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CULTURA DO PALÁCIO – DOCUMENTOS

Ora manifesto é que estes descobrimentos de costas, ilhas e terras firmes não se fizeram indo a acertar, mas partiram os
nossos mareantes mui ensinados e providos de instrumentos e regras de astronomia e geometria. Levaram cartas muito
particularmente rumadas e não já as dos antigos. (…) Pedro Nunes, Tratado de Defensão da Carta de Marear, 1537

Não há dúvida que as navegações deste reino, de cem anos a esta parte, são as maiores, mais maravilhosas, de mais altas e
mais discretas conjecturas que as de nenhuma outra gente do mundo. Os Portugueses ousaram cometer o grande mar oceano.
Entraram por ele sem nenhum receio. Descobriram novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos e o que mais é, novo
céu e novas estrelas. (…) Tiraram-nos de muitas ignorâncias e amostraram-nos ser a terra maior que o mar e haver aí
antípodas, que até os santos duvidavam, e que não há região que nem por quente, nem por fria, se deixe de habitar. E que
em um mesmo clima e a igual distância da equinocial há homens brancos e pretos e de mui diferentes qualidades. (…)
Pedro Nunes, Tratado da Esfera, 1537

A experiência nos faz viver sem engano das abusões e fábulas que alguns dos antigos cosmógrafos escreveram
acerca da descrição da terra e do mar, os quais disseram que toda a terra que jaz debaixo do círculo da equinocial era
inabitável, pola grande quentura do sol. E isto achamos falso e pelo contrário […]
Nunca os nossos antigos antecessores, nem outros muito mais antigos doutras estranhas gerações, puderam crer qu e podia
vir tempo que o nosso ocidente fora do oriente conhecido e da Índia pelo modo que agora é; porque os escritores, que
daquelas partes falaram, escreveram delas tantas fábulas, por onde a todos pareceu impossível que os indianos mares e
terras do nosso ocidente se pudessem navegar.
Ptolomeu escreve, […], o mar Índico ser assi como ua alagoa, apartado, por muito espaço, do nosso mar oceano oucidental
que pela Etiópia meridional passa; e que antre estes dous mares ia ˜ua ourela de terra, por impedimento da qual, pera dentro,
pera aquele gólfão Índico, per nenhum modo, nenh˜ua nau podia passar. Outros disseram que este caminho era de tamanha
cantidade que, por sua longura, se não podia navegar, e que nele havia muitas sereias e outros grandes peixes e animais
nocivos, pelo qual esta navegação se não podia fazer.
Pompónio Mela (séc. II), […], e Mestre João de Sacrobosco (séc. XIII), […], ambos disseram que as partes da equinocial
eram inabitáveis pola muito grande quentura do Sol […]; o que tudo isto é falso […]. E como quer que a experiência é madre
das cousas, per ela soubemos radicalmente a verdade […]. Duarte Pacheco Pereira, Esmeraldo de Situ Orbis, 1506

[…] As nossas conclusões são o resultado da experiência simples e pura, a qual é a verdadeira mestre.
Muitos homens queixam-se da experiência e, violentamente, a acusam de mentirosa. Ela está inocente: os culpados são os
nossos desejos vãos e insensatos.
Aqueles que se entregam à prática sem ciência são como o navegador que dirige um navio sem leme e sem bússola. A
prática deve repousar numa boa teoria.
Antes de se transformar um caso numa regra geral, experimente-se duas ou três vezes e veja-se se as experiências
produzem os mesmos efeitos.
Nenhuma investigação humana pode merecer o nome de ciência se não passar pelas demonstrações matemáticas.
A ciência é o capitão, a prática é o soldado. Leonardo da Vinci, Carta a Ludovico, o Mouro (1482)

