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ROMA ANTIGA E MODOS DE VIVÊNCIA: a forma em que a morte era

cultuada por meio da religião na sociedade romana

Rebeca Maria Aguiar Silva 1

“Na minha cultura, a morte não é o fim, ela é como um ponto de impulso. Se você esticar os braços,
Bast e Sekhmet levarão você até os campos verdes, onde poderá correr para sempre.” T’CHALLA;
Pantera Negra, 2018

RESUMO: Este trabalho acadêmico tem como objetivo apresentar e discorrer sobre os
principais costumes e cultos presentes na antiga sociedade romana e como a morte, enquanto
fator natural da vida humana, se relaciona com a cultura, religião e as práticas festivas
presentes na sociedade que se davam em função do tempo, fator determinante para aqueles
que viviam da produção agrária e dos resultados dos cultivos que serviam de fonte de renda
para os camponeses e lucro para a alta classe, fatos embasados em artigos científicos que
tratam a sociedade romana em torno dos cultos e das religiosidades.

PALAVRAS-CHAVE: Religião, mortos, Roma antiga, festividades, cultos.

ABSTRACT: This academic work aims to present and discuss the main customs and cults
present in ancient Roman society and how death, as a natural factor of human life, is related
to culture, religion and festive practices present in society that took place in function of time,
a determining factor for those who lived from agrarian production and the results of crops
that served as a source of income for the peasants and profit for the high class, facts based
on scientific articles that deal with Roman society around cults and religiosities.

KEYWORDS: Religion, the dead, ancient Rome, festivities, cults.

É perceptível a presença de ritos e cultos presentes em torno da morte na


contemporaneidade e como os costumes mudam conforme os princípios de cada religião,
sociedade, dentro de sua coletividade, variam de uma para outra, neste artigo será
apresentado como a sociedade romana antiga mantinham seus costumes e festividades à
volta de sua crença politeísta, criando práticas ritualísticas anuais que pudessem atrair e
pedir a benção dos grandes deuses que abençoasse suas colheitas rotineiras, que dependiam
totalmente do tempo.

Em casos de colheitas não bem sucedidas, a elite da sociedade poderia ter grandes
prejuízos em seus negócios, mas os camponeses, que já viviam em estado de calamidade,

1
Graduanda em Licenciatura em História na Universidade Federal do Piauí – Campus
Ministro Petrônio Portela
estavam sujeitos à morte e carência de suprimentos básicos, levando em conta que sua única
fonte de renda foi altamente prejudicada. Caroline Bertassoni dos Santos descreve bem
como ocorriam as festas em favor aos deuses em As Festas Religiosas e a Demarcação do
Tempo na Roma Antiga, onde pontua a dependência do trabalho de produção agrária no
clima que pudesse ser favorável para as colheitas. Ocorriam inúmeros imprevistos, já que o
calendário da antiguidade ainda não seguia o ano solar de 365 dias, alterando a data das
comemorações a cada ano, adotando o sistema de calendário citado apenas no Império de
Júlio César, em 46 a.C.

Os meses iniciais e finais do ano carregavam um misto de sentimentos que ansiavam


por prosperidade para as colheitas para o ano que estava prestes a se iniciar, enquanto uma
sociedade agrária, os romanos cultuavam aos deuses em troca de boas colheitas e clima
adequado conforme cada período do ano fosse passando, como por exemplo a deusa Flora,
que possuía um culto apenas para si no período final de abril para maio, a festa se chamava
Floralia. Flora era uma das deusas mais populares em Roma, a mãe da natureza se
responsabilizava pelas árvores e flores, fossem dos jardins ou das flores, suas festas
celebravam a chegada da primavera, o amor e a fertilidade e seus rituais tinham o objetivo
de tornar o solo mais férteis . (SANTOS, 2010)

Tendo em vista a importância da figura dos deuses para a população romana, há um


processo em que o tempo já não é algo tão abstrato, mas se torna uma construção social
onde os deuses tomam posse para o controle daquela sociedade que se veem no papel de
agradá-los periodicamente através de suas ações e cultos, prezando pela ordem que os
mantinham em harmonia econômica e politicamente. A ação humana passa a ser observada
com um fator determinante para a obtenção de bons resultados e o tempo, juntamente com
os deuses, são vistos como uma chave principal para tal.

