada vez menos e menores, ocorre que as fronteiras podem ser criadas

por cada um em seus territórios, sempre subordinadas a estâncias maiores, como o

Estado, por exemplo.

Para além do julgamento no tribunal, as notícias de jornais mostram elas mesmas

seu próprio tribunal, buscando nas mesmas fontes médico-jurídicas elementos na

infância e durante a adolescência que justificariam tal ato.

a condenação insuficiente

No primeiro julgamento, que teve início em dezemro de 2003, e terminou em

janeiro de 2004, Meiwes fora condenado à 8 anos e meio de prisão, por homicídio

simples (DEUTSCHE WELLE, 30/01/2004). Depois do veredicto, a promotoria entrou

com uma apelação, pedindo a pena por homicídio qualificado, alegando que a

motivação sexual para o canibal não havia sido levado em consideração. Em

contrapartida, o tribunal superior negou a apelação da defesa que alegava pedia a

condenação por homicídio à pedido da vítima, cuja pena é de 6 meses à 5 anos

(DEUTSCHE WELLE, 22/04/2005).

122
No segundo julgamento, que ocorreu de janeiro à maio de 2006, Meiwes foi

condenado à prisão perpétua. Se o fato do canibal não ser considerado irresponsável

pelos seus crimes não contribuiu na severidade da pena, a acusação invertou este

procedimento e se empenhou em aplicar à chamada vítima a irresponsabilidade pelos

seus desejos. Conferir à Brandes uma inimputabilidade pelos seus atos, permitia que se

pudesse culpar Meiwes pela responsabilidade dos dois. Se a acusação conseguisse

provar que o ato de Brandes foi um ato de loucura, irracional, o seu consentimento

perdia o valor. Da mesma forma, que nos chamados crime de pedofilia, não está em

questão a vontade da criança, considerando que esta, assim como os loucos, não teriam

capacidade para decidir por seus atos.

No site de notícias da DW-World, assume-se a posição da promotoria, ao

mesmo tempo que se declara que,

segundo exames psiquiátricos, o réu é responsável e totalmente


culpado por seus atos. O mesmo parecer apurou que ele tinha um
fetichismo por carne humana, considerando, no entanto, que esta
mórbida perturbação da personalidade não deve ser considerada
uma doença (DW-WORLD, 30/01/2004: online).
.

Sobre a ‘vítima’ a afirmação é de que “o engenheiro morto, por seu lado, tinha

sérios problemas de masoquismo. Para ele, amputar o membro sexual e ter sua carne

comida significou a libertação do complexo de culpa pela morte de sua mãe, por quem

era dominado” (ibidem). O discurso psiquiátrico é o mesmo, as conclusões no entanto

se adequam a cada objetivo.

A dificuldade no julgamento, portanto, não parece ter sido quanto a qualificação

do chamado crime, se assassinato por motivação sexual ou assassinato por misericórdia.

O processo divulgado na mídia mostra, explícitamente, a necessidade de não se deixar

impune o ato de canibalismo, mesmo que voluntário, como quando afirma-se que

123
“Meiwes não pôde ser julgado por canibalismo, já que esta prática não está tipificada

como delito na Alemanha” (SAPO, 13/01/2006: online). O problema real da justiça

alemã parece ser o de justificar a punição do canibalismo sem que este estivesse

presente no código penal. O crime sem razão atualiza na esfera da sociedade de controle

os dispositivos e a reforma do saber psiquiátrico.

Até o momento, o canibalismo não foi incluído no código penal alemão. Mas é

possível que as notícias que continuam sendo publicadas constantemente sobre casos de

canibalismo, estejam apontado, não só para a inclusão desta prática no código alemão,

mas, de maneira mais geral, em grande parte dos códigos penais nas sociedades

ocidentais.

voluntariedade

No dicionário Aurélio a palavra voluntário está relacionada, primeiramente, à

espontaneidade, àquele que age pela própria vontade. Mas também, chama-se voluntário

o cavalo que marcha com facilidade, sem que seja necessário açoitá-lo, e aquele que se

alista espontaneamente nas forças armadas.