RUANO – Não é fora de razão, pois tantos trabalhos os Portugueses levam por haver toda a pimenta à sua mão […], que me
digais onde é a força e a quantidade dela maior, e como se chama nas terras donde nasce, e mais como se chama em arábio, e
como se colhe, e a feição da árvore, e se é cá usada para medicina.
ORTA – A mor quantidade desta pimenta há em todo o Malabar e ao longo desta costa, do princípio do cabo do Camorim até
Cananor […].
RUANO – Da feição da árvore e como cresce, e como se cria toda uma árvore me dizei; pois nisto concordam os Gregos e
Latinos e Arábios todos, e os novos escritores que hoje em dia escrevem.
ORTA – Todos a uma voz se concertaram a não dizer a verdade se não que Dioscórides é digno de perdão, porque escreveu por
falsa informação, e de longas terras, e o mar não ser navegado como agora é; e a esse imitou Plínio, e Galeno, e Isidoro, e
Avicena e todos os Arábios. […]
A pimenta, isto é, a árvore ou planta é plantada ao pé de outra árvore e pela mor parte a vejo sempre plantada ao pé de alguma
arqueira ou palmeira, e tem a raiz pequena, […]; e a folha não é muita, nem muito grande […]; nasce como as uvas em cachos, […];
neste Malabar a planta é de duas maneiras, uma que dá pimenta preta e outra branca; e, afora estas, há outra em Bengala, que é
da longa.
RUANO – Parece-me que destruís a todos os escritores antigos e modernos, por isso olhai o que fazeis.
Garcia da Orta, Colóquios dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais das Índias (1563)

Depois de algumas investigações, convenci-me, enfim, de que:


O Sol é uma estrela fixa, rodeada de planetas que giram à sua volta e dos quais ele é o centro e o facho.
Além dos planetas principais, há ainda outros, de segunda ordem, que giram primeiro como satélites à volta dos seus principais
e, com estes, à volta do Sol. A Terra é um planeta principal […].
Todos os fenómenos dos movimentos diurno e anual, a sucessão periódica das estações, todas as vicissitudes da luz e da
temperatura da atmosfera que os acompanham são resultantes da rotação da Terra à volta so seu eixo [Rotação] e do seu
movimento periódico à volta do Sol [Traslação]. O movimento aparente das estrelas é uma ilusão de óptica, produzida pelo
movimento real da Terra e pelas oscilações do seu eixo. […]
Não duvido de que os matemáticos sejam da minha opinião se quiserem dar-se ao trabalho de conhecer, não superficialmente,
mas de uma maneira profunda, as demonstrações que darei nesta obra. Se alguns homens superficiais e ignorantes quiserem
atacar-me sobre algumas passagens das Escrituras, […] eu desprezo os seus ataques: as verdades matemáticas só devem ser
julgadas por matemáticos.
Nicolau copérnico, de Revolutionibus Orbium Coelstium (1543)

Capítulo Sobre o comportamento impróprio à mesa do meu senhor

Há hábitos impróprios que um convidado à mesa do meu Amo não deve contrair, sendo o catálogo que se seg ue baseado nas
observações que fiz daqueles que tomaram assento junto do meu Amo durante o ano que passou:
Convidado algum se deve sentar em cima da mesa, nem de costas voltadas para ela. Nem ao colo de outro comensal.
Nem deve pôr as pernas em cima da mesa. Nem se deve sentar debaixo da mesa por qualquer tempo que seja.
Não deve pôr a cabeça em cima do prato para comer.
Não deve tirar comida do prato do vizinho, sem primeiro lhe pedir autorização.
Não deve colocar no prato do vizinho partes desagradáveis ou semimastigadas da sua própria comida, sem primeiro lhe pedir
autorização.
Não deve limpar a sua faca às vestes do vizinho.
Nem usar a sua faca à mesa para trinchar.
Não deve limpar à mesa as suas armas.
Não deve retirar comida da mesa, colocando-a na bolsa ou na bota para consumo ulterior.
Não deve dar dentadas nos frutos que se encontram na fruteira, voltando depois a colocá-los na mesma.
Não deve cuspir na frente do meu Amo. Nem ao seu lado.
Não deve dar beliscadelas ou palmadas ao vizinho.
Não deve emitir ruídos resfolegantes ou dar cotoveladas.
Não deve revirar os olhos ou fazer caretas assustadoras.
Não deve meter o dedo no nariz ou no ouvido durante a conversação.
Não deve fazer maquetas. nem acender fogos, nem treinar-se na arte da pantomina em cima da mesa (a menos que o meu Amo o
solicite).
Não deve soltar os seus pássaros em cima da mesa. Nem o mesmo fazer com cobras ou escaravelhos.
Não deve tanger alaúde ou qualquer outro instrumento que possa importunar o vizinho (a menos que o meu Amo o solicite).
Não deve cantar, nem fazer discursos, nem proferir impropérios e ainda menos lançar adivinhas lascivas quando ao seu lado se
encontrar uma dama.
Não deve conspirar à mesa (a menos que seja com o meu Amo).
Não deve fazer propostas obscenas aos pajens do meu amo, nem retoiçar com os corpos deles.
Nem deve pegar fogo ao vizinho enquanto se encontra à mesa
Não deve agredir um serviçal (a menos que seja em defesa própria).
E se sentir necessidade de vomitar, que abandone a mesa. Tal como se tiver de urinar.
Leonardo da Vinci, Apontamentos de Cozinha
Este duque, entre muitas coisas louváveis, edificou um palácio no agreste e temível lugar de Urbino, o mais belo de toda a
Itália, no dizer dos conhecedores. Dotou-o tão bem de todas as coisas que não parecia um palácio, mas uma cidade em forma
de palácio. Encheu-o não só daquelas coisas que se usam habitualmente, tal como vasos de prata, ricas tapeçarias de ouro e de
seda e outros mobiliários de interior semelhantes, mas ainda de uma faustosa decoração. Juntou-lhes uma infinidade de
estátuas antigas de mármore e de bronze, as pinturas mais célebres e uma infinidade de instrumentos de música. Para lá ele
não queria nada que não fosse raro e excelente. Em seguida, com grandes despesas, reuniu um grande número de excelentes
livros, os mais raros, gregos, latinos e hebreus: mandou-os revestir todos de ouro e de prata, considerando que aí residia a mais
inestimável pérola do seu vasto palácio.
Baltasar Castiglione, O Cortesão (1528)

