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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

IGOR GONÇALVES CAIXETA

ISLAMOFOBIA EM BELO HORIZONTE


Perspectivas e vivências de homens muçulmanos

BELO HORIZONTE

2019
IGOR GONÇALVES CAIXETA

ISLAMOFOBIA EM BELO HORIZONTE


Perspectivas e vivências de homens muçulmanos

Monografia apresentada como requisito para a


obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais
pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal de Minas Gerais.

Orientadora: Cristina Maria de Castro

BELO HORIZONTE

2019
Todas e todos vocês me acolheram, e com todas e todos aprendi muito.
Por isso agradeço e dedico esse trabalho a
Dagmar e Sodaba, que me mostraram o brilho do olhar, Sandra,
que me mostrou o mundo, Thayse, que me mostrou o amor,
Cristina, que me mostrou o cuidado, Stefany e Juliana, que me mostraram a força,
Derick, que me mostrou a alegria, Victor, que me mostrou o estudo,
Gilmar, que me mostrou a fé, Luiz, que me mostrou a amizade,
Comunidade muçulmana belo-horizontina, que me mostrou o encontro,
e a todas e todos os outros
que também compõem esse trabalho, e que me mostraram o caminho.
Jumu’ah, ou oração de sexta-feira (arquivo pessoal).

“Deus criou Adão e Eva


e seus filhos se espalharam pelo mundo
para que conhecessem uns aos outros.”
Sheikh Mokhtae Elkhal,
Centro Islâmico de Minas Gerais,
2019
RESUMO

Esta pesquisa se insere nos estudos sobre a Islamofobia, a repulsa ou hostilidade


manifestada contra a religião islâmica e os muçulmanos, que tem tomado forma cada
vez mais clara em muitos países onde o grupo é uma minoria religiosa. A partir de
teóricos e pesquisadores que discutem a história e expansão do Islã e sua adaptação
a contextos como o brasileiro, busca-se entender quais elementos explicam as
diferentes formas como a religião passou a ser interpretada, tanto por muçulmanos,
quanto por não muçulmanos. Por meio de autoras e autores, sobretudo pós-coloniais
e decoloniais, que discutem a Islamofobia, posiciona-se essa tradição ideológica
enquanto relação desigual de poder entre partes do mundo e grupos identitários.
Através da pesquisa de campo na mesquita de Belo Horizonte e de entrevistas
realizadas com homens muçulmanos que frequentam o local, discute-se as
possibilidades do encontro das diferenças e as especificidades da manifestação da
Islamofobia em seus cotidianos, expressa sobretudo a partir de piadas e agressões
verbais que mobilizam discursos orientalistas.

Palavras-chave: Islamofobia; Islã; Orientalismo; estigmatização; intolerância


religiosa.
ABSTRACT

This research is part of the studies about Islamophobia, the repulse or hostility
manifested towards the Islamic religion and Muslims, which has been taking an
increasingly clear shape in many countries where the group is a religious minority.
Using theorists and researchers that discuss the history and expansion of Islam and
its adaptation across contexts such as Brazil, it intends to understand which elements
explain the different ways in which religion came to be interpreted by both Muslims and
non-Muslims. Especially through postcolonial and decolonial authors who discuss
Islamophobia, this ideological tradition is positioned as an unequal power relation
between parts of the world and identity groups. By means of field research in the
mosque of Belo Horizonte and interviews with Muslim men who attend the place, it is
provided a discussion about the possibilities of encounters of difference and the
specificities of the manifestation of Islamophobia in their daily lives, expressed above
all by jokes and verbal aggressions that mobilize Orientalist discourses.

Keywords: Islamophobia; Islam; Orientalism; stigmatization; religious intolerance.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Concentração de muçulmanos em diferentes países............................12


Figura 2 – Concentração de muçulmanos em municípios brasileiros.....................41
Figura 3 – Concentração de muçulmanos em municípios mineiros........................46
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..................................................................................................1
1. O ISLÃ E OS MUÇULMANOS (OU A FORMAÇÃO).........................................3
1.1. Definições e surgimento.....................................................................................3
1.2. Expansão e presença no mundo contemporâneo..............................................9
2. ISLAMOFOBIA (OU A REPRESENTAÇÃO)....................................................17
2.1. O termo e sua história......................................................................................17
2.2. Orientalismo.....................................................................................................20
2.3. Racismos.........................................................................................................24
2.3.1. Racismo histórico-global..................................................................................24
2.3.2. Racismo cultural...............................................................................................26
2.3.3. Racismo epistêmico.........................................................................................29
2.4. A política do ódio e medo e o papel das mídias...............................................31
3. O CASO BRASILEIRO (OU A TRADUÇÃO)....................................................36
3.1. Trajetórias da Ummah brasileira......................................................................36
3.2. Aspectos demográficos dos muçulmanos no Brasil.........................................39
3.3. Islamofobia no Brasil........................................................................................42
4. O CASO BELO-HORIZONTINO (OU A APRESENTAÇÃO)............................46
4.1. Breve introdução sobre a Ummah em Minas Gerais
e em Belo Horizonte........................................................................................46
4.2. “No Afeganistão é cheio de gente do Afeganistão,
e aqui tem outras pessoas”.............................................................................47
4.3. Perspectivas e vivências de homens muçulmanos...........................................51
4.3.1. Shahada...........................................................................................................51
4.3.2. Nacionalidades.................................................................................................54
4.3.3. Trabalho............................................................................................................55
4.3.4. Orações............................................................................................................58
4.3.5. Na família, com os amigos e na faculdade.......................................................60
4.3.6. Taqiyah.............................................................................................................63
4.3.7. Mídias...............................................................................................................65
4.3.8. Estigma e encontro...........................................................................................69
4.4. Perspectivas e vivências de mulheres muçulmanas.........................................75
APONTAMENTOS FINAIS..............................................................................78
1

INTRODUÇÃO

O Islã evoca em muitos países ocidentais, ou naqueles sob influência ou


domínio do Ocidente, uma série de imagens e sentimentos, geralmente negativos.
Antes disso, trata-se de uma das maiores religiões do mundo, amplamente difundida
e com uma história de quase 1400 anos. A religião islâmica saiu do interior da Arábia
e hoje permeia noticiários televisivos, políticas de governo, corações e mentes ao
redor do mundo. Fora dos países onde a maior parte da população é adepta do Islã,
a religião e seus praticantes adquirem significados bastante específicos. A ligação de
elementos como a violência, o radicalismo, e uma diferença insuportável à
humanidade de quem nasce no meio ou opta pela religião e cultura islâmica,
constituem um fenômeno naturalizado, e por isso poderoso, denominado Islamofobia.
Perseguição e intolerância religiosa não acometem apenas muçulmanos. Há
candomblecistas, cristãos, yazidis, judeus, xamãs, impossibilitados de exercerem
suas crenças e às vezes silenciados, violentados, e assassinados por serem quem
desejam ser. Não há, ou não deveria haver, uma hierarquia de religiões ou de
preconceitos religiosos, melhores ou piores, justificáveis ou não. Mas existem
hierarquizações em prática por toda a Terra, e é sobre aquela que posiciona o Islã
abaixo de outras crenças, e os muçulmanos abaixo de outros humanos, que este
trabalho discorrerá. Não há nações imunes à estigmatização de pessoas, da criação
de “outros”, e num mundo onde sonhos, dinheiro, guerras e ideias circulam de uma
parte à outra, religiões e preconceitos religiosos tornam-se globais. As próximas
páginas serão uma busca pela compreensão sobre a saída do Islã para o mundo, e a
chegada da Islamofobia em um contexto particular: a cidade de Belo Horizonte.
Na capital mineira, lar de mais de dois milhões de pessoas, vivem pouco mais
de duzentos muçulmanos, segundo os últimos apontamentos feitos pelo estado. O
grupo é praticamente invisível, mas quando enfim visto, pode ser interpretado a partir
de estereótipos que o inferiorizam. Esta pesquisa visa investigar como essa
comunidade é percebida, os estigmas que carrega, e de que maneira as formas com
que é representada influenciam nas suas possibilidades para se apresentar. Religiões
e preconceitos globalizados adaptam-se aos terrenos onde florescem, e o contexto
belo-horizontino, em relação ao preconceito direcionado aos muçulmanos, ainda não
2

foi explorado. Além das diferenças entre cenários, as pessoas e as formas como são
lidas, e como lidam com isso, são múltiplas.
O presente texto se voltará às percepções e vivências de homens muçulmanos
em Belo Horizonte, abarcando experiências variadas, mas recortadas de maneira
específica. As informações sobre as discriminações que o grupo sofre, bem como
acerca dos encontros que empreende, partem, primeiramente, de trabalho de campo.
Foram realizadas vinte e uma visitas, às sextas-feiras, dia de oração em congregação,
ao Centro Islâmico de Minas Gerais, do dia 24/08/2018 ao dia 08/11/2019. As
observações e encontros foram descritas em cadernos de campo, e partes compõem
este trabalho de conclusão de curso. As visões e narrativas estão contidas, ainda, em
catorze entrevistas feitas com homens que frequentam a mesquita belo-horizontina,
que resultaram em cinco horas de áudio posteriormente transcritas.
O texto que se segue não é um apanhado de casos de agressão, nem cobre
apenas aquilo que autores escreveram sobre o preconceito anti-islâmico. Foi pensado
e escrito de forma que qualquer pessoa, sem qualquer contato com o Islã e os
muçulmanos, como é o caso de grande parte da população belo-horizontina, tenha
uma visão geral sobre o problema. Não se pode entender a apresentação da
Islamofobia em Belo Horizonte sem se compreender a tradução da religião ao contexto
brasileiro, e não se entende a forma como o Islã é percebido no Brasil sem que
estejam claras as representações da religião e dos muçulmanos no imaginário global.
Se tais formas são, geralmente, fictícias, faz-se necessário, à princípio, distingui-las
do que é o Islã, e do que possibilitou a ele se tornar o que é hoje.
No primeiro capítulo será explicada a origem do Islã e dos muçulmanos, alguns
conceitos e práticas básicas da religião e sua expansão, globalização e
transnacionalismo. O segundo capítulo explicará o conceito de Islamofobia, a sua
formação político-histórica, seus aspectos raciais, seus usos emocionais e sociais. O
terceiro capítulo abordará o caminho percorrido pela religião no Brasil, as
características da população muçulmana no país e a manifestação do preconceito em
sua versão brasileira. O quarto capítulo trará algumas características gerais sobre o
Islã e seus seguidores em Minas Gerais e na sua capital, a introdução do autor no
campo e as formas de apresentação, representação e encontro de muçulmanos em
Belo Horizonte. Conclui-se, brevemente, tratando sobre alteridade e desumanização.
3

1. O ISLÃ E OS MUÇULMANOS (OU A FORMAÇÃO)

1.1. Definições e surgimento

Os termos Islã e muçulmano não possuem traduções únicas. Aprendi com


alguns membros da comunidade muçulmana belorizontina que o Islã é a submissão
total e voluntária a Deus, e com a literatura, que além de ser traduzido, do árabe, como
submissão à palavra divina, islam liga-se aos sentidos de “aceitação”, “conciliação” e
“pacificação”1. Salam (paz) - termo utilizado na expressão Salam Aleikum (a paz esteja
sobre vós), com o qual muitos me recebiam no Centro Islâmico de Minas Gerais -
deriva do mesmo radical consonantal slm, de onde vem a palavra islam2. O
muçulmano, ou muslim, é aquele que segue o Islã3. Segundo o Alcorão, livro sagrado
islâmico, muçulmano refere-se, em seu sentido básico, ao indivíduo que se submete
ou obedece às prescrições e vontades divinas e que crê na unicidade de Deus4. Islã
e muçulmano ainda não continham, quando foram utilizados no Alcorão, o sentido de
distinção confessional que possuem atualmente5. Para compreender, dentre outras
coisas, como termos que hoje associam-se a uma religião específica e aos seus
praticantes, antes eram utilizados de forma mais abrangente 6 (compreendendo
aqueles comprometidos com o monoteísmo, o que, às vezes, incluía judeus e
cristãos7), faz-se necessário entender seu contexto de surgimento.
A produção historiográfica sobre o Islã passou, pelo menos no Ocidente, por
apropriações ideológicas, divergências intelectuais, e uma série de dificuldades, nem
todas totalmente superadas. Os primeiros escritos ocidentais sobre o tema foram, em
sua quase totalidade, tentativas de afirmação das reivindicações teológicas cristãs e
de descrédito das islâmicas, especialmente no que diz respeito ao Alcorão, enquanto
palavra revelada de Deus, e a Muhammad, enquanto profeta8. A tradição ocidental de

1
PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Islã: Religião e Civilização – uma abordagem antropológica.
Aparecida, SP: Editora Santuário, 2010. p. 42.
2
Ibidem, p. 42.
3
Ibidem, p. 42.
4
DONNER, Fred M. Muhammad and the Believers: At the Origins of Islam. Cambridge: Harvard
University Press, 2010. p. 71.
5
Ibidem, p. 71.
6
O uso do termo “muçulmano” de forma mais abrangente esteve presente em falas de entrevistados,
algo discutido posteriormente neste trabalho.
7
DONNER, Fred M. Muhammad and the Believers: At the Origins of Islam. p. 71.
8
DONNER, Fred M. Modern approaches to early Islamic history. In: ROBINSON, Chase F. The New
Cambridge History of Islam: Volume 1. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 625.
4

polêmica anti-islâmica ajudou a moldar produções posteriores, e sobrevive ainda hoje


entre estudiosos da área9. No século 17, iniciaram-se no Ocidente os estudos mais
desvinculados das premissas cristãs, e com o Iluminismo no século seguinte, o Islã e
sua história passaram a ser analisados de maneira mais aberta, mas ainda limitada
pela pretensão universalista do racionalismo 10 e pelos ecos do orientalismo 11.
Pesquisas sobre a história islâmica se separaram dos estudos religiosos no
Ocidente moderno durante o século 1912, mas outros desafios ainda atravessariam o
desenvolvimento desse campo. Quando a história como disciplina começou a se
formar durante o Iluminismo (muito vinculada ao processo de construção de
identidades nacionais na Europa), postulava-se que as principais fontes
historiográficas deveriam ser documentos originários do tempo e locais estudados,
algo escasso ou inexistente em relação a alguns pontos da história islâmica 13.
Historiadores ocidentais dependiam, então, das narrativas da tradição muçulmana de
contar sua origem, contidas num material diverso que vai de dicionários biográficos e
coleções de poesias à literatura religiosa14. Isso resultou, em anos mais recentes, no
surgimento de uma abordagem cética e de perspectivas revisionistas, que questionam
a veracidade das fontes islâmicas sem contribuir muito, contudo, para o quadro geral
dos estudos15. A partir dos anos 1960, e especialmente no fim do século 20, a
escassez de pesquisadores na área e limitações no ensino do árabe e de outras
línguas relevantes para a história islâmica inicial deixaram de ser uma realidade,
devido às preocupações diplomáticas ocidentais durante a Guerra Fria e à crescente
importância do Islã e do Oriente Médio no mundo moderno 16.
A tradição islâmica e historiográfica posicionam o advento do Islã,
aproximadamente, na metade do período que os historiadores chamam de
“Antiguidade Tardia”, que abarca por volta do século 3º ao 8º d.C., quando a região
ao leste do Mediterrâneo passou pela transição da era clássica, focada na herança

9
Ibidem, p. 625-626.
10
Ibidem, p. 626.
11
SAID, Edward. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007. p. 77. Said pensa no orientalismo como uma tradição de conhecimento e poder
construídos a partir da pressão por representação e dominação daquilo que é nomeado Oriente,
exercida por aquilo que se nomeia Ocidente.
12
DONNER, Fred M. Modern approaches to early Islamic history. p. 628.
13
Ibidem, p. 628.
14
Ibidem, p. 629.
15
Ibidem, p. 632-634.
16
Ibidem, p. 639-641.
5

greco-latina, à era islâmica, marcada pela disciplina religiosa pessoal e pelo


desenvolvimento de uma nova tradição literária árabe17. À época em que Muhammad
nasceu, a região da Arábia, onde viveu, era cercada por domínios dos impérios
Bizantino e Sassânida (que, num tipo de controle indireto, estabeleciam alianças com
chefes das tribos árabes) e do Reino de Axum (território cristão com capital situada no
que é hoje a Etiópia e que exerceu pouca influência na tradição islâmica18)19. As
extensões mediterrâneas orientais tinham, como ainda têm 20, uma grande
diversidade religiosa. Apesar da ambição de imperadores bizantinos de instituir uma
unidade político religiosa, seu império era habitado por grupos diversos de pagãos,
judeus, samaritanos e uma multiplicidade de cristãos - ortodoxos, monofisitas,
nestorianos e donatistas21. O Zoroastrianismo, por sua vez, era a religião mais
importante no Império Sassânida, que contava ainda com grandes comunidades
judaicas e grupos cristãos monofisitas e nestorianos22.
Ainda que experimentasse uma expansão gradual do monoteísmo na figura de
judeus, cristãos23 e hanifs (árabes monoteístas)24, a Arábia do século 6º era
essencialmente politeísta25. A religião tradicional das tribos árabes, organizadas social
e politicamente em torno de grupos familiares e de parentesco, era um paganismo de
veneração a divindades astrais, que, acreditava-se, protegiam tribos (compondo,
portanto, sua identidade social) e eram adoradas em santuários locais chamados de
harams26. A cidade de Meca possuía a Caaba, um desses lugares sagrados onde,
segundo a crença tribal, deuses ou ídolos habitavam e, por consequência, a violência
era proibida para aqueles que neles acreditavam, criando espaços propícios para

17
DONNER, Fred M. Muhammad and the Believers: At the Origins of Islam. p. 1-3.
18
Tal influência sob o Islã, ainda que, segundo Donner (2010, p. 4), pequena quando comparada àquela
exercida pelos bizantinos e os sassânidas, deixou marcas na memória cultural islâmica. O ano de
nascimento de Muhammad é o mesmo ano em que, acompanhado de elefantes, o governador judeu
de Himyar - extensão axumita no território do Iêmen - fracassou ao tentar invadir Meca, sendo
conhecido assim como “ano do elefante”, de acordo com Roman Loimeier (2013, p. 173). A sura
(capítulo) 105 do Alcorão, “A Sura do Elefante”, faz referência a esse acontecimento (NASR, p. 708-
709).
19
Ibidem, 3-32.
20
LEE, Robert; SHITRIT, Lihi Ben. Religion, Society, and Politics in the Middle East. Thousand Oaks:
CQ Press, 2014. p. 211-213.
21
DONNER, Fred M. Muhammad and the Believers: At the Origins of Islam. p. 9-12.
22
Ibidem, p. 18-20.
23
Ibidem, p. 30.
24
PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Islã: Religião e Civilização – uma abordagem antropológica. p.
39.
25
ROBINSON, Chase F. The rise of Islam, 600-705. In: _____. The New Cambridge History of Islam:
Volume 1. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 177.
26
DONNER, Fred M. Muhammad and the Believers: At the Origins of Islam. p. 28-30.
6

trocas econômicas e sociais27. Meca concentrava rotas de caravanas que


comunicavam os centros dos impérios vizinhos a portos mais distantes, e seu
santuário reunia ídolos de diferentes tribos nômades que estabeleceram ali uma
peregrinação anual28. O domínio da cidade e o controle da Caaba, exercidos pela tribo
dos coraixitas (ou Quraysh), eram fonte de lucro e poder, e assim, a ameaça ao
sistema religioso que então imperava, como ocorreu com a ascensão dos
muçulmanos, atrairia violenta repressão29.
O movimento islâmico se desenvolveu na medida em que Muhammad se
tornava mais proeminente, o que aumentava o número de seus seguidores e
consequentemente enrijecia a oposição a seu grupo30. Nascido em Meca no clã Banu
Hashim da tribo dos coraixitas31, provavelmente no ano de 570 d.C.32, Muhammad,
cujo nome significa “o louvado”33, começou a receber revelações divinas por volta de
610, de acordo com a tradição islâmica 34. Acredita-se que a palavra de Deus era
transmitida oralmente pelo anjo Gabriel ao profeta, que posteriormente recitava o que
ouvira, primeiro a seu círculo doméstico e de amizades e mais tarde à comunidade de
forma mais ampla35. Tolerada a princípio, a pregação de Muhammad acerca da
existência de um Deus único (dentre outras indicações36) tornou o profeta e aqueles
que lhe seguiam alvos de perseguição, agressão 37 e ridicularização, o que fez com
que muitos fugissem, primeiro para o reino cristão de Axum, depois, com o próprio
profeta, para a cidade então denominada Yatrib, que viria a ser chamada de Medina 38.

27
Ibidem, p. 30-35.
28
PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Islã: Religião e Civilização – uma abordagem antropológica. p.
39.
29
Ibidem, p. 39-41.
30
ROBINSON, Chase F. The rise of Islam, 600-705. p. 187.
31
PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Islã: Religião e Civilização – uma abordagem antropológica. p.
39.
32
DONNER, Fred M. Muhammad and the Believers: At the Origins of Islam. p. 39-40.
33
ROBINSON, Chase F. The rise of Islam, 600-705. p. 184.
34
DONNER, Fred M. Muhammad and the Believers: At the Origins of Islam. p. 40.
35
PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Islã: Religião e Civilização – uma abordagem antropológica. p.
40.
36
“Como um ‘avisador’ da tradição dos primeiros profetas, ele enfatizou a responsabilidade do homem
para com Deus, Seu poder, as recompensas do Céu e o castigo do Inferno. Ele também criticou as
normas sociais vigentes, protestando contra o infanticídio feminino e os abusos da riqueza.” (tradução
nossa).
“As a ‘warner’ in the tradition of early prophets, he emphasised man’s accountability to God, His power,
the rewards of Heaven and the punishment of Hell. He also levelled criticism against the prevailing social
norms, railing against female infanticide and the abuses of wealth.” (ROBINSON, 2010, p. 187).
37
Ibidem, p, 41.
38
DONNER, Fred M. Muhammad and the Believers: At the Origins of Islam. p. 41-42.
7

A hijra (migração), como ficaria conhecida a fuga de Meca para Medina em 622,
marca o início do calendário muçulmano 39, e é um ponto definitivo da história religiosa,
política e militar construída pelos primeiros muçulmanos do século 7º 40. Muhammad
foi convidado a ir a Medina, junto de seus seguidores, para que mediasse conflitos
entre clãs rivais da tribo que dominava a cidade e fundasse uma comunidade que
pudesse se dedicar, sem interferências, à vida de adoração a Deus 41. Lá, o profeta
estabeleceu a primeira mesquita (em árabe, masjid, “local para prostrações”), realizou
acordos com diversos clãs e forjou a Ummah, uma comunidade única de fiéis que, à
época, respondiam ao mesmo corpo de regras (a Constituição de Medina ou
documento da Ummah)42. Com a eliminação da oposição e a conversão das tribos
locais à recém proclamada religião baseada na restauração da mensagem
abraâmica, Muhammad passou a governar a cidade, guiado por revelações divinas
sobre questões jurídicas, sociais e morais43.
A experiência em Medina refletiu em diversos aspectos no Islã que se
desenhava - boa parte do Alcorão são revelações que ocorreram na cidade 44, que
junto à inexistência de instituições estatais e importância da religião na constituição
da vida e identidade social de então, produziram um poderoso projeto que estaria
envolto pela autoridade divina45. Uma série de alianças, acordos e de batalhas (contra
tribos judaicas e, principalmente, politeístas) precederam a conquista de Meca pelos
muçulmanos, em 63046, quando o vitorioso líder islâmico destruiu os ídolos da Caaba,
mantendo apenas a peregrinação anual ao local e o santuário, declarado como “casa
de Deus” construída por Abraão47. Segundo a tradição islâmica, o ritual do hajj, ou
peregrinação, foi ensinado por Muhammad em 632, mesmo ano de seu falecimento
em sua casa em Medina48.

39
PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Islã: Religião e Civilização – uma abordagem antropológica. p.
41.
40
ROBINSON, Chase F. The rise of Islam, 600-705. p. 175.
41
DONNER, Fred M. Muhammad and the Believers: At the Origins of Islam. p. 42-43.
42
Ibidem, p. 44.
43
PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Islã: Religião e Civilização – uma abordagem antropológica. p.
42-43.
44
Pinto (2010, p. 48) explica que há grande ênfase, nas suras reveladas em Medina, a questões sobre
comportamento e organização social, enquanto as passagens de Meca enfocam na disciplina moral,
na relação com o divino e no Juízo Final.
45
ROBINSON, Chase F. The rise of Islam, 600-705. p. 173-175.
46
DONNER, Fred M. Muhammad and the Believers: At the Origins of Islam. p. 44-49.
47
PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Islã: Religião e Civilização – uma abordagem antropológica. p.
44.
48
CAMPO, Juan E. Encyclopedia of Islam. Nova Iorque: Facts on File, 2009. p. 494.
8

A mensagem divina do profeta recitada de 610 a 632 foi codificada e reunida,


após a sua morte, na forma escrita do Alcorão 49 (em árabe, qu’ran traduz-se como
“recitação”)50. Por Muhammad ter partido sem deixar herdeiros masculinos (apesar de
ter se casado onze vezes como forma consagrada de estabelecer alianças e trocas),
a sucessão do líder da comunidade islâmica se tornou razão de conflitos entre os
muçulmanos, o que causou a cisão entre sunitas e xiitas51 (os primeiros desejavam
que um sogro do profeta se tornasse califa52, e os outros apoiavam um genro e primo
distante do profeta como comandante do califado53).
Mesmo com tradições sectárias distintas, a religião islâmica possui, desde sua
formação, alguns elementos comumente compartilhados por seus praticantes. Fred
M. Donner, para quem os primeiros muçulmanos se viam apenas como “crentes”,
reuniu um conjunto de conceitos básicos que moldaram o movimento islâmico
incipiente: a unicidade de Deus, o Dia do Julgamento Final, as ideias de revelação e
profecia (transmitidas por mensageiros divinos e agrupadas no livro sagrado) e a
existência de anjos54. Segundo o autor, o Alcorão afirma que a mera aceitação
intelectual desses pontos é insuficiente; o “crente” deve levar uma vida devota -
realizando orações regulares, sendo caridoso para com os menos afortunados,
jejuando durante o nono mês do calendário muçulmano, participando de rituais de
peregrinação, vestindo-se de forma modesta, evitando determinadas comidas (como
carne de porco) - e orientar-se pela jihad55, isto é, de forma ativista e militante em

49
Segundo Pinto (2010, p. 46) e Robinson (2010, p. 185), pessoas que haviam presenciado a revelação
de Muhammad serviram de fonte para a codificação corânica, empreendida pelo terceiro califa (644-
656), ‘Uthman (Othman) ibn ‘Affan. A edição definitiva do livro, realizada com a ajuda de escribas,
possibilitou, na análise de Pinto, a estabilização de fronteiras interpretativas da revelação,
impossibilitando sua fragmentação.
50
Ibidem, p. 45.
51
PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Islã: Religião e Civilização – uma abordagem antropológica. p.
44.
52
“Califa é o título do governante da comunidade islâmica após a morte de Muhammad em 632 e foi
reivindicado por muitos pretendentes a essa liderança. Outro título dado ao califa era “comandante dos
fiéis (amir al-muminin).” (tradução nossa). O Califado, portanto, é entidade político-religiosa governada
pelo califa.
“Caliph is the title of the ruler of the Islamic community after the death of Muhammad in 632 and was
claimed by many pretenders to that leadership. Another title given the caliph was “commander of the
faithful” (amir al-muminin).” (CAMPO, 2009, p. 125).
53
PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Islã: Religião e Civilização – uma abordagem antropológica. p.
73-74.
54
DONNER, Fred M. Muhammad and the Believers: At the Origins of Islam. p. 57-61.
55
Juan E. Campo (2009, p. 387-398) traz outras duas definições de jihad. A primeira, vinculada à
doutrina clássica desenvolvida nos séculos 8° e 9°, refere-se a um estado de guerra: na era inicial
islâmica da conquista, utilizado para justificar conflitos entre muçulmanos e não muçulmanos;
historicamente, para a defesa de governos contra opositores; na modernidade, para legitimar
empreendimentos anticolonialistas, como forma de autodefesa (juridicamente), e como estratégia de
9

relação à religião56. Donner afirma que foi 'Abd al-Malik, o quinto califa, quem
incentivou os “crentes” árabes a se redefinirem, buscando uma diferenciação em
relação a outros monoteístas; gradualmente, muslim ou muçulmano passou a ser
identificado como membro de uma confissão religiosa que reconhece Muhammad
como seu profeta e reverencia o Alcorão57.
Muitos dos pontos evocados constituem os cinco pilares do Islã: shahada, a
profissão de fé muçulmana (“Não existe deus além de Deus, e Muhammad é o profeta
de Deus”); salat, a oração islâmica que deve ser realizada em cinco momentos do dia;
zakat, parte da renda do muçulmano destinada ao bem-estar de sua comunidade;
sawm, o jejum de alimentos, bebidas e relações sexuais do nascer ao pôr do sol
durante o mês do Ramadã; e hajj, a peregrinação a Meca que deve ser feita por todo
muçulmano pelo menos uma vez na vida58. De acordo com Paulo Gabriel Hilu da
Rocha Pinto, fazem parte do “denominador comum” de pertencimento ao Islã, além
dos já citados Alcorão e cinco pilares, o caráter exemplar do profeta Muhammad (que
deve ser emulado por outros muçulmanos), os Hadith (conjunto de escritos sobre a
vida do profeta) e a lei islâmica ou sharia59.

