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CORPO ESTRANHO
São Paulo
janeiro de 2008
CORPO ESTRANHO
Banca Examinadora
Henri-Pierre Jeudy
Resumo
Along this research, photography and video were chosen as the medium
used to present it as a convulsive matery, disturbing its limits.
Sumário
CORPO ESTRANHO
Introdução...........................................................................................................................8
O corpo possível.............................................................................................................34
Considerações finais......................................................................................................57
Referências.........................................................................................................................58
Índice de imagens..........................................................................................................61
Agradecimentos.............................................................................................................63
Introdução
*
A cidade de Pelotas, onde morei e trabalhei durante vários anos, fica situada no extremo
sul do Brasil - região que tem como característica topográfica extensas áreas de campos
divididas em zonas rurais de pecuária e de agricultura.
Encarnado, 2003
Aguçadores Incertos, 2003
acima: série Encarnado 1, 2003 abaixo: série Encarnado 5, 2004
Decidida a registrar tudo o que viesse a encontrar no abatedouro, levava
comigo uma máquina fotográfica, tratava-se de um ato de olhar – de uma
fixação do olhar – e da realidade, através do instrumento mecânico. Isto
porque o olho mecânico faz mais do que testemunhar o fato, ele isola e
ressalta determinados aspectos.
De volta a São Paulo, algum tempo depois, ainda não sabia o que fazer
com aquela experiência. Diante das fotografias tiradas no abatedouro e
das séries fotográficas anteriores, parti para uma outra experiência. Tinha
então, o registro de corpos bovinos desmembrados e a memória da série
Encarnado, realizada em 2003-2004, que apontava um corpo que pensava
sua materialidade.
Essas imagens vão além do realismo visual – do que o olho vê, para mim,
visam materializar um estado convulsivo. Por essa intensidade, as
imagens fotográficas geradas no local do abate passam a ser a série
Visita.
Em Visita 6, o que era carne passa a ser parte, ou a negociar com suas
partes. A simetria do volume é apontada através do rebatimento natural do
todo que foi dividido.
Na série Visita, observo o abatedouro como uma cena total, e não como
dado isolado. Tudo lá é matéria.
Há uma questão que deve ser esclarecida desde já, porque perpassa toda
a minha produção. Refiro-me a o que é o corpo? Não pretendo responder
essa pergunta, mas quero trazê-la para deixar claro que é ela que move
este processo reflexivo, visual e textual.
Pensar o corpo, tentar nitidez. (...). Fecha os olhos e tenta pensar no teu
corpo lá dentro. Sangue, mexeção. Pega o microscópio. Que coisa a gente,
a carne, unha e cabelo, que cores aqui por dentro, violeta vermelho. Te olha.
Onde você está agora? To olhando a barriga. E você? To olhando o pulmão.
1
Estufa e espreme. Tudo entra dentro de mim, tudo sai.
(...) as cores são fantásticas, verde e rubro, o prazer do olho faz abrir a
2
boca.
(...) as coisas pulsam, tudo pulsa, há sons o tempo inteiro, tu não ouves? os
3
sons da cor, teu som.
(...) os segredos da carne são inúmeros, nunca sabemos o limite da treva, o
começo da luz, os intrincados da escatologia, os esticados do prazer, o
4
prumo, o todo tenso, as babas, e todas as tuas escamosas escatologias.
5
a carne é que sente
1
Hilda Hilst, A Obscena senhora D. p: 42.
2
Idem, Ibidem. p: 85.
3
Idem, Ibidem. p: 61.
4
Idem, Ibidem. p: 46.
5
Idem, Ibidem. p: 54.
Hilda Hilst, na novela A obscena senhora D, apresenta uma narrativa
fantástica acerca do corpo, que define a condição humana, com situações
obscenas, que, na maioria das vezes, são geradas pelas próprias questões
do corpo, orgânico e visceral, excessivo e envolvente.
6
Pécora apud; Hilda Hilst, Com meus olhos de cão. p: 9.
momento em que o homem se abandona, por um instante provisório, a
seus impulsos animais. Ou seja, nas palavras dele, podemos definir a
metamorfose como uma violenta necessidade que, aliás, se confunde com
cada uma das nossas necessidades animais, que levam um homem a
afastar-se de repente dos gestos e atitudes exigidas pela natureza
humana.7
A meu ver, parece possível aproximar o que Hilda Hilst chama de mexeção
da idéia de metamorfose de Bataille. Em ambas considerações, os autores
estabelecem uma noção de corpo, construída a partir da experiência do
movimento do próprio corpo físico. Essa noção me leva a pensar na
possibilidade de demarcar a idéia de corpo a partir da sua materialidade,
do quanto ela pode alterar e definir o corpo em sensações e desejos.