Aconselho-te, meu filho, a que empregues a tua juventude em tirar bom proveito dos estudos e das virtudes. Tu estás em
Paris […] Entendo e quero que aprendas as línguas perfeitamente: primeiro a grega […], em segundo lugar a latina, e depois a
hebraica, para as sagradas letras, […] Para aperfeiçoares o teu estilo, redige em grego, imitando Platão; em latim, imitando
Cícero. […]
Que não exista história que não tenhas presente na memória […]. Das artes liberais – geometria, aritmética e música – […] de
astronomia aprende todos os cânones […] Do direito civil quero que saibas de cor os belos textos e que mos compares com
filosofia.
Quanto ao conhecimento das coisas da natureza, quero que a isso te entregues curiosamente, que não haja mar, rio nem
fonte de que tu não conheças os peixes; todas as aves do ar, todos os metais […] que nada disso te seja desconhecido.
Depois, cuidadosamente, revisita os livros médicos gregos, árabes e latinos, sem desprezar os talmudistas e cabalistas, e por
frequentes anatomias adquire o perfeito conhecimento do outro mundo que é o homem. Durante algumas horas do dia começa a
trabalhar sobre as Sagradas Escrituras, primeiro em grego o Novo Testamento e as Cartas dos Apóstolos, depois em hebreu o
Antigo Testamento. François Rabelais, O Livro de Gargântua e do seu filho Pantagruel , 1532

A um filho de família [nobre], quereria eu que houvesse muito cuidado em escolher-lhe um preceptor que antes tivesse a
cabeça bem feita do que muito cheia […].
A um filho de família, que procura as letras, não para ganhar a vida […], nem tanto pelas comodidades externas como pelas
suas próprias, e para se enriquecer e adornar por dentro, tendo mais desejo de tornar-se um homem hábil que um homem
sábio, quereria eu que houvesse muito cuidado em escolher-lhe um preceptor que antes tivesse a cabeça bem feita do que
muito cheia […].
Não cessam de gritar-nos aos ouvidos, como quem deita por um funil, e a nossa obrigação é a de redizer aquilo que nos
disseram. Quereria que ele [o preceptor] corrigisse isso, e que, logo de início, embora tendo em conta a idade e a
personalidade do seu aluno, começasse a ensaiar fazer-lhe apreciar as coisas, escolhê-las e discernir por si próprio;
algumas vezes abrindo-lhe o caminho, algumas outras deixando que ele o abrisse. Não quero que só ele invente e fale,
quero que escute o seu discípulo falar por seu turno […]. Que se não limite a pedir-lhe conta das palavras da sua lição, mas do
sentido e da substância, e que avalie dos progressos que ele tenha feito, não pelo testemunho da sua memória, mas pelo da
sua vida […]. Que tudo lhe faça passar pela peneira, e nada aloje na sua cabeça por simples autoridade e crédito; os
princípios de Aristóteles não lhe sejam princípios, nem os dos Estóicos ou Epicúrios. Que lhe propunha esta diversidade de
juízos: ele escolherá, se puder, se não, ficará na dúvida.
Montaigne, Ensaios (1580)