1.2. Expansão e presença no mundo contemporâneo

Rapidamente e por distintos caminhos, o Islã ultrapassou a Arábia e se tornou


uma religião preponderante em várias partes do mundo. No século 7º foi fundado, na
figura do Califado60, o último grande império da Antiguidade61, que em menos de 100
anos dominou o Oriente Médio e o Norte da África, ocupando territórios dos impérios
Sassânida e Bizantino, enfraquecidos devido a guerras constantes entre si 62. O
domínio muçulmano ia de Marrocos e Andaluzia (na Espanha), a oeste, até o

islamistas radicais para desafiar o status quo. A outra definição é espiritual: remete à luta interior do
indivíduo contra a descrença e o pecado, e foi pensada por sufis e outros grupos a partir do século 12.
56
DONNER, Fred M. Muhammad and the Believers: At the Origins of Islam. p. 61-83.
57
Ibidem. p. 203-204.
58
PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Islã: Religião e Civilização – uma abordagem antropológica. p.
53-69.
59
Ibidem, p. 37.
60
A história do Califado é, na verdade, a história de Califados. Houve uma série de conflitos dinásticos,
disputas tribais, revoltas locais e invasões que definiram as sucessões monárquicas e alteraram a
organização política e territorial do império ao longo de sua existência (CAMPO, 2009, p. xxxi).
61
ROBINSON, Chase F. The rise of Islam, 600-705. p. 175.
62
CAMPO, Juan E. Encyclopedia of Islam. p. xxix.
10

Afeganistão, ao leste, já no século 1063, e entre os séculos 13 e 14, o Islã chegou à


Índia, Indonésia e China64. Apesar de ter se tornado um lugar comum a ideia de que
essa expansão se deu “através da espada”, as conquistas militares compõem apenas
uma faceta da disseminação islâmica, que não se aplica a todos os lugares onde a
religião se estabeleceu65:
Emigração, comércio, casamento, patrocínio político, a sistematização da
tradição islâmica, urbanismo, e a busca por conhecimento também devem ser
reconhecidos. Sufis66, também, tiveram um papel na propagação do Islã ao
longo de rotas comerciais e até mesmo nas áreas mais remotas.
Peregrinação também deveria ser reconhecida como um fator, especialmente
o hajj anual a Meca, que reunia estudiosos, místicos, comerciantes e fiéis
comuns de muitos países juntos em um só lugar. Depois de performar os
rituais exigidos do hajj, peregrinos frequentemente estabeleciam residência
em Meca para estudar e se encontrar com eruditos e místicos, mas
eventualmente eles retornavam para casa com histórias sobre a terra sagrada
islâmica e novas visões sobre o Islã para transmitir a seus familiares e
vizinhos. (tradução nossa) 67.

Atrás apenas do Cristianismo, o Islã é, hoje, a segunda religião mais praticada


no mundo 68, e seus adeptos constituem maioria religiosa em diversos países e minoria
em muitos outros. Cerca de 1,6 bilhões de pessoas, os muçulmanos somavam 23%
da população mundial em 2009 69, concentrados nos continentes asiático e africano,
onde estão mais de 95% dos seguidores da fé islâmica70. A maior parte deles vive na
região Ásia-Pacífico, distribuídos em países como Indonésia (nação com maior
número de muçulmanos do mundo), Paquistão, Índia, Bangladesh e Irã 71. O Oriente
Médio e Norte da África formam a segunda região que mais abriga muçulmanos, com
populações mais expressivas no Egito, Argélia, Marrocos, Iraque e Sudão 72. Outra

63
Ibidem, p. xxix.
64
SAID, Edward. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. p. 97.
65
CAMPO, Juan E. Encyclopedia of Islam. p. xxix-xxxii.
66
Adeptos ao Sufismo, termo que, de forma generalizante, classifica as tradições místicas do Islã
(CAMPO, 2009, p. 639).
67
“Emigration, trade, intermarriage, political patronage, the systematization of Islamic tradition,
urbanism, and the quest for knowledge must also be recognized. Sufis, too, played a role in the spread
of Islam along trade routes and even to the remotest areas. Pilgrimage should also be recognized as a
factor, especially the annual hajj to Mecca, which gathered scholars, mystics, merchants, and ordinary
believers from many countries together in one place. After performing the required hajj rituals, pilgrims
often took up residence in Mecca to study and meet with scholars and mystics, but eventually they
returned home with stories about the Islamic holy land and new insights about Islam to convey to their
families and neighbors.” (CAMPO, 2009, p. xxxii).
68
PEW RESEARCH CENTER. The Future of World Religions: Population Growth Projections, 2010-
2050. Washington: Pew Research Center, 2015. p. 7.
69
Ibidem, p. 7.
70
Ibidem, p. 72.
71
PEW RESEARCH CENTER. Mapping the Global Muslim Population. Washington: Pew Research
Center, 2009. p. 12.
72
Ibidem, p. 16-17.
11

região onde populações muçulmanas são mais significativas (mas possuem


porcentagens mais variadas em relação à população nacional) é a África Subsaariana,
com destaque para Nigéria, Etiópia, Níger, Tanzânia e Mali 73. Em relação às principais
correntes sectárias, estimava-se, em 2009, uma maioria sunita que correspondia a 87-
90% dos muçulmanos, enquanto os xiitas eram por volta de 10-13%, habitando
principalmente Irã, Paquistão, Índia e Iraque74.
Muçulmanos que vivem em países onde são minoria representavam 20% do
total mundial75, compondo desde grupos minoritários quase invisíveis até minorias de
altíssima projeção. Índia, China e Rússia são alguns dos países habitados pelas
minorias muçulmanas mais expressivas do mundo em termos de volume populacional:
a porcentagem de população muçulmana nesses estados era, em 2009, de “apenas”,
respectivamente, 13,4%, 1,6% e 11,7%, mas essa população equivalia a mais de 160
milhões, 21 milhões e 16 milhões de pessoas 76. Nas Américas, com exceção de
Suriname, Guiana e Trinidad e Tobago (que tinham, aproximadamente, entre 6 e 16%
de população muçulmana), essas porcentagens variavam entre menos de 0,1 e 2%
em todos os países, formando um grupo extremamente minoritário 77. Em 2016,
seguidores do Islã totalizavam quase 5% da população europeia 78, concentrando-se
em lugares como Rússia, Albânia, Kosovo e Bósnia e Herzegovina, onde sua
presença é centenária e em alguns casos majoritária79, bem como na França,
Alemanha, Reino Unido e Itália80, países em que os muçulmanos são imigrantes ou
descendentes de imigrantes que chegaram em tempos relativamente recentes 81.
A globalização é um fenômeno fundamental na propagação do Islã, e dá
origem, em contextos nos quais a religião é minoritária, à necessidade de adaptações
para vivenciá-la. Ainda que o termo tenha começado a ser usado por cientistas sociais
apenas nos anos 198082, a globalização, enquanto processo, é bem mais antiga que

73
Ibidem, p. 19.
74
Ibidem, p. 1.
75
Ibidem, p. 7.
76
Ibidem, p. 7.
77
Ibidem, p. 24-25.
78
PEW RESEARCH CENTER. Europe’s Growing Population. Washington: Pew Research Center,
2017. p. 4.
79
PEW RESEARCH CENTER. Mapping the Global Muslim Population. p. 21-22.
80
PEW RESEARCH CENTER. Europe’s Growing Population. p. 4.
81
PEW RESEARCH CENTER. Mapping the Global Muslim Population. p. 21.
82
BEYER, Peter. Religion and Globalization. In: RITZER, George. The Blackwell Companion to
Globalization. Hoboken: Wiley-Blackwell, 2007. p. 444.
12

FIGURA 1 - CONCENTRAÇÃO DE MUÇULMANOS EM DIFERENTES PAÍSES

Fonte: Pew Research Center (2016).

a palavra que a descreve, tendo constituído um aspecto do desenvolvimento do


capitalismo e dos estados nacionais83. Movimentos percebidos numa escala global,
que ultrapassam fronteiras nacionais ao mesmo tempo que promovem maior
interconexão entre sociedades e organizações, intensificaram-se em ritmo e alcance
a partir dos anos 197084. Para Stuart Hall, isso não significa que “o global” substitui “o
local”, mas que os dois se articulam e produzem identidades híbridas85 que ocupam o
lugar das antigas identidades nacionais86. A religião, componente da identidade
cultural, viaja ao redor do mundo de três formas, segundo Peter Beyer: através da
globalização de movimentos e organizações religiosas, isto é, da difusão de
ideologias, instituições e especialistas ligados às religiões; pela atuação na sociedade
global de movimentos político-religiosos, como o nacionalismo islâmico iraniano e a
nova direita cristã norte-americana; e por meio de migrantes transnacionais, que

83
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. p.
68.
84
Ibidem, p. 67-69.
85
Além da formação de novas identidades globais e de novas identidades locais que se articulam, Hall
descreve outra consequência possível da globalização para as identidades culturais: o fortalecimento
das identidades locais como reação defensiva de grupos à presença de outras culturas (HALL, 2006,
p. 78-85).
86
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. p. 69-77.
13

estabelecem conexões (inclusive religiosas) com seus países de origem e outras


partes do mundo, tornando o campo religioso do local de chegada mais plural 87.
Outro autor que analisa a relação da migração com a religião é Martin
Baumann, para quem o fenômeno migratório é um dos principais fatores de
distribuição de religiões pelo planeta, juntamente às missões religiosas88. Definida por
Baumann como “o movimento espacial de indivíduos e grupos de um lugar a outro”
(tradução nossa)89, a migração ocorre desde a pré-história e foi facilitada nos anos
1960, quando viagens de longa distância foram aperfeiçoadas, tornando-se mais
curtas e difundidas90. Muitas são as diferenciações feitas sobre os tipos de migrantes;
o autor opta pelo continuum desenvolvido por Anthony H. Richmond em 1994, que
posiciona, permeados por distintos níveis de coerção e motivos para migrar, de um
lado os migrantes proativos, aqueles com mais opções de tomada de decisão,
geralmente membros da família de pessoas que já migraram ou trabalhadores em
busca de um acúmulo monetário, e do outro os migrantes reativos, indivíduos com
menos opções, como refugiados e desalojados 91. Junto de suas habilidades e força
de trabalho, os migrantes levam aos países de destino sua religiosidade, que
dependerá, para se estabelecer no novo país, de fatores contextuais como condições
de emigração, composição do grupo migrante e situação jurídica e sociopolítica dos
locais de chegada92.
Migrantes, às vezes, tornam-se menos religiosos ou adotam novas religiões
nos lugares em que chegam, por razões como menor controle social que podem
passar a experienciar93, possibilidade de praticar religiões que condizem mais com a
experiência migrante, baixa presença da antiga religião ou diferenças de sua
manifestação nos países de destino comparado à sua forma e instituições
“originárias”94. O mais comum, entretanto, é que mantenham a fé que já possuíam 95.
Ainda que algumas tradições culturais sejam renunciadas, a religiosidade evidencia

87
BEYER, Peter. Religion and Globalization. p. 446-453.
88
BAUMANN, Martin. Migration and Religion. In: CLARKE, P. & BEYER, P. The World’s Religions.
Londres: Routledge, 2009. p. 339.
89
“[T]he spatial move of individual persons and groups from one place to another” (BAUMANN, 2009,
p. 339).
90
Ibidem, p. 339-341.
91
Ibidem, p. 341.
92
Ibidem, p. 338-343.
93
Ibidem, p. 344.
94
SHOJI, Rafael. Religiões entre Brasileiros no Japão: Conversão ao Pentecostalismo e Redefinição
Étnica. Revista de Estudos da Religião, São Paulo, junho de 2008. p. 62-71.
95
BAUMANN, Martin. Migration and Religion. p. 344.
14

particularidades culturais e une os migrantes através de uma identidade


compartilhada, frente ao racismo, discriminação social e pressão por assimilação por
parte da sociedade de destino96. Espaços religiosos, que permitem que uma religião
deslocalizada se torne relocalizada, possuem, para além do religioso, valor social,
cultural, político e psicológico97:
Aulas de instrução linguística, tanto na língua do migrante quanto na do país
hospedeiro, podem ser organizadas; atividades de esporte e lazer podem ser
providenciadas; os desempregados podem receber aconselhamento;
encontros sociais e festividades familiares podem ser realizados em salões
espaçosos. Os locais religiosos fornecem um espaço protegido para os
imigrantes onde a língua comum é falada, convenções são geralmente
conhecidas, e prestígio e status funcionam do modo familiar do antigo lar.
Além disso, a instituição religiosa e seu porta-voz podem servir como
representantes políticos do grupo migrante perante a administração local.
(tradução nossa)98.

Quando migra e se torna minoritário, o Islã é enquadrado em contextos


nacionais, mas é também vivido transnacionalmente 99. A partir de estudos de caso de
quatro países da Europa Ocidental, Ralph Grillo enumera três formas de se descrever
o Islã em seu transnacionalismo: o Islã dentro de um circuito transnacional,
exemplificado por homens, em sua maioria, que vivem e trabalham na Europa mas
esperam eventualmente retornar aos países de origem, com os quais estabelecem
relações religiosas (através de visitas de figuras religiosas famosas, por exemplo) e
econômicas (ilustradas pelo fluxo de recursos que enviam a centros religiosos)
organizadas por células religiosas nos países emigrados; o Islã dentro de uma
estrutura binacional/plurinacional, que se constitui por migrantes ligados às
conjunturas do país onde moram e do país de onde vieram, isto é, ambos
influenciarão, em diferentes níveis, seus discursos e práticas; e a Ummah, uma
comunidade imaginada que reúne, além das vertentes religiosas islâmicas, grupos de
diferentes origens étnicas e nacionais100, de modo que “muçulmano” se torna uma

96
Ibidem, p. 344.
97
Ibidem, p. 345-346.
98
“Classes for language instruction, both in the language of the migrants and in that of the host country,
may be staged; sport and leisure activities may be provided; the unemployed may receive counselling;
social meetings may be held and family festivities may take place in the spacious halls. The religious
sites provide protected space for the immigrants where the common language is spoken, conventions
are generally known, and prestige and status function in the familiar ways of the former home. In
addition, the religious establishment and its spokesperson may serve as political representatives of the
migrant group for the administration of the local town.” (BAUMANN, 2009, p. 346).
99
GRILLO, Ralph. Islam and Transnationalism. Journal of Ethnic and Migration Studies, Londres, v. 30,
n. 5, setembro de 2004. p. 864.
100
A ideia de Ummah, a “nação do Islã” ou “totalidade de todos os muçulmanos”, é recorrente, presente
nos mais distintos meios de comunicação islâmicos. Ela enfrenta, contudo, obstáculos práticos: as
15

categoria supertribal, permitindo, por exemplo, que representantes falem em nome


daqueles identificados com o grupo101. Na Europa, muçulmanos se diferenciam em
seus níveis de assimilação cultural e integração social, podendo aderir desde à
valorização da mudança, do hibridismo e do cosmopolitismo, até à oposição ao que é
percebido como degradações e tentações ocidentais, optando pela manutenção de
valores e costumes mais conservadores e patriarcais102.
Há de se pontuar, como fez Grillo, que a grande diversidade contida no Islã
(interpretada por alguns como inflexões em diferentes lugares de uma essência
comum islâmica, e por outros como a representação de não um, mas vários Islãs)
pode tornar o termo “muçulmano” problemático 103. Além da generalização, corre-se o
risco do essencialismo cultural ou religioso, já que a identidade religiosa é uma dentre
várias identidades (como étnica, nacional e de gênero) que compõem o indivíduo 104.
Ainda assim, o termo é válido, pois como muitas categorias antropológicas, funciona
de maneira retórica, política e analítica105.
De forma semelhante, Asef Bayat defende o uso dos termos “sociedades
muçulmana” e “comunidades muçulmanas”, argumentando que o primeiro, referente
a maiorias muçulmanas, identifica sociedades em que a vida pública e privada, em
esferas diversas como lei, dinâmicas de gênero e às vezes política, sofre influência de
aspectos do Islã que são interpretados e adotados de diferentes formas, enquanto o
segundo, relativo a minorias muçulmanas, nomeia grupos de indivíduos que
compartilham de diversas “identidades muçulmanas”, que devem ser negociadas
dentro de estruturas legais e normativas não islâmicas106. Diferente de categorias
como “mundo islâmico” e “sociedades islâmicas”, que posicionam a religião como fator
central que molda essas coletividades, “sociedades muçulmanas” e “comunidades
muçulmanas” enfatizam a agência dos seguidores do Islã, com suas culturas, histórias
e políticas nacionais distintas entre si, ao mesmo tempo que permite estudos

divisões dentro da religião e as relações nacionais e étnicas ao longo da história, como a divergência
entre oeste-africanos negros e norte-africanos “árabes” (GRILLO, 2004, p. 867-868).
101
GRILLO, Ralph. Islam and Transnationalism. p. 865-868.
102
Ibidem, p. 869-871.
103
Ibidem, p. 863-864.
104
Ibidem, p. 864.
105
Ibidem, p. 864.
106
BAYAT, Asef. The Use and Abuse of ‘Muslim Societies’. ISIM newsletter / International Institute for
the Study of Islam in the Modern World, Leiden, v. 13, dezembro de 2013. p. 5.
16

comparativos sobre grupos de diferentes épocas e lugares, ou entre muçulmanos e


não muçulmanos 107.
Finalizo o capítulo chamando atenção para um potente desdobramento afetivo
da expansão do Islã dentro de muitas sociedades não muçulmanas: o medo.
“Se a mente de repente deve lidar com o que acredita ser uma forma radicalmente
nova de vida - como o islã parecia à Europa na Baixa Idade Média - a resposta em
geral é conservadora e defensiva.”108 Said demonstra como, desde os primeiros
contatos da Europa com a religião islâmica, a reação ao encontro com a diferença tem
sido, muitas vezes, a estereotipização, o reducionismo, a projeção, no outro, de tudo
aquilo que um descreve como negativo, de forma a criar, por oposição, uma imagem
positivamente idealizada de si mesmo 109. O crescimento da hegemonia militar, cultural
e religiosa do Islã nos anos que seguiram a morte de Muhammad horrorizava os
europeus, que julgavam a religião que se aproximava de suas fronteiras como uma
versão fraudulenta do cristianismo e fabricavam uma caricatura perversa do profeta
islâmico110. Atualmente, quando o Islã é a religião que mais cresce no mundo e que
se projeta, até 2050, para se equiparar ao Cristianismo em número de adeptos (devido
a fatores como alta taxa de fertilidade, aumento da expectativa de vida, estrutura etária
favorável, mudança de filiação religiosa e migração)111, desenrola-se um cenário fértil
para discursos alarmistas e de negação do outro, e faz-se necessária a defesa da
tolerância, do diálogo e do respeito às diferenças.

107
Ibidem, p. 5.
108
SAID, Edward. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. p. 97.
109
Ibidem, p. 97-114.
110
Ibidem, p. 97-102.
111
PEW RESEARCH CENTER. The Future of World Religions: Population Growth Projections, 2010-
2050. p. 7-54.
17

2. ISLAMOFOBIA (OU A REPRESENTAÇÃO)

2.1. O termo e sua história

A conceitualização de Islamofobia é pouco teorizada112, múltipla e


controversa113. O primeiro registro do termo se deu em francês (islamophobie), e
compõe uma biografia do profeta Muhammad escrita por Étienne Dinet e Sliman Ben
Ibrahim em 1918, nos últimos dias da Primeira Guerra Mundial 114. Em La Vie de
Mohammed, Prophète d’Allah (A Vida de Muhammad, Profeta de Allah, tradução
nossa) e em um ensaio que complementa a obra, L’Orient Vu de L’Occident (O Oriente
Visto pelo Ocidente, tradução nossa), de 1921, os autores muçulmanos contrapõem
e expõem visões de orientalistas ocidentais que negavam a perspectiva islâmica sob
a pretensão de neutralidade, conectando seus argumentos à representação política
de muçulmanos através de seu sacrifício na guerra que passara (e que não se traduziu
no reconhecimento, pela França, de paridade de cidadania para esse grupo) 115. Seu
primeiro uso na língua inglesa (islamophobia) teve sentido inverso e já antecipava uma
polêmica que estava por vir: Georges Chahati Anawati, em 1976, utilizou a palavra
para se referir à acusação injustamente feita àqueles que criticavam o Alcorão 116.
Nenhum dos dois condiz com o sentido mais empregado contemporaneamente, que,
depois de aparecer em textos nos anos 1980 e 1990, foi popularizado em 1997 pelo
relatório intitulado Islamophobia: A Challenge For Us All (Islamofobia: Um Desafio para
Todos Nós, tradução nossa) da ONG britânica “The Runnymede Trust” 117.
Segundo o relatório, Islamofobia se “refere ao pavor ou ódio ao Islã - e,
portanto, medo ou aversão a todos ou à maioria dos muçulmanos” (tradução
nossa)118. O texto aponta a necessidade de se diferenciar discordâncias e críticas

112
VAKIL, Abdoolkarim. Is the Islam in Islamophobia the Same as the Islam in Anti-Islam; or, When Is
It Islamophobia Time?. e-cadernos CES, Coimbra, v. 3, 2009. p. 79.
113
BLEICH, Erik. What Is Islamophobia and How Much Is There? Theorizing and Measuring an
Emerging Comparative Concept. American Behavioral Scientist, Middlebury, v. 55, n. 12, novembro
de 2011. p. 1583-1585.
114
VAKIL, Abdoolkarim. Is the Islam in Islamophobia the Same as the Islam in Anti-Islam; or, When Is
It Islamophobia Time?. p. 81.
115
Ibidem, p. 81-82.
116
Ibidem, p. 82.
117
Ibidem, p. 78.
118
“[R]eferring to dread or hatred of Islam — and, therefore, to fear or dislike of all or most Muslims”
(RUNNYMEDE TRUST, 1997, p. 1).
18

legítimas à doutrina islâmica, a certas práticas de países muçulmanos e a terroristas


que se dizem motivados por questões islâmicas, do preconceito e hostilidade que
seguidores do Islã podem sofrer119. Para tanto, propõe-se a distinção entre uma visão
aberta sobre o Islã, que é capaz de incluir, além de divergência legítima, valorização
e respeito pela religião e seus praticantes, e uma visão fechada, que indica uma
postura islamofóbica e pode ser caracterizada por oito principais elementos que
interagem entre si:
1. O Islã é visto como um bloco monolítico, estático e indiferente a novas
realidades.
2. O Islã é visto como separado e o “outro” - (a) não tem nenhum objetivo ou
valor em comum com outras culturas (b) não é afetado por elas (c) não as
influencia.
3. O Islã é visto como inferior ao Ocidente - bárbaro, irracional, primitivo,
sexista.
4. O Islã é visto como violento, agressivo, ameaçador, apoiador do terrorismo,
comprometido com ‘um choque de civilizações’.
5. O Islã é visto como uma ideologia política, usada para obtenção de
vantagens políticas ou militares.
6. As críticas feitas pelo Islã ao ‘Ocidente’ são rejeitadas de imediato.
7. A hostilidade direcionada ao Islã é usada para justificar práticas
discriminatórias contra muçulmanos e para a exclusão de muçulmanos da
sociedade dominante.
8. A hostilidade anti-muçulmanos é aceita como natural e ‘normal’. (tradução
nossa)120.

O uso do termo se mostra útil, mas como adiantado, não vem sem algumas
complicações. Seu significado se tenciona relacionalmente a outros conceitos que
podem ser preteridos ou preferidos, como xenofobia, racismo e intolerância 121, e para
alguns autores, o mais aconselhável é empregar categorias mais específicas como
preconceito anti-islâmico ou anti-muçulmano e anti-Muslimism 122. O vocábulo pode
ser problemático, ainda, para psicólogos, pois “fobia” carrega sentidos de um

119
RUNNYMEDE TRUST. Islamophobia: A Challenge For Us All. Reino Unido: Report of The
Runnymede Trust Commission on British Muslims and Islamophobia, 1997. p. 4.
120
“1. Islam seen as a single monolithic bloq, static and unresponsive to new realities. 2. Islam seen as
separate and other - (a) not having any aims or values in common with other cultures (b) not affected
by them (c) not influencing them. 3. Islam seen as inferior to the West - barbaric, irrational, primitive,
sexist. 4. Islam seen as violent, aggressive, threatening, supportive of terrorism, engaged in 'a clash of
civilisations'. 5. Islam seen as a political ideology, used for political or military advantage. 6 Criticisms
made by Islam of 'the West' rejected out of hand. 7. Hostility towards Islam used to justify discriminatory
practices towards Muslims and exclusion of Muslims from mainstream society. 8 Anti-Muslim hostility
accepted as natural and 'normal'.” (RUNNYMEDE TRUST, 1997, p. 5).
121
VAKIL, Abdoolkarim. Is the Islam in Islamophobia the Same as the Islam in Anti-Islam; or, When Is
It Islamophobia Time?. p. 80.
122
BLEICH, Erik. What Is Islamophobia and How Much Is There? Theorizing and Measuring an
Emerging Comparative Concept. p. 1584.
19

problema de saúde mental123. As definições de Islamofobia variam, muitas delas não


são claras ou objetivas124, mas uma boa interpretação da palavra foi desenvolvida por
Erik Bleich: “atitudes ou emoções negativas indiscriminadas direcionadas ao Islã ou
muçulmanos” (tradução nossa)125. A preferência por “atitudes ou emoções” coloca
ênfase no caráter afetivo e avaliativo da Islamofobia, isto é, no fato de ser um tipo de
reação instintiva como nojo, medo ou hostilidade e de julgamento em relação à
natureza (boa ou ruim) e merecimento de respeito ou desprezo que se faz sobre um
grupo; “indiscriminadas” significa que não há uma diferenciação, todos ou quase todos
os muçulmanos ou aspectos do Islã serão taxados negativamente; “Islã ou
muçulmanos” demonstra que a Islamofobia é um fenômeno multidimensional e que a
religião e os fiéis são frequentemente percebidos sem qualquer separação 126.
Defendo e utilizarei, aqui, o termo em questão. Além de ser possível encontrar
definições convincentes, Islamofobia já se enraizou no discurso público, político e
acadêmico127, tendo sido adotado por órgãos de monitoramento internacional e
transliterado para diversos idiomas, rearticulando mobilizações (anteriores à
popularização da palavra) de ativistas e grupos muçulmanos 128. Seu uso, em 2012,
pela então presidenta brasileira, Dilma Rousseff, em seu discurso na Assembleia
Geral das Nações Unidos, indica uma inserção da palavra também no Brasil 129. Trata-
se de uma nomeação que surgiu entre muçulmanos, uma reivindicação sobre algo
real, que é observado e sentido em seus mundos:
Muito ao contrário de vitimização, portanto, Islamofobia é sobre contestação
e o poder de definir o vocabulário político e a base legal do reconhecimento
e da reparação. É sobre a subjetificação de sujeitos e subjetividades políticas
muçulmanas. (tradução nossa) 130.

