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MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia

ISSN 2318-0811
Volume II, Número 2 (Edição 4) Julho-Dezembro 2014: 710-712

O Caminho da Servidão
F. A. Hayek
Tradução de Anna Maria Capovilla, José Ítalo Stelle e Liane de Morais Ribeiro
São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 6ª edição, 2010. (231 páginas)
ISBN: 978-85-62816-02-4

E
m sua obra escrita durante os anos britânico) e mesmo aos conservadores que
de guerra e publicada em 1944, F. A. apóiam medidas socializantes, que suas
Hayek (1899-1992) demonstra, com políticas levarão a um Estado autoritário que
preocupação, similaridades entre a Inglaterra não desejam.
de seu tempo e a Alemanha de poucas Em relação ao primeiro ponto, Hayek
décadas antes da ascensão do nazismo. O tece fortes argumentos. Quanto à democracia,
crescimento de idéias socializantes e políticas demonstra a dificuldade de implantação de
planificadoras e a negação dos valores políticas de planejamento, que requerem
“ingleses” e “burgueses” que levaram a diretrizes muito específicas dentre uma
Alemanha ao caminho do totalitarismo pluralidade de possibilidades de ação, e que
poderiam, alerta o autor, levar os ingleses demandam medidas mais assertivas e enérgicas
a um destino similar caso tal tendência se que são prejudicadas pelo processo parlamentar
mantivesse, como se participassem do mesmo democrático. Os parlamentos passam a ser
processo dos alemães, porém com atraso. vistos como demasiado vagarosos e os debates
Hayek confronta a tese de que o nazi-fascismo entre os representantes democraticamente
foi uma reação capitalista ao socialismo, eleitos como sinais de incompetência e
em resposta a essa ideia demonstra origens ineficácia, o que demanda a delegação de
intelectuais em comum e similaridades de poderes para órgãos de especialistas que não
práticas e valores. A tese original e polêmica estejam sob as rédeas do processo democrático.
de Hayek suscitou fortes debates e influenciou Soma-se a isso a incompatibilidade entre a
movimentos políticos não só na Europa planificação e o Estado de Direito. O Estado
como do outro lado do atlântico, inclusive de Direito se baseia na igualdade de todos
o embrionário movimento libertário norte- os cidadãos perante a lei e na capacidade de
americano. os indivíduos preverem a ação do Estado
É interessante notar que a tese central de mediante essas leis. A planificação exige
Hayek pode ser dividida em dois pontos: 1) que que o Estado aja de forma que não possa ser
o socialismo é incompatível com a democracia prevista por todos os indivíduos afetados
e a liberdade individual, requerendo uma por suas medidas e que haja aqueles que vão
sociedade autoritária centralizada; 2) que a decidir que ações vão ser tomadas e como
adoção de medidas anti-liberais desencadeia tais ações afetarão a terceiros. Assim, não há
um processo de gradual perda da liberdade, mais a impessoalidade das normas nem a
podendo levar ao extremo de uma sociedade igualdade garantida pela lei em Estados de
totalitária completamente planificada caso tal orientação constitucional liberal. A sociedade
rumo não seja revertido. Basicamente, o autor planificada necessariamente deve se dividir
quer alertar aos socialistas democráticos entre dirigentes e dirigidos, demandando uma
(como os fabianos do partido trabalhista hierarquia rígida.
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Além do exposto, em uma sociedade em registro os sentidos originais dos termos.