A princípio, o meu espírito, ávido de saber, contentava-se com qualquer alimento que se lhe oferecia; a breve trecho,
porém, se lhe tornou impossível digerir e começou a vomitar tudo o que ingeria. […] Passava em revista as afirmações,
sondava o sentir dos vivos: respondiam o mesmo, nada, porém, que me satisfizesse. […] Voltei-me, então, para mim
próprio, e pondo tudo em dúvida, como se, até então, nada se tivesse dito, comecei a examinar as próprias coisas: é
esse o verdadeiro meio de saber.
Levava as minhas investigações até aos primeiros princípios. Iniciando aí as minhas reflexões, quanto mais penso,
mais duvido. […] Esses ignorantes sem grande dificuldade correm a Aristóteles, folheiam, revolvem, decoram e o que mais
passagens de Aristóteles souber de cor, esse é o mais douto.
Francisco Sanches, Quod Nihil Scitur, 1581, Médico e filósofo português (1551-1623)
Cada vez que eu olho para os homens de hoje e os comparo aos do passado, considero completamente absurda a opinião
daqueles que crêem não poder louvar as proezas e a sabedoria dos Antigos sem denegrir o seu próprio tempo, condenar os seus
talentos, desvalorizar os seus homens e deplorar o infortúnio que os fez nascer num século tão desprovido de honestidade, tão
vazio de indústria e tão completamente arredado do desenvolvimento das artes liberais.
Quanto a mim, orgulho-me por ter nascido num tempo que produziu uma tal quantidade de homens tão excelentes em
toda a espécie de actividades, que bem podem ser comparados aos Antigos […].
Alamanno Rinuccini (1426-1499), humanista florentino

O Sumo Pai, Deus arquitecto, tinha construído, segundo leis de arcana sabedoria, este lugar do mundo […] desejava que
houvesse alguém capaz de compreender a razão de uma obra tão grande, que amasse a beleza e admirasse a sua
grandeza. Por isso, […] pensou por último criar o homem. […] tomou o homem como obra de natureza indefinida e,
colocando-o no meio do mundo, falou-lhe deste modo:
“Nós não te demos nem lugar preciso, nem forma que te seja própria, nem função particular, ó Adão , para que, segundo os
teus desejos e discernimento possas tomar o lugar, a forma e as funções que desejares […]. Tu, que nenhum limite
constrange, de acordo com a livre vontade que colocámos nas tuas mãos, decidirás dos próprios limites da tua natureza.
Colocámos-te no centro do mundo para que daí possas observar facilmente as coisas. Não te fizemos nem celeste, nem
terreno, nem imortal, nem mortal, para que, por teu livre arbítrio, como se fosses o criador do teu próprio modelo, tu possas
escolher e modelar-te da forma que preferires. Poderás degenerar até aos seres que são as bestas, poderás regenerar-te até
às realidades superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo.”
Ó suma liberalidade de Deus pai, ó suma e admirável felicidade do homem! Ao qual é concedido obter o que deseja, ser
aquilo que quer.
Pico della Mirandola, Discurso sobre a Dignidade do Homem (1486)