123
PRINCE, Jane. The Psychology of Online Islamophobia. PRINCE, Jane. The Psychology of Online
Islamophobia. In: AWAN, Imran. Islamophobia in Cyberspace: Hate Crimes Go Viral. Abingdon:
Routledge, 2016. p. 104.
124
BLEICH, Erik. What Is Islamophobia and How Much Is There? Theorizing and Measuring an
Emerging Comparative Concept. p. 1583.
125
“[I]ndiscriminate negative attitudes or emotions directed at Islam or Muslims” (BLEICH, 2011, p.
1585).
126
Ibidem, p. 1585-1587.
127
Ibidem, p. 1584.
128
VAKIL, Abdoolkarim. Is the Islam in Islamophobia the Same as the Islam in Anti-Islam; or, When Is
It Islamophobia Time?. p. 80.
129
ONU. 66ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas. Registros Oficiais, A/67/PV.6, Nova
Iorque, setembro de 2012. p. 9.
130
“Quite the opposite of victimhood, then, Islamophobia is about contestation and the power to set
the political vocabulary and legal ground of recognition and redress. It is about the subjectification
of Muslim political subject(ivitie)s.” (VAKIL, 2009, p.75).
20

2.2. Orientalismo

Se em 1985 Edward Said utilizou o termo Islamofobia131, a ideia de que


imagens e sentimentos negativos são associados ao Islã pelo Ocidente já era
amplamente aceita anteriormente, pelo menos desde a publicação de sua obra
Orientalismo, em 1978132. Apoiado no historiador Henri Pirenne, Said afirma que a
civilização europeia, a partir da Idade Média, se constituiu em oposição ao Islã que
crescia à sua volta, movendo seu centro cultural em direção ao germanismo e se
solidificando enquanto uma comunidade cristã, fechada em si mesma 133. A
interpretação do Islã pela Europa Medieval passou por uma domesticação do exótico,
ou a criação de uma versão diminuída daquilo encarado como estranho e perigoso,
que se executava por meio de analogias com seu próprio esquema cultural 134. Assim,
pensava-se que Muhammad ocupava no Islã o mesmo lugar que Cristo no
Cristianismo, o que deu origem ao polêmico termo “maometismo” 135 e à posição de
impostor que o profeta adquiriu entre os cristãos136. Com a invasão do Egito por
Napoleão Bonaparte em 1798, inicia-se uma fase de maior aproximação do Ocidente
com o Oriente chamada de renascença oriental, marcada pelo desejo de
conhecimento e dominação, aspirações que se tornaram realidade nas terras
islâmicas, vistas como laboratório para os projetos ocidentais137. Nessa segunda fase,
desespiritualizou-se Muhammad no Ocidente, que passou a ser descrito como um
líder político que “criou” o povo árabe instrumentalizando o Islã 138.
Ainda que o autor discuta, em muitos pontos do livro, a relação do Ocidente
com o Islã, o argumento que conduz Orientalismo vai muito além da religião. O que
Said analisa como fenômeno denominado Orientalismo é uma tradição discursiva e

131
VAKIL, Abdoolkarim. Is the Islam in Islamophobia the Same as the Islam in Anti-Islam; or, When Is
It Islamophobia Time?. p. 78.
132
BLEICH, Erik. What Is Islamophobia and How Much Is There? Theorizing and Measuring an
Emerging Comparative Concept. p. 1582.
133
SAID, Edward. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. p. 112.
134
Ibidem, p. 98-99.
135
A tradução para o português de Orientalismo feita por Rosaura Eichenberg refere-se ao profeta
islâmico pelo nome Maomé (de uso recorrente no Brasil), ao qual se vincula “maometismo”. Opto por
utilizar Muhammad pois foi a forma que encontrei em minhas leituras (acadêmicas e do material de
explicação e divulgação do Islã que recebi no Centro Islâmico de Minas Gerais) e com que os
muçulmanos que conheci se referiam ao profeta.
136
SAID, Edward. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. p. 99.
137
Ibidem, p. 76-77.
138
Ibidem, p. 213.
21

prática baseada em uma rede de interesses da Europa (e posteriormente, Estados


Unidos) para com partes da Ásia e Norte da África, uma doutrina pela qual o Ocidente
cria o Oriente não apenas teoricamente, mas de modo a consolidar, lá, suas
instituições de poder político e socioeconômico 139. Retomando Antonio Gramsci, para
quem a cultura é criada e envolta em estruturas de poder, Said identifica na
hegemonia cultural europeia a fonte de durabilidade e força do Orientalismo, uma vez
que depois de muito repetir, transmitir e reforçar a ideia de que há “uma identidade
europeia superior a todos os povos e culturas não europeus” 140 (que para Said é o
principal componente cultural europeu)141, ela se torna uma verdade da linguagem 142,
como chamou Friedrich Nietzsche143.
O autor palestino chama atenção para o fato de que toda produção de
conhecimento advém de circunstâncias políticas, bem como as influencia, posto que
a cultura não reflete passivamente os interesses políticos (e militares e econômicos)
mas os constrói144. A partir da análise de textos escritos por orientalistas (autores
ocidentais145 que escrevem sobre o Oriente, no caso de sua análise, o Oriente
Próximo ou islâmico, e que por referenciação, e às vezes até politicamente 146,
associavam-se entre si), o que inclui desde obras eruditas e literárias até tratados
políticos e livros de viagem, Said desnaturaliza representações acerca do Oriente e a
autoridade de quem as concebe de um ponto de vista existencial e moralmente
exterior147.
Objeto o qual se descreve (até que aparente ser aquilo que o observador
deseja), objeto incapaz de falar por si sem que seja interpretado por outrem, objeto
que se não é explicitamente inferior, urge ser corrigido, guiado, administrado, tão

139
Ibidem, p. 29-33.
140
Ibidem, p. 34.
141
Ibidem, p. 34.
142
“um exército móvel de metáforas, metonímias e antropomorfismos - em suma, uma soma de
relações humanas que foram realçadas, transpostas e embelezadas poética e retoricamente, e que
depois de um longo uso parecem firmes, canônicas e obrigatórias a um povo: as verdades são ilusões,
sobre as quais esquecemos que é isso o que elas são.” (NIETZSCHE, 1954, p.46-7 apud SAID, 2007,
p. 276).
143
SAID, Edward. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. p. 276.
144
Ibidem, p. 37-40.
145
Principalmente franceses, ingleses e norte-americanos, representantes dos impérios e nações que
exerceram maior domínio sobre o Oriente Médio a partir do século 18 - região e período nos quais Said
foca sua leitura (SAID, 2007, p. 46).
146
Ibidem, p. 284.
147
Ibidem, p. 49-54.
22

somente pela sua diferença148. Como em uma fotografia, ou melhor, em uma pintura
cujo referente é apenas imaginário, o oriental está congelado no tempo para o
orientalista, que reage mais aos seus, à cultura que produz, do que àquele observado,
e durante boa parte da história do Orientalismo acadêmico, voltava-se mais ao período
clássico do que à existência de seu objeto no presente149. Os orientalistas tradicionais
se interessavam pela essência que acreditavam constituir o humano, que prendia seus
objetos em sua especificidade (real ou inventada, a partir da qual se generalizava) e
imutabilidade150, desconsiderando individualidades em favor de entidades artificiais 151,
tais como o Homo islamicus, ser dotado de uma “mente muçulmana”,152 e o “homem
normal”, o europeu descendente da antiguidade grega 153. A separação a partir da
categorização tende a polarizar a distinção num primeiro momento, limitando o
encontro de alteridades humanas, e posteriormente, se se constrói num esquema de
superioridade e inferioridade, colocando, como fazem os orientalistas modernos, de
um lado os ocidentais racionais, lógicos, liberais e pacíficos, e do outro os orientais
como seu oposto, gera um convite para o controle e governo de um sob o outro154 .
“O que devemos levar em conta é um longo e lento processo de apropriação,
pelo qual a Europa, ou a consciência europeia do Oriente, passou de textual e
contemplativa a administrativa, econômica e até militar.”155 Ao passo que pelo menos
desde a Antiguidade Clássica o Oriente já era representado como um “outro” do
europeu156, formalmente o Orientalismo se iniciou em 1312 e durou, na forma do que
aparenta ter sido um “Orientalismo cristão”, até o início da Renascença 157. No século
18 teve início o “Orientalismo moderno”, que impulsionado pela ambição de tipificação
da natureza e do homem (e desejo de poder nela envolto) e por outros elementos
secularizadores que começavam a vigorar na Europa158, atravessou diversas escolas
de pensamento, diversificando-se e se consolidando159, sem que perdesse seu ímpeto

148
Ibidem, p. 52-74.
149
Ibidem, p. 53-88.
150
Ibidem, p. 70-146.
151
Ibidem, p. 217.
152
ARJANA, Sophia Rose. Muslims in the Western Imagination. Nova Iorque: Oxford University Press,
2015. p. 9.
153
SAID, Edward. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. p 146-147.
154
Ibidem, p. 80-85.
155
Ibidem, p. 285.
156
Ibidem, p. 93-96.
157
Ibidem, p. 85-100.
158
Ibidem, p. 167-174.
159
Ibidem, p. 77.
23

religioso, expresso no que Said entende como um sobrenaturalismo naturalizado, uma


forma de ver o mundo160 como seu local de criação (em que o orientalista ocupava o
lugar de Deus)161. O Oriente deixou de ser pensado apenas como as terras
islâmicas162 e se expandiu junto ao vocabulário e instituições orientalistas,
acompanhando a evolução do imperialismo europeu163. Dos anos iniciais do século
19 até o começo do século 20, os territórios diretamente colonizados por europeus
foram de aproximadamente 35% para cerca de 85% da superfície terrestre, processo
que muitas vezes envolvia, por parte de diferentes países, a partilha da terra, do lucro,
da administração das colônias, e também do conhecimento orientalista 164.
Algumas perspectivas, sob diferentes pressões, se alteraram, mas outros vícios
orientalistas permaneceram. Quando o Orientalismo entrou em crise no século 20, em
decorrência dos movimentos de libertação nacional que eclodiram no “Terceiro
Mundo” a partir dos anos 1920, e de uma consciência que se formou sobre a
defasagem temporal da intelectualidade orientalista, três foram os cenários que se
montaram: as nações recém independentes e aquelas que antes as dominavam
tiveram que enfrentar a nova configuração mundial do pós-guerra, disputada pelas
novas potências imperiais, Estados Unidos e União Soviética; o Orientalismo seria
revisado e desfeito; os procedimentos antigos seriam adaptados aos novos 165.
Diferente de outras subdisciplinas orientalistas que, desafiadas, reformularam-se, o
Orientalismo islâmico se manteve sob dogmas e clichês reducionistas e
preconceituosos (se não os mesmos, reinvenções dos mesmos) 166. Por um lado, tido
o Islã como avesso a mudanças, a reforma é tratada por orientalistas como uma
traição da religião167, e por outro, se o Islã é visto como aquilo que domina todas as
esferas da vida no Oriente islâmico, qualquer movimento histórico nesses países é
interpretado como um fato religioso168.

160
Além de ter sido, durante muito tempo, um sistema de concepção da realidade cristão e cientificista,
o Orientalismo, enquanto tradição etnocêntrica (SAID, 2007, p. 277), constituiu-se como uma lente e
um princípio masculino (SAID, 2007, p. 281-282) e branco (SAID, 2007, p. 305-331) que deu origem a
formas específicas de se ver e agir no mundo.
161
Ibidem, p. 170-177.
162
Ibidem, p. 170.
163
Ibidem, p. 73-74.
164
Ibidem, p. 74-75.
165
Ibidem, p. 155-156.
166
Ibidem, p. 402-428.
167
Ibidem, p. 156-158.
168
Ibidem, p, 372-374.
24

Na verdade, tão violenta era essa sensação de resistência à mudança, e tão


universais eram os poderes a ela atribuídos, que ao ler os orientalistas
compreendemos que o apocalipse a ser temido não era a destruição da
civilização ocidental, mas a destruição das barreiras que mantinham o Leste
e o Oeste distantes um do outro.169

2.3. Racismos

A percepção externamente construída sobre o âmbito religioso do Islã não


explica totalmente a Islamofobia. Como discutido por Said, outras imagens, símbolos
e ideias, como regiões geográficas e grupos étnicos, são atrelados à religião,
carregados de afetos e julgamentos morais. Partindo do pressuposto de que, além de
conter uma divisão internacional do trabalho, o sistema-mundo é organizado em
hierarquias raciais ou étnicas, que posicionam ocidentais por cima e não-ocidentais
abaixo170, privilegiando elementos culturais dos primeiros, faz-se necessária uma
exploração sobre as interpretações da Islamofobia focadas em seu caráter racista.
Tratarei sobre racismos pois tal ideologia se manifesta de formas múltiplas, em
diferentes épocas, lugares, como forma de tratamento de indivíduos e de validação de
conhecimentos.

2.3.1. Racismo histórico-global

A perspectiva a seguir é parte daquilo que Hall chamou de uma “história global”,
um momento histórico em que diferentes partes do mundo se entrelaçaram num
sistema cultural, social e econômico interdependente171. Essa articulação se originou
no desenvolvimento de uma linguagem mundialmente compartilhada, um “sistema de
representação” que tem em seu centro a noção da existência de um Ocidente e de
um Resto172. O autor afirma que o Ocidente não é um conceito geográfico, mas
histórico, e que seu significado equivale, hoje, à palavra “moderno”173. A “ideia”
ocidental não surgiu para nomear uma sociedade pré-existente, mas ela mesmo foi

169
Ibidem, p. 352-353.
170
GROSFOGUEL, Ramón. The Multiple Faces of Islamophobia. Islamophobia Studies Journal,
Berkeley, v. 1, n. 1, 2012. p. 10.
171
HALL, Stuart. O Ocidente e o Resto: Discurso e Poder. Projeto História, São Paulo, n. 56, maio-
agosto de 2016. p. 317-318.
172
Ibidem, p. 317-318.
173
Ibidem, p. 315.
25

utilizada para criá-la, a partir de uma identificação cristã que tanto delimitava as
divisões entre europeus (de um lado, a Europa Ocidental católica, do outro, a Europa
Oriental ortodoxa), quanto forjava uma humanidade que os de dentro - mas não
todos - poderiam compartilhar174. “Sua identidade continental era inicialmente cristã,
pois era mais frequentemente chamada de Cristandade do que de Europa.” 175
Em 1492, a monarquia cristã espanhola iniciou importantes processos: chegou
às Américas, onde engendrou a colonização dos indígenas, e reconquistou a parte
da península hispânica sob domínio islâmico, banindo árabes e judeus que ali viviam
e forçando aqueles que ficaram à conversão ao cristianismo 176. A perseguição aos
mouriscos, os muçulmanos convertidos, prolongou-se até sua expulsão final em 1609,
mas sua transformação em “outro” subalterno dentro da Europa, junto aos judeus 177,
apenas começava, e acompanhava a atribuição do lugar do “outro” aos povos
indígenas, fora do continente europeu178. O primeiro marcador da diferença no sistema
de dominação ocidental foi a identidade religiosa: os “outros” internos eram vistos
como “povos com a religião errada”, enquanto os “outros” externos, “povos sem
religião”179. Há autores que consideram a desconfiança e hostilidade com que
muçulmanos e judeus eram tratados como mero ensaio para a formação racial a que
outros povos seriam dispostos, dado que a oposição a estes grupos era interpretada
tão somente por sua religião180. Nasar Meer, em contrapartida, recorda que, antes da
formação de categorias raciais durante a escravidão transatlântica e colonização pós-
Iluminismo (antes até mesmo da Reconquista), cultura religiosa e biologia constituíam,
juntos, o que se entendia por um grupo racial 181. Afinal, na visão dos inquisidores, a
eliminação de judeus e muçulmanos traria uma “pureza de sangue” à Espanha182.

174
Ibidem, p. 317-330.
175
MANN, 1988, p.10-15 apud HALL, 2016, p. 329.
176
GROSFOGUEL, Ramón. The Multiple Faces of Islamophobia. p. 11.
177
Além de muçulmanos e judeus, é possível incluir enquanto representações do “outro” interno do
Ocidente, historicamente, os europeus do leste, frequentemente chamados de “bárbaros”, e as
mulheres (HALL, 2016, p. 319).
178
Ibidem, p. 11.
179
Ibidem, p. 11.
180
MEER, Nasar. Racialization and religion: race, culture and difference in the study of antisemitism
and Islamophobia. Ethnic and Racial Studies, v. 36, n.3, 2012. p. 387.
181
Ibidem, p. 387.
182
SHOHAT, Ella. The Sephardi-Moorish Atlantic: Between Orientalism and Occidentalism. In:
ALSULTANY, Evelyn & SHOHAT, Ella. Between the Middle East and the Americas: The Cultural Politics
of Diaspora. Michigan: University of Michigan, 2013. p. 51-52.
26

Um grupo após o outro, a Europa inferiorizou e desumanizou sujeitos ao redor


do mundo, racializando-os. De acordo com Ramón Grosfoguel, o imaginário racista
que colocava sujeitos ao nível em que se encontravam os animais, na visão europeia,
estendeu-se no século 16 dos indígenas americanos para os africanos subsaarianos,
“povos sem Deus” e consequentemente escravizáveis, e posteriormente para os
“povos com o Deus errado”183. Na transição de uma relação imperial, entre Europa e
territórios islâmicos, para uma relação colonial, os fundamentos raciais teológicos se
secularizaram, transformando “povos com a religião errada”, no século 15, em
“selvagens e primitivos” e, no século 19, “povos incivilizados” 184. Ainda que tal análise
possa indicar uma leitura linear do racismo e da Islamofobia, Abdoolkarim Vakil
defende que investigar sua genealogia não envolve uma extensão ao passado, mas
a consideração de eventos e processos históricos como uma co-presença que se
contrapõe, articulações que correm lateralmente ao presente185.

2.3.2. Racismo cultural

Contextos históricos, políticos, geográficos e culturais moldam as múltiplas


formas de racismo: trata-se de um fenômeno dinâmico e, portanto, de difícil
definição186. Steve Garner e Saher Selod descrevem como centrais para o racismo:
uma ideologia que divide pessoas em distintas raças diferenciadas por características
culturais e/ou físicas naturalizadas (como tom de pele, idioma, vestuário e práticas
religiosas); uma relação de poder histórica em que grupos racializados são
essencializados por outros (nessa hierarquia, europeus brancos figuram no topo); e
formas de discriminação que vão desde negação de acesso a recursos até o
genocídio187. É principalmente sobre os corpos físicos das pessoas que o racismo se
manifesta, assim, um muçulmano é lido como tal através da identificação de
elementos que, imagina-se, são de cultura e aparência muçulmanas, como um nome
muçulmano, nação de origem, sotaque ou hijab188 (se ser muçulmano é compreendido

183
GROSFOGUEL, Ramón. The Multiple Faces of Islamophobia. p. 12.
184
Ibidem, p. 12-13.
185
VAKIL, Abdoolkarim. Is the Islam in Islamophobia the Same as the Islam in Anti-Islam; or, When Is
It Islamophobia Time?. p. 76.
186
GARNER, Steve & SELOD, Saher. The Racialization of Muslims: Empirical Studies of Islamophobia.
Critical Sociology, dezembro de 2014. p. 3.
187
Ibidem, p. 3.
188
Véu utilizado por mulheres muçulmanas.
27

de formas diferentes a depender do lugar, o mesmo pode-se dizer de seus


marcadores)189. Muçulmanos, bem como judeus, podem não ser racializados, se não
forem identificados como pertencentes a seus grupos190, ou não ser racializados
negativamente, se reconhecidos enquanto ocidentais191.
“Racialização” é um conceito que pode ser problemático, mas que possui
grande utilidade. Meer evoca David Goldberg para alertar que seu uso
demasiadamente amplo pode torná-lo ambíguo e vazio, porém defende o fato de que
impede o determinismo biológico e desloca o foco da intolerância ou preconceito
religioso em si para as pessoas, que são o centro das inscrições raciais 192. O cerne
dos estudos sobre racialização não é a raça, mas os processos históricos de
evidenciação da raça nas interações sociais, de delimitação de pessoas e
características como pertencentes a um grupo 193. Garner e Selod atentam para como
indivíduos racializados tornam-se reificados:
O uso de racialização como conceito analítico básico nos permite
compreender o fato de que independente da aparência física, país de origem
e situação econômica, muçulmanos são homogeneizados e reduzidos por
discursos e práticas islamofóbicas em suas vidas cotidianas. Em um conjunto
de interações sociais, eles são “interpelados”, usando um termo de Althusser
(2001 [1971]) unicamente como muçulmanos. Essa interpelação relaciona
roupa a marcadores físicos visíveis, transformando seus corpos em Outros
racializados: muçulmanos. Paradoxalmente, isso é ilustrado nas experiências
de brancos que se convertem ao Islã, que veem sua branquitude questionada
e diminuída como consequência de seu novo pertencimento à fé muçulmana.
(tradução nossa)194

Outros autores destacam a justaposição de categorias identitárias, que faz com


que as vítimas de discursos islamofóbicos sejam os “suspeitos de sempre”, indivíduos
com alguma origem nas colônias dos impérios ocidentais195 que já são “simbolizados

189
Ibidem, p. 4.
190
Ibidem, p. 4.
191
MEER, Nasar. Racialization and religion: race, culture and difference in the study of antisemitism
and Islamophobia. p. 391.
192
Ibidem, p. 386-390.
193
GARNER, Steve & SELOD, Saher. The Racialization of Muslims: Empirical Studies of Islamophobia.
p. 6.
194
“Using racialization as a key analytical concept allows us to make sense of the fact that regardless
of physical appearance, country of origin and economic situation, Muslims are homogenized and
degraded by Islamophobic discourse and practices in their everyday lives. In a set of social interactions,
they are ‘interpellated’, to use Althusser’s (2001 [1971]) term, solely as Muslims. This interpellation
relates dress to visible physical markers, transforming their bodies into racialized Others: Muslims.
Paradoxically, this is illustrated in the experiences of white converts to Islam, who see their whiteness
questioned and downgraded as a consequence of their new belonging to the Muslim faith”. (GARNER
& SELOD, 2014, p. 9).
195
GROSFOGUEL, Ramón. The Multiple Faces of Islamophobia. p. 14.
28

como sujeitos raciais”196. Logo, a Islamofobia é associada ao racismo anti-turcos na


Alemanha, ao preconceito contra norte-africanos na França e ao racismo anti-negros
e anti-árabes no Reino Unido e nos Estados Unidos, por exemplo 197. Apesar de
constituírem um quinto dos muçulmanos da população muçulmana mundial, na maior
parte dos países ocidentais árabes são percebidos como a maioria dos muçulmanos
do mundo, e devido às ambições imperialistas ocidentais por petróleo no Oriente
Médio198 e à resistência árabe, eles (e muçulmanos confundidos com árabes) são alvo
de forte discurso racista199. Para Ella Shohat e Evelyn Alsultany, os debates sobre
multiculturalismo nos Estados Unidos focam mais em questões raciais (relações entre
brancos, indígenas, negros e latinos), enquanto na Europa as controvérsias públicas
giram em torno da religião (“o véu”, construção de mesquitas, clitoridectomia,
circuncisão e rebeliões em subúrbios franceses habitados por migrantes) 200. Sob a
ótica do racismo cultural, contudo, é possível afirmar que os debates públicos em
ambas as partes do Ocidente são racializados.
A racialização de migrantes muçulmanos é uma força de manutenção da
desigualdade de direitos em muitos países ocidentais. Na Inglaterra e Reino Unido,
minorias raciais podem celebrar a diversidade, desde que não ameacem a supremacia
branca que habita o status quo, mantido também na França, pelo mito de uma
sociedade “racialmente cega” (talvez cega para a discriminação) 201. Através da
redução de uma população extremamente homogênea a um sujeito unitário,
muçulmanos na Europa, parte mais pobre e precarizada de sua classe trabalhadora,
têm suas condições de vida deterioradas justificadas por sua religião, de modo que
desigualdades são naturalizadas e atribuídas à cultura islâmica 202. Adeptos do

196
TYRER, David. The Politics of Islamophobia: Race, Power and Fantasy. Londres: Pluto Press, 2013.
p. 37.
197
Ibidem, p. 14.
198
“[...] o árabe é um fornecedor de petróleo. Essa é outra característica negativa, porque a maioria
dos relatos sobre o petróleo árabe equipara o boicote de 1974-4 (que beneficiou principalmente as
companhias ocidentais e uma pequena elite árabe governante) à ausência de quaisquer qualificações
morais nos árabes para possuir reservas tão imensas. Sem os eufemismos habituais, a pergunta
formulada com mais frequência é por que povos como os árabes têm o direito de manter o mundo
desenvolvido (livre, democrático, moral) ameaçado. Dessas perguntas provém a sugestão frequente
de que os campos de petróleo árabes sejam invadidos pelos fuzileiros navais.” (SAID, 2007, p. 383).
199
GROSFOGUEL, Ramón. The Multiple Faces of Islamophobia. p. 15-16.
200
SHOHAT, Ella & ALSULTANY, Evelyn. The Cultural Politics of “the Middle East” in the Americas:
An Introduction. In: _____. Between the Middle East and the Americas: The Cultural Politics of Diaspora.
Michigan: University of Michigan, 2013. p. 5.
201
Ibidem, p. 15.
202
PEROCCO, Fabio. Anti-Migrant Islamophobia in Europe: Social roots, mechanisms and actors.
Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, Brasília, v. 26, n. 53, agosto de 2018. p. 28-29.
29

racismo cultural, forma de racismo hegemônica nos últimos 60 anos, usam da


substituição da palavra “raça” pela naturalização de ideias sobre comportamentos,
crenças e valores de grupos inferiorizados203 para esconder seu racismo, mas ele
permanece, e os grupos racializados sentem seus efeitos. Sistêmica, a Islamofobia é
refletida e mantida tanto no nível micro, das atitudes e interações individuais, quanto
no nível macro, das políticas de estado204. Deve-se levar em conta, ainda, que os
próprios grupos podem se auto-racializar, a fim de se organizarem em torno de uma
identidade política205.

2.3.3. Racismo epistêmico

É a partir da política identitária ocidental hegemônica e do privilégio


epistêmico que o restante das epistemologias e cosmologias no mundo são
subalternizadas como mitos, religião, folclore ou cultura, rebaixando o
conhecimento não-ocidental abaixo do status da filosofia e da ciência.206

Dentro da tradição de conhecimento do Ocidente, cabe apenas a si próprio


produzir princípios legítimos, pois em sua visão, somente ocidentais operam a partir
da universalidade, racionalidade e verdade207. Trata-se de uma política identitária
intelectual que privilegia o conhecimento produzido por homens ocidentais,
compondo, portanto, uma forma de machismo e racismo epistêmico 208. A partir da
experiência dos Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha e Itália, 12% da
população mundial (6%, se considerarmos apenas os homens), universaliza-se a
teoria social ocidental, como se homens de 5 países conseguissem explicar a
experiência sociohistórica de todo o planeta209. A exclusão do não-ocidental está na
origem da “ciência da sociedade”, que posicionava todas as sociedades na mesma
trilha de desenvolvimento: alguns, os selvagens ou primitivos, estariam atrasados,
enquanto os Ocidentais venciam a corrida rumo ao progresso210.

203
GROSFOGUEL, Ramón. The Multiple Faces of Islamophobia. p. 13.
204
GARNER, Steve & SELOD, Saher. The Racialization of Muslims: Empirical Studies of Islamophobia.
p. 7.
205
Ibidem, p. 6.
206
GROSFOGUEL, Ramón. The Multiple Faces of Islamophobia. p. 18.
207
GROSFOGUEL, Ramón. Racismo epistémico, Islamofobia epistémica y ciencias sociales coloniales.
Tabula Rasa, Bogotá, n. 14, janeiro-junho de 2011. p. 343.
208
Ibidem, p. 343.
209
Ibidem, p. 354-355.
210
HALL, Stuart. O Ocidente e o Resto: Discurso e Poder. p. 353.
30

Os discursos de neutralidade e objetividade das ciências sociais ocidentais


escondem as estruturas de poder que permeiam o enunciador 211, acusam de
particularismo os posicionamentos críticos advindos de grupos subalternizados 212 e
justificam dominações históricas. Por meio do epistemicídio e do que Grosfoguel
chama de “espiritualicídio”, corpos e mentes foram e continuam sendo
colonizados213. O eurocentrismo, enquanto negação ou inferiorização de outras
cosmologias e epistemologias, é pensado pelo autor como a principal forma de
fundamentalismo da atualidade214.
O fundamentalismo eurocêntrico foi normalizado de tal forma que nunca
vemos nas primeiras páginas dos jornais um título que diga “o
fundamentalismo eurocêntrico com seu terrorismo de estado assassinou mais
de um milhão de civis no Iraque”. (tradução nossa)215

A resposta ao fundamentalismo é, recorrentemente, outro fundamentalismo. Se


por um lado a política identitária desenvolvida por grupos inferiorizados retoma sua
humanidade e autoestima, em contrapartida, a asserção de que os mesmos são
superiores admite, por inversão, a hierarquização binária do eurocentrismo 216. Da
mesma forma, quando grupos fundamentalistas não-ocidentais afirmam que a
democracia institucional não lhes pertence, mas concerne apenas aos europeus,
concordam com a naturalização da atribuição do autoritarismo aos povos
subalternizados217. Isso será bem-vindo de um ponto de vista eurocêntrico, já que as
definições de democracia, direitos humanos e dignidade humana originárias de
epistemologias não-ocidentais são prontamente excluídas dos espaços que debatem
tais temas218. Assim, muçulmanos podem participar dessas discussões, desde que
pensem a partir dos pressupostos liberais eurocêntricos219.
Além de serem vistos como naturalmente anti-democráticos, aos muçulmanos
é atribuído regularmente o rótulo da irracionalidade. Como na tradição do Orientalismo

211
GROSFOGUEL, Ramón. The Multiple Faces of Islamophobia. p. 20.
212
GROSFOGUEL, Ramón. Racismo epistémico, Islamofobia epistémica y ciencias sociales coloniales.
p. 344.
213
Ibidem, p. 352.
214
GROSFOGUEL, Ramón. The Multiple Faces of Islamophobia. p. 22.
215
“El fundamentalismo eurocéntrico se ha normalizado a tal punto que nunca vemos en las primeras
planas de los periódicos un titular que diga «el fundamentalismo eurocéntrico con su terrorismo de
estado ha asesinado a más de un millón de civiles en Iraq».” (GROSFOGUEL, 2011, p. 346).
216
GROSFOGUEL, Ramón. Racismo epistémico, Islamofobia epistémica y ciencias sociales coloniales.
p. 345.
217
Ibidem, p. 345.
218
GROSFOGUEL, Ramón. The Multiple Faces of Islamophobia. p. 30.
219
GROSFOGUEL, Ramón. Racismo epistémico, Islamofobia epistémica y ciencias sociales coloniales.
p. 353.
31

analisada por Said, hoje, não faltam “especialistas” ocidentais carregados de uma
autoridade esvaziada de conhecimento sério sobre a tradição islâmica 220. Ignora-se,
pois, o papel fundamental que muçulmanos desempenharam na filosofia ocidental,
resgatando e levando à Europa os filósofos gregos, bem como na ciência moderna,
desenvolvendo a biologia, a física, a matemática e a astronomia221. Esquece-se que
800 anos antes que europeus, muçulmanos em Bagdá já haviam descoberto que a
teoria do geocentrismo estava errada, e que enquanto a Inquisição perseguia qualquer
questionamento ao pensamento cristão em uma Europa medieval profundamente
obscurantista, a civilização islâmica era um grande centro de produção científica,
intelectual e criativa222. Despreza-se a herança islâmica na formação das sociedades
europeias, pois essa lembrança foi intencionalmente apagada: se mesmo no período
medieval muitas eram as trocam entre os “dois mundos”, a partir da Renascença foi
construído o mito de uma linhagem cultural e epistêmica pura, que substituiu a
importância árabe e muçulmana pela influência ateniense223.