7
Georges Bataille apud; Eliane Moraes, O corpo impossível. p: 133.
investigativos da artista, que incidem sobre o corpo pensado do seguinte
modo:
8
É a fantasmática do corpo, aliás, o que me interessa, e não o corpo em si.
Sou ou fui uma obsedée sexual. Mas o meu processo, que é todo erótico, é
uma passagem para o meu inter-relacionamento com o real, (...). Meu corpo
se abriu em todos os lados, saíram cachoeiras da minha barriga, me virei
pelo avesso, meu derrière ficou em carne viva, (...). Tudo é libido, tudo é
sensação.
Por aí você vê que o meu trabalho é a minha própria fantasmática que dou
ao outro, propondo que eles a limpem e a enriqueçam com suas próprias
fantasmáticas: então é uma baba antropofágica que vomita, que é engolida
por eles e somada às fantasmáticas deles vomitadas outra vez, somadas
9
até as últimas conseqüências.
A questão do corpo levantada por Lygia Clark aponta para algo paradoxal:
o corpo é, ao mesmo tempo, o sujeito e o objeto. O que ela sente,
aprende, memoriza, imagina e todas as sensações, percepções e
representações interferem no seu corpo. Simultaneamente, ele é a
possibilidade e a condição de criar.
8
Lygia Clark, Lygia Clark – Hélio Oiticica: cartas, 1964-1974. p: 223.
9
Idem, Ibidem. p: 248-9.
10
José Gil, Abrir o corpo in; Lygia Clark: da obra ao acontecimento. p: 63.
Portanto, a consciência do corpo pode ser a fantasmática - a ponte e a
abertura para o mundo, a que Clark se refere. Quer dizer que é a partir
dela que o sujeito pode ter a medida da sua própria realidade interna, ou
seja, descobrir uma zona de troca que agencia incessantemente o dentro e
o fora.
11
Lygia Clark, Lygia Clark – Hélio Oiticica: cartas, 1964-1974. p: 223.
substância interna - é projetada para fora do participante, acumulando-se
sobre o outro, pessoa deitada, mas tornando-o um corpo só.
Para Hilst, como para Clark, o corpo é uma unidade orgânica, a forma
física em constante movimento, que se abre ao mundo, entrega-se a
excessos, e toda outra espécie imaginável de comportamento, para
(re)conhecer-se.
É dessa via, de um corpo sem limite, que se origina meu interesse e minha
produção. É partindo desse ponto complexo que desenvolvo as imagens
fotográficas ou filmográficas, investigando visualmente o quanto o corpo se
permite ser o que ele é, mas também ser o outro.
12
Georges Bataille, Minha mãe. p: 148.
O corpo
corpo exibido: desdobramentos e intensidades
Tratarei agora de dois vídeos realizados, não mais como experiência, tal
como a série Visita, mas realmente como trabalhos pontuais para esta
pesquisa, decorrentes deste processo investigativo.
O vídeo começa com a cena que mostra as costas de uma mulher, vestida
com uma espécie de camisola branca, caminhando para frente. A cena é
acompanhada pelo som de algo que é arrastado. Conforme ela se afasta,
é possível perceber que ela traz dois pedaços de ossos, parte da coluna
de animais, um em cada mão. Os passos são firmes e direcionam o olhar
para o corredor vazio que ela percorre. Começa-se a ouvir o som de uma
respiração ofegante diluída pela cena.
∗
Vídeo em formato DVD de 2’40” em looping.
13
Este som é trecho da música Fênis de Arnaldo Antunes, gravada em 1993. 1’13’’.
Em seguida, o corredor vazio com um pequeno ruído sonoro aparece, mas
logo é substituído por um outro espaço, uma sala de açougue. Na sala, há
uma carcaça animal pendurada, um grande volume de carne. A mulher
nua entra em cena rapidamente e suspende seu corpo numa barra de
metal junto à carcaça. O som ambiente, quase silencioso, é quebrado por
está ação.
∗
Vídeo em formato DVD de 2’30” em looping.
Em Crepúsculo, nas cenas externas, as imagens foram (des)construídas a
partir do rebaixamento das suas cores, sendo assim, a paisagem do
campo verde e o céu azul torna-se cinza – quase irreal, dando ênfase para
a peça de carne que tem sua cor mais presente e intensificada.
14
Filme do diretor brasileiro Cláudio Assis.