A um príncipe, portanto, não é essencial possuir todas as qualidades acima mencionadas, mas é bem necessário
parecer possuí-las. Antes, ousarei dizer que, possuindo-as e usando-as sempre, elas são danosas, enquanto que,
aparentando possuí-las, são úteis; por exemplo: parecer piedoso, fiel, humano, íntegro, religioso, e sê-lo realmente, mas
estar com o espírito preparado e disposto de modo que, precisando não sê-lo, possas e saibas tornar-te o contrário,
Deve-se compreender que um príncipe, e em particular um príncipe novo, não pode praticar todas aquelas coisas pelas quais os
homens são considerados bons, uma vez que, frequentemente, é obrigado, para manter o Estado, a agir contra a fé, contra a
caridade, contra a humanidade, contra a religião.
Porém, é preciso que ele tenha um espírito disposto a voltar-se segundo os ventos da sorte e as variações dos fatos o
determinem e, como acima se disse, não apartar-se do bem, podendo, mas saber entrar no mal, se necessário.
Um príncipe, portanto, deve ter muito cuidado em não deixar escapar de sua boca nada que não seja repleto das cinco qualidades
acima mencionadas, para parecer, ao vê-lo e ouvi-lo, todo piedade, todo fé, todo integridade, todo humanidade, todo religião; e
nada existe mais necessário de ser aparentado do que esta última qualidade. É que os homens em geral julgam mais pelos
olhos do que pelas mãos, porque a todos cabe ver mas poucos são capazes de sentir.
Todos vêem o que tu aparentas, poucos sentem aquilo que tu és; e esses poucos não se atrevem a contrariar a opinião dos
muitos que, aliás, estão protegidos pela majestade do Estado; e, nas acções de todos os homens, em especial dos príncipes,
onde não existe tribunal a que recorrer, o que importa é o sucesso das mesmas.
Procure, pois, um príncipe, vencer e manter o Estado: os meios serão sempre julgados honrosos e por todos louvados,
porque o vulgo sempre se deixa levar pelas aparências e pelos resultados, e no mundo não existe senão o vulgo; os
poucos não podem existir quando os muitos têm onde se apoiar. Algum príncipe dos tempos actuais, que não convém nomear,
não prega senão a paz e fé, mas de uma e outra é ferrenho inimigo; uma e outra, se ele as tivesse praticado, ter-lhe-iam por mais
de uma vez tolhido a reputação ou o Estado. MAQUIAVEL – O PRÍNCIPE, CAPÍTULO XVIII
Quanto a mim, deixo que os outros julguem esta minha tagarelice; mas, se o meu amor-próprio não deixar que eu o
perceba, contentar-me-ei de ter elogiado a Loucura sem estar inteiramente louco. Quanto à imputação de sarcasmo, não
deixarei de dizer que há muito tempo existe a liberdade de estilo com a qual se zomba da maneira por que vive e conversa o homem,
a não ser que se caia no cinismo e no veneno. Assim, pergunto se se deve estimar o que magoa, ou antes o que ensina e
instrui, censurando a vida e os costumes humanos, sem pessoalmente ferir ninguém. […] Se houver, pois, alguém que se
sinta ofendido por isso, deverá procurar descobrir as suas próprias mazelas, porque, do contrário, se tornará suspeito ao
mostrar receio de ser objeto da minha censura. Muito mais livre e acerbo nesse gênero literário foi São Jerônimo, que nem
sequer perdoava os nomes das pessoas! Nós, porém, além de calarmos absolutamente os nomes, temperámos o estilo, de forma
que o leitor honesto verá por si mesmo que o meu propósito foi mais divertir do que magoar. Seguindo o exemplo de Juvenal, em
nenhum ponto tocámos na oculta cloaca de vícios da humanidade, nem relevámos as suas torpezas e infâmias , limitando-nos a
mostrar o que nos pareceu ridículo. […]
Que direi agora dos cortesãos? Não há nada de mais vil, servil e idiota do que a maioria dessa gente, que, apesar disso, pretende
em toda a parte o primeiro lugar. […]
A sua felicidade consiste em ter o direito de tratar o rei por “meu senhor”, em sabê-lo saudar com duas ou três palavras, em
prodigalizar títulos oficiais em que se fala de Serenidade, Majestade, Magnificência. Têm sempre um sorriso na cara e adulam com
satisfação. Tais são os talentos essenciais do nobre e do cortesão. […] Dormem até ao meio-dia. Ao acordar, um padreco da casa,
que esperava junto ao leito, avia-lhes uma missa num instante. Mal acaba o almoço, chega a hora do jantar. Vêm depois os dados, o
xadrez, os adivinhos, os bobos, as mulheres, os divertimentos e as graçolas. Entretanto, uma ou duas refeições, até que voltam á
mesa para a ceia, a que se seguem abundantes libações. Eis como passam, sem qualquer risco de enfado, as horas, os dias, os
meses, os anos, os séculos […].
Rivais dignos dos príncipes, os soberanos pontífices, os cardeais e os bispos, chegam esmo a ultrapassá-los. […] os bispos
apenas se preocupam em apascentar-se a si próprios, deixando o cuidado do rebanho a Cristo e aos que chamam irmãos e seus
vigários. Esquecem que a palavra bispo significa trabalho, vigilância, solicitude. […] Vede quantas riquezas, honras, troféus, ofícios,
dispensas e impostos, indulgências, cavalos, mulas, guardas e prazeres, em poucas palavras, que oceano de bens eu lhes faço
conservar. Ora tudo deveria ser substituído pelos jejuns, vigílias, lágrimas, orações, sermões, estudos, penitências e mil outros
incómodos enfadonhos. […]
Se os Sumos Pontífices, que estão no lugar de Cristo, se esforçassem por imitá-lo na pobreza, nos trabalhos, na sabedoria, no
sofrimento e no desprezo pelas coisas terrenas, se pensassem que o nome de “Papa” significa “Pai” e considerassem o título de
Santíssimo que lhes é dado, não seriam eles os mais infelizes de todos os homens? Quem gastou todas as suas riquezas para
comprar tal dignidade não terá inevitavelmente de a defender pelo ferro, pelo veneno, pela violência? […]
Que fariam então, não esqueçamos, tantos escritores, copistas, notários, advogados, promotores, secretários, almocreves,
palafraneiros, mordomos, alcoviteiros, […]? Toda esta multidão imensa a cargo da Sé romana, perdão, que tem cargos na Sé
romana ficaria reduzida a morrer de fome. E o que seria ainda mais inumano, abominável e horrível, seria querer reduzir os grandes
chefes da Igreja, verdadeiros luminares do mundo, ao bordão e à sacola. […]
Mas parece que, sem refletir no que sou, vou ultrapassando há bastante tempo todos os limites. Por conseguinte, se tagarelei
demais e com demasiada ousadia, lembrai-vos de que sou mulher e sou a Loucura. Ao mesmo tempo, porém, não vos esqueçais
deste antigo provérbio dos gregos: Muitas vezes, também o homem louco fala judiciosamente. E não ser que pretendais que,
nesse provérbio, não estejam incluídas as mulheres, pois eu disse homem e não mulher.
Erasmo, Elogio da Loucura (1511)