Uma forma de botar em prática esse ciclo de bom agrado aos deuses, foram as festas
que acabavam por não acontecer em datas fixas, tendo em vista o acesso restrito do
calendário e as mudanças ocorridas. Nessas festas, as danças e músicas foram os principais
instrumentos de cultuamento, apresentando um grande deleitamento religioso ao realizar
esses atos de agradecimento. Cada festa poderia carregar um conjunto de simbolismos e
significados diferentes, realizadas em torno da coletividade e princípios compartilhados, as
festas não possuíam enfoque apenas na fertilidade das terras, mas também poderiam ser
sobre a origem da cidade ou do povo, por exemplo. O espaço, o tempo e o homem são os
principais pilares que estruturam o movimento das festividades, onde a ordem se faz
presente novamente, em busca de possuir um domínio, por mais abstrato que fosse, da
natureza e seus desdobramentos, suas passagens climáticas e temporais, suas manifestações
e suas mudanças, já que o desconhecido trazia uma sensação de desconforto,
desarmonização da ordem. (SANTOS, 2010)

Vindo de um anseio por um bom período climático para as plantações, as festas


também continham oferenda aos Deuses, detentores do controle, não apenas do tempo, mas
do controle de pragas também. SANTOS (2010) cita Catão, Virgílio e Varão como as
principais fontes que descrevem a relação entre a religião e a agricultura dos romanos,
qualquer tipo de interferência na ordem do processo do cultivo agrário, enquanto a principal
fonte de renda dos camponeses, poderia acarretar em consequências gravíssimas,
prejudicando sua fonte de sustento e de suas famílias, de tal modo, que acarretaria em morte,
um fenômeno inevitável, mas extremamente temido para aqueles que depositaram toda sua
fé naqueles que lhe dariam prosperidade de colheita em troca de cultos.

Regina Maria da Cunha Bustamante descreve os ritos e cultos praticados pelos


romanos para aqueles que se foram em LEMURIA: APAZIGUANDO OS MORTOS
MALFAZEJOS NA ROMA ANTIGA, onde é descrito o cultuamento aos mortos como uma
das principais preocupações para aquela sociedade agrária. Lemuria, termo presente no título
do artigo, se refere às festas que aconteciam no mês de maio para aqueles que não obtiveram
seu enterro e suas tradições devidamente cultuadas, os chamados lemures, espíritos
atormentados que poderia obstruir a prezada ordem romana.

Os mortos eram considerados uma coletividade divina a ser venerada como


ancestrais de forma genérica, e suas almas eram consideradas
potencialmente perigosas. Os rituais funerários objetivavam pacificar a
alma inquietante do defunto, apaziguando suas susceptibilidades, bem
como externar a tristeza da família, publicizar a perda e restaurar o
equilíbrio e a pureza afetados pela morte. (BUSTAMANTE, 2014)

Os sacerdotes, ocasionalmente sacerdotisas e magistrados conduziam os festivais


sendo a religião romana extremamente ritualística. Pater família, vindo de um ambiente
doméstico liderava os ritos, onde, junto dos escravos, acontecia uma espécie de purificação
dos campos e reza aos deuses por prosperidade das colheitas, o culto dos mortos também
adentrava ao âmbito doméstico, onde cada família possuía o papel de enterrar seus defuntos,
se tornando um ato necessário para a preservação do espaço, caso não seja feito, acarretaria
em uma poluição e necessidade de ritos de purificação do ambiente. Novamente, prezando
pela ordem, os corpos eram enterrados fora da cidade, para que não houvesse nenhuma
possibilidade que aquele espírito pudesse causar desordem dentro daquele ambiente de
experiências coletivas que precisava que tudo funcionasse harmonicamente.
(BUSTAMANTE, 2014)

As festividades não se limitam apenas ao âmbito agrário, mas também eram


direcionado aos mortos, que de acordo com a cultura romana, o espírito dos mortos
necessitavam de paz, um “apaziguamento” à sua alma, já que eram potencialmente
perigosas, a purificação era necessária para que não houvesse possibilidade de perturbações
exteriores, e serviam também para consolar a dor da família diante da perda.
Assemelhando-se aos dias atuais, o processo de luto não se limitava ao momento final da
morte, mas prosseguia rituais que procuravam homenagear e oferecer oferenda à esses
mortos, por meio de lâmpadas nas tumbas e periodicamente ocorriam comemorações para os
mortos com uso de festins sobre o túmulo.

O fenômeno da morte muito se relaciona com a memória e com a lembranças que


foram deixadas e é em volta disso que o culto romano trabalhava, a permanência da
memória dos parentes do falecido, preservando-o e cuidando desse espírito, precavendo
qualquer mal que esse espírito possa passar através de conforto, alimentação nas tumbas.
Ainda há os casos em que esses corpos não são enterrados e são dados por indigentes por
conta da negligência de seus familiares, tornando-se lumures e larvae.

A autora descreve como “espectros errantes e malfazejos para os vivos”, os


chamados de “insepultos” são aqueles que não foram enterrados e nem tiveram rituais
fúnebres, já as larvae adentravam em outro nível de periculosidade, pois em vida cometeram
erros e na morte torturava quem estivesse ao seu lado, seriam aqueles que foram mortos
violentamente, suicidas, pessoas assassinadas que mesmo que tenha recebido a tumba não
lhe foi admitida a presença no mundo dos mortos. A sua presença e seus atos eram descritos
como horríveis e se descreviam como espectros pálidos fazendo caretas, tornando-se
necessário o exorcismo dessas ações para a volta da ordem social.