Se na sociedade disciplinar era necessário fazer com que o corpo obedecesse e se

tornasse dócil – era preciso, portanto, domá-lo –, na sociedade de controle o corpo

pacificado procura a submissão. Talvez a imagem do cavalo que marcha sem precisar

ser açoitado explique bem o corpo ideal na sociedade de controle.

No século XVI, um jovem, Etienne de La Boétie, afirmou, em O discurso da

servidão voluntária, que “(...) são os próprios povos que se deixam, ou melhor, se

fazem dominar, pois cessando de servir estariam quites; é o povo que se sujeita, que se

124
degola, que, tendo a escolha entre ser servo ou ser livre, abandona sua franquia e aceita

o jugo (...)” (LA BOÉTIE, 1982: 14) .

Mas se a servidão voluntária é a marcha dócil do cavalo (ou da cavalaria), qual é

então o risco do canibalismo voluntário? O risco talvez esteja na re-apropriação do

corpo. A voluntariedade na sociedade de controle não é livre, não é espontânea, ela é

cuidadosamente construída e direcionada. Há um itinerário, observa Edson Passetti

(2003), e pressupõe-se necessário segui-lo. O itinerário, acrescenta o autor, constitui um

caminho previamente traçado, em que se conhece o começo e o fim de antemão, e que

só permite desvios calculados. Brandes, a chamada vítima, incomodou muito mais do

que aquele que o comeu, não só por ter se afastado de qualquer itinerário possível nas

sociedades ocidentais, mas principalmente porque ele não poderia mais ser penalizado.

Na apresentação do livro Violentados, Edson Passetti observa que “a vítima é

apenas a parte jurídica do ato que a transforma em testemunha num processo de

penalização do outro” (PASSETTI, E., et al., 1999: 10). Se não há vítima, não há como

punir.

o corpo animal

Nas sociedades ocidentais, o corpo, mesmo depois de morto ainda é propriedade

de um governo, de um Estado. O que deve ser um corpo, e o que deve ser feito deste

corpo, é pré-estabelecido pelas normas controladas e delimitadas pelos governos e pela

moral. O seu destino é pré-determinado diante de possibilidades limitadas. Um cadáver

deve ser cremado ou sepultado, o que explica que se qualifique como crime a chamada

profanação de cadáver. Se um corpo pode ser profanado é porque, antes, ele é sagrado.

A profanação é a violação de algo interditado. George Bataille expõe que, “o interdito

125
que se apodera dos outros diante do cadáver é uma forma de rejeitar a violência, de se

separar da violência” (1987: 41).

Para Bataille, a violência e a morte são o inverso do trabalho. O trabalho é

regulamentador, racional, racionalizado. A morte (como representação da violência

destinada a todos os homens) é a preponderância do excesso sobre a razão, a forma de

contê-la, de conter a violência e seus excessos, é através dos interditos, das proibições,

das regras. Mas Bataille vai além, a morte não é somente a imagem da violência, mas da

decomposição da vida, através da corrupção do corpo. O sepultamento e a cremação

permitem que não se enxergue a fase de putrefação. E esta decomposição é causada

justamente pela carne, pelo sangue, enfim, pelas viscosidades do corpo.

Dorothea Passetti constata que, “a ocidentalização do planeta e o crescente

domínio sobre a natureza que a acompanha produziu a sensação de que a espécie

humana cada vez mais parece prescindir do sangue em suas veias e substituí-lo por algo

mais limpo, mais civilizado e descartável” (2004a: 104). A natureza é perecível, como

o corpo, a eternidade estaria nos materiais sintéticos, naquilo que se chama artificial,

produzido pelo trabalho do homem.