2.4. A política do ódio e medo e o papel das mídias

Em diferentes partes do mundo224, o avanço da Islamofobia pode ser percebido


como prática eleitoral, política institucional, na composição de grupos políticos de base
e em ataques a indivíduos relacionados aos muçulmanos e à infraestrutura que
possibilita a religião islâmica. Em toda a Europa, por exemplo, partidos de extrema-
direita, direita e de centro vêm se tornando governo ou forte oposição através de
posicionamentos contrários ao Islã; leis que proíbem a construção de mesquitas e
minaretes, a execução do chamado para orações e o uso de vestimentas islâmicas
em espaços públicos e locais de trabalho estão sendo propostas, discutidas e
aprovadas; movimentos identitários, nacionalistas e muitas vezes violentos, voltados

220
GROSFOGUEL, Ramón. The Multiple Faces of Islamophobia. p. 31.
221
GROSFOGUEL, Ramón. Racismo epistémico, Islamofobia epistémica y ciencias sociales coloniales.
p. 348.
222
Ibidem, p. 348.
223
QURESHI, Emran; SELL, Michael A. Introduction: Constructing the Muslim Enemy. In: _____ . The
New Crusades: Constructing the Muslim Enemy. Nova Iorque: Columbia University Press, 2003. p. 21.
224
Cito, neste capítulo, apenas exemplos da politização da Islamofobia nos Estados Unidos e na
Europa, mas há produções acadêmicas sobre o fenômeno em países (escritos por autores) como
Austrália (Scott Poynting & Linda Briskman), Mianmar (Francis Wade), Índia (Sitara Thobani) e China
(Luwei Rose Luqiu & Fan Yang).
32

ao combate de uma dita islamização de seu continente, ganham força; racistas,


nacionalistas e extremistas separatistas figuram em primeiro lugar no número de
ataques terroristas, muitos dos quais direcionados a mesquitas, muçulmanos e
apoiadores de muçulmanos (ou percebidos como tais); mesquitas foram fechadas
pela polícia e comunidades muçulmanas não conseguem permissão ou financiamento
para construção de cemitérios ou centros educacionais/culturais religiosos 225. Brian
Blakemore traz na fala de Thomas Klau, membro do Conselho Europeu de Relações
Exteriores, um think tank pan-europeu, a visão de que a Islamofobia no século XXI,
como o anti-semitismo nas décadas de 1910, 1920 e 1930, tornou-se o fator unificador
de partidos de extrema direita europeus226.
Nos Estados Unidos, o “terrorismo islâmico” é visto como o novo inimigo pós
Guerra Fria227. Tal fato fez movimentar, desde os anos 80, uma política externa de
cunho intervencionista e imperialista em países de maioria muçulmana, que
atravessou governos conservadores e liberais 228. Cristãos conservadores de direita
vêem no crescimento populacional de muçulmanos e aumento de sua visibilidade em
escolas, locais de trabalho e instituições de governo americanos uma perda da
influência cristã na sociedade, e parte do grupo (sionistas religiosos) têm como motor
principal de seu posicionamento político islamofóbico uma profecia bíblica que
condiciona o retorno de Jesus Cristo à dominação de Israel pelos judeus229. Uma série
de medidas de policiamento que atingem muçulmanos de forma particular têm sido
colocadas em prática nos últimos anos, como perfilagem, vigilância, tortura e detenção
de indivíduos baseados em atributos raciais e religiosos230. Polêmicas que
referenciam o Islã visando minar ou alimentar candidaturas em eleições recentes
tornaram-se prática recorrente, como a teoria de 2008 que “denunciava” que Barack
Obama era estrangeiro, muçulmano e favorável à Shariah231, ou a promessa de
campanha de Donald Trump que em 2017 concretizou-se na forma da lei, com a

225
BAYRAKLI, Enes & HAFEZ, Farid. European Islamophobia Report 2017. Istambul: SETA, 2018. p.
9-24.
226
BLAKEMORE, Brian. Online Hate and Political Activist Groups. In: AWAN, Imran. Islamophobia in
Cyberspace: Hate Crimes Go Viral. Abingdon: Routledge, 2016. p. 68.
227
KUMAR, Deepa. Islamophobia and the Politics of Empire. Chicago: Haymarket Books, 2012. p. 113-
134.
228
Ibidem, p. 113-134.
229
LEAN, Nathan. The Islamophobic Industry: How the Right Manufactures Fear of Muslims. Pluto
Press: Londres, 2012. p. 83-122.
230
ELSHEIKH, Elsadig & SISEMORE, Basima; LEE, Natalia. Legalizing Othering: The United States of
Islamophobia. Berkeley: Haas Institut, 2017. p. 26.
231
LEAN, Nathan. The Islamophobic Industry: How the Right Manufactures Fear of Muslims. p. 4-10.
33

suspensão da entrada de estrangeiros vindos de sete países de maioria


muçulmana232. O financiamento para o desenvolvimento de uma Islamofobia
profissional no país é altíssimo, ultrapassando 40 milhões de dólares, o que
possibilitou o estabelecimento do que alguns chamam de “Indústria da Islamofobia”
ou “Rede da Islamofobia”, constituída por políticos conservadores, ativistas e
blogueiros de direita e ex-muçulmanos que fazem carreiras com a demonização do
Islã233.
O crescimento do ódio ao Islã e aos muçulmanos é fruto de eventos e condições
particulares do século 21. A chegada em massa de refugiados vindos da Ásia e África
no continente europeu em 2015 234 impulsionou o discurso da “Islamização da
Europa”235. Os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, de 2005
em Londres, de 2015 em Paris, dentre outros executados por terroristas
fundamentalistas muçulmanos no Ocidente, foram intensamente reportados pelos
grandes meios de comunicação236. Movida pela busca de mercado consumidor, a
mídia sensacionaliza crimes e cria uma situação de pânico moral, e a forma seletiva,
desproporcional e simplificada de apresentá-los gera estereótipos utilizados para
estigmatizar identidades237. Na internet, notícias sobre crimes (e a estigmatização que
as envolve) são reproduzidas e discutidas, e a violência contra o grupo identificado
como criminoso é rapidamente propagada238. Os provedores das plataformas digitais
pouco se interessam por essa situação, e assim, mídias sociais tornam-se um lugar
de intimidação, exclusão e hostilidade para aqueles atingidos por discursos de ódio,

232
ELSHEIKH, Elsadig & SISEMORE, Basima; LEE, Natalia. Legalizing Othering: The United States of
Islamophobia. p. 26.
233
GREEN, Todd H. The Fear of Islam: An Introduction to Islamophobia in the West. Filadélfia: Fortress
Press, 2015. p. 205-206.
234
PICKEL, Gert & ÖZTÜRK, Cemal. Islamophobia Without Muslims? The “Contact Hypothesis” as an
Explanation for Anti-Muslims Attitudes - Eastern European Societies in a Comparative Perspective.
Journal of Nationalism, Memory & Language Politics, v. 12, n. 2, 2018. p. 163-166.
235
Meer (2012, p. 393) aponta a noção de “Eurábia”, uma teoria sobre a dominação numérica e cultural
de forma planejada da Europa pelo Islã e pelos muçulmanos. Essa ideia, presente em obras de autores
de best-sellers, possui muitos elementos de Os Protocolos dos Sábios de Sião, teoria conspiratória
utilizada por nazistas a qual apresentava os judeus como agentes da dominação global.
236
AWAN, Imran. Cyber-Islamophobia and Internet Hate Crime. In: ______. Islamophobia in
Cyberspace: Hate Crimes Go Viral. Abingdon: Routledge, 2016. p. 2-7.
237
RAMAN, Mohammed. The Media Impact of Online Islamophobia: An Analysis of the Woolwich
Murder. In: AWAN, Imran. Islamophobia in Cyberspace: Hate Crimes Go Viral. Routledge: Abingdon,
2016. p. 85-86.
238
Ibidem, p. 85-96.
34

que passam a ser vistos como uma parte normal do ambiente online, apenas um tipo
de opinião239.
O uso da internet tornou-se um poderoso instrumento 240 para a normalização e
disseminação da Islamofobia, movimento geralmente conectado à extrema-direita241.
Nesse espaço, estruturas organizacionais transnacionais tornam-se mais fluidas,
mantendo sua efetividade sem necessitar de uma alta formalização 242. O anonimato
e a acessibilidade que sites como o Twitter oferecem fazem deles arenas populares
para a prática de ódio digital243. A possibilidade de ser identificado por pessoas que
pensam da mesma forma também pode aumentar a agressividade daquele que
comunica, ideia desenvolvida a partir da teoria da desindividuação, que propõe um
menor monitoramento do comportamento do indivíduo em situações sociais 244 . Mídias
sociais ampliam e alteram os processos de construção, reprodução e manutenção de
identidades coletivas245. As tecnologias de informação e comunicação compõem um
cenário mais amplo de globalização, marcado pela “compressão espaço-tempo”, que
gera a sensação de um mundo menor onde eventos num determinado lugar impactam
imediatamente locais e pessoais a grandes distâncias246. Dessa forma, “as
identidades se tornam desvinculadas - desalojadas - de tempos, lugares, histórias e
tradições específicos e parecem flutuar livremente”247.
Os discursos sobre o Islã e muçulmanos que irrompem na atualidade
constituem uma linguagem de disputa, empregada e difundida como resposta a

239
PERRY, Barbara & OLSSON, Patrick. Cyberhate: the globalization of hate. Information &
Communications Technology Law, v. 18, n. 2, 2009. p. 190.
240
Milan (2015b, p. 2-3) argumenta que mais que ferramentas, as mídias sociais devem ser pensadas
como agentes - a interação de humanos com máquinas resulta num processo sociotécnico de
construção de sentido, no qual as tecnologias não atuam de forma neutra. Além de contarem com a
presença de bots, as mídias sociais operam através de algoritmos que categorizam usuários a partir de
seus comportamentos, personalizando o conteúdo oferecido de acordo com dados recolhidos. Toda a
arquitetura destes sites ou aplicativos, como a metrificação de interações (curtidas, por exemplo), altera
e induz reações dos usuários.
241
AWAN, Imran. Cyber-Islamophobia and Internet Hate Crime. p. 9.
242
EARL, Jennifer; HUNT, Jayson & GARRETT, R. Kelly. Social movements and the ICT revolution. In:
HEIJDEN, Hein-Anton von der. Handbook of Political Citizenship and Social Movements. Northhampton:
Edward Elgar, 2014. p. 373.
243
AWAN, Imran. Virtual Islamophobia: The Eight Faces of Anti-Muslim Trolls on Twitter. In: ______.
Islamophobia in Cyberspace: Hate Crimes Go Viral. Abingdon: Routledge, 2016. p. 24.
244
PRINCE, Jane. The Psychology of Online Islamophobia. p. 110.
245
MILAN, Stefania. From social movements to cloud protesting: the evolution of collective identity.
Information, Communication & Society, 2015. p. 2.
246
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. p. 75.
247
Ibidem, p. 75.
35

incentivos culturais e estratégicos daqueles que a utilizam 248. A globalização de tais


discursos é um indício do compartilhamento, através das nações, de sistemas de
representação e da construção de uma linguagem comum - uma cultura249 (cada vez
mais) global da Islamofobia. Acredito que a Islamofobia que se desenvolve no Brasil
se associa tanto a uma identidade local ou nacional, que unifica brasileiros numa ideia
de pertencimento a uma nação em que o Islã - e as tradições, etnias e línguas
vinculadas à religião - não cabe, quanto a uma identidade global, que parece conectar
projetos políticos ao redor do mundo em defesa de uma imaginada civilização
ocidental judaico-cristã. Logo, o muçulmano é percebido como um “outro”, o exterior,
aquele que não compartilha da identidade do grupo e que representa uma ameaça -
percepção que pode unificar um grupo identitário e agregar novos indivíduos a ele 250.

248
TARROW, Sidney. The Language of Contention. Cambridge: Cambridge University Press, 2013. p.
63.
249
HALL, Stuart. Cultura e Representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio : Apicuri, 2016. p. 17-37.
250
PRINCE, Jane. The Psychology of Online Islamophobia. p. 106-114.
36

3. O CASO BRASILEIRO (OU A TRADUÇÃO)

3.1. Trajetórias da Ummah brasileira

A presença muçulmana no Brasil é marcada por descontinuidades históricas, e


seu período inicial é pouco claro. Lideranças religiosas, de acordo com Cristina Maria
de Castro e Elaine Meire Vilela251, e ao menos um pesquisador252 afirmam que a
introdução do Islã no país se deu no século 16, com a chegada de colonizadores
portugueses mouriscos, obrigados a manter sua religião em segredo ou meramente
como parte de sua memória familiar. Não há registros de formação de grupos
muçulmanos nesse momento, apenas no século seguinte, a partir da diáspora
africana253. As primeiras comunidades muçulmanas em território brasileiro eram
formadas pelos malês, nome de origem iorubá coletivamente atribuído a indivíduos
pertencentes a diferentes etnias, forçadamente vindos da África Ocidental e que se
identificavam como seguidores do Islã254. A habilidade de leitura e escrita de muitos
dos que constituíam esse grupo de negros escravizados lhes permitiu uma certa
inserção socioeconômica, já que comumente eram direcionados a atividades
comerciais em que, mesmo sob domínio branco e com dificuldade, conquistavam
salários e se alforriavam255.
Escravos livres, conhecedores do Alcorão, eram vistos pregando a religião do
Profeta na cidade de Salvador [...]. Nestas pregações eles faziam propaganda
contra a missa católica, dizendo que a veneração de santos era o mesmo que
“adorar um pedaço de pau” e opondo seus rosários aos rosários católicos. 256

A cultura letrada dos malês, ou pelo menos de sua elite religiosa, contribuiu
para sua capacidade de organização257. Atuando de forma preponderante em
insurreições no início do século 19, o grupo ficaria mais conhecido pela “Revolta dos

251
CASTRO, Cristina Maria de & VILELA, Elaine Meire. Muçulmanos no Brasil: uma análise
socioeconômica e demográfica a partir do Censo 2010. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 39, n.
1, 2019. p. 171.
252
PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. El Islam en Brasil: elementos para una antropología histórica.
Istor: Revista de Historia Internacional, vol. 45, 2011. p. 3-4.
253
Ibidem, p.3-4.
254
Ibidem, p. 3-4.
255
RIBEIRO, Lidice Meyer Pinto. A implantação e o crescimento do islã no Brasil. Estudos de Religião,
v. 26, n. 43, 2012. p. 109-110.
256
FREYRE, 1980, p. 310-311, apud RIBEIRO, 2012, p. 111.
257
PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. El Islam en Brasil: elementos para una antropología histórica.
p. 5.
37

Malês”, quando tomou, por horas, o controle de Salvador 258, ao fim do Ramadã de
1835259. Os revoltosos sofreram desde castigos físicos e extradição para a África até
punição letal, e sua religião foi duramente perseguida, o que levou à dispersão desses
indivíduos para regiões do Brasil fora da Bahia260. Muitos autores defendem, a
despeito do controle e temor por parte do Estado, a permanência do Islã no Brasil 261,
do “escuro das senzalas” até o sincretismo com o catolicismo e o candomblé 262. As
comunidades muçulmanas declinaram, contudo, devido à forte repressão estatal
contra sua religião e à perda de contato com a África, no final do século 19 263.
Sequencialmente ao fim da fase de origem africana, teve início no Brasil o Islã
de origem árabe. Generalizados sob a alcunha de “turcos”, grupos de sírios, libaneses
e palestinos ancoraram em terras brasileiras a partir de 1860, fugindo de conflitos e
perseguições, bem como na busca por sustento e fortuna264. Dentre esses imigrantes,
15% eram muçulmanos, que não se envolveram com as comunidades malês265, e a
grande maioria era constituída de cristãos (maronitas, melquitas e ortodoxos),
havendo ainda judeus entre eles266. Desamparados pelo estado e sem capital para
investir, os imigrantes se tornaram mascates 267, transportando produtos por “longas
distâncias pelo Brasil adentro”268. Novas levas de imigrantes muçulmanos chegaram
no país com o declínio do Império Otomano (no período entre-guerras), e por volta da
metade do século 20 em diante, devido a conflitos bélicos no Oriente Médio269.
Foi principalmente no século 20, graças em boa medida aos esforços de
imigrantes e governos de países do Oriente Médio, que o Islã se institucionalizou no
Brasil. Foram fundadas sociedades beneficentes, que além de terem sido espaços

258
CASTRO, Cristina Maria de & VILELA, Elaine Meire. Muçulmanos no Brasil: uma análise
socioeconômica e demográfica a partir do Censo 2010. p. 172.
259
RIBEIRO, Lidice Meyer Pinto. A implantação e o crescimento do islã no Brasil. p. 112.
260
CASTRO, Cristina Maria de & VILELA, Elaine Meire. Muçulmanos no Brasil: uma análise
socioeconômica e demográfica a partir do Censo 2010. p. 172.
261
Ibidem, p. 172.
262
RIBEIRO, Lidice Meyer Pinto. A implantação e o crescimento do islã no Brasil. p. 113-117.
263
PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. El Islam en Brasil: elementos para una antropología histórica.
p. 7-9.
264
RIBEIRO, Lidice Meyer Pinto. A implantação e o crescimento do islã no Brasil. p. 118.
265
PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. El Islam en Brasil: elementos para una antropología histórica.
p. 7-8.
266
RIBEIRO, Lidice Meyer Pinto. A implantação e o crescimento do islã no Brasil. p. 118.
267
CASTRO, Cristina Maria de & VILELA, Elaine Meire. Muçulmanos no Brasil: uma análise
socioeconômica e demográfica a partir do Censo 2010. p. 173.
268
RIBEIRO, Lidice Meyer Pinto. A implantação e o crescimento do islã no Brasil. p. 118.
269
CASTRO, Cristina Maria de. Usar ou não hijab no Brasil? Uma análise da religiosidade islâmica em
um contexto minoritário. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 35, n. 2, 2015. p. 367.
38

para a realização das orações diárias e das festas islâmicas, permitiram a socialização
dentro dos costumes das comunidades muçulmanas, bem como os encontros
matrimoniais entre árabes270. Em São Paulo, surgiram, nos anos 1970, centros
voltados à difusão do Islã na sociedade brasileira, com ações menos no sentido de
converter brasileiros de origem não-muçulmana, e mais a fim de recobrar a
consciência religiosa entre descendentes de imigrantes271, uma vez que era
recorrente a perda dos costumes religiosos (em razão da falta de mesquitas e de
líderes religiosos, dos casamentos com brasileiros de origem cristã e da imersão
católica facilitada pelo fato de que muitos imigrantes muçulmanos, agricultores e
comerciantes, nem mesmo sabiam ler e escrever o árabe) 272. No século 20 e 21,
houve ainda a construção de algumas escolas islâmicas em São Paulo e no
Paraná273, e dezenas de mesquitas e mais de uma centena de salas de oração foram
inauguradas em todo o Brasil, com auxílio financeiro da Arábia Saudita, Irã, Líbia e
Kuwait274.
Além de imigrantes e de seus descendentes, o Islã no Brasil é adotado também
por brasileiros que se convertem, denominados dentro da tradição islâmica de
“revertidos”, pois se crê que todos os humanos nascem muçulmanos, e sua conversão
é apenas um retorno a seu estado original275. Para Pinto, há quatro tipos de conversão
ao Islã no Brasil: matrimonial, através do casamento com um(a) muçulmano(a);
afetiva, a partir da admiração despertada pelo contato com muçulmanos em relações
de proximidade; intelectual, fruto de um interesse acadêmico ou de origem midiático
pelo Islã; e ideológica, na qual o Islã ocupa o posto político da esquerda de combate
ao imperialismo ocidental276. Há ainda, segundo Castro, aqueles que convertem-se
como forma de resgate da sua ancestralidade africana277. O Islã vem crescendo nas
periferias e comunidades negras brasileiras, onde foi verificado que atitude do hip-hop

270
PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. El Islam en Brasil: elementos para una antropología histórica.
p. 8.
271
Ibidem, p, 9.
272
RIBEIRO, Lidice Meyer Pinto. A implantação e o crescimento do islã no Brasil. p. 120.
273
CASTRO, Cristina Maria de & VILELA, Elaine Meire. Muçulmanos no Brasil: uma análise
socioeconômica e demográfica a partir do Censo 2010. p. 177.
274
Ibidem, p. 119-120.
275
Ibidem, p. 121.
276
PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. El Islam en Brasil: elementos para una antropología histórica.
p. 13.
277
Ibidem, p. 367.
39

e a identidade negra e periférica são mobilizadas por alguns grupos de muçulmanos,


de modo que hoje, “o rap é o instrumento e a linguagem de divulgação da religião” 278.
As conversões se dão em comunidades muçulmanas que buscam dialogar com
os não muçulmanos e integrar os convertidos 279. Há um grande contingente de
brasileiros convertidos nas mesquitas do Rio de Janeiro (85% em 2009) e de Salvador
(70% em 2011)280. A religião não é proselitista no país, e antes de 2001 (quando as
conversões aumentaram em virtude da incorporação do Islã no imaginário brasileiro,
após os atentados de 11 de setembro e a exibição da telenovela “O Clone”), os poucos
convertidos acreditavam que deveria haver um maior empenho pela divulgação
islâmica, que muitos líderes religiosos vindos de outros países julgavam infrutífera,
dado que o hedonismo e sensualidade que, em sua opinião, marcam a população
brasileira, a distanciava do Islã281.
Em relação às vertentes islâmicas, o Brasil reproduz a proporção mundial,
abrigando uma maioria sunita e uma minoria xiita282. De acordo com Silvia Maria
Montenegro, as comunidades muçulmanas no Brasil se divergem principalmente pela
autodefinição como arabistas, que associam a religião à cultura e identidade étnica
árabe, ou não-arabistas, que, no Rio de Janeiro, por exemplo, visam uma
reinterpretação da língua árabe dentro do Islã, que é conservada mas desatrelada de
seus aspectos étnicos283. Há, além disso, outras formas de distinção:
Sintetizando, nos diferentes estados algumas Sociedades muçulmanas
configuram diferentes comunidades de interpretação do Islã devido a que: 1)
se orientam para linhagens internacionais diferentes, 2) percebem sua
história local de maneira singular e 3) cada uma concebe o «verdadeiro Islã»
à sua maneira. Assim, estamos dizendo que essas comunidades constroem
suas tradições e suas identidades de forma singular, participando da tensão
entre unicidade e fragmentação que permeia e dinamiza o Islã como um
todo.284

3.2. Aspectos demográficos dos muçulmanos no Brasil

278
RIBEIRO, Lidice Meyer Pinto. A implantação e o crescimento do islã no Brasil. p. 127.
279
Ibidem, p. 367-368.
280
RIBEIRO, Lidice Meyer Pinto. A implantação e o crescimento do islã no Brasil. p. 121-122.
281
PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. El Islam en Brasil: elementos para una antropología histórica.
p. 10-11.
282
MONTENEGRO, Silvia Maria. Identidades muçulmanas no Brasil: entre o arabismo e a islamização.
Lusotopie, 2002. p. 63.
283
Ibidem, p. 67-72.
284
Ibidem, p. 66.
40

Os muçulmanos fazem parte de um grupo extremamente minoritário no Brasil.


Seu número total, segundo o Censo Demográfico de 2010, era de 35.166 pessoas, ou
cerca de 0,02% do total de brasileiros285 (comparado ao Censo de 2000, os adeptos
ao Islã cresceram 29,1%286). Os dados oficiais são contestados por instituições
islâmicas, para quem este número giraria em torno de 1.000.000287. De qualquer
forma, a população muçulmana é numericamente pouco expressiva, especialmente
se a compararmos ao maior grupo religioso brasileiro, os católicos, que eram mais de
123 milhões de pessoas em 2010288, ou aos cristãos de uma forma geral, que
somavam quase 90% dos habitantes do Brasil289.
Em 2010, a quase totalidade dos muçulmanos no Brasil (99%, contra 84% dos
não-muçulmanos) viviam na zona urbana, concentrados em algumas regiões 290.
Segundo o Censo daquele ano, 49% deles viviam no Sudeste, 37 % no Sul, 9% no
Centro-Oeste, 3% no Norte e 3% no Nordeste291. Os estados mais habitados por
pessoas que se declararam de confissão religiosa islâmica eram, respectivamente,
São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, e as cidades que mais se
destacaram foram São Paulo (onde viviam 8.276 seguidores do Islã) e Foz do
Iguaçu292. A maior concentração de muçulmanos nesses lugares pode oferecer
“melhores condições de prática da religião”, facilitando a concessão de certos direitos,
oferecendo maiores possibilidades de se encontrar carne halal e fornecendo um
ambiente mais confortável para o uso do hijab293.
Dentre os praticantes da fé islâmica havia uma porcentagem de homens
equivalente a 60%, superior a de não-muçulmanos, que era 49%294. A grande maioria

285
CASTRO, Cristina Maria de & VILELA, Elaine Meire. Muçulmanos no Brasil: uma análise
socioeconômica e demográfica a partir do Censo 2010. p. 178.
286
RIBEIRO, Lidice Meyer Pinto. A implantação e o crescimento do islã no Brasil. p. 108.
287
CASTRO, Cristina Maria de. A construção de identidades muçulmanas no Brasil: um estudo das
comunidades sunitas da cidade de Campinas e do bairro paulistano do Brás. Tese de doutorado
apresentada ao programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do Centro de Educação e Ciências
Humanas da UFSCar, como requisito para obtenção do título de Doutora em Ciências Sociais. 2007.
p. 33-34.
288
CASTRO, Cristina Maria de & VILELA, Elaine Meire. Muçulmanos no Brasil: uma análise
socioeconômica e demográfica a partir do Censo 2010. p. 178.
289
Ibidem, p. 187.
290
Ibidem, p. 180.
291
Ibidem, p. 180.
292
Ibidem, p. 180-181.
293
Ibidem, p. 191.
294
Ibidem, p. 181.
41

dos indivíduos que se definiam como muçulmanos no Brasil consideravam-se brancos


(83%)295. A média etária do grupo acompanhava a dos outros brasileiros (32 anos),

FIGURA 2 - CONCENTRAÇÃO DE MUÇULMANOS EM MUNICÍPIOS


BRASILEIROS

Fonte: René Somain (2012).

mas seu nível educacional era bastante superior ao de não-muçulmanos, bem como
seu rendimento salarial médio, que chegava, somando todos os trabalhos, a 4133
reais, quase 3000 reais a mais que da média do restante da população 296. Castro e
Vilela indicam que o perfil socioeconômico médio dos praticantes do Islã pode se
converter em certos ganhos para muitos do grupo:
acreditamos ser possível afirmar que, em um país profundamente desigual
como o Brasil, um perfil demográfico majoritariamente masculino, branco,
altamente escolarizado e de elevado rendimento confere indubitáveis
vantagens simbólicas e práticas a esse segmento religioso, fazendo com que,
apesar da baixa expressividade numérica, conquiste concessões e suportes
para a prática de sua fé minoritária. Apesar dos casos de islamofobia
reportados pela mídia e por pesquisadores, podemos apontar, a nível estatal,
favorecimentos a essa parcela da população, como a permissão do uso do
véu islâmico na foto de carteira de motorista, em São Paulo e no Paraná, e

295
Ibidem, p. 181.
296
Ibidem, p. 182-185.
42

iniciativas que conferem prestígio e legitimidade, como a comemoração do


dia do povo muçulmano pelos governos municipais de São Paulo e Foz do
Iguaçu, na data de 12 de maio.297

O casamento endogâmico entre muçulmanos cresce a cada Censo, o que


representava 38% do total em 1960 atingiu 89% em 2010 298. A proporção de
imigrantes internacionais, ao contrário, cai a cada Censo, alcançando 30% em 2010,
contra um percentual de 70% de brasileiros (dentre os quais estão descendentes de
estrangeiros muçulmanos)299. Pouco mais da metade dos imigrantes que seguiam o
Islã no Brasil eram libaneses, que somados a 8% de jordanianos, 4% de sírios e
tantas outras nacionalidades, em menores proporções, totalizavam 10.597
muçulmanos de origem estrangeira em 2010 300.
É possível que esses números tenham se alterado desde 2010, já que na
década seguinte o Brasil recebeu grupos de imigrantes e refugiados, em pequenas
quantidades, mas não tanto comparado ao total de imigrantes muçulmanos. De 2010
a 2018, o Comitê Nacional para Refugiados (Conare), órgão do governo nacional,
registrou os seguintes números de solicitações de refúgio no Brasil, de indivíduos
vindos de ao menos três países de maioria muçulmana: Senegal com 9140
solicitantes, Síria com 5093 e Bangladesh com 4915. Desses, há registros de 3400
casos indeferidos para sírios e 269 para senegaleses (número referente ao período
2010-2015, para os outros anos os dados não são públicos, portanto pouco
significativos ou inexistentes) e, para bengaleses, não há informações sobre
indeferimentos301.