que todos os esforços produtivos são voltados Em 1984, o objetivo final da novilíngua
para fins direcionados, a moral tradicional (newspeak), idioma criado pelo partido
baseada na decisão livre feita por indivíduos totalitário, é o fim de qualquer possibilidade
a partir de regras morais gerais, perde de idealização de conceitos que possam levar
sua razão de ser. O modelo produtivo e a ao questionamento das diretrizes do partido.
moralidade da sociedade planificada exigem Tanto Hayek quanto Orwell percebem a
ampla aceitação dos membros da sociedade. capacidade de alterar a própria compreensão
Isso faz com que todo o questionamento seja da realidade pela manipulação da linguagem.
visto como um empecilho e até como uma Embora haja aproximação de idéias, há uma
forma de traição, levando o Estado a criar diferença essencial entre os dois autores,
uma nova moral que justifique todos os seus Orwell é o próprio “socialista liberal” que
atos. Essa nova moral não pode se basear Hayek procura refutar.
em princípios racionais, já que as escolhas Hayek teve êxito em demonstrar como o
feitas pelos dirigentes serão arbitrárias, por socialismo é incompatível com a democracia e
isso são criados mitos baseados em antigos a liberdade e como uma economia planificada
preconceitos e falsas teorias. A livre discussão só poderia ser gerida de forma centralizada
e o dissenso são menosprezados. O próprio e autoritária. Seus argumentos nunca foram
conceito de “verdade” é distorcido, passando satisfatoriamente refutados e até hoje
de algo que deve ser apreendido pela livre nunca houve um regime simultaneamente
consciência individual para algo ditado pela democrático e socialista. Entretanto, errou
autoridade e em que é preciso crer em nome ao, a partir disso, prever que governos
do bem da comunidade, podendo ser alterado democráticos de tendência socialista levariam
conforme a conveniência. É espantosa a a ditaduras totalitárias como as da União
similaridade entre o pensamento de F. A. Soviética e da Alemanha. Em vez disso, o
Hayek e a obra de George Orwell (1903-1950) avanço de tais governos rumo ao socialismo
intitulada 1984, publicada quatro anos após O se deteve em uma democracia social e muitos
Caminho da Servidão, em que o protagonista, partidos de orientação socialista, dentre
Winston Smith, tem como emprego a tarefa eles o próprio partido trabalhista britânico,
de adulterar documentos para que eles se renegaram o fim de socialização dos meios
coadunem com a mudança de política do de produção e re-significaram o termo
partido. Hayek mostra exemplos soviéticos e “socialismo”, dos meios dirigistas para os
nazistas em que mesmo as ciências naturais fins de justiça social, diferenciação que o
só eram consideradas válidas e verdadeiras próprio Hayek aponta em sua obra. Esse
quando atendiam aos interesses “do povo”, equívoco se dá em parte porque, a análises
ou melhor, do regime. políticas acertadas, o autor acrescenta análises
Outro aspecto em comum entre a obra econômicas incorretas de seu mentor Ludwig
de Hayek e a distopia orwelliana é a relação von Mises (1881-1973), que acreditava que
do regime totalitário com as palavras. Hayek o intervencionismo era instável e que, no
demonstra como os governos totalitários longo prazo, só haveria possibilidade de
tendem a modificar o significado de conceitos existir o livre mercado ou o socialismo. Essas
como “liberdade” e “direito” para justificar previsões não se concluíram. Assim como o
seus atos e legitimar seu regime. Isso leva livre-mercado, os totalitarismos se mostraram
gradualmente a uma incompreensão do instáveis e, após 70 anos da publicação da obra
sentido original das palavras e à dificuldade, de Hayek, o intervencionismo é o modelo
quando não completa impossibilidade, de adotado por todo o mundo e com poucos
diálogo entre alguém educado sob o novo sinais de desgaste. Em resposta a isso, Sanford
regime e alguém que ainda tenha como Ikeda desenvolveu uma teoria austríaca dos
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ciclos intervencionistas, como demonstrado Quando a crise alcança proporções


por Fabio Barbieri em seu livro A Economia do macroeconômicas, os governos são obrigados
Intervencionismo (Instituto Ludwig von Mises, a tomar medidas liberalizantes, mesmo contra
2013). suas ideologias. Inicia-se a fase de contração do
Segundo Ikeda, o modelo intervencio- ciclo intervencionista. Devido a permanência
nista passa por períodos de maior e menor in- de erros de informação devido às intervenções
tervenção, de forma cíclica. A fase expansio- estatais remanescentes, o processo de atuação
nista se dá como Mises e Hayek demonstram: governamental e crescimento do Estado se
as intervenções demandadas geram resulta- reinicia, retomando o ciclo de intervenções.
dos opostos aos esperados, o que demanda Apesar da previsão de Hayek não ter se
ainda mais intervenções, acarretando em um concretizado, O Caminho da Servidão ainda é
movimento de inchaço do Estado. No entan- uma interessante obra para entendermos a
to, o aumento progressivo de problemas gera- incompatibilidade entre a economia socialista
dos por tais medidas diminui a efetividade de e as liberdades individuais e, principalmente,
novas intervenções, e a verdadeira causa de uma interessante análise sobre o modo de
tais problemas passa a ser percebida por um agir e pensar dos pensamentos coletivistas
número maior de analistas. Não é por acaso de tendência totalitária. Mesmo com a queda
que, a partir da crise da década de 1970, di- dos regimes totalitários, a mentalidade
versos autores liberais que estavam afastados autoritária, irracionalista e anti-individualista
do mainstream econômico voltaram a ser ouvi- descrita por Hayek persiste em movimentos
dos. Foi durante esse período de crise que F. como os populismos latino-americanos e
A. Hayek e Milton Friedman (1912-2006) fo- os ultranacionalismos europeus que ainda
ram laureados com o prêmio Nobel de econo- representam um perigo para a democracia e a
mia, nos anos de 1974 e 1976 respectivamente. liberdade.

Victor Yamasaki Bernardo


Graduando em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
vyam2010@gmail.com

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