Bataille afirma que “a humanidade concorda em não reconhecer que a morte é

também a renovação do mundo” (1987: 56). Apesar de uma certa universalização na

frase de Bataille, é preciso concordar que, ao menos recentemente, nas sociedades

ocidentais, a pureza, a perfeição, são encontrados naquilo que não é perecível ou mortal,

que não é carnal. Paula Sibilia acrescenta que, “no mundo volátil do software, da

inteligência artificial e das comunicações via internet, a carne parece incomodar” (2004:

205 e 206).

Brandes, considerado a vítima, desviou-se do itinerário quando determinou o

momento de dar fim à sua vida, e como fazê-lo. Utilizou-se do próprio mecanismo

126
asséptico da internet para desviar-se da rota. Não bastasse, ainda decidiu o fim que seria

dado ao seu corpo, fora das opções disponíveis. Diante da sacralização do corpo

perfeito, saudável, limpo, sem sangue, sem viscosidades, como sugere Sibilia (2004),

podemos concluir que Brandes decidiu tornar-se carne, corpo-animal. Diante da

eternidade, o fim. Diante da vítima, a vontade.

127
Diferença e semelhança

Nos primeiros séculos da ocupação do continente americano pelos colonos

europeus, a palavra canibalismo ainda não era muito difundida, ou pelo menos não era

muito utilizada, como se demonstra nos textos e cartas que foram analisados nesta

pesquisa. Para se referir aos índios antropófagos, estes europeus utilizavam termos

como comedores de gente, ou comedores de carne humana, sempre associando estas

práticas à bestialidade.

O canibalismo enquanto conceito emerge, portanto, a partir da noção bestial de

comedores de gente. Considerava-se que alguém que comesse um homem não era gente,

era bicho. Mas não qualquer bicho, um bicho cruel, traiçoeiro e feroz, pois comeria os

da mesma espécie, que é precisamente o que distingue a antropofagia do canibalismo.

Desta forma, conferir a alguém o título de canibal é acreditar que esta pessoa se

posicionaria em um nível abaixo na escala hierárquica evolucionista, pois Homens

seriam apenas aqueles que já suprimiram a animalidade. Mas qualificar alguém como

canibal significa, também, atribuir uma periculosidade a esta pessoas.

Em outras palavras, nas sociedades ocidentais, o conceito de canibal surge a

partir da qualificação do outro como inferior e perigoso. Quando o objetivo é justificar a

aplicação do castigo, de técnicas coercitivas ou de medidas de prevenção e segurança,

enfatiza-se o elemento da periculosidade, como ocorre entre alguns dos chamados

psicopatas, e de algumas táticas de terror, como a das rebeliões, por exemplo, como foi

demonstrado no segundo capítulo. O elemento da inferioridade justifica outras medidas,

como, por exemplo, a catequização na relação entre os jesuítas e alguns ameríndios nos

séculos XVI e XVII, e mesmo a intervenção de missionários em algumas aldeias

indígenas, desde o século XX. Mas entre os índios antropófagos, ao menos dos séculos

128
XVI e XVII, aqueles que não abdicavam da antropofagia eram logo classificados como

perigosos, e alvos de penalizações, técnicas coercitivas de sujeição ou mesmo de

destruição.

Lévi-Strauss observa que o canibalismo é sempre compreendido com relação as

práticas e costumes recriminadas nos outros. Segundo ele, “o canibalismo em si não

possui uma realidade objetiva. É uma categoria etnocêntrica: só existe aos olhos das

sociedades que o proscrevem” (LÉVI-STRAUSS, 2006: 19). O canibalismo é atribuído

àqueles que, à vista de uns, são insuportáveis em sua diferença.

Segundo Pierre Clastres, “a alteridade cultural nunca é apreendida como

diferença positiva, mas sempre como inferioridade segundo um eixo hierárquico”

(CLASTRES, 2004: 86).

Mas não é necessário buscar exemplos em povos distantes com costumes muito

diferentes dos nossos para demonstrar a relação entre o que se chama canibalismo com

o que se considera insuportável. No artigo intitulado Transplante de Órgãos:

Canibalismo, Jan S. Haugland – ex-membro do grupo religioso ortodoxo de

Testemunhas de Jeová, The Watchtower Society –, tenta desmistificar a idéia de

canibalismo que grupos mais conservadores das Testemunhas de Jeová conferem à

alguns procedimentos médicos, como a transfusão de sangue e o transplante de órgãos.