3.3. Islamofobia no Brasil

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 garante no artigo 5°, inciso VI, a


inviolabilidade da liberdade religiosa302. Isso não impede, contudo, que muçulmanos
e principalmente muçulmanas corram o risco de ser alvo de violência física e verbal

297
Ibidem, p. 191.
298
Ibidem, p. 187.
299
Ibidem, p. 179.
300
Ibidem, p, 179.
301
Os números foram somados a partir de dados presentes em quatro edições do relatório “Refúgio
em Números”, disponibilizados pela Conare. Os relatórios podem ser encontrados em:
https://www.justica.gov.br/seus-direitos/refugio/refugio-em-numeros. Acesso em 15/11/2019.
302
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado
Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2016. p. 13.
43

(ou ainda virtual), nem que seus templos possam ser depredados no país 303. Se no
capítulo anterior foi abordado como a hostilidade contra muçulmanos pode se
manifestar enquanto uma forma de racismo, bem como foi descrito, no capítulo que
se lê, o perfil dos muçulmanos brasileiros como majoritariamente branco (e de alto
rendimento), é necessário que se pontue que o preconceito enfrentado pelo grupo
nem sempre atinge os níveis daquele experienciado por praticantes de religiões como
as afro-brasileiras. Shohat e Alsultany afirmam que, diferentemente da Europa, na
América Latina, judeus e muçulmanos não são o “outro” ameaçador primário, posição
ocupada historicamente por indígenas e negros304.
Segundo levantamento do Centro de Promoção da Liberdade Religiosa &
Direitos Humanos (CEPLIR), disponibilizado pelo Centro de Articulação de
Populações Marginalizadas (CEAP), no primeiro semestre de 2015, 71,5% das
denúncias de intolerância religiosa no estado do Rio de Janeiro relataram atos contra
seguidores de algum tipo de fé afro-brasileira305. Denúncias de agressões contra
muçulmanas e muçulmanos só aparecem no relatório da CEPLIR no segundo
semestre do mesmo ano, quando representaram 32% dos casos, superando as
denúncias realizadas por candomblecistas306. Esse aumento em 2015 “pode estar
associado à ocorrência de fatos internacionais ligados às ações do Estado Islâmico,
o que no Brasil acabou por resultar em práticas e ações contra a comunidade
islâmica”307. Luciana Soares Neres Rosa de Carvalho, em sua monografia sobre
discurso de ódio e Islamofobia no Brasil, relatou, a partir de entrevistas, picos de
Islamofobia subsequentes à exposição midiática de atentados terroristas308.
Desde o fim da década de 1960, produções de ficção e de telejornalismo
nacionais vem moldando uma memória visual sobre o Islã e os muçulmanos no
imaginário brasileiro309. Símbolos e ideias sobre a cultura islâmica se disseminaram
no Brasil de forma mais contundente após a exibição da telenovela “O Clone”, no

303
SANTOS, Babalawô Ivanir dos… [et al.]. Intolerância religiosa no Brasil: relatório e balanço. Rio de
Janeiro: Klínē Editora, 2016. p. 27.
304
SHOHAT, Ella & ALSULTANY, Evelyn. The Cultural Politics of “the Middle East” in the Americas:
An Introduction. p. 9.
305
SANTOS, Babalawô Ivanir dos… [et al.]. Intolerância religiosa no Brasil: relatório e balanço. p. 24.
306
Ibidem, p. 24-25.
307
Ibidem, p. 25.
308
CARVALHO, Luciana. Discurso do ódio e Islamofobia: quando a liberdade de expressão gera
opressão. Monografia apresentada à Faculdade de Direito da UFBA, como requisito para obtenção do
grau de bacharela em Direito, 2017. p. 105-106.
309
Ibidem, p. 239-241.
44

horário nobre da Rede Globo310. Exibida por volta de duas semanas após os atentados
de 11 de setembro de 2001, a novela retirou do telejornalismo o monopólio de
representações sobre os muçulmanos e sobre sua religião, trazendo, por uma
“dimensão didático pedagógica”, informações sobre a culinária e os costumes árabes,
aproximando a tradição islâmica da tradição cristã e abordando diferentes
posicionamentos dentro da comunidade muçulmana 311. Ainda que tenha,
positivamente, humanizado os muçulmanos, a produção ficcional, levada a mais 90
países, repetiu alguns estereótipos e clichês orientalistas, transmitindo noções
equivocadas sobre poligamia, haréns, véu e dança do ventre, por exemplo 312.
A cobertura jornalística sobre o Islã, por sua vez, é permeada por
“generalizações, simplificações e a ausência de contextualização”313. A partir da
análise da Veja, de 2001 a 2005, a pesquisadora Ana Virginia Borges Queiroz
identificou uma série de termos preconceituosos ou reificantes pelos quais a revista
se referia aos muçulmanos: “‘barbudos’, ‘fanáticos islâmicos ensandecidos’,
‘sociedades dos turbantes’, ‘universo de turbantes’, ‘loucos de Alá’ e ‘fanático
muçulmano’”314. Montenegro afirma que a mídia impressa brasileira ecoa a forma
como se discute o Islã no plano internacional, através da dicotomia Islã/Ocidente e
das outras oposições que as ideias, supostamente contrárias, evocam 315. A autora
conta que, como resposta, líderes e membros da Sociedade Beneficente de
Muçulmanos do Rio de Janeiro elaboraram um texto com a finalidade de corrigir
equívocos difundidos sobre sua religião316. O texto rebatia a ideia de que muçulmanos
são “terroristas, violentos e extremistas”, a noção de Jihad enquanto “guerra santa”,
as concepções recorrentes sobre poligamia e opressão de mulheres e a existência de
um “Islã árabe, negro ou tropical”, indicando que “o islamismo pode ser professado
por pessoas das mais variadas origens”317.

310
Ibidem, p. 239.
311
Ibidem, p. 239-246.
312
SHOHAT, Ella & ALSULTANY, Evelyn. The Cultural Politics of “the Middle East” in the Americas:
An Introduction. p. 24.
313
GOMES, Ingrid. A cobertura jornalística do Islamismo – narrativas marginalizadas e moralizantes.
Intercom – RBCC, São Paulo, v.37, n.1, janeiro-junho de 2014. p. 73.
314
QUEIROZ, 2005, p. 4 apud GOMES, 2014, p. 79.
315
MONTENEGRO, Sílvia Maria. Discursos e contradiscursos: o olhar da mídia sobre o islã no Brasil.
Mana, v. 8, n. 1, 2002. p. 72-73.
316
Ibidem, p. 77.
317
Ibidem, p. 77-84.
45

Além das agressões efetuadas contra muçulmanas e muçulmanos no Brasil,


quando essas pessoas, principalmente as mulheres, escutam piadas e xingamentos,
têm sua vestimenta islâmica retirada à força ou são apedrejadas 318, há outras
manifestações da Islamofobia no país. Carvalho indica a ocorrência de ameaças,
constrangimentos e discriminação sofrida especialmente pelas muçulmanas em
ambientes públicos e no mercado de trabalho, além de ações persecutórias realizadas
por agentes da Segurança Pública brasileira contra indivíduos identificados como
adeptos do Islã319. Há ainda indícios de que esse tipo de preconceito e a mobilização
do medo que o envolve começa a adentrar a política do país: em 2017, um grupo
cristão se manifestou na Avenida Paulista, em São Paulo, contra a “islamização da
sociedade brasileira”, contando com a presença de Levy Fidelix, ex-candidato a
presidente e líder do Partido Renovador Trabalhista Nacional320, e segundo Monica
Grin, Michel Gherman e Leonel Caraciki, grupos de extrema-direita brasileiros
(incluindo diversos setores evangélicos) se aproximam cada vez mais do Estado de
Israel, em defesa da civilização ocidental e em oposição a um pretenso avanço do
Islã321.

318
CASTRO, Cristina Maria de. Usar ou não hijab no Brasil? Uma análise da religiosidade islâmica em
um contexto minoritário. p. 368-372.
319
CARVALHO, Luciana. Discurso do ódio e Islamofobia: quando a liberdade de expressão gera
opressão. p. 88-98.
320
RIBEIRO, Gustavo. Marcha Cristã tem pouco de religião e muito
de intervenção militar. Disponível em: https://epoca.globo.com/sociedade/noticia/2017/10/marcha-
crista-tem-pouco-de-religiao-e-muito-de-intervencao-militar.html. Acesso em 01/09/2019.
321
GRIN, Monica; GHERMAN, Michel & CARACIKI, Leonel. Beyond Jordan River’s Waters:
Evangelicals, Jews, and the Political Context in Contemporary Brazil. International Journal of Latin
American Religions, Suiça, 2019. p. 6.
46

4. O CASO BELO-HORIZONTINO (OU A APRESENTAÇÃO)

4.1. Breve introdução sobre a Ummah em Minas Gerais e em Belo


Horizonte

A comunidade muçulmana de Minas Gerais é pequena e está dispersa em


diferentes regiões do estado. Com 1008 muçulmanos em 2010, Minas Gerais era o 5°
estado brasileiro com maior número de praticantes da religião islâmica 322. As maiores
concentrações estavam em Belo Horizonte, lar de 224 muçulmanos, Uberlândia, com
112, Araçuaí, com 63 e Juiz de Fora, com 62 323.

FIGURA 3 - CONCENTRAÇÃO DE MUÇULMANOS EM MUNICÍPIOS MINEIROS

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2011).

322
IBGE, Censo Demográfico 2010. Ranking de populações muçulmanas nos estados brasileiros.
Disponível em:
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/pesquisa/23/22107?detalhes=true&indicador=22451&ano=2010&
tipo=ranking. Acesso em 17/11/2019.
323
IBGE, Censo Demográfico 2010. Ranking de populações muçulmanas nos municípios mineiros.
Disponível em:
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/pesquisa/23/22107?detalhes=true&indicador=22451&ano=2010&
tipo=ranking&localidade1=310620. Acesso em 17/11/2019.
47

A capital mineira era, em 2010, o 23° município brasileiro em número total de


seguidores do Islã324, e sedia uma das duas mesquitas do estado (a outra se localiza
em Juiz de Fora325). A construção do Centro Islâmico de Minas Gerais, em Belo
Horizonte, foi iniciada em 1989 e concluída em 1992 326. De acordo com Edmar Avelar
de Sena, anteriormente, houve a Sociedade Beneficente Muçulmana de Minas Gerais,
fundada em 1962, e uma sala sobre uma loja de departamentos pertencente a uma
família síria, onde se realizavam as orações de sexta-feira327. Em 2007, foi aberta uma
sala de orações na cidade (segundo Zakia Ismail Hachem, a mussallah, como era
chamada, se localizava na rua São Paulo328, mesma rua indicada por Sena para a
sala de orações anterior à construção da mesquita), mas conforme um dos
frequentadores da mesquita com quem conversei, ela foi fechada, e restou apenas a
mesquita, localizada no bairro Mangabeiras, próxima à Praça do Papa, zona nobre de
Belo Horizonte.

4.2. “No Afeganistão é cheio de gente do Afeganistão, e aqui tem outras


pessoas”

13 de abril de 2019, sexta-feira, dia de Jumu’ah. Fazia quase cinco meses que
eu não visitava a mesquita, e fui recebido com um sorriso. “Al-hamdu lil-lah!”329, soltou
um brasileiro ao me ver. Me sentei numa das cadeiras destinadas aos visitantes, atrás
do local onde os homens fazem suas orações. Dali escutava primeiro o Adhan, o
chamado para as orações, depois a Khutba, ou sermão de sexta-feira (feito também
em datas especiais), e acompanhava os outros ritos. Na mesquita de Belo Horizonte,
os sermões do sheikh eram sempre proferidos primeiro em árabe e depois em
português. Acompanhei apenas um dia de orações conduzido por outro membro da
mesquita, um indiano, que realizou o sermão apenas em português. Lá, as mulheres

324
Ibidem.
325
SENA, Edmar Avelar de. Islã e modernidade: um estudo sobre a comunidade muçulmana de Belo
Horizonte. Dissertação apresentada ao Instituto de Ciências Humanas da UFJF, como requisito para
obtenção do grau de mestre em Ciência da Religião, 2007. p. 42.
326
Ibidem, p. 51.
327
Ibidem, p. 51.
328
HACHEM, Zakia Ismail. Um olhar sobre a Ummah belo-horizontina. Monografia apresentada à
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, como requisito para obtenção do grau de
bacharela em Ciências Sociais, 2008. p. 64.
329
Do árabe, “graças a Deus”. Compõe o vocabulário, tanto de brasileiros quanto de estrangeiros não-
árabes (além dos próprios árabes, é claro) com quem tive contato na mesquita de Belo Horizonte, um
conjunto de palavras e frases na língua árabe.
48

rezam num mezanino, acima dos homens, os únicos que eu conseguia ver durante as
orações. Sentam-se no chão para escutar os ensinamentos, “como no tempo do
profeta Muhammad”, recordou um revertido certa vez, e realizam os ritos lado a lado,
em fileiras demarcadas por linhas no chão, para que fiquem voltados em direção à
Caaba, em Meca. O sheikh330 iniciou o sermão falando sobre a importância do jejum
no Ramadã, período em que as orações de cada um são lacradas, como em
envelopes, e levadas aos céus. Indicou à comunidade que começasse a jejuar desde
já, para que se preparasse e se acostumasse quando o mês do Ramadã chegasse.
Pediu também que os fiéis orassem pelos irmãos 331 da China e da África, e narrou
algumas histórias da época do profeta. Após as orações em congregação, passei ao
lado do jardim, que fica no centro da mesquita, e fui até a parte da frente, onde os
homens geralmente conversam - em português, urdu, árabe, francês, inglês e,
provavelmente, muitas outras línguas faladas no continente africano e asiático que
não conheço.
O idioma utilizado depende do(s) irmão(s) ou da(s) irmã(s) com quem se
encontra; quando não compartilham outra língua, geralmente os diálogos se dão em
português. Um homem de uns 30 e poucos anos, com quem já tinha falado
rapidamente uma vez, se aproximou e me ofereceu um prato do arroz picante que
estava sendo servido, que felizmente eu aceitei, e então começamos a conversar. Na
outra ocasião, ele havia se apresentado: era afegão, morava em Belo Horizonte há
quatro meses, tinha vivido em São Paulo, estava há dois anos no Brasil e não sentia
falta da comida de seu país (que disse ser gordurosa e muito boa), porque sua mulher,
que também era afegã, cozinhava em casa. Perguntei a ele se a mesquita era muito
diferente das que ele tinha visto de onde ele vinha; me respondeu que era tudo igual,
só que no Afeganistão era cheio de afegãos, enquanto aqui havia outras pessoas.
Não me lembro o nome, mas o homem me disse a cidade de onde vinha, e perguntei
se lá estava tranquilo, ou se havia algum problema com o Talibã. Ele afirmou que era
tranquilo, sua cidade tinha mais ou menos dois milhões de habitantes e os ataques do
Talibã aconteciam mais nas áreas rurais.

330
Figura de liderança, no caso, o líder religioso da mesquita de Belo Horizonte.
331
Forma como muitos muçulmanos que conheci na mesquita se referiam entre si, e às vezes, se
referiam a mim.
49

A representação que eu tinha do seu local de origem, habitado por quase


quarenta milhões de pessoas332, era ainda orientalizada. Digo ainda, pois não faltaram
leituras sobre os perigos da reificação no decorrer da minha graduação, nem sobre as
minúcias do Orientalismo ao longo da minha pesquisa. Mas há coisas de difícil
mudança. A concepção de um “outro” em nossa mente é culturalmente moldada e
politicamente mantida. É o resultado de anos de histórias que nos foram contadas e
que passamos para frente. Há certas imagens, símbolos, medos e fantasias que uma
palavra como Afeganistão pode evocar em um brasileiro que já ouviu falar no país.
Aquele que não é capaz de imaginar nada talvez procure pelo termo num pesquisador
de imagens de alguma empresa estadunidense como Google, e dificilmente
encontrará uma foto que não mostre um soldado, uma arma, explosões e destroços
(quem sabe uns mapas).
Não digo que a nação afegã, ou melhor, os afegãos (e não uma imagem
deslocada e desabitada de um país) não enfrentam seus sérios e tristes problemas.
Experienciaram, em 40 anos, a invasão soviética, a guerra civil, a vitória do Talibã e a
ocupação estadunidense333. Enquanto isso, no Brasil, que não costuma se pensar um
país em guerra, mata-se mais adolescentes do que no Iraque e na Síria334. A
naturalização do genocídio desses jovens, em sua maioria negros e pobres, e de um
processo de militarização, é justificada pelas representações que se faz sobre esses
“outros” internos, não muito distantes daquelas articuladas noutras partes do mundo
com a finalidade de retirar direitos e vidas. Os subalternizados de dentro são
estereotipados e inferiorizados por pessoas que, vistas de fora e identificadas como
brasileiras, podem passar por processos semelhantes. Quantos nos representam
apenas pelo viés da violência, ou por tantos outros reducionismos? Quantos de nós
são sujeitos a ser o “outro” de alguém? Queremos ser representados ou nos
apresentar?
Há mais além da guerra e da violência. Há pessoas e vida, aqui e nos países
pensados, unicamente, enquanto eternos campos de batalha. São as generalizações,
projeções e farsas que teimamos em conservar, diminuindo uns enquanto elevamos

332
ONU. World Population Prospects 2019: Data Booklet. 2019. p. 17.
333
BARFIELD, Thomas. Afghanistan in the Twentieth Century: State and Society in Conflict. In:
______ . Afghanistan: a cultural and political history. Princeton: Princeton University Press, 2010. p.
170-172.
334
UNICEF. Homicídios de crianças e adolescentes. Disponível em:
https://www.unicef.org/brazil/homicidios-de-criancas-e-adolescentes. Acesso em 20/11/2019.
50

outros, que nos mantém distantes. Contudo, mais que frequentemente, há uma
linguagem em comum que permite que nos comuniquemos. Decidi finalmente me
posicionar de forma mais concreta dentro do texto, depois de uma longa revisão e
análise da teoria, pois como afirmei, “as leituras” têm seus limites. Antes de começar
esta pesquisa sobre a Islamofobia no contexto belo-horizontino, reiniciando as visitas,
frequentei o Centro Islâmico de Minas Gerais por aproximadamente seis meses, como
bolsista de uma iniciação científica que se iniciou em fevereiro de 2018. Devo
confessar que estava no mínimo receoso a primeira vez que entrei ali. Esperava
encontrar um grupo sério, fechado e apenas conservador.
Até que se deu o encontro, que acredito, desde que ambas as partes estejam
abertas, tem o potencial de destruir muitas das fronteiras, das representações irreais,
dos preconceitos. Me deparei com uma comunidade diversa, que me recebeu de
forma educada, prestativa, e às vezes até calorosa. A iniciação científica, sob
orientação (e companhia na saída da mesquita e no caminho de volta para casa) da
professora Cristina Maria de Castro, visava identificar as formas de adaptação da
comunidade a alguns pontos da normatividade islâmica. Um dia, sentado após as
orações, comendo e conversando com alguns brasileiros revertidos que frequentam o
centro islâmico, me falaram sobre as dificuldades de se revelar a religião para os
colegas da universidade, e em um caso específico, sobre ter que mantê-la em segredo
frente à própria família. A partir de então, quis entender como se manifestava essa
forma específica de preconceito (pouco discutida no Brasil) na cidade de Belo
Horizonte, especialmente entre os homens, que não são o alvo primário da
Islamofobia (a Islamofobia atinge principalmente as mulheres, uma vez que são mais
facilmente identificadas, pelo uso do véu, por sua religião, dentre outros motivos que
abordarei mais à frente).
Toda palavra tem sua origem, todo texto tem seu enunciador, e deixo claro
aqui a minha voz. Me apresento. Um não-muçulmano que depois de muitos encontros,
muitas conversas, muito ouvir, desnaturalizou certos estereótipos, entendendo um
pouco mais sobre a humanidade em comum que permeia as diferenças. Mas não é
sobre essa voz que se trata esta pesquisa, não é ela que pode romper com
intolerâncias. Dado o tema infeliz - o preconceito - me propus a escrever um texto que
não se limitasse a ser um relatório sobre agressões. Elas são importantes, revelam a
gravidade e complexidade de questões tantas vezes tornadas invisíveis, mas não
cobrem todas as vivências de uma pessoa. Espero conseguir ir além, e falar sobre as
51

possibilidades de encontro que se dão a partir do respeito e da busca por uma


linguagem compartilhada baseada não em antagonismos, mas na pluralidade.
Proponho, agora, um encontro com a voz do “outro”.

4.3. Perspectivas e vivências de homens muçulmanos

4.3.1. Shahada

Você vai levantar a mão e falar: Ash hadu an la ilaha illal lah wa ashhadu anna
Muhammadan Rasulullah - não tem outra divindade além de Deus, o Deus é
único, e que o profeta Muhammad é o seu mensageiro na Terra. E você que
falou, ninguém te obrigou. Ele te falou, ele te deu a definição, te falou, “isso e
isso e isso e isso, você concorda com isso?”, “sim”, “então repita pra todo
mundo escutar”. Quando você repetiu, você escutou, então você leva. O dia
que você não vai querer ser muçulmano, é você e Deus. Ninguém te obrigou.
Você pode não continuar a ser muçulmano, ou continuar sendo muçulmano,
só que se você não quis ser muçulmano, cê não vai falar que Malick335 que
falou que é pra eu não ser muçulmano. Por que a religião é de todo mundo!
A religião é de todo mundo! Allah tá aqui pra todo mundo. Ele não tá aqui pra
um muçulmano, pra um católico, ele tá aqui pra todas as criaturas. Nós somos
criaturas de Deus na Terra. Portanto as religiões, todas, ele fala que as
religiões todas são iguais. Por isso que sempre, o imam, quando ele faz o
sermão lá, ele fala “o muçulmano que não acredita em Jesus, em Moisés e
os outros como Abraão, Ismael, etc, você não é muçulmano”. Porque as
outras religiões… o profeta Muhammad, ele fez só a continuação do trabalho
de Moisés e de Jesus. Ele fez a continuação, ele não inventou outra coisa. A
Torá veio, depois veio a Bíblia, depois veio o Alcorão. Então o Alcorão é
também a continuidade do trabalho das outras religiões. Um bom muçulmano
tem que acreditar em Jesus, e acreditar em Moisés.

Começo a tratar sobre as reversões com a fala de um senegalês que acredito


condensar alguns pontos sobre a shahada, ou o testemunho de fé que inicia
oficialmente a vida religiosa daquele que não nasceu em uma família muçulmana 336,
e também sobre algumas outras coisas. O primeiro ponto é que, diferente do que pode
ocorrer em contextos de religião hegemônica337, em todos os casos que acompanhei
ou ouvi, ser muçulmano era uma escolha da pessoa. Um brasileiro revertido me disse,
depois de perguntá-lo como as pessoas no Brasil chegavam até o Islã, que o caminho

335
Optei por utilizar um nome fictício para preservar a identificação do entrevistado.
336
Pinto afirma que a shahada, além de pronunciada por aqueles que querem se converter à religião,
“é sussurrada no ouvido dos recém-nascidos nos países da África do Norte e do Oriente Médio” (PINTO,
2010, p. 54).
337
“[I]ndivíduos nascidos em posições estruturais e ambientes sociais particulares podem não ter
necessariamente uma escolha irrestrita de sua afiliação religiosa.” (tradução nossa).
“[I]ndividuals born into particular structural positions and social environments might not necessarily have
completely unfettered choice in their religious affiliation.” (MOODOD, 2005; MEER, 2008 apud TYRER,
2013, p. 50).
52

era pelo coração da própria pessoa. No caso dos estrangeiros, manter a religião
tampouco me parece resultado de algum tipo de coerção, já que a comunidade
muçulmana de Belo Horizonte é muito pequena e não se fixa num lugar específico 338.
Os caminhos que levaram ao Islã os brasileiros entrevistados e outros com
quem conversei na mesquita são diversos, mas muitos chegaram a partir da pesquisa
individual. Um estudante de Filosofia disse que, na faculdade, sempre buscou
aprender sobre tudo, e ouvia muito falar sobre o Islã de maneira pejorativa; decidiu,
então, fazer sua própria pesquisa, e se encantou pela religião. Outro, policial militar,
era católico praticante mas se sentia muito incompleto, “tinha alguma coisa que não
encaixava”, até que, após pesquisar, encontrou a mesquita, e desde então, por 10
anos, vem professando sua fé. O encontro com a religião se deu como um “click”,
segundo um dos revertidos, quando, passando por uma crise e em busca de
respostas, encontrou o Alcorão em uma livraria, após ler vários outros livros. Um dos
entrevistados disse que não tinha religião anteriormente, que achava besteira, até que
leu sobre o Islã, tentando desqualificá-lo como havia feito com outras religiões, mas
acabou acreditando naquilo que lia. O relato de um gaúcho de 46 anos ilustra esse
tipo de busca:
Eu sou natural de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, então foi lá todo esse
processo, eu tô morando há quatro, cinco anos aqui, no máximo. Foi uma
busca, assim, de um bom tempo, que se não me engano começou com 18,
17 e foi acabar com 24 anos. Fui nessa busca, onde é que tinha o Islã etc,
consegui comprar uma tradução do Alcorão, num sebo e tal. Li etc, e só lá
pelos 24, 25 anos encontrei alguém que me deu um ponto de referência lá
em Porto Alegre, na mesquita de Porto Alegre. Aí foi mais um processo de
um mês ainda, meu, meu processo, de um mês, de observar as pessoas
rezando etc, vamos dizer. Eu tinha uma tradução do Alcorão então eu li, eu
peguei e tá… o que é escrito, vamo ver se é apresentado aqui. Foi, foi um
processo de um mês, um mês depois eu entrei no Islã.

Segundo o sheikh, muitos brasileiros passaram a visitar a mesquita por


curiosidade após o 11 de setembro, e muitos se revertiam. É o caso de um dos
entrevistados, que nasceu em uma família católica e se reverteu após os atentados,
aos 15 anos. Revertido há sete anos, um brasileiro me disse que seu processo se deu
na Irlanda. Acompanhei também a shahada de um homem que viajou para países do
Oriente Médio, e se disse interessado principalmente pela moral e ética do Islã. Havia

338
Nove dos quatorze entrevistados vivem na cidade de Belo Horizonte, e alguns me disseram seus
bairros: São João Batista, Nova Suíça, Concórdia, Floramar, Santo Antônio e Prado. Quatro vivem na
zona metropolitana: Vespasiano, Santa Luzia, Lagoa Santa e “Betim… ou Ibirité, tanto faz”. Um disse
que alternava entre Belo Horizonte e Bambuí, no oeste mineiro. Um senegalês, que não entrevistei,
mora no bairro São Francisco, em Belo Horizonte. Conversei uma vez com um sírio que de vez em
quando vai à mesquita e mora em Ouro Preto.
53

ainda um brasileiro que queria fazer a reversão e acompanhava os cultos “de longe”,
e que chegara até ali depois de sonhar que estava dentro de uma mesquita. Outro
brasileiro, de 60 anos, me explicou que não chegou exatamente a se reverter, já que
a religião islâmica sempre esteve presente em sua vida, mas de uma forma sincrética:
Meus avós eram sírios, né. Eles vieram da Síria no século 19. Depois foi
casando, como foram pro interior, como os típicos mascates que era muito a
tradição sírio-libanesa… Depois eles se estabeleceram como proprietários
rurais na região de Bambuí. [...] Eu sempre tive essa relação com eles, né.
Mas acontece que nessa época 70% da população morava no meio rural,
houve muitos casamentos com pessoas... principalmente católicas. Tinha um
grupo também de pessoas judaicas na cidade. Então ficou uma mistura de
certa forma, de certa forma minha família é misturada de muçulmanos com
católicos e judeus. É bem mista.

O segundo ponto que gostaria de explorar a respeito da shahada no Centro


Islâmico de Minas Gerais, e que se entende para outras esferas, é um diálogo com
elementos de outras religiões, em especial o Cristianismo. Em todas as shahadas que
acompanhei, o sheikh pedia que o novo muçulmano repetisse, além do tradicional
testemunho de fé (a declaração aos presentes de que não há divindade além de Deus
e que Muhammad é seu profeta), a crença de que Jesus é servo e mensageiro de
Deus, ideia contida em um hadith339. Um brasileiro comentou sua relação e a relação
do Islã com outras religiões:
de uma maneira geral, eu não vejo na mídia brasileira uma… um anti… uma
Islamofobia, por exemplo. Uma cultura Islamofóbica, contra o Islã. Eu vejo
isso muitas vezes, talvez em alguns grupos neopentecostais, por exemplo,
eles não gostam do Islã… São muito ligados a Israel, aí tem aquela velha
questão do conflito Israel-Palestino, né? Mas assim, nós já fizemos muitos
encontros intra-religiosos com católicos, com protestantes, envolvendo
batistas. Mas os neopentecostais, eles nunca aceitaram um convite pra
participar. Mas aí é um problema deles, né? Eles não querem participar e tal.
A igreja adventista, já fiz palestra na igreja adventista sobre o Islã, já fiz
palestra na igreja São Tomás de Aquino, que é a formação de padres da PUC
[...] dei uma amplitude, qual a relação, inclusive o vínculo, né, do Cristianismo
com o Islamismo, que eles, todos eles, vêm de uma fonte em comum, que é
a fonte abraâmica, por exemplo, vem de Abraão, tanto a Judaísmo quanto o
Cristianismo e o Islamismo. São chamadas três religiões abraâmicas. Na
realidade, por exemplo, a missão de Jesus Cristo, nós temos uma grande
referência, Jesus, como profeta [...] Não se fala de Maria nos Evangelhos, por
exemplo. E no Alcorão tem uma surata inteira só sobre Maria… como foi o
nascimento de Jesus, fala sobre João Batista, fala sobre todos os profetas…
Moisés, Noé, Isaac, Jacó, começa com Adão, Davi, Zacarias, que são
profetas em comum com, não só a Torá, quer dizer, o Antigo Testamento,
mas com os Evangelhos também… o Injil, né. [...] E em relação a esses
profetas e mensageiros, a gente diz que todos são muçulmanos. Todos
vieram para um povo específico, mas trazendo o que? A ideia, a fé
fundamental [...] Então ‘cê tem hoje no mundo muitos cristãos que ‘tão
abraçando o Islamismo pela ligação que o Islã tem com o próprio Jesus Cristo
e com a própria mãe de Jesus Cristo, Maria.