Em idos de maio (9, 11 e 13), celebravam-se as Lemuria, importantes


cerimônias fúnebres destinadas a esconjurar os malefícios dos espectros
que erravam supostamente ao redor das casas. Com isso, restabelecia-se a
harmonia entre os vivos e os mortos. Não havia um ritual comum a todos
os cultos domésticos. Competia unicamente ao Pontifice Maximus
assegurar a boa observância dos ritos familiares, a fim de que a
tranquilidade pública não fosse tumultuada pelos lemures e larvae.
(BUSTAMANTE, 2014)

As lemúria se definem como festas antigas em um contexto doméstico como um


ritual funerário onde cada um deveria enterrar seus respectivos parentes e estavam inseridas
no campo do culto dos antepassados. Havia a prática de inumação e incineração, sendo a
inumação a mais praticada por meio das variações de uso, na incineração, o ato da queimada
simbolizava algo, queimando os alimentos que seriam consumidos pelos mortais juntamente
ao corpo. O morto era transformado em defunto pelo rito dos funerais através do processo de
incineração. (BUSTAMANTE, 2014)

A presença feminina também é notória no contexto fúnebre da antiguidade, mais


especificamente em Atenas, capital da Grécia, onde a presença feminina adentrava no
âmbito político na pólis, onde a autora Marta Mega de Andrade descreve como controversa
tal presença em POLÍTICA E VISIBILIDADE: O ELOGIO DAS MULHERES EM
CONTEXTOS FUNERÁRIOS ATENIENSES (SÉCS. V-IV A.C.), já que se tratava de uma
sociedade onde as mulheres eram excluídas das atividades políticas. As mulheres exerciam
um papel importante para a religião e para a pólis.

Havia uma diferença gritante quando se tratava de elogios fúnebres entre mulheres e
homens. Enquanto os homens, no período arcaico, tinham em seus túmulos elogios épicos e
heróicos, para as mulheres restavam apenas a informação de seus nomes ou parentescos com
pai e irmão e ainda “desculpam-se” pela ocasião da morte tão prematura que não deu tempo
à oportunidade do casamento. É possível encontrar novamente elogios fúnebres dedicadas a
mulheres por volta do século V, agora é notório a presença dos maridos e algumas dos pais,
os elogios giram em volta da virtude e da prudência, a autora traz alguns exemplos:

Esta mulher deixou para trás seu marido e seus irma os, e (legou) a sua mãe
pesar, uma crianc a e renome por uma grande virtude que não envelhecerá
(megáls te aretḗs eúklean agḗrō). Aqui, alguém que alcançou a virtude
inteira (pás s aretḗs), Mnesarete, é mantida na câmara de Perséfone
(thállamos). Mnesarete, filha de Sokrates. (Clairmont1, pl. 15, 30; GV
1962; c. 380 a.C.)

Esse elogio cita a prudência, uma característica que, aparentemente, é de grande


valor para a mulher:

O corpo se contém debaixo da terra, mas prudência, Crisante, um túmulo


na o esconde. (Clairmont1, pl. 18, 34; GV 1778; Atenas, c. 380 a.C.)
Há uma lista de coisas da qual as mulheres atenienses precisam e não podem fazer
para serem respeitadas, e apesar de sua breve presença, ainda é um contexto em que, até
mesmo na religião, a mulher passa a está abaixo do homem. Se indagar sobre a presença
feminina, independente do local, seja político ou religioso, é de suma importância para que
possa ser colocado em prática a “política da comunidade” (ANDRADE, 2014)

Em virtude dos fatos mencionados acerca da religião romana e a relação com a


morte, pode ser feito uma reflexão sobre como um fenômeno inevitável pode ser
interpretado de diferentes formas por diferentes sociedades, mas que alguns costumes ainda
sobrevivem dentro da dinâmica do tempo, que talvez seja a maior amiga e inimiga do
homem, onde de tudo depende e se conecta, onde os romanos colocam sua fé através dos
deuses, onde alguns encontram tormento ou conforto com suas crenças.

REFERÊNCIAS

SANTOS, Carolina Bertassoni dos. As Festas Religiosas e a Demarcação do Tempo na


Roma Antiga. Rio Grande do Norte: Revista Alétheia de Estudos sobre Antigüidade e
Medievo, 2010. vol. 2/2.

ANDRADE, Marta Mega de. Política e visibilidade: o elogio das mulheres em contextos
funerários atenienses (sécs. V-IV a.C.). In: Mare Nostrum. São Paulo: Laboratório de
Estudos sobre o Império Romano e o Mediterrâneo Antigo, 2014. p. 1-18.

BUSTAMANTE, Regina Maria da Cunha. Lemuria: Apaziguando os mortos malfazejos na


Roma Antiga. Rio de Janeiro: Phoînix, 2014.

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