Haugland reproduz um trecho publicado na revista norte-americana The

Watchtower, do grupo The Watchtower Society, de 15 de Novembro de 1967, p. 702,

em que se lê o seguinte:

(...) Quando existe um orgão doente ou defeituoso, a maneira normal


em que a saúde é restaurada é tomando nutrientes. O corpo usa o
alimento para reparar ou curar o orgão, substituindo gradualmente
as células. Quando homens de ciência concluem que este processo
normal já não funciona e sugerem remover o orgão e substituí-lo
diretamente com um orgão de outro humano, isto é simplesmente um
atalho. Aqueles que se submetem a tais operações estão assim
129
vivendo da carne de outro humano. Isso é canibalístico. Contudo, ao
permitir que o homem comesse carne animal, Jeová Deus não deu
permissão aos humanos para tentarem prolongar as suas vidas por
tomarem canibalisticamente nos seus corpos carne humana, seja
mastigada seja na forma de orgãos inteiros ou partes do corpo
tiradas de outros. (THE WATCHTOWER apud HAUGLAND, s/d:
online)

A partir desta afirmação, as distinções entre práticas que nos parecem

civilizadas, em contraposição à noção do canibalismo como selvagem ou primitivo,

parecem se desmanchar. Lévi-Strauss já havia apontado para esta constatação, sobre a

relação entre estas práticas médicas e o que se costuma chamar de canibalismo, em seu

artigo “Somos todos canibais”. Neste mesmo artigo, Lévi-Strauss ressalta que,

Talvez surjam protestos contra essa aproximação. Entretanto,


que diferença essencial há entre a via oral e a sanguínea, entre
a ingestão e a injeção, para introduzir um pouco de substância
de outrem num organismo? Uns dirão que o apetite bestial
pela carne humana que faz o canibalismo ser horrível.
Deverão, pois, restringir essa condenação a alguns casos
extremos, e subtrair da definição de canibalismo outros casos
atestados, impostos como dever religioso (...). (LÉVI-
STRAUSS, 2006: 17)

Assim, o canibalismo se mostra como uma prática atribuída aos outros por

àqueles que a proscrevem. Da mesma maneira, a bestialidade também se torna uma

característica atribuída, aonde se procura salientar no outro sua inferioridade ou

periculosidade, ou ambos, através de uma associação do canibalismo com a

animalidade.

No caso dos argumentos usados pelo grupo The Watchtower Society,

demonstrados por Haugland, os transplantes de órgãos poderiam ser perigosos para

aqueles que recebessem órgãos de outros, não só pelos riscos inerentes à cirurgia, mas

também pelo perigo de se adquirir, através deste procedimento, condutas consideradas

maléficas, provindas do doador, como se percebe no trecho a seguir:


130
Um aspecto peculiar às vezes assinalado é o assim chamado
'transplante de personalidade.' Isto é, o receptor em alguns
casos parece ter adotado certas características da
personalidade da pessoa de quem o orgão veio. (...) A seguir a
um transplante, um homem de temperamento brando tornou-se
agressivo como o dador. (THE WATCHTOWER apud
HAUGLAND, s/d: online)

Haugland, por sua vez, critica que os argumentos de The Watchtower Society,

são infundados, pois ignorariam qualquer saber científico.