339
RIYAD AS-SALIHIN. Livro 1, Hadith 412. Diponível em: https://sunnah.com/riyadussaliheen/1/412.
Acesso em 21/11/2019.
54

Os profetas anteriores a Muhammad eram muito citados nos sermões que ouvi,
e um dos livros que vi sendo dados para visitantes na mesquita tinha como título “Meu
Grande Amor Por Jesus Me Conduziu Ao Islã”. Castro e Vilela afirmam que “[a] alusão
ao cristianismo, principalmente em sua versão católica, é constante por parte dos
muçulmanos no Brasil, ao longo de toda sua história.”340

4.3.2. Nacionalidades

Além dos brasileiros, que de acordo com um senegalês, são metade da


comunidade, há muçulmanos de diversos países em Belo Horizonte. Ouvi a
diversidade de etnias e nacionalidades do grupo sendo realçada pelo sheikh em
diferentes momentos. Dentre os 14 homens que entrevistei (com idades que variam
entre 32, a mais recorrente, até 75 anos), 7 são brasileiros, 2 são sírios, 2 são egípcios,
1 é tanzaniano, 1 é senegalês e 1 é indiano. Um deles me falou sobre pessoas de
outras nacionalidades que compõem a comunidade, a começar por um libanês e seu
irmão, que construiu a mesquita:
Por isso que as pessoas acham que a gente tem dinheiro... não. Porque ele
tinha muita, muita, muita, muita coisa boa aqui, aí ele construiu isso e deu
pros muçulmanos. E tem muitos libaneses… Agora tem mais sírios. Tem
muito, muito, muitos sírios. Mas os sírios por causa da guerra da Síria, que o
Brasil aceitou eles como refugiados. E tem egípcios também, tem muito
egípcio lá também, mais ou menos, também, mas tem mais sírio, de todos
eles. Hoje tem mais sírios. Tem egípcios, sírios, libaneses, paquistaneses, e
africanos. Africano também tem bastante. [...] a maioria é bem jovem porque
eles também migraram, né? Eles migraram pra cá, por questão de trabalho,
pra procurar trabalho, por isso que são mais novos. São bem mais novos, se
você vir lá na mesquita, os mais novos são africanos.

O mesmo entrevistado ressaltou que o grupo de paquistaneses é muito grande,


e que há ainda iranianos e afegãos. Dentre os africanos, ele listou, além de Gâmbia,
outros países de onde vêm os migrantes muçulmanos de Belo Horizonte, revelando
ainda como a situação de trabalho pode interferir na prática religiosa (algo melhor
explorado no próximo subtópico):
Tem Senegal, tem bastante senegaleses. Tem Tanzânia, tem Gana, Guiné,
tem Benin, tem Costa do Marfim… É, acho que é isso. [...] Muito diverso, só
que alguns, eu não conheço todos, sabe? Mas eu sei, a gente se
cumprimenta e descobre que eles são de tal país. Mas às vezes, você não vê
eles muito lá, também, por causa do trabalho, entendeu? Porque eu tenho
essa possibilidade de ir lá toda sexta-feira. [...] Mas às vezes eles querem ir,
pra rezar, mas não têm como. Porque o patrão não entende que que é… “ah,
que isso, te liberar no horário do trabalho pra você ficar lá duas horas,

340
CASTRO, Cristina Maria de & VILELA, Elaine Meire. Muçulmanos no Brasil: uma análise
socioeconômica e demográfica a partir do Censo 2010. p. 171.
55

perdendo duas horas, é muita coisa pra mim”. Entende? Não são liberados.
De vez em quando, não sei como acontece, se eles pedem os patrões uma
vez por mês se eles poderiam liberar eles pra ir, aí de vez em quando eles
vão. Mas senão é muito difícil eles serem liberados. E outro fator que faz eles
não irem muito, porque eles são comerciantes, né? E vão muito nas feiras,
entendeu? Tem feiras que a prefeitura organiza, às vezes, nas cidadezinhas
assim, então eles vão. Aí tem, não sei se é um ônibus, alguma coisa que eles
disponibilizam, que a prefeitura disponibiliza pra eles, eles dão uma
contribuição. Aí eles levam eles pras zonas rurais, sabe? Eles vão lá fazer
feiras e voltam. Às vezes eles ficam lá uma semana. Por isso que é difícil
encontrar eles. Mas quando eles ‘tão livres, eles têm um tempinho, ‘cê vê que
é tudo cheio.

4.3.3. Trabalho

Em quase todas as sextas-feiras que fui à mesquita, o número de homens que


frequentavam o lugar era algo entre 30 e 40. Muitos iam com bastante frequência,
mas quase sempre eu via um ou outro que nunca havia visto. De acordo com um dos
entrevistados, os frequentadores são em torno de 70 pessoas, e outro me disse que
acreditava que a comunidade muçulmana de Belo Horizonte totaliza quase 400
pessoas, e que muitos dos que não podem ir às sextas-feiras vão à mesquita em dias
de festas islâmicas, como a quebra do jejum do Ramadã, ou em feriados em que o
templo está aberto (quando fica lotado, segundo ele). Conseguir liberação do trabalho,
portanto, é muito importante para a prática da religião, mas está longe de ser uma
realidade de todos. A localização da mesquita também dificulta a participação na
oração em congregação, segundo um dos entrevistados, pois o bairro da mesquita é
afastado do centro da cidade e muitos têm que pegar mais de um ônibus para chegar.
As orações de sexta-feira começam por volta de 13:20, e há aqueles que não
conseguem chegar a tempo, ainda, por causa do trânsito nesse horário.
Cada um dos entrevistados possui uma profissão diferente: cozinheiro,
professor de inglês, professor de francês, turismólogo, enfermeiro (um brasileiro que
também já trabalhou em banco e foi professor de história, geografia e teologia),
médico, policial militar, bombeiro militar, mergulhador da Marinha, e outros que
trabalham de forma autônoma, atuando como representante, tradutor de língua
portuguesa, biotecnólogo e despachante imobiliário (trata-se de um egípcio que,
chegando no Brasil, trabalhou vendendo água e depois pão de queijo na rua, até
conseguir seu atual emprego, que lhe foi ensinado por sua esposa), além de um
engenheiro aposentado. Os autônomos, por organizarem seus próprios horários, não
demonstraram ter problema para frequentar a mesquita. Um deles, que disse que para
56

a maioria dos contratantes não é um problema, e que eles querem até mesmo
aprender sobre a religião, afirmou que era mais fácil conseguir liberação para a
Jumu’ah, as orações congregacionais de sexta-feira, do que para os Eid, as festas
islâmicas, pois
“[q]uando é uma festa assim que não tá ligada a um feriado nacional, então
gera um certo constrangimento pra empresa, é mais difícil. Agora as sextas-
feiras, que seja, a Jumu’ah, já são mais fáceis, porque são pouco tempo, já
não é mais um Eid né, não é uma festa. É só um sermão, uma obrigação que
o homem tem pra fazer341 e depois volta para o trabalho novamente.

Um tanzaniano, que está há 15 anos no Brasil e sempre exerceu a profissão


de cozinheiro, consegue liberação para os Eid, e tira seu dia de folga na sexta-feira:
“isso é combinação com meu patrão. Se eu não trabalho no domingo, eu ia perder
sexta-feira. Para mim, perder sexta-feira, um dia de fazer oração, eu acho que meu
coração vai doer demais.” Todos os demais que conseguiam algum tipo de liberação,
autônomos ou não, também declararam que é mais fácil participar dos Eid, porque
eles acontecem de manhã, por volta das 7:30. Três homens disseram que a liberação
para fins religiosos é um direito amparado por lei (o artigo 5° da Constituição Federal,
que garante a liberdade religiosa, segundo um policial militar), e um deles afirmou que
sempre conseguiu, “mesmo antes da Constituição de 88, que te dá esse direito de
exercer a sua religião. ‘Cê tem o domingo cristão, o sábado judaico, e a sexta-feira
muçulmana.”
A maioria dos entrevistados consegue a liberação do trabalho e ressalta apenas
a necessidade de aviso prévio: há aqueles que são liberados tanto para os Eid, quanto
para a Jumu’ah, e outros que têm que compensar suas horas. Suas experiências
variam muito, pois também são muitas as profissões exercidas. Um egípcio disse que
nunca pediu, mas aproveitava do seu horário de almoço para ir à mesquita nas sextas-
feiras, e que por ser longe do seu trabalho, nem sempre conseguia. Dois brasileiros
relataram que chegaram a pedir, um na sua corporação de bombeiros, tendo feito até
um documento a título de compensação de horas, e o outro no shopping onde
trabalha, mas tiveram seus pedidos recusados. Há profissões que proporcionam maior
abertura:
Geralmente quando você é engenheiro, você faz o que bem entender. Você
tem um horário livre, você chega aqui a hora que quiser, você sai a hora que
quiser. Você não precisa nem de permissão, na verdade. Só você avisar uma
vez quando entra no emprego que você vai ausentar na sexta-feira, por

341
Na tradição islâmica, as orações coletivas de sexta-feira não são obrigatórias nem para mulheres,
nem para xiitas (CAMPO, 2009, p. 242).
57

exemplo, duas horas, três horas. Só isso, nada mais. Depois você que faz
seu horário, nunca tive problema.

Outros não têm a mesma sorte:


Eu tenho conhecimento de uma pessoa que conviveu comigo durante muito
tempo, ele é muçulmano e ele foi mandado embora no mesmo dia em que
ele falou na empresa que ele trabalhava que ele se tornou muçulmano.
Coincidência ou não, no mesmo dia ele foi mandado embora. Foi na livraria
Leitura. Ele foi na gerência pedir que a folga dele fosse… se haveria
possibilidade da folga ser na sexta-feira, porque ele se tornou muçulmano, e
é um dia sagrado e ele gostaria de vir na mesquita. E no mesmo dia,
posteriormente, antes de ir embora ele foi mandado embora. E tem outros
casos também semelhantes, mas esse marcou bastante.

Nenhum dos entrevistados, contudo, relatou ter qualquer problema no trabalho


ligado à religião, e apenas um brasileiro afirmou que ser muçulmano havia dificultado,
um pouco, a conseguir emprego. Quase todos disseram que os colegas de trabalho
sabem da sua religião, e um deles afirmou a importância de ressaltar a crença para a
própria prática religiosa: “A gente insiste sobre isso, a gente avisa… para que quando
tem uma festa religiosa, ver se a gente consegue participar”. A única influência sobre
o seu trabalho, segundo o cozinheiro, é que durante o jejum do Ramadã ele não pode
provar a comida que prepara, mas que já utiliza receita, então não é problema. Não
houve declarações de problemas, ou necessidades de adaptação no trabalho,
decorrentes do jejum. Três homens falaram, dentre outras coisas, sobre suas
experiências ao realizar alguma das oração diárias durante o expediente de trabalho.
Um egípcio disse que seus colegas são respeitosos e lhe dão espaço para orar,
pedindo para quem estiver fazendo barulho, diminuir. Para um sírio, que está há
quatro anos e meio no Brasil, todos são muito acolhedores no seu trabalho:
Até mesmo um dia eu ‘tava na escola e depois eu acabei a aula… às vezes
eu tenho que fazer a oração no horário certo, então nesse horário eu ‘tava na
sala de aula. Depois eu acabei, os alunos saíram e eu fechei a porta e ‘tava
rezando, a secretária entrou e viu que eu ‘tava rezando, ela fechou a porta e
depois pediu desculpa que entrou sem permissão. Depois eu falei, “não, tudo
bem, eu ‘tava rezando” e ela ‘tava tranquila com isso. Até mesmo meus
colegas, tudo, colegas, eles respeitam, às vezes eles me cumprimentam com
palavras do Islã, Salam Aleikum. Eles são muito legais.

Já um brasileiro, revertido há um ano e meio, afirma que sua religião não está
tão em evidência no seu local de trabalho:

Eles sabem que eu sou muçulmano mas não há uma lida com isso. Eu chego
no meu horário, faço o meu trabalho e com quem eu tenho mais intimidade,
é o meu chefe direto, com quem eu almoço, eu converso alguns aspectos da
minha religião dentro da oportunidade, do contexto. Mas não é algo que é o
meu cartão de visita, vamo’ dizer assim, no meu ambiente de trabalho, de
ficar falando sobre a minha religião ou impondo questão das minhas práticas,
né? Faço as minhas orações, já tenho acertado com o meu chefe direto, que
58

eu saio em determinado local, lá, eu posso fazer as minhas orações, mas fora
isso eu sigo as práticas dentro da minha particularidade. Então, vou dar um
exemplo, os muçulmanos não comemoram aniversário, então às vezes tem
as reuniões pra comemorar os aniversariantes do mês, reúne numa salinha
com bolo, pessoal vai, faz a reunião e eu não vou, eu fico lá na minha sessão
fazendo o meu trabalho. Agora, eu não chego e explico porque eu não estou
lá ou alguém pergunta. Então as coisas fluem dessa maneira, havendo um
respeito mútuo entre as partes. E em algumas oportunidades, com um ou
outro, eu comento.

4.3.4. Orações

A maior parte dos entrevistados, nove homens, disse se sentir


confortável para realizar as orações diárias próximo a pessoas que não são
muçulmanas, e pelos menos a metade relatou nunca ter sido
incomodado ou impedido de fazê-las. O ato pode chamar bastante atenção, já que
não é comumente realizado (de forma pública) por crentes de outras
religiões. Além disso, o modo islâmico é diferente de como cristãos, por exemplo, oram
(os muçulmanos, dentre outras coisas, fazem a genuflexão, agacham-se e encostam
a testa no chão). Para alguns, as reações vêm da curiosidade ou desconhecimento:
“As pessoas olham assim, ‘que que aquela pessoa tá fazendo?’ Mas nem entende.
Porque [na] religião muçulmana, se chegar o horário de fazer a oração, você pode
fazer [em] qualquer lugar. Mas uma área mais limpa.” O relato do tanzaniano se soma
ao de um policial:
Me sinto confortável porque eu… eu não faço as orações, assim, as ações e
tudo, eu não faço pra mostrar pros outros. Eu faço pra agradar a Deus. Então
eu, inclusive durante o meu trabalho eu paro minha viatura e vou fazer minha
oração no horário correto. Fardado mesmo, tranquilo, e eu não ligo se alguém
tá olhando, se alguém tá censurando, isso não faz diferença pra mim.

Questionado se enfrentou dificuldades, o homem de 39 anos completa:


“Impedido não, mas incomodado pelo desconhecimento da pessoa. De você tá orando
e a pessoa chegar e cutucar no seu ombro. Eu simplesmente finjo que não tá
acontecendo nada, continuo fazendo a oração.” Ignorar o quanto possível também é
a postura adotada por um sírio, no Brasil há 55 anos:
Eu tenho experiências terríveis de fazer oração em público, eu não ligo de
fazer oração em público. Atualmente por causa de um problema aqui no
joelho eu não posso fazer oração prostrado mais. Não tô podendo fazer
oração prostrado, mas eu sempre tenho um tapete na minha pasta, ou comigo
na bolsa, e faço oração na hora que for, eu faço oração na hora certa, eu faço
oração onde eu tiver. ‘Cê sabe que a gente tem as cinco orações diárias.
Então na hora certa eu faço a oração onde eu tiver. E assim, já me aconteceu
muitas vezes de, por causa disso, as pessoas tomarem atitudes estranhas
comigo. Mas eu relevo! Quando você sai na rua pra brigar, um bom dia já é
59

motivo pro cê brigar. [...] Só pro ‘cê ter uma ideia, só te contar duas histórias
dentre um monte delas. Uma vez aqui, no Parque Municipal, eu ‘tava rezando,
uns meninos começaram a jogar terra no meu tapete. E falar um monte de
bobagem. Eu continuei fazendo a minha oração como se eles nem tivessem
ali, parece que isso irritou eles mais ainda. Quando você não dá bola, as
pessoas ficam muito mais irritadas, cara. Hora que eu terminei de fazer minha
oração, dobrei o meu tapete, coloquei ele na pasta, olhei pra cara deles e falei
“puxa vida, cara, mas ‘cês perderam um tempo enorme de ficar me enchendo
o saco, ‘cês podiam tá fazendo tanta coisa melhor da vida” e fui embora. Uma
vez, num aeroporto, lá em… No aeroporto de Heathrow… E olha que foi uma
experiência que eu nunca esperava passar na minha vida, porque em
Londres existem muitos muçulmanos, e assim, é muito comum a presença
dos muçulmanos entre os londrinos, entre os ingleses de uma forma geral. E
deu hora da minha oração, tem uma coluna perto da agência da Qantas, e eu
fui lá, atrás da coluna, não foi nem uma coisa assim, fácil de ver. Eu fui atrás
da coluna, pus o meu tapete, rezei. Hora que eu terminei de rezar, tinha um
monte de gente parada me olhando. Foi muito engraçado, cara. Um monte
de gente parada me olhando e… terminei de fazer a oração, dobrei o tapete,
coloquei na mala, tô voltando assim, né, como se não tivesse ninguém na
minha frente, eu tô voltando e tal. Chega uma senhora, e com um inglês muito
assim, alemão, com aquele inglês, com aquele som alemão forte, sabe? Ela
chegou pra mim e perguntou pra onde que eu ‘tava indo, aí eu falei que minha
passagem era pro Brasil, aí ela ‘tá assim, “ai, que bom, tô voltando pra
Alemanha”. Falei, “pô, será que ela ficou com medo de pegar o mesmo avião
que eu?”. Então assim, tem muita coisa estranha que acontece mas eu não
me incomodo com isso não. Eu não saio na rua pra me perturbar com a
presença dos outros, não, eu não ‘tô nem aí não. [...] Já me aconteceu, uma
vez, de ‘tá rezando numa estação de metrô de Porto Alegre, eu vou muito ao
sul, tanto que hoje, quando eu rezo na estação do metrô, o pessoal já ‘tá tão
acostumado comigo, nessa estação em especial, que eles ficam perto de
mim, os seguranças ficam perto de mim pra proteger minha pasta. Então
assim, uma das primeiras vezes que isso aconteceu, eu ‘tô rezando numa
estação do metrô, o rapaz bateu o cacetete dele assim, “que que ‘cê tá
fazendo aí?”, aquele gauchão, né, forte, “ah, que que tu tá fazendo aí?”. Olhei
pra ele, “eu ‘tô rezando”, parei minha oração pra responder porque senão ele
ia me bater com o cacetete na cabeça, “‘tô rezando”. “Que reza é essa?”. Ai
meus sais minerais... Então assim, acontece de tudo, sabe? Eu não ligo pra
isso, eu vou importar com o que as pessoas fazem?

Comentando sobre suas experiências de orar em público, um brasileiro,


também de ascendência síria, destacou a importância do Dawa, o trabalho de
divulgação do Islã:
A gente tem assim, no caso especificamente da oração, a gente tem de ter
um ambiente tranquilo pro ‘cê fazer a oração, né? Um ambiente onde nada
vai te tirar a atenção, por exemplo. Então você vai procurar um ambiente
que… Onde você se sinta à vontade pra fazer. Onde as pessoas, algumas
pessoas, elas não vão atrapalhar a sua oração. Agora quando ‘cê tá fazendo
Dawa, quando ‘cê tá num grupo de pessoas, quatro pessoas, cinco pessoas,
‘cê vai em determinado lugar aqui em Belo Horizonte, ou até mesmo no caso
do interior que ‘cê vai, que a gente vai… eu tenho um grupo que faz isso… Aí
então a gente costuma inclusive rezar na praça pras pessoas verem, sabe?
Isso faz parte de um dever, também, do Islã. Você mostrar que é muçulmano
60

e ter honra disso, né? E ter honra dessa postura de ser muçulmano. As
pessoas ficam curiosas, porque é diferente a maneira muçulmana de rezar,
‘cê viu, né? Da maneira judaica, da maneira católica, ou mesmo reformista,
os outros grupos cristãos, por exemplo. A maneira específica, peculiar, que é
rezada no mundo inteiro da mesma forma. [...] Rezar por exemplo, às vezes
a gente… vou com dois amigos, a gente vai lá pra Praça da Liberdade.
Chegou a hora da oração, a gente tá lá, a gente reza lá na grama, por
exemplo. As pessoas ficam olhando, às vezes. Mas também a gente não tá
nem aí pras pessoas. Acho que é curiosidade das pessoas, mas isso não
atrapalha a gente, o que atrapalha é o barulho, a pessoa ficar falando… sabe,
assim, ironizando muitas vezes, e tal. Nesses ambientes você deve evitar
fazer as suas orações. Eu já fiz muito ali na Praça Sete, de frente a rodoviária,
fazendo Dawa, lendo livros, né, sobre o Islamismo. E Praça da Liberdade
também a gente faz isso. Você sai com um amigo, às vezes sozinho, vai na
Praça do Papa, tá sozinho, chegou a hora da oração, cê vai lá e faz sua
oração. [...] O pessoal tem muito respeito. Eu nunca fui incomodado em
relação a minha religião. Nunca teve nenhum tipo de brincadeira de mal
gosto, essas coisas e tal, porque eu também, pra mim, isso não… Se você
for fazer uma brincadeira de mal gosto, pra mim isso não… entra aqui e sai
aqui, quer dizer, isso não me altera em nada. Aí eu não vou brigar com você
também por causa disso, né? Esse não é o objetivo. A pessoa faz uma
brincadeira mas você deixa pra lá. [...] Isso não pode comprometer a sua
prática religiosa, entendeu?

Enquanto um indiano disse não se sentir confortável, preferindo se deslocar até


um local mais limpo e adequado, onde pudesse fazer a ablução 342 e retirar seus
sapatos, e um egípcio afirmou que nunca havia sido incomodado, tendo orado na rua,
no aeroporto e no trabalho, para um brasileiro a possibilidade de oração depende do
lugar: “Pra me proteger, dependendo do local, eu evito. Por exemplo, em casa, com
os meus familiares, eu não faço. Salvo com alguns familiares que eu confiei em contar.
Alguns primos e duas tias que eu contei.” Questionado se já realizou
as orações em locais públicos, o brasileiro relatou um constrangimento que passou:
“Fui impedido de fazer na… impedido assim, eu cheguei a terminar a oração mas
depois eu fui obrigado a me retirar e não fazer novamente naquele local. Foi no Museu
Público da Lagoa da Pampulha, por um guarda municipal.” Após uma situação
semelhante, outro egípcio passou a não mais rezar em público:
Cara, pra ser sincero, agora eu ‘tô evitando isso. No início, eu ‘tava na
prefeitura, ano de 2012, alguma coisa assim, 2011. Bem recente quando eu
vim. Eu fui pra fazer oração, porque não tinha tempo pra chegar em casa pra
rezar. O tempo da outra oração ia chegar, então falei, não, eu vou rezar aqui.
Então eu comecei a rezar, depois o guarda municipal chegou, eles ‘tavam
muito alterados. Então, depois eu comecei a rezar, eu parei, conversei com
eles, “‘tô fazendo oração, sou do Egito, não sei o que e tal”. Falou, “oh, aqui
não é lugar de oração, não”. É, não quis discutir com ele mas eu fiquei muito
chateado. Fui na delegacia, fiz ocorrência, mas depois eu deixei por isso
mesmo, sabe? Deixei pra lá. Mas eu sei que num lugar público você pode
fazer qualquer coisa que não seja prejudicando os outros. Então eu achei a
reação desse policial, ela era policial, dessa mulher lá, bem… Às vezes tem
algumas pessoas estranhas aqui no meio, sabe? Depois, realmente, depois

342
Limpeza, com água, das mãos até os cotovelos, rosto e pé, feita antes da realização de orações.
61

deixou marcado comigo pra eu evitar rezar na frente das pessoas. Então se
chegou a hora da oração, eu vou… Eu trabalhei no Diamond Mall. Eu ‘tava
indo num lugar, um quarto vazio, eu rezo e saio, sabe. Eu fico evitando ficar
no meio das pessoas.

4.3.5. Na família, com os amigos e na faculdade

Dos 14 entrevistados, 9 disseram não passar por qualquer problema com


familiares, amigos ou na faculdade devido à sua religião, e alguns reforçaram que
sempre são muito bem tratados. Em uma das entrevistas, um homem me falou que
suas relações com a família, de Santa Luzia, não eram definidas a partir da religião,
que “dentro do contexto de oportunidade, sem forçação de barra”, ele explicava como
via as situações na ótica do Islã, e que os impactos de ser muçulmano sobre sua
relação familiar cotidiana existiam, mas não causavam problemas:
Comemorações que não estão dentro do Islã que a família exerce, faz, eu
não estou presente, então aos poucos eles já vão entendendo. A gente tem
restrições alimentares, né, o que a gente chama de comida halal, então, por
exemplo, pra comer carne nós temos uma forma da carne, como ela deve ser
abatida. Então naturalmente, nos jantares, em família, onde existia esse tipo
de variedade, meu pai já entendeu que eu não como aquele tipo de alimento,
então ele já disponibiliza um peixe. Então assim, as coisas vão se ajeitando.
Ele tem a carne, pra quem quer comer a carne, como eu não como, pra ele
me dar uma opção, como ele gosta da minha companhia, gosta do meu bem
estar, ele me dá opções que eu possa me alimentar. Algumas situações
também: meu pai gosta de beber cerveja, ele bebe cerveja. Então no
momento anterior da minha reversão ele me pedia, naturalmente, sentado no
sofá, “ô filho, pega uma cerveja pra mim na geladeira”, eu ia lá e pegava.
Depois em certo momento ele já passou a entender que assim, se eu ia no
supermercado, comprar alguma coisa lá pra casa, perguntava se precisava
de alguma coisa, em algum momento ele me falava, “ah, traz uma caixa de
cerveja”, e eu comprava tudo e não levava a cerveja. Eu não necessariamente
chegava lá e falava, “pai, não comprei sua caixa de cerveja por causa disso
e disso”, eu simplesmente não levava, então assim, sem precisar sem
emblemático com algumas coisas, as pessoas têm perspicácia e vão
entendendo. Então com naturalidade, ele nunca me pede pra comprar
bebidas alcoólicas, ou pra pegar alguma bebida alcoólica que tá na geladeira
e entregar pra ele porque ele sabe que vai contra os princípios da minha
religião.

Ateu a princípio, um sírio disse que após sua reversão, devido a mudanças em
sua vida, como parar de consumir bebidas alcoólicas, pessoas do seu círculo de
convivência se afastaram. Já um brasileiro disse que no início a informação de que é
muçulmano “é um abalo” para todas as pessoas, mas que com o passar dos anos a
relação vai se aprimorando, restando apenas uma minoria que pensa que ele é “muito
gente boa, mas acham que o problema está na religião”. Ele mesmo, quando já era
revertido, até passar a frequentar a mesquita mantinha certa distância, por ter medo
62

de um radicalismo que pensava que poderia existir. Num grupo de WhatsApp da


faculdade, o entrevistado disse ter passado por uma situação que chamou sua
atenção:
Uma pessoa fez um comentário lá botando uma imagem do Osama bin Laden
e falou assim, “é por isso que eu me explodo”. A situação das provas tá muito
difícil, entendeu? Aí o pessoal falou desse jeito. Não foi o pessoal, foi uma
garota que… ela ainda não teve a oportunidade de me ver falando. Ela só me
viu falando na apresentação de um trabalho, só. Então ela pegou e comentou
esse negócio. Assim, uma pessoa sem conhecimento, entendeu?

Outro, também brasileiro revertido e que se disse “muito tradicionalista”, contou


que o fato de se vestir “da forma islâmica no dia a dia”, com túnica e taqiyah (um tipo
de chapéu pequeno e arredondado que muitos muçulmanos usam), resulta em
questionamentos por parte de seu pai (“daquele jeitinho dele: ‘ô filho, cê não vai ficar
com calor com tanta roupa?’”) e constrangimento para sua filha quando ele está
próximo aos amigos dela. Um grupo de motociclistas de estrada de Belo Horizonte já
se recusou a viajar com ele por causa de sua religião, e membros de outro grupo, que
pratica airsoft (um jogo em que se usa armas de pressão que atiram projéteis não
letais), se vestiram “como muçulmanos”, gravaram e lhe enviaram um vídeo que me
mostrou, no qual, apontando suas armas para cima, gritavam Salam Aleikum e
simulavam uma ululação (um som vocálico feito principalmente por asiáticos e
africanos durante ritos e celebrações). Para ele, era desrespeitoso, uma chacota que
lhe deixava desconfortável.
Só um dos entrevistados disse que a informação sobre sua religião não era
compartilhada com boa parte de pessoas próximas, e narrou algumas experiências
desconfortáveis entre a família e na universidade:
Muitas vezes quando eu deixo a barba maior eles desconfiam, assim, eu
nunca parei pra sentar com eles, falar que eu sou muçulmano. Mas eles
sabem que eu sou muçulmano, indiretamente, porque eles escutam às vezes
eu falar alguma coisa em árabe com alguém no telefone, ou recitação do
Alcorão, o som, o volume pode ultrapassar ali o quarto, né. Então assim, eles
desconfiam, acredito que saibam que eu sou. Então tem umas
brincadeirinhas em relação à barba… “vai virar terrorista”, meu irmão
desconfia que eu sou muçulmano também. Eu desconverso nesse momento
pra evitar delongas, né, nesse sentido de ficar falando mal de Maomé, né.
“Cê é adorador de Maomé”, eu falei “quem é Maomé, eu não conheço
Maomé”. Porque nós muçulmanos consideramos Muhammad, salla illahu
ʿalayhi wa-sallam343. Então tem essas brincadeirinhas desagradáveis
familiares. E uma vez na faculdade também, uma menina aproveitando que
eu… por perceber que eu era muçulmano, que eu me dedicava nessa
questão, houve uma situação no grupo e ela simplesmente me agrediu
verbalmente falando que “eu te amaldiçôo”, dentre outras… Ela tentou outros
tipos de agressões e por último ela levou pra esse lado religioso, né. Por ela

343
Do árabe, “que a paz esteja com ele”.
63

ser, não sei, acredito que alguma coisa de Iemanjá, alguma coisa assim,
enfim, isso é irrelevante, mas ela se dizia assim. Então ela falou “eu te
amaldiçôo”, eu simplesmente escutei e parei de olhar pra ela, nunca mais eu
olhei. Então teve… teve essa situação dela falar isso, que foi desagradável,
então eu parei de olhar pra ela a partir desse momento, e ela me criticou,
falou assim “eu to falando, cê olha pra mim… tem que olhar pra mim, porque
eu tô falando com você”. Eu falei assim “isso aí eu não vou fazer, eu tenho
esse direito de não olhar nos seus olhos, eu vou utilizá-lo”. E ficou essa
situação desagradável.