Feita a descrição do material de cada um dos dois vídeos, gostaria de
levantar alguns aspectos importantes. Quanto ao primeiro deles, Duplo,
destaco o intenso e interminável processo de desdobramento do sujeito no
objeto exterior, que inicialmente seria indicado pelas transposições
materiais.
Para mim, o que ficou claro depois de realizar estes trabalhos foi uma
relação intrincada entre estes dois termos – desdobramento e intensidade.
Pensando a partir do corpo, logo me vem a certeza de que ele não é algo
fechado, não se limita a suas extremidades. Ele está sempre em relação.
Os vídeos constroem, então, situações específicas, nas quais ele se
confronta e se amplia.
Este modo trata-o sob um recorte que o toma como matéria convulsiva.
Refiro-me, a matéria orgânica em movimento, aos impulsos vitais, a algo
que não precisa de um contexto, de uma situação, para mobilizar-se, para
completar-se, estender-se, (re)conhecer-se, já que, por si só, é pulsante.
O corpo – a carne exposta e o sangue – para mim está ligado sem dúvida,
a um corpo visceral e envolvente, é pura voluptuosidade. Por isso, o corpo
é uma unidade complexa, que de maneira paradoxal, se redefine
incessantemente.
Livros:
AUMONT, Jacques. A imagem. 10º ed. Campinas, SP: Papirus, 2005.
HILST, Hilda. Com os meus olhos de cão. 2º ed. [Org. Alcir Pécora]. São
Paulo: Globo, 2006.
PAZ, Octávio. Um mais além erótico: Sade. São Paulo: Mandarim, 1999.
VISO, Olga. Ana Mendieta: Earth Body, sculpture and performance 1972-
1985. Germany: Hatje Cantz, 2004.
WARR, Tracey; JONES, Amelia. The artist’s body. London; New York:
Phaidon, 2000.
Periódicos:
BATAILLE, G. Informe. [Trad. Marcelo Jacques de Moraes, João Camillo
Penna]. Inimigo Rumor, São Paulo, n. 19, p. 81, 2º semestre 2006 / 1º
semestre 2007. (no prelo)
BATAILLE, G. O dedão do pé. [Trad. Marcelo Jacques de Moraes, João
Camillo Penna]. Inimigo Rumor, São Paulo, n. 19, p. 84-87, 2º semestre
2006 / 1º semestre 2007. (no prelo)
Filmes:
AMARELO Manga. Direção de Cláudio Assis. Brasil: Olhos de Cão, 2002.
100 min., color.
O COZINHEIRO, o ladrão, sua mulher e o amante. (The cook, the thief, his
wife and her lover). Direção de Peter Greenaway. Inglaterra/ França/
Holanda: Allarts Enterprises, Erato Films Inc., 1989. 124 min., son., color.
p. 10, 11
Vivo ou morto, 1999
mesa de vidro, 24 objetos de vidro, leite, sangue,
urina e esperma animal
100 x 100 x 180 cm
p. 12,13
Sem título, 2002
gordura animal, mármore, ferro e rodas de silicone
25 x 100 x 100 cm
p. 14
série Vermelha, 2003
fotografia digital
122 x 244 cm
p. 17, 18, 19
Encarnado, 2003
sebo animal, inox e rodas
43 x 37 x 37 cm (cada)
fotografia digital (da série Vermelha)
122 x 244 cm
p. 20, 21
Aguçadores Incertos, 2003
estrutura e ganchos de metal
260 x 65 x 560 cm
fotografia digital (da série Encarnado)
35 x 50 cm
p. 22
série Encarnado 1 e 5, 2003-2004
fotografia digital
35 x 50 cm (cada)
Produção do mestrado (2005-
(2005-2007)
p. 26
série Visita 1 e 2, 2006
fotografia digital
180 x 110 cm (cada imagem do tríptico)
p. 27
série Visita 3 e 4, 2006
fotografia digital
180 x 110 cm (cada imagem do tríptico)
p. 29
série Visita 5 e 6, 2006
fotografia digital
180 x 110 cm (cada imagem do tríptico)
p. 30
série Visita 7 e 8, 2006
fotografia digital
180 x 110 cm (cada imagem do tríptico)
p. 32, 33
série Visita 9, 2006
fotografia digital
100 x 450 cm
a Alberto Alda, Daniel Acosta, Fabrício Silva, Luiza Vieira, Ket Rodrigues,
Patrícia Francisco, e todos aqueles que contribuíram para a realização
desse trabalho.
a Luis Antonio Simões Lopes pela generosidade com que permitiu realizar
as filmagens do vídeo Crepúsculo em sua propriedade rural.