Uma motivação curiosa por detrás desta opinião a respeito dos


transplantes de orgãos é uma ideia peculiar a respeito do
coração. Tal como o artigo acima sugeria fortemente que um
transplante de orgão causava uma mudança emocional, a
Watch Tower Society argumentou que nós de fato pensamos
com o nosso coração literal! Quando a Bíblia menciona o
coração como o local das nossas emoções e desejos mais
profundos, as pessoas entenderão isto simbolicamente,
compreendendo que estas coisas se localizam fisicamente no
cérebro. (HAUGLAND, s/d: online)

O autor fundamenta seu argumento em um saber científico que toma como

verdadeiro. Ele assume a separação corpo-cérebro, atribuindo ao cérebro, o controle do

corpo. Paula Sibilia, no entanto, observa que a separação corpo-mente, também é uma

construção,

No século XVII, além do homem-máquina, o mundo viu emergir


uma série muito poderosa de conceitos e metáforas: o dualismo
corpo-mente, uma força que vem constituindo as subjetividades
ocidentais pelo menos ao longo dos últimos quatro séculos.
(SIBILIA, 2004: 208 e 209).

A autora acrescenta que essa idealização, a constituição desse dualismo, foi

definida por René Descartes e cristalizada na frase “penso, logo existo”. Segundo

131
Sibilia, “para Descartes, (...) o corpo não faz parte da essência do ser humano; é

dispensável, na medida em que o pensamento dele independe” (ibidem: 209). O corpo,

define a autora, é demasiadamente orgânico, demasiadamente perecível.

A distinção entre corpo e cérebro, nos remete à uma outra distinção, a de

natureza e cultura, sendo a natureza o campo do selvagem, da animalidade, e a cultura o

do Humano. Lévi-Strauss constata que, “preferimos lançar, fora da cultura, na natureza,

tudo o que não se conforma à norma sob a qual se vive” (LÉVI-STRAUSS, 1989: 334).

Atribuímos, portanto, o que seria uma natureza selvagem – diferente do natural

enquanto normal, admitido sobre a naturalidade de determinadas normas e condutas –,

às diferenças incompreensíveis aos ocidentais.

O corpo enquanto parte da natureza, seria no homem o que ainda resta da sua

animalidade, o que ainda dever ser superado. Pensar com o corpo estaria associado,

portanto, aos instintos animais, enquanto que, pensar com o cérebro seria uma qualidade

do Humano, do racional.

Admitir que poderíamos pensar com o corpo todo, ou como expõe o poeta

Alberto Caeiro, “(...) com os olhos e com os ouvidos e com as mãos e os pés e com o

nariz e a boca” (apud FREIRE, 1984: 46), seria admitir que ainda somos animais.

A mente representada pelo cérebro, não existe em si, é neste sentido uma utopia,

atualizada em nossos dias, segundo Sibilia (2004), pela informação digital, pelos fluxos

da internet, como se a mente pudesse tornar-se imaterial. O cérebro, por sua vez, ainda é

corpo, faz parte de um corpo e só funciona dentro deste contexto. A mente imaterial,

existe, mas não é humana nem nunca será, pois não é animal. A mente imaterial, pode

ser entendida como as informações que circulam no espaço virtual, No entanto, isso

tudo é uma construção da cultura. A cultura, por sua vez, só existe através do homem,

que só existe a partir do que se chama natureza, da onde o homem faz parte.

132
Segundo Lévi-Strauss,

(...) é na medida mesmo em que se pretende estabelecer uma


discriminação entre as culturas e os costumes, que nos
identificamos mais completamente com os que se pretende
negar. Ao recusar a humanidade aos que parecem os mais
“selvagens” ou “bárbaros” de seus representantes, apenas se
toma emprestado uma de suas atitudes típicas. O bárbaro é
inicialmente o homem que acredita na barbárie. (LÉVI-
STRAUSS, 1989: 335)

Ao recusar a humanidade nos outros, procuramos negar a nossa própria

animalidade. Lévi-Strauss (1982) aponta que a universalidade do homem estaria na

natureza. O corpo, que se assemelha, nos lembra que somos todos animais. As grandes

diferenças se estabelecem através das culturas. No entanto, é precisamente nestas

diferenças, criadas a partir da cultura, que reconhecemos a animalidade, tentando nos

enganar que nosso corpo não é animal.

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Vídeo.

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LOMMEL, Ulli (1973). Adolfo e Marlene (a.k.a. Tenderness of the wolves, a.k.a.
Zaerlichkeit der woelfe). Alemanha.

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