Ouvi falas sobre outras situações na universidade que se destacaram


negativamente para o informante. Um imigrante me disse que era graduado em Direito
no Egito, mas dadas as diferenças no idioma e nas leis de seu país de origem e do
Brasil, optou por não tentar a revalidação do diploma, que seria muito trabalhosa. Em
2014, quando a profissão estava em alta, iniciou uma nova graduação em Engenharia
Civil. Com sua esposa, cristã, o homem disse que a convivência é boa, apesar de
pequenas divergências relativas à sua religião. Ainda que a maior parte das pessoas
com quem convive sejam respeitosas, disse ser motivo de certas “brincadeiras” na
faculdade e também receber mensagens, por WhatsApp, com “piadas”, como
montagens de esfinges, terroristas e baratas com seu rosto:
Entre as maiorias, tem algum, um ou outro, que realmente, ele fica
incomodado. Algumas coisas, toda brincadeira que pode falar, fala, sabe? Por
exemplo, eu estudando aqui no Kennedy, na Faculdade de Engenharia.
Então às vezes um professor fala de um assunto e joga brincadeira no meio,
porque ele sabe que você tá no meio, sabe? Uma vez a gente tava estudando
água fluvial, não sei o que, corrente, o professor falou: “a casa de bomba, não
sei o que”, e ele olhou pra mim, “não é a sua casa”, entendeu? Enquanto todo
mundo ficou rindo. Mas às vezes ele fala com você brincando, mas do outro
sentido. Por exemplo um amigo meu, ele mandou… Tô falando pra você os
pontos negativos, que realmente os pontos negativos que ficam marcando a
gente. Por exemplo, esse professor fez uma, duas vezes e eu realmente achei
muito estranho. Nunca houve um professor que chegou nesse nível, de falar
essas coisas. Às vezes seu colega da faculdade, ele brinca com você. Tem
amigo meu que já… vou mostrar pra você aqui. Depois eu vou mostrar pra
você aqui. Então ele manda umas… ele corta, assim, o seu rosto, coloca
numa foto de um terrorista, um cara com um Alcorão na mão e arma na outra,
sabe? E manda, ri. Às vezes você fala… brincadeira. Mas eu acho brincadeira
de mau gosto. Nunca foi um muçulmano que faz essas coisas de terrorista. A
maioria que faz essas coisas nem é muçulmano. Eles fazem pra jogar em
cima da pessoa. Então, infelizmente, você fica preocupado, mas você fala,
gente… uma brincadeira… mas você sabe quando essas pessoas falam,
você é assim, você é assim, você é assim e você não é assim. E às vezes
chega uma pessoa, brinca com alguma coisa, tem relação com esse caso,
então você fica chateado. Eu ri na hora, mas depois eu falei, gente, estranho
né? Um tanto de piada que ele pode fazer e vai num assunto que realmente
não pertence à gente como foi feito.

4.3.6. Taqiyah
64

As interpretações e usos da taqiyah entre os muçulmanos entrevistados são


bastante diversas. No geral, os estrangeiros optam por não usá-la, e muitos deles não
conheciam por esse nome. Um tanzaniano, morador de Lagoa Santa, disse que a
peça é de uso obrigatório, é uma sunnah344, e que usava em casa, não em público
porque muitos perguntavam seu significado, já que chama atenção. Mas disse não
achar tão difícil de usar no Brasil como o kanzu, um manto branco utilizado em certos
países africanos, que pode torná-lo alvo de perseguição. O entrevistado senegalês,
de 49 anos, contou que raramente usa a taqiyah, mas já vestiu outras vestimentas de
sua terra, como kaftan ou boubou, no trabalho e na rua:
As pessoas perguntam se eu sou padre. Porque é bordada aqui, às vezes na
frente, assim, sabe? Igual as roupas que os padres usam pra celebrar missa.
Então as pessoas acham, aí eu explico, “não, sou muçulmano”. E na rua
também quando você anda com ele… Eu pego o ônibus, cê vê que o olhar é
diferente. Mas, pra mim, é curiosidade. Eles não sabem do que se trata essa
roupa, por que essa roupa, e ninguém se aproxima pra perguntar também.
Raramente, dentro do ônibus, alguém te pergunta, mas eles te olham de uma
forma, sabe? Cê percebe que as pessoas… é um pouco estranho, pra eles,
essa roupa. E também como às vezes é uma roupa comprida, sabe, as
pessoas acham que a gente tá morrendo de calor, com esse calor assim. Por
isso que a gente não usa, muito, assim. No Senegal a gente usa porque é
costume nosso. É a roupa que a gente usa, normal, do dia-a-dia, então, eu
vou pras festas… Raramente a pessoa irá assim [apontando para a própria
roupa: calça jeans, camiseta e tênis] pra uma festa religiosa, entendeu? Ou
um batismo, um casamento, a gente tenta ir normal. Raramente também as
pessoas ficam usando terno, aí, pra ir num casamento. Eu acho, também,
que isso é mais voltado pra tradição, sabe? Pra conservar nossa tradição.
Porque, antes de ter a colonização, de ser colonizado pelos europeus, essa
roupa que a gente conhecia.

Para o indiano com quem conversei, a taqiyah é recomendada, mas não é


necessária sequer para o tawaf, ritual feito durante a peregrinação à Meca. Apesar
disso, ele geralmente usa, mas não nota reações negativas das pessoas, em sua
opinião hoje é algo comum para brasileiros. Um egípcio disse que colocar ou não a
taqiyah não fazia diferença na prática religiosa, era uma expressão cultural, apenas,
que existia antigamente, mantida “somente na sexta, no Eid, [em] alguns países”.
Apesar disso, quando seus colegas de faculdade estavam “zoando muito” por causa
da sua religião, ele usou para provocar de volta, participando da “brincadeira”. Outro
egípcio disse que não usava pois não era necessário, bem como um sírio, que também
disse não querer chamar atenção e explicou:
Na verdade no Islã tem uma parte que fala, quando você quer fazer oração,
se você usa esse chapéu, taqiyah, sua oração vale 27 vezes do que sem essa
taqiyah. Então, se você quer ganhar mais você usa quando você faz a oração,
só. Fora disso não tem obrigação pra usar, então não usei. Até mesmo aquela

344
Conjunto prescritivo de textos que reúnem as práticas e costumes dos muçulmanos.
65

roupa longa, que é abaya, não tem a obrigação de usar, então até mesmo lá
na Síria eu uso muito raro. Só quando eu… na sexta-feira, às vezes, ou
quando eu tô no Ramadã, ou pro Eid, mas geralmente por causa do trabalho
e do dia a dia, então é mais prático você usar roupa normal.

Outro sírio, que vive no Brasil desde criança, disse que não usa a vestimenta
porque não gosta, acha feio. O uso é bem mais frequente entre os brasileiros que
entrevistei. A peça não compõe o vestuário de um deles, que já usou inclusive em
público e não passou por qualquer constrangimento. Outro, que também já usou mas
não mais se veste assim, afirmou que a taqiyah nem mesmo é islâmica, mas que
muitos utilizam para se identificarem como muçulmanos, e para isso havia outras
formas como a barba, que ele prefere, e o próprio comportamento. Nas vezes que
utilizou, notou um certo receio, que encarava como natural:
Com a taqiyah o pessoal fica meio… meio... como é que a gente fala,
sestroso, meio medroso. Por um pré-conceito. Nem preconceito, um pré-
conceito. Elas te olham, assim, e tal, outras ficam tirando sarro. Eu encaro
como normal isso aí. Se o cara tivesse uma argola no meio do nariz, os caras
iam olhar com uma cara espantada, com a taqiyah eles vão olhar com cara
espantada da mesma forma.

Dois brasileiros disseram que utilizam na mesquita ou para falar sobre o Islã
em algum lugar, e que nunca foram hostilizados. Para um deles, que não usa
cotidianamente para se preservar, era uma sunnah que o profeta recomendava, mas
não obrigava, enquanto o outro pontuou que a taqiyah, bem como um shador, véu ou
turbante, representavam a ligação divina do profeta, que, analfabeto, recebeu a
revelação mentalmente. “Seria uma proteção dessa parte da sua cabeça que o profeta
recebeu… É de certa forma uma homenagem a ele, no sentido que ele recebeu
memorizando.” Outro, de 33 anos, utiliza na mesquita e em locais públicos, mas não
no trabalho pois “pode haver repulsa” por parte das outras pessoas, e ele precisa do
dinheiro para sobreviver. Além disso, ainda não conseguiu utilizá-la na faculdade, e
encara a vestimenta como uma forma de identificação e de proteção, “como um
capacete”. Apesar de ter dito que as reações a seu uso eram sempre de curiosidade,
narrou um momento em que foi repreendido:
Eu tive uma breve experiência assim, mas foi com a minha mãe. Ela me viu,
não foi só com a taqiyah, ela me viu com a roupa e ela falou assim “não, não
dá pra você viajar assim”. Quer dizer, ‘tava dentro do carro, eu falei “ah, vou
como muçulmano”, pensei né, cogitei. Aí ela não concordou, aí eu peguei e
obedeci ela. Eu falei, “constrangi ela”, pensei que não ‘tava fazendo nada de
ruim. Deixar de constranger ela já é uma caridade da minha parte, é um papel
islâmico, entendeu?

Os outros dois brasileiros entrevistados sempre utilizam a peça de roupa em


questão (menos no trabalho, um deles me disse). Notam reações como riso, deboche,
66

são chamados de “homem bomba”, “terrorista”, e pessoas até saem de perto. Apesar
disso, dizem já nem se importar com tais atitudes.

4.3.7. Mídias

Com exceção de dois dos entrevistados estrangeiros, que disseram não ter
contato, todos os homens tinham algo a dizer sobre a forma como a mídia brasileira
retrata muçulmanos. Os temas evocados são muitos, e giram em torno das formas de
representação, de interpretação, das fontes escolhidas e dos “donos” da mídia. As
principais opiniões são sobre a forma fantasiosa, errônea e sensacionalista de
representar e interpretar o Islã, o fato das corporações midiáticas serem tendenciosas,
isto é, beneficiarem grupos, as possibilidades benéficas de evidenciação do Islã pela
mídia, as diferenças entre os grupos midiáticos e sobre a parcela de culpa dos
muçulmanos no processo de estigmatização.
Eles não sabem o que é Islã e não conhecem os muçulmanos, entendeu? A
mídia retrata o Islamismo de uma forma baseada só no que alguns grupos
fazem. Eles generalizam, colocam muçulmanos todos extremistas, fechados,
que maltratam as mulheres, mas essa não é a realidade. Pra você saber o
que é Islã, cê tem que ir numa mesquita, se você quer conhecer os
muçulmanos, converse, vá numa mesquita, converse com as mulheres pra
saber se elas sofrem preconceito, se elas são felizes ou infelizes. Porque o
Islã... não existe imposição na religião. Nem com parte pra você seguir, no
caso da mulher, do homem e tal, você faz as coisas que você sabe que tem
que fazer. Mas ninguém te obriga a fazer, não. Ninguém vai na minha casa
pra saber se eu tô fazendo as cinco orações diárias. Ninguém vai na minha
casa pra saber se eu tô fazendo o jejum. Eu sei o que eu tenho que fazer. Eu
tinha a orientação na mesquita. Agora, se eu faço ou deixo de fazer, Deus
sabe melhor. Agora, da forma que a mídia fala dos muçulmanos… totalmente
errado. Eles passam uma visão que assim, pra causar medo. Principalmente
quando tem algum atentado terrorista, aí se fala muito daquele assunto. Aí a
visão que... quem não conhece os muçulmanos, vai achar que todo
muçulmano é terrorista, todo muçulmano é extremista. A minha família
pensou isso quando eu quis me reverter ao Islã.

A fala do brasileiro condensa os principais pontos que, segundo muitos dos


entrevistados, seriam transmitidos de forma equivocada pela mídia: o extremismo, o
terrorismo, a imposição e a opressão feminina. Para outro brasileiro, “tradicionalista”,
novelas da Globo mostram “mulheres muçulmanas absurdamente maquiadas, com as
unhas enormes, pintadas de esmalte”, o que segundo ele não é proibido, mas não
existe na realidade. Além das concepções falsas sobre mulheres, um sírio abordou a
maneira como o conflito em seu país é retratado, e a influência disso sobre os
brasileiros:
67

Eles mostram o que beneficia pessoas, por exemplo, tem uma parte que vai
beneficiar dessas notícias, e tudo, sobre o Islã, eles vão colocar na televisão.
Mas geralmente tem muita coisa errada que eles mostram. Por exemplo, a
maioria das pessoas, quando eles sabem que eu sou da Síria, eles
conversam comigo, “ah, porque a guerra tá acontecendo lá? Porque a gente
ouve que é por causa do Islã, da religião… Islã, muçulmanos, contra cristãos”.
Mas eu falo “não, por que é tudo diferente”. Eles só sabem sobre Estado
Islâmico, mas Estado Islâmico, se eles lerem sobre o Alcorão e o Islã, eles
vão perceber que o que o Estado Islâmico tá fazendo não tem nada a ver com
o Islã. Eles fazem tudo de errado, não como eles tão seguindo o Islã. E se
eles tão seguindo uma parte do Islã, eles tão seguindo do jeito rígido. Então,
tem muita coisa na mídia que precisa reformar, precisa mostrar a parte da
realidade sobre o Islã, sobre o Alcorão, sobre os muçulmanos. Por exemplo,
também, o conceito que as mulheres no Islã não têm direitos, elas ficam em
casa, não podem trabalhar, não podem fazer isso, aquilo, não tem nada a ver.

Outra construção equivocada, de acordo com um brasileiro, é a que a mídia faz


sobre os “jihadistas”. “Jihad é um esforço pela religião. Então, não tem nada a ver com
guerra santa, essas coisas que eles colocam na TV como se jihad fosse pegar em
armas e sair fazendo atos terroristas.” Para um indiano, o grande problema é a
generalização de exemplos pessoais para toda a religião e o viés negativo. Ele
pontuou que se um cristão matar alguém, isso será tratado como apenas um crime,
mas o ato de um muçulmano vira manchete, sob a legenda de um “terrorista islâmico”.
Para ele, a lei islâmica é tão clara quanto a Constituição brasileira em relação à
proibição do assassinato, e se alguém comete tal ato não é o Islã ou a Constituição
que está errada, mas a pessoa que agiu contra a lei.
Segundo um brasileiro, a Rede Bandeirantes é a empresa midiática mais
amigável em relação à religião islâmica, enquanto a Rede Globo não se importa com
a veracidade do conteúdo que leva ao ar, que muitas vezes é manipulativo e
descontextualizado. Outro afirmou que a mídia segue o que lhe for mais conveniente,
ou seja, mais rentável. “Se for bom falar do Islã pra ganhar dinheiro, eles vão falar.
Se for mal pra falar do Islã pra ganhar dinheiro, eles vão falar.” Ambos disseram que
o posicionamento da Rede Record não pretende ser imparcial, é explicitamente
religiosa, mas não deixaram claro qual o seu viés. Para o primeiro, as distorções
midiáticas têm um lado bom, pois “as pessoas vão buscar o que é real. Ou seja, nos
conteúdos dos próprios muçulmanos, não em conteúdos extras.” Já o segundo vê uma
relação direta entre as representações midiáticas e as atitudes discriminatórias:
O que que a mídia apresenta do Islã, a maioria das vezes, pras pessoas na
rua? Que é o homem bomba, que é o cara que decapita pessoas. O
estereótipo do filme também, não porque seja muçulmano, mas sim porque
seja árabe, né, a questão árabe em filmes antigos e até um pouco recentes.
Tu cria um estereótipo, né, já vinculam o muçulmano com arma, não tem nada
a ver, absolutamente nada. Uma proporção pequena dentro de um todo usa
armas. Então eles pegam isso e já foi construído um pré-conceito, e aquelas
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pessoas falam pra fora, “ó o homem bomba, Bin Laden, Saddam Hussein”…
o que ‘tiver na moda, né, o que ‘tiver na moda, o que cair na boca da mídia.
Na época do Bin Laden era o Bin Laden, na época do Saddam Hussein é
Saddam Hussein.

A culpa de parte do preconceito, para dois dos entrevistados, é da falta de


diálogo por parte dos próprios muçulmanos. Um deles, egípcio, ressaltou que a mídia
tem seus interesses políticos e financeiros, mas que não há uma comunidade
muçulmana constituída em Belo Horizonte, logo o que domina é a ignorância devido
à falta de contato. Na sua opinião, a culpa é a falta de compromisso com o
cumprimento da obrigação de levar a palavra para as pessoas, tanto dos que
chegaram aqui há mais tempo, quanto dos brasileiros revertidos, “que não ajudaram,
não foram nas escolas, nem nas universidades, faculdades, falar sobre o Islã, o que
é o Islã.” Para um sírio que passou boa parte da vida no Brasil, o muçulmano “não
botou na cabeça ainda que ele precisa se abrir pra que as pessoas entendam o mundo
dele”. Ele completa, tratando sobre a descontextualização daquilo que é exposto, que
permite a compreensão do quadro geral:

O muçulmano, ele não consegue transmitir pra opinião pública de uma forma
geral, toda a opressão, toda a pressão, todo o extermínio que é causado e é
transformado nas atitudes que as pessoas vêem e que a mídia publica. Então
a mídia, ela não vai publicar que os muçulmanos fizeram isso ou aquilo
porque antes aconteceu outra coisa. Então a culpa do estereótipo que a mídia
transmite não é da mídia não, a culpa é nossa. Quando as mentalidades
tacanhas do mundo islâmico começarem a se abrir pra mostrar pras pessoas
que as atitudes são respostas a coisas que… ao massacre físico e psicológico
praticado contra o mundo muçulmano, e ele responde dessa maneira, aí eu
acredito que essa visão se modifique um pouco. Infelizmente filho, hoje em
dia, as grandes… as lideranças do mundo islâmico, essas lideranças se
preocupam tanto em segurar… em não perder as rédeas do mundo islâmico,
que eles esquecem que nós poderíamos ter uma visibilidade maior, melhor,
se nós nos abríssemos mais. Infelizmente, assim… as nossas mentes, elas
são muito pequenas.

Questionados se percebiam discriminação contra muçulmanos vinda de


brasileiros nas redes sociais, a maioria respondeu positivamente. Outros disseram
que não usam redes sociais, que não têm muitos brasileiros em suas redes e que os
que ali estão discutem temas como esporte ou política. Entre os que percebem esse
tipo de hostilidade, pontuou-se sobre o grande volume de fake news (que faz com que
a tendência da discriminação seja aumentar, para um brasileiro), o potencial das redes
para o conflito (para um tanzaniano que discutiu sobre esse ponto, as redes sociais
deveriam ser utilizadas por aqueles que sabem do que estão falando, enquanto um
indiano disse que “seu ponto de vista não é debatido, você que é debatido. É o lado
pessoal.”), os comentários preconceituosos no YouTube, os YouTubers anti-islâmicos
69

e os xingamentos, estereótipos e “piadas” de sempre (um senegalês disse que “tem


pessoas que comentam que… muçulmano, a primeira coisa que eles comentam, é
que muçulmano é homem bomba. Mata, não respeita mulheres”, e para um brasileiro
“existem algumas brincadeiras comuns que a gente não leva a sério, né? Ah, Bin-
Laden, chama você de Bin-Laden”). Um brasileiro diz ter recebido comentários que
mostram a associação feita do Islã a algo estrangeiro, não pertencente ao Brasil:
Já fui até mandado embora do país, pro ‘cê ter ideia, mesmo sendo brasileiro.
É, eu tive que chegar “ô bicho, eu sou tão brasileiro quanto ‘ocê, bicho, eu
sou nascido em Ouro Preto, Minas Gerais!” Sou muçulmano por opção, não
é por obrigação, ninguém me obrigou.

Outro revertido vê os ataques virtuais direcionados a muçulmanos como parte


de um contexto maior de intolerância:
Isso aí é a moda, né. Não precisa ser muçulmano mais. Não precisa, é só tu
não pensar igual: acabou, não pensou igual tu é um alvo, um alvo em
potencial, já era. Ah, eu sou muçulmano. ‘Tá, mais uma coisa pra agregar e
eles falarem mal. Então hoje não tem essa, não é só muçulmano. Pensou
diferente, já era.
Ainda assim, para alguns, o cenário não é totalmente pessimista. Um dos
entrevistados encara de forma positiva as novas formas de comunicação: “graças a
Deus, agora tem internet. A internet deixa você ver o outro lado da informação.” Na
opinião de outros dois, o viés islamofóbico da mídia brasileira já não é tão forte. Um
deles complementa:
Diminuiu, diminuiu, Porque se falou muito a respeito de Islamismo, depois
teve aquela novela O Clone… Os brasileiros não sabiam que que era
muçulmano, que que era cultura árabe, e tal, pra eles tudo era um campo
desconhecido. Aí depois do 11 de setembro foi aquela chuva de informação
na mídia, aí depois veio a novela O Clone. Aí colaborou pra ficar um pouco
mais comum, essa questão do muçulmano, árabes, qual que é a diferença,
porque tem muçulmano que não… Eu sou muçulmano mas eu não tenho
nada a ver com árabe. E pra você ser muçulmano, cê pode ser de qualquer
nacionalidade.

4.3.8. Estigma e encontro

Em geral, as agressões sofridas pelos homens muçulmanos que foram


entrevistados (ou o que se pode considerar agressões, já que seus pontos de vista
sobre isso são variados) são semelhantes. Todos disseram nunca ter sofrido agressão
física, e um optou por pular a pergunta que cobria essa situação. As agressões que
me foram relatadas, portanto, foram verbais. Várias foram as falas registradas sobre
piadas, e enquanto alguns acham que trata-se de meras brincadeiras, para outros,
elas revelam um sistema de preconceito, ou preconceitos. Há diferentes formas de
ver e de lidar com o preconceito, e posicionamentos mais e menos otimistas. Apesar
70

de tantas diferenças de percepções e experiências, todos compartilham o desejo de


poder praticar sua religião.
Ainda que alguns vejam o uso de categorias como “terrorista”, “homem bomba”
ou “Bin Laden” como simples piadas e brincadeiras (e esse posicionamento deva ser
respeitado, pois trata-se de suas experiências e pontos de vista), existem autores que
discutem as origens e papéis que essas “zoadas”, como me disse um egípcio, podem
ter. Simon Weaver, por exemplo, afirma que piadas anti-muçulmanos envolvem
reações emotivas a eventos políticos recentes, e criam sentido de forma semelhante
às metáforas345. O autor acredita que o humor é capaz de reforçar o racismo - e
acredito, outros tipos de discriminação também - enquanto uma forma de retórica346.
Ouvir ou não essas piadas depende de ser ou não identificado enquanto
muçulmano. Um brasileiro disse que só ouve essas brincadeiras quando está
“caracterizado”, portando um elemento vestuário que Erving Goffman denominaria,
dentro de um sistema que produz identidades sociais a partir da categorização e
estereotipização, como um “símbolo de estigma”, um veículo de transmissão da
informação social347. Apresentar-se enquanto muçulmano é estar disposto a, pelo
menos, receber comentários em tom de humor, mas que te associam, e associam a
sua religião, ao velho estereótipo da violência, generalizando a fé e a identidade de
muitos a partir da ação de poucos.
“O homem bomba que eles falam, assim, qualquer um pode ser terrorista. Isso
que eu falo pras pessoas: ninguém nasce terrorista, você se torna terrorista por sua
própria convicção. Deus não mandou ninguém tirar a vida de ninguém.” É uma atitude
e uma escolha da pessoa, analisa um dos entrevistados. E é importante frisar que as
principais vítimas desses indivíduos e de seus ataques terroristas, que não acontecem
apenas no Ocidente, são muçulmanos 348. Um brasileiro descreve algumas
generalizações que percebe:
Se você quer conhecer o Islã, vá numa mesquita, leia o Alcorão, não pegue
só trechos. Igual, cita muito um trecho do Alcorão: “persegui os idólatras e
matai-os onde quer que os encontrei”. Só que ninguém lê o versículo
seguinte, que fala “mas Deus não ama os agressores”. Então as pessoas
pegam só um trecho do Alcorão e falam que o Alcorão é totalmente violento,

345
WEAVER, Simon. A rhetorical discourse analysis of online anti-Muslim and anti-Semitic jokes. Ethnic
and Racial Studies, v. 36, n. 3, 2012. p. 4.
346
Ibidem, p. 3.
347
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro:
Editora Guanabara, 1988. p. 12-53.
348
CHÉRIF, Mustapha. O Islã e o Ocidente: Encontro com Jacques Derrida. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2013. p. 88.
71

mas não analisam o contexto que aquele versículo foi revelado, porque ele
foi revelado durante o período de guerra. E as pessoas tomam aquilo dali
como a verdade absoluta e como se aquilo daquilo fosse o que os
muçulmanos fizessem. E essa não é a realidade. Hoje em dia nós temos 1
bilhão e 700 milhões de muçulmanos. Se todo muçulmano fosse terrorista, o
mundo já tinha acabado em guerra. A gente não pode generalizar uma
pequena quantidade de pessoas e falar que toda aquela religião tem aquele
mesmo pensamento. Islã é uma religião de paz. Quem comete esses
atentados é porque desconhece a própria religião. Porque Islã deriva da
palavra salam, e salam é paz. [...] É o que muita gente para e me pergunta,
“ah, eu li tal trecho, assim, do Alcorão, e tal, pra matar todo mundo, pra
perseguir e tal”. Não, leia o contexto, entenda qual que foi a história, o período
histórico que foi revelado aquilo dali, pra depois você bater o martelo.
Conheça quem são os muçulmanos, os muçulmanos de verdade, né, porque
esses que se dizem muçulmanos aí, a maioria não segue o que realmente o
profeta falou pra gente fazer e não segue o Alcorão.

Goffman afirma que “termos específicos de estigma”, como aqueles utilizados


corriqueiramente com muçulmanos, são utilizados “como fonte de metáfora e
representação, de maneira característica, sem pensar no seu significado
original.”349Muitas vezes, portanto, as piadas preconceituosas provavelmente não são
maliciosas, mas remetem aos esquemas mentais de associação de um termo a outras
imagens, culturalmente transmitidas. Quando perguntado se já havia sido alvo de
agressões por conta de sua religião, outro brasileiro discorreu sobre essa situação:
Verbalmente o cara é. O cara não tem como escapar, verbalmente o cara é.
Existe a piadinha… mas tem que saber filtrar essa piadinha, ‘tá? Nós, nós
brasileiros somos um país que se destaca por piada, pode fazer o que quiser,
a gente é bom com piada, humor e etc. E tem aquela piada que tu faz pra
pessoa, olha o homem bomba e etc, olha o Bin Laden. Até que ponto aquela
pessoa é ignorante, até que ponto ela sabe o que tá fazendo? A maioria das
piadas é por ignorância. [...] Só que não aconteceu comigo, não aconteceu
comigo isso aí. E porque eu não ando com roupa de árabe, eu ando com
roupa normal, qualquer brasileiro normal usa. Eu não saio com uma plaquinha
“eu sou muçulmano” e tal, embora às vezes eu tinha, eu usava uma camisa
“eu sou muçulmano” etc. As pessoas ficavam bem “assim”, e outras não
tavam nem aí, também. Mas sei lá, sei lá cara. Volta pra mídia, então a
pessoa, se ela disser que nunca foi então ela, não sei, então ela não entende
português. Mas que tu é, sim, é, isso não vai escapar. Assim como o índio
não vai escapar, negro não vai escapar, o homossexual não vai escapar, o
careca não vai escapar, o cara com argola no nariz não vai escapar, com
brinco, não vai escapar. O cara não escapa.

Muitos dos entrevistados demonstraram não se importar com os comentários


estigmatizantes que recebem. “Se a pessoa fizer uma gracinha com ‘cê, te xingar, se
‘cê for bater boca dá problema. Finjo que não acredito. Já passaram, ‘ô homem
bomba, não vai explodir aqui não, né?’, eu finjo que não é comigo”, relatou um
brasileiro. Outro entrevistado demonstra o mesmo tipo de reação:
Quando você não tá nem aí pro que as pessoas falam… Porque, uma coisa
o Islã me ensinou, o Islã é muito seguro nos seus princípios. O Islã é muito

349
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. p. 15.
72

tranquilo em relação àquilo que ele é. Então o muçulmano, ele não tem que
ficar se importando com o que as pessoas tão falando ou aquilo que as
pessoas pensam, não. ‘Cê acha que eu vou me importar com o que o ‘sô Zé
das couves pensa de mim? Eu quero é fazer minha oração, quero é fazer
meu jejum, sabe? Eu quero é… se alguém me oferecer uma cachaça, uma
cerveja, eu quero é dizer que não, porque eu não bebo. Eu quero viver a
minha vida de muçulmano. Se a dona Maria das louças lá tá preocupada com
isso, o seu Zé das couves… não ‘tô nem aí. Olha, se me agredir verbalmente,
num ‘tô nem aí.
Quatro entrevistados, três brasileiros e um sírio, que viveu quase toda a vida
no Brasil, acreditam que a discriminação contra muçulmanos está aumentando no
Brasil. Um deles disse que era difícil inferir, que isso deveria ser feito estatisticamente,
mas que supunha que há um aumento dada a projeção que o Islã toma enquanto
religião que mais cresce no mundo. Para ele, o preconceito não existiria se as crianças
aprendessem, nas escolas, a história do país. Outro associa esse aumento ao
crescimento das religiões evangélicas no Brasil, especialmente neopentecostais, mas
disse que o preconceito não é só contra o seu grupo. De acordo com o relato de um
terceiro, que sempre se veste de forma tradicional, o preconceito religioso “acaba
acontecendo muito porque é muito evidente, eu vou num supermercado vestido desse
jeito sofro muitos olhares, muitas piadinhas”. Ele tampouco se vê como o único alvo,
afirmando que o brasileiro é historicamente preconceituoso em termos raciais, de
gênero, de orientação sexual, e que “o radicalismo das pessoas tem aumentado
muito”350. Sua opinião vai de encontro com a de um quarto entrevistado:
Hoje tá virando moda odiar, quer dizer, nós estamos num tempo bem sinistro,
a gente entrou numa era sinistra, né? [...] A lava tava lá, concentrada, então
entrou em erupção um vulcão, as pessoas ‘tão mostrando o que elas são. A
gente é um país extremamente racista, xenófobo, se diz caridoso, mas não é
caridoso ovo nenhum, nada, bulhufas, certo? É pelo contrário, bem egoísta o
nosso país, individualista. Mas isso daí tem explicação social… isso aí é
construção de anos, né? Mas que tá aumentando? Sim, sim, porque ‘tá na
moda mostrar, mostrar aquilo que tu é. Então ‘tá aumentando sim, pra todos,
todos, não é só pra nós, pra todos.

Outros quatro entrevistados, dois estrangeiros e dois revertidos, não souberam


responder se há um aumento, diminuição ou manutenção do nível da Islamofobia. Um
deles, tanzaniano, afirmou nunca ter visto preconceito de brasileiros contra
muçulmanos, mas contou já ter sido alvo de uma agressão verbal racista uma vez,

350
Espero não imputar um ideal de “progressismo” aos homens muçulmanos de Belo Horizonte, pois
como acontece na maioria dos grupos, há muita diversidade de opiniões entre eles. Ouvi, também,
falas de oposição ao “homossexualismo” e ao feminismo na mesquita (algo que na minha opinião,
infelizmente, também ocorre na maioria dos grupos). A comunidade é politicamente diversa. Há desde
frequentadores que parecem se identificar mais com “a esquerda”, até um entrevistado que se declarou
conservador de direita (e que disse ter uma simpatia pela esquerda, mas que ficava irritado com uma
certa condescendência com que já foi tratado por pessoas que reduzem o conflito em seu país, a Síria,
a uma mera situação de imperialismo estadunidense, enquanto o próprio governo sírio assassina civis).
73

dentro de um ônibus, que foi repreendida por todos que estavam ali. Para um
revertido, a situação é melhor no Brasil do que em outros lugares:
Olha, como eu tenho basicamente, assim, pouco tempo de Islã, né, de
muçulmano, tem 4, 5 anos, eu nunca parei pra fazer essa analogia de como
era, de como ‘tá sendo ou de como poderá ser. Mas como meu professor
disse, eu concordo com ele, o brasileiro muçulmano raramente sofre risco de
vida por ser muçulmano, por fazer uma oração em público. Eu não conheço
nenhum relato de que alguém foi morto no Brasil sendo muçulmano ou
fazendo uma oração em público enquanto muçulmano. E o contrário acontece
em várias partes do mundo. Então essa intolerância religiosa, que possa vir
a existir, que existe em parâmetros diferentes, esse aspecto de
sobrevivência, é algo bom que nós temos aqui no Brasil. A gente consegue
sobreviver.

Os seis demais entrevistados, quatro imigrantes e dois brasileiros, veem uma


melhora na situação dos muçulmanos no Brasil. Um brasileiro vê o surgimento de
mesquitas “em quase todas as grandes cidades do Brasil, nas pequenas cidades, no
Nordeste”, como um indício da diminuição do preconceito. Ele encara a discriminação
como uma carga que os muçulmanos deveriam carregar, a exemplo do profeta
Muhammad, que foi maltratado e apanhou, e dos sahabas, os primeiros muçulmanos,
alguns dos quais foram até mesmo assassinados.
Para um senegalês, os brasileiros começaram a conhecer quem é o
muçulmano, descartando o que a mídia diz. Ele ainda afirmou que nas redes sociais,
por exemplo, não são só os muçulmanos que são discriminados, mas também
católicos, “pessoas da religião tradicional africana” e evangélicos. Para outro, que veio
da Síria há quatro anos e meio (e vinte dias antes da entrevista havia sido naturalizado
brasileiro), a presença de muitos estrangeiros, em sua maioria muçulmanos, alterou a
percepção que se tinha entre brasileiros sobre o Islã como uma religião radical: “Agora
eles ‘tão percebendo que tem muita tolerância, muita paciência, muito amor dentro da
religião.” Segundo um indiano, o brasileiro é mais amável e receptivo, e acredita que
a “guerra que ‘tá contra o Oriente Médio ‘tá dando possibilidade para o brasileiro
entender o outro lado também”, “a pessoa vai pensando, que que ‘tá acontecendo,
porque ‘tá acontecendo, que que ‘tá acontecendo no Afeganistão, por que? Que que
aconteceu, qual objetivo que foi?”
Por fim, um egípcio achou difícil responder a pergunta que fiz, dada a posição
numérica insignificante dos muçulmanos em Belo Horizonte, mas acredita haver uma
diminuição na discriminação devido à internet, que possibilita novas fontes de
informação. Para ele, o contexto do Brasil é diferente do de outros países, e os
brasileiros se assemelham aos egípcios:
74

Nas Europas eu acho mais violento, Estados Unidos, bem mais violento.
Então, os brasileiros, [nos deixam] mais inseridos. Mesmo você estrangeiro,
sabe, ele abre porta, deixa você entrar. Você incorpora nas famílias
brasileiras muito mais fácil que os outros, sabe? Então na verdade eu sinto
mais brasileiro do que eu sou do Oriente. Eu acho isso aqui uma coisa muito
boa, porque os brasileiros são realmente receptivos. Porque, eu fui na
Europa. As pessoas… muito duras, sabe? ‘Cê fala bom dia, ri, ninguém olha
pra você, responde, às vezes responde, sabe? Aqui… quem entra beija,
abraça. Mas… reação do povo brasileiro é bem melhor do que nos outros
lugares que eu já conheci. Então a maioria das pessoas que vieram de fora,
‘tão na busca de oportunidade. Eles saíram de injustiça, falta de chance no
país deles, pra tentar uma vida nova. É igualzinho os brasileiros que vão pros
Estados Unidos. Ele ‘tá achando aqui bagunçado, não tem muitos empregos,
a qualidade de vida lá é melhor, então cara, cada vez [mais] pessoas vão lá
com pensamento que lá a qualidade de vida é melhor. Então a gente chegou
aqui da mesma forma, a gente sai de lá, vamos imaginar, refugiados da sua
cidade, de falta de emprego, de desigualdade… sabe quando você ‘tá de saco
cheio? Você vê, realmente, desigualdade enorme? Então, da mesma forma
que as pessoas saem daqui a gente sai de lá e vem aqui. E… eu acho
realmente eles muito parecidos com o meu povo lá do Egito. Eles gostam
muito das pessoas de fora, gostam de ajudar. Eu vim aqui, eu não sabia de
nada, não falava inglês, não falava português. Trabalhei, eu ‘tava escrevendo
os bilhetes, levando nos cartórios, as pessoas me ajudavam, não sei o que.
Então eu me senti realmente bem confortável aqui.

Finalizo este tópico pontuando que o muçulmano não é passivo ao estigma que
sofre. Retorno à teoria de Goffman, para quem existem “técnicas de controle da
informação” empreendidas por grupos estigmatizados. O autor afirma que, por um
lado, o indivíduo pode reduzir a visibilidade sobre o seu estigma 351 (no caso estudado,
optando por não usar a taqiyah ou ocultando a religião de parte da família, por
exemplo), algo similar ao que a tradição islâmica denomina taqiyya352. Para Goffman,
“[d]evido às grandes gratificações trazidas pelo fato de ser normal, quase todos os
que estão numa posição em que o encobrimento é necessário, tentarão fazê-lo em
alguma ocasião.”353
Destaco que “normal” deve ser pensado apenas como uma
categoria teórica. Neste sentido, recordo o intelectual argelino Mustapha Chérif:
“[a]o mesmo tempo para os não muçulmanos e para os muçulmanos, é vital lembrar
que ninguém tem o monopólio do universal. Resta, hoje, trabalhar juntos para
encontrar um universal comum”354. Chérif vê a fé como condição básica do laço social,
não uma fé necessariamente no divino, mas uma fé no outro:

351
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. p. 54-102.
352
O termo é comumente propagado por grupos anti-islâmicos como a possibilidade de mentir para a
propagação do Islã, mas segundo um especialista em lei islâmica da Universidade de Toronto, trata-se
de uma ocultação ou dissimulação da religião em contextos persecutórios. (DARO, 2018).
353
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. p. 86.
354
CHÉRIF, Mustapha. O Islã e o Ocidente: Encontro com Jacques Derrida. p. 88.
75

Não posso dirigir-me ao outro, qualquer que seja, quaisquer que sejam sua
religião, sua língua, sua cultura, sem lhe pedir para acreditar em mim ou me
dar crédito. A relação com o outro, o endereçamento ao outro, supõe a fé.355

Concluo abordando outra técnica de reação à estigmatização descrita por


Goffman, e que observei entre os muçulmanos de Belo Horizonte. Na teoria
goffmaniana, o indivíduo estigmatizado entende, ao longo de sua vida (ou de sua
“carreira moral”), os sentidos que carrega para os outros 356. Pode, desta forma,
apreender as estruturas da interação necessárias no momento do encontro 357. Cientes
de todos os desconhecimento e estereótipos envolvendo suas pessoas e sua religião,
observei que há muçulmanos que buscam tal encontro, de forma a se apresentarem
a seus outros.
A presença de visitantes na mesquita era frequente, quase toda sexta-feira
estudantes ou curiosos se sentavam ao meu lado, buscando compreender essa
religião e grupo invisibilizados. Ao fim das orações, o sheikh sempre chamava os
visitantes até uma sala de aula dentro da mesquita, para explicar sobre a religião, e
ele, bem como os fiéis, sempre se mostraram dispostos a responder minhas dúvidas
ou compartilhar seu conhecimento. Presenciei, também, a visita de um imam358 de
São Paulo, que distribuiu panfletos aos fiéis e disse estar empreendendo, nas
mesquitas do Brasil, uma campanha para mobilizar os muçulmanos a combaterem o
preconceito levando informação, na forma de livros e panfletos, a conhecidos e a
espaços públicos. Os exemplos mostram uma abertura tanto por parte de não
muçulmanos, quanto por parte de muçulmanos, que possibilita a desconstrução dos
estigmas:
cada vez a diferença entre a abertura e o fechamento depende do risco
assumido, da responsabilidade assumida no risco, por alguém que sabe que
se ele primeiro não se dirige ao outro, se não estende primeiro a mão, a
guerra não acabará.359

4.4. Experiências e vivências de mulheres muçulmanas

O foco deste capítulo foram as percepções de homens muçulmanos em relação


à Islamofobia, e seus posicionamentos, acredito, são muito diferentes daqueles que
poderiam ser ouvidos de uma muçulmana. Um dos entrevistados, quando perguntado

355
Ibidem, p. 63-64.
356
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. p. 41-50.
357
Ibidem, p. 115.
358
Líder religioso islâmico.
359
CHÉRIF, Mustapha. O Islã e o Ocidente: Encontro com Jacques Derrida. p. 66.
76

se já foi impedido ou dificultado a conseguir algum emprego por causa da religião,


respondeu que isso era irrelevante: “Não entra nem sua raça, nem cor, nem pele,
religião, cidadania, não entra em jogo, não. Você não é julgado. Você é julgado pela
experiência que você traz na bagagem.” Para as mulheres muçulmanas, entretanto, a
religião é um peso a mais no mercado de trabalho, algo já documentado por Castro360
e presente também no contexto belo-horizontino, segundo um revertido entrevistado:
A minha esposa, ela não consegue emprego por ser muçulmana. A primeira
coisa que os empregadores perguntam a ela, é se ela vai trabalhar usando
“isso”. Porque, eles falam do véu, né? Aí a primeira coisa que eles querem é
que ela tire o véu, pra poder concorrer à vaga de emprego. Não importa o
currículo dela, primeira coisa que eles perguntam: “‘cê vai trabalhar usando
isso?”. Se ela fala que sim eles já nem voltam a fazer contato.

Outro brasileiro revertido relatou que sua esposa foi alvo de “piadinhas”
maliciosas, relacionadas a sua religião, onde trabalhava, e que todos os colegas de
trabalho disseram não ter ouvido nada, somente um disse que não ouvira, mas não
duvidava da possibilidade. A mesma mulher, segundo seu esposo, também recebeu
uma mensagem de um homem que utilizou o endereço de e-mail do próprio local, uma
companhia pública, que dizia “eu te vi indo lá em tal local, descobri teu e-mail ‘tô
mandando esse e-mail pra que tu te arrependa daquilo que tu é e retorne a Jesus”. O
entrevistado reclamou da falta de suporte para esse tipo de situação:
Se ele for injuriado, caluniado, alguma coisa, ele não vai fazer nada, porque
não acredita já. Já não tá acreditando na polícia, não acredita em política, não
acredita em nada. Então o cara absorve isso aí. Eu vejo errado isso aí. Mas
ao mesmo tempo, quem nos dá suporte? Quem nos dá suporte? Ao mesmo
tempo, ninguém nos dá suporte e a gente não cria um mecanismo de suporte.
Sei lá, tem muçulmanos advogados e não se procura eles, e ao mesmo tempo
eles não desenvolvem alguma coisa a favor da comunidade muçulmana.
Cada um defende o seu, isso aí é a verdade, cada um defende o seu e a
nossa mobilização, pelo menos em Belo Horizonte, é muito, muito pequena.
Ao contrário de São Paulo, São Paulo já tem uma junta de advogados
muçulmanos. E ‘tá rolando, e rola várias coisas lá, de cusparada, pedrada e
a maioria é mulher. Os cara vão atrás, mas tem, tem, acontece. Se tu quiser
procurar na internet é ANAJI, A-N-A-J-I, se não me engano são essas as
iniciais. Formaram, não sei se só muçulmanos, não sei, mas partiu de
advogados muçulmanos numa forma de mobilização [...]”

O fato de ser homem, para ele, torna o tratamento diferente, de modo que “a
proporção é bem menor em relação às mulheres”. Para ele, as razões são o machismo
e a imposição física de homens em relação a mulheres. Outro entrevistado, também

360
CASTRO, Cristina Maria de & VILELA, Elaine Meire. Muçulmanos no Brasil: uma análise
socioeconômica e demográfica a partir do Censo 2010. p. 185.
77

brasileiro, afirmou que as mulheres muçulmanas também são as mais discriminadas


nas redes sociais, devido ao uso do hijab. Para um terceiro, um migrante sírio, ser
muçulmano não é tão difícil para ele quanto é para mulheres, já que “elas têm que
usar véu, roupa larga, tudo e isso chama atenção.” Sua esposa, colombiana, ouve
muitos comentários que sequer entende, por causa da língua, e passa por constantes
constrangimentos
Quando ela sai de casa, passeando ou comprando uma coisa, as pessoas
falam, perguntam, “porque você tá usando isso, você usa sempre, como?” E
tem outras pessoas que falam que “a gente gosta do jeito que você veste,
tudo, da sua religião, da sua terra, tudo”. Porque eles acham que ela é dos
países árabes, mas eles ficam chocados quando ela fala “não, eu sou da
Colômbia”, eles falam “da Colômbia? Tá vestida assim, você é muçulmana?”,
ela fala “sim”. Muito poucas pessoas que perguntam, “por que você virou
muçulmana, qual foi o motivo?”, muito pouco. Mas a maioria, eles perguntam
coisas gerais. Mas às vezes ela fica tipo incomodada, “porque eles ‘tão
olhando? Eu sou uma pessoa normal”. Eu falo “sem problemas, porque aqui
não tem costume de ver isso sempre, todos os dias, então é uma coisa nova
pra eles, até as pessoas ficarem acostumadas, vai mudar, mas por enquanto
só fica tranquila, não se preocupa porque eles tão olhando”.

Outras moradoras de Belo Horizonte que seguem a religião islâmica relataram


a um jornal os preconceitos e agressões cotidianas que enfrentam, como quando
pessoas tentam retirar seus véus361. Suas vivências são muito diferentes daquelas
registradas a partir das entrevistas que realizei. Castro afirma que o véu, no Brasil,
torna a muçulmana identificável, passando a ser atribuído a ela uma concepção
‘orientalista’ que aqui vigora sobre os indivíduos e práticas ligadas ao Islã 362. Segundo
a autora,
[a]s muçulmanas percebem que a) o véu seria interpretado à luz dos
costumes ou religiosidades locais, muitas vezes em detrimento de sua
identificação com a religião islâmica; b) o véu seria percebido como símbolo
da opressão feminina, com diferentes consequências para convertidas e
muçulmanas “de nascimento”; c) a vestimenta islâmica seria entendida como
um traço cultural estrangeiro, isto é, não pertencente à “identidade cultural
brasileira”; e d) por fim, o véu seria tido como símbolo de uma religião que
apregoa o fanatismo e o terrorismo.363

O ponto ‘a’ pôde ser percebido na fala do senegalês entrevistado, confundido


com um padre por suas vestes do período anterior à colonização, como ele disse. A
fala de um revertido que sempre usa roupas tradicionais e a taqiyah e que, numa mídia

361
LOURENÇO, Aline & PEREIRA, Maria Irenilda. Muçulmanas que vivem em BH revelam rotina de
preconceitos. Estado de Minas, agosto de 2018. Disponível em:
https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2018/08/19/interna_gerais,981224/muculmanas-que-vivem-
em-bh-revelam-rotina-de-preconceitos.shtml. Acesso em 22/11/2019.
362
CASTRO, Cristina Maria de. Usar ou não hijab no Brasil? Uma análise da religiosidade islâmica em
um contexto minoritário. p. 365.
363
Ibidem, p. 368.
78

social digital, foi mandado embora do país, demonstra um paralelo com o ponto ‘c’,
mas apenas a partir de sua fala não há como saber se o que gerou o ataque foi o
“chapéu”, o restante das vestimentas ou ambos. A principal comparação, portanto,
entre a recepção de brasileiros (ou, no caso deste estudo, belo-horizontinos) ao uso
do hijab e da taqiyah é a associação ao terrorismo, expressa no ponto ‘d’ por Castro.
Apesar disso, a taqiyah não parece ter o mesmo peso que o hijab, tanto por não ser
utilizada por boa parte dos homens muçulmanos – por não ser encarado como uma
obrigação, não por coerção, para a maioria – quanto por não carregar os outros
sentidos atribuídos ao véu.
Reforço que o estudo de caso desta pesquisa permite uma compreensão (e
uma compreensão limitada, dada a diversidade da comunidade) sobre as experiências
de homens muçulmanos que vivem em Belo Horizonte e região. Aspectos geográficos,
étnico-raciais, etários, de classe e de gênero definem a forma como diferentes
muçulmanos serão percebidos, de modo que, como disse Adbeljalid Sajid, é mais
correto tratar sobre Islamofobias, no plural364.

364
GARNER, Steve & SELOD, Saher. The Racialization of Muslims: Empirical Studies of Islamophobia.
p. 4.
79

APONTAMENTOS FINAIS

O que caracteriza os homens muçulmanos de Belo Horizonte é sua


diversidade: de opiniões, experiências, nacionalidades, classes sociais, etnias.
Praticamente todos, no entanto, mobilizaram alguns pontos em comum em seus
discursos. O estereótipo mais recorrente atribuído ao Islã, de uma forma geral, e
principalmente, a eles, envolve a ideia de violência e extremismo. Todos os
entrevistados comentaram algo sobre as representações equivocadas acerca do Islã,
e o papel da mídia tradicional em sua construção, para a maioria, é bastante claro.
Além do caráter manipulativo, foi recorrente a crítica à ausência, por parte da mídia,
de fontes islâmicas de informação. Ao mesmo tempo, para alguns, a forma como os
conglomerados midiáticos colocam o Islã em evidência pode servir para conduzir
brasileiros de encontro à religião. Tal ideia condensa a variedade de visões sobre a
Islamofobia por parte dos entrevistados: ao mesmo tempo em que se constata a
possibilidade de estigmatização, muitos não a veem de uma forma pessimista.
Assim também são percebidos os ataques aos muçulmanos nas mídias sociais
brasileiras. Somente um entrevistado disse ter sido pessoalmente atacado na internet,
mas muitos notam forte hostilidade contra seu grupo nas redes, amplificada pelas fake
news e pela impossibilidade de debates. Por outro lado, as mídias sociais retiram das
mídias tradicionais o monopólio da informação, possibilitando a muitos brasileiros ir
além dos estereótipos, a partir de suas próprias buscas, na opinião de alguns. O
YouTube foi a principal rede citada onde circula material anti-islâmico, e o WhatsApp
é utilizado para o envio de memes e montagens que levam ao virtual algo recorrente
no cotidiano de quase todos os homens: as brincadeiras e piadas que envolvem o
terrorismo, algo que não é de sua religião, mas é visto de tal forma.
Osama bin Laden, Saddam Hussein, terrorista e homem bomba são os termos
mais utilizados dentro dessas piadas, o que indica a naturalidade com que tal
estereótipo se reproduz. Em Belo Horizonte o problema pode se agravar, uma vez que
o contato com muçulmanos (isto é, quando são lidos como muçulmanos), segundo
eles mesmos, é raro. Há alguns esforços no sentido de alterar essa situação, e alguns
sentem que a religião islâmica está se normalizando na cidade, mas a maioria
reconhece que o Islã ainda é muito distante da vida dos não muçulmanos. Ainda
assim, e apesar das piadas e de ter sido registrado um caso de um homem que
80

mantêm sua religião em segredo para muitas pessoas, as relações de proximidade


com não muçulmanos costumam ser harmoniosas.
Os homens muçulmanos de Belo Horizonte nem sempre são percebidos dessa
forma. Entre os migrantes é comum optar pela descrição, mas os árabes,
principalmente, são alvo de brincadeiras estigmatizantes, assim como o são muitos
brasileiros que passam a seguir o Islã. A taqiyah, utilizada por muitos deles, não possui
valor semelhante ao de um hijab, nem para muçulmanos, nem para não muçulmanos.
A necessidade ou importância que o chapéu tem dentro do Islã não é padronizada nos
discursos dos muçulmanos, e, segundo relatos, é possível utilizá-la sem atrair atenção
ou repúdio. O oposto acontece, contudo, principalmente quando o homem utiliza
outras vestimentas que podem ser associadas à religião. Nesse caso, e em casos de
oração pública, o muçulmano tem grandes chances de ser alvo de agressões verbais
e de piadas (em menor proporção, de impedimento em relação às orações), razão
pela qual muitos evitam as vestimentas, apesar da vontade de utilizá-la por parte de
alguns. A maioria, principalmente os que têm mais tempo dentro da religião, não
costuma se importar quando são provocados.
Quase todos têm ciência de estereótipos islamofóbicos no Brasil entre os não
muçulmanos de Belo Horizonte, mas para a maioria dos homens entrevistados, a
Islamofobia é um fenômeno secundário na sua vida religiosa e cotidiana. Ela pode
influenciar, principalmente, na opção pelo uso de vestimentas e na decisão de orar
em locais públicos, mas há aqueles que não se importam em realizar ambas, e há
outros que não as realizam, mas não pelo medo do preconceito. Entre os
entrevistados, o mais comum é conseguir a liberação do trabalho para as orações
coletivas na mesquita, mas há tantos outros que não entrevistei, e que sequer conheci,
porque não eram liberados, e houve um relato (não pessoal) de demissão após o
pedido, revelando que, numa escala bem menor que a das mulheres, a religião pode
interferir no trabalho de muçulmanos. Muitos dos homens, em especial brasileiros,
veem o preconceito enfrentado como parte de um contexto de ódio contra minorias no
Brasil, e com frequência sentem maior hostilidade vinda de evangélicos,
especialmente neopentecostais, apesar de um diálogo existente entre o Islã e demais
religiões. Outros, principalmente os estrangeiros, sentem-se bastante confortáveis e
integrados, e percebem o país como um lugar mais tranquilo de se viver do que outros.
Os estudos sobre Islamofobia no Brasil ainda são incipientes, e a maioria me
parece ter outros enfoques, margeando a questão do preconceito. Dessa forma,
81

acredito que a presente pesquisa possa contribuir para área, principalmente pelo
recorte de gênero e geográfico. A partir da compreensão sobre as percepções e
experiências de homens muçulmanos que vivem em Belo Horizonte e região, em
relação à discriminação decorrente de sua religião, é possível realizar estudos
comparativos dentro da mesma comunidade, abordando as visões femininas, assim
como se pode comparar este estudo com os casos de muçulmanos em outras cidades
(onde os muçulmanos não são tão minoritários, por exemplo) ou com outras
comunidades religiosas estigmatizadas. O texto pode ser utilizado para discussões
que interseccionem religião, gênero e/ou preconceito a migração, mercado de
trabalho, mídias (tradicionais e digitais) e vestuário.
A comunidade muçulmana belo-horizontina e de outros lugares também pode
fazer uso desta produção, enquanto um registro, a partir das falas dos próprios
muçulmanos, de desafios que podem ser enfrentados para a prática da fé islâmica no
Brasil (ou em contextos minoritários). O texto foi pensado de forma que também
explicasse pontos importantes da religião e de sua globalização, podendo ser útil para
aqueles que querem se debruçar sobre o tema, e os que desejam corrigir equívocos
decorrentes da desinformação. Por fim, amplia a visão sobre a intolerância religiosa
no quadro mineiro e belo-horizontino, incluindo uma religião geralmente invisibilizada
no estado e na cidade.
Há, contudo, muitas limitações. O recorte de gênero não permite que se
compreenda a fundo as opiniões e reações de belo-horizontinos não muçulmanos ao
Islã e seus seguidores, uma vez que os homens não são tão identificados nem
visados. O estudo aborda pouquíssimas experiências femininas, que ainda deverão
ser investigadas, juntamente com os posicionamentos de não-muçulmanos sobre o
Islã e seus fiéis. Há ainda que se pesquisar a ocorrência da Islamofobia no Brasil a
partir de dados das mídias sociais digitais. Mesmo que tenha ouvido relatos bastante
múltiplos, vindos de pessoas que pacientemente cederam seu tempo (aos quais sou
profundamente grato), os homens da comunidade muçulmana de Belo Horizonte têm
origens muito mais diversas, não só em relação à nacionalidade. Este trabalho
compreende apenas parte desses homens e parte das experiências que se pode ter
como muçulmano, migrante ou estigmatizado na capital mineira.
Tentei desenvolver, ao longo do quarto capítulo deste trabalho de conclusão de
curso, a teoria de um esforço sobre o qual pensei, e pelo qual passei, durante esses
dois anos de pesquisa. Trata-se do empreendimento básico que nos é ensinado nas
82

Ciências Sociais (e nas regras cotidianas da boa convivência humana), o exercício da


alteridade. Não compartilhava da religião, dos costumes, nem dos símbolos do grupo
sobre o qual eu li, e com o qual eu convivi, de certa forma, durante quase um ano.
Admito que isso me deixava bastante constrangido, em certos momentos, pois sentia
que estava “vigiando” enquanto os homens a minha frente só queriam rezar em paz.
Espero, de coração, não ter incomodado, e agradeço a abertura, mais uma vez. Um
dos primeiros entrevistados me disse que ficava feliz pelo meu trabalho, pois ajudaria
a mostrar que seu grupo não é um “bando de selvagens”, como se é dito. Espero ter
conseguido, ao menos um pouco. A injustiça da representação que inferioriza dói, e
acho que é sobre isso a alteridade, sentir a palavra do outro. Isso só é possível quando
se passa de uma representação, para uma apresentação. A possibilidade de se
colocar, de se ser e assim, de se dialogar. A diferença não deveria ser uma barreira,
mas um convite.
A ideia do homem bomba, a mais recorrente das representações que me foram
contadas, sempre me pareceu extremamente dolorosa. Trata-se de uma dupla
desumanização: uma pessoa disposta a matar outros, portanto perigosa, e a si
mesma, reconhecendo, assim, que sua vida não tem valor. É a construção de uma
não-vida, um humano que não pode se apresentar, e é utilizada, sob outros termos,
para reduzir outros grupos. Impregnar tal imagem em mulheres, estudantes, crianças,
irmãos, enfermeiros, homens, filhos, humanos, é, na minha opinião, grave. Nem
sempre são os que chamam por nomes os mesmos que tiram vidas ou direitos, mas
podem preparar o caminho. Proponho o exercício do encontro, até que nenhuma vida
seja representada como menor, e todo humano que não busca a inferiorização do
outro, possa se apresentar.
83

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