A ilha da Utopia tem cinquenta e quatro cidades espaçosas e magníficas. A linguagem, os hábitos, as instituições, as leis são
perfeitamente idênticas. As cinquenta e quatro cidades são edificadas sobre o mesmo plano e possuem os mesmos
estabelecimentos e edifícios públicos, modificados segundo as exigências locais. […] Um mínimo de vinte mil passos de terra é
destinado em cada cidade à produção dos artigos de consumo e à lavoura. […] Estas felizes cidades não procuram aumentar os
limites fixados pela lei. Os habitantes se olham mais como rendeiros do que como proprietários do solo. […]
Os habitantes da Utopia aplicam aqui o princípio da posse comum. Para abolir a ideia da propriedade individual e absoluta, tr ocam
de casa todos os dez anos e tiram a sorte da que lhes deve caber na partilha. Os habitantes das cidades tratam de seus jardins com
desvelo; cultivam a vinha, os frutos, as flores e toda a sorte de plantas. Põem nessa cultura tanta ciência e gosto que jamai s vi em
outra parte maior fertilidade e abundância combinadas num conjunto mais gracioso. […]
Há uma arte comum a todos os utopianos, homens e mulheres, e da qual ninguém tem o direito de isentar-se, é a agricultura.
[…] Além da agricultura, que, repito-o, é um dever imposto a todos, ensina-se a cada um um ofício especial. […] As roupas têm a
mesma forma para todos os habitantes da ilha; esta forma é invariável, e apenas distingue o homem da mulher, o solteiro do casado.
Estas vestes reúnem a elegância à comodidade; facilitam todos os movimentos do corpo, defendem-no contra os calores do verão e
do frio do inverno. Cada família confecciona seus próprios vestidos. […]
O fim das instituições sociais na Utopia é de prover antes de tudo às necessidades do consumo público e indivi dual; e deixar a
cada um o maior tempo possível para libertar-se da servidão do corpo, cultivar livremente o espírito, desenvolvendo suas faculdades
intelectuais pelo estudo das ciências e das letras. É neste desenvolvimento completo que eles põem a verdadeira felicidade. […]
As leis são em muito pequeno número e não obstante bastam às instituições. O que os utopianos desaprovam especialmente
nos outros povos é a quantidade infinita de volumes, leis e comentários, que, apesar de tudo, não são suficien tes para garantir a
ordem pública. […] Não há advogados na Utopia. […] Os utopianos pensam que é preferível que cada um defenda sua causa e
confie diretamente ao juiz o que teria a dizer a um advogado. Desta maneira há menos ambiguidade e rodeio e a verdade se
descobre mais facilmente. […] O juiz examina e pesa as razões de cada um com bom senso e boa fé; defende a ingenuidade do
homem simples contra as calúnias do velhaco. […] As leis são promulgadas, dizem os utopianos, com a única finalidade de que cada
qual seja advertido de seus direitos e deveres. […]
Os utopianos abominam a guerra como uma coisa puramente animal e que o homem, no entanto, pratica mais frequentemente do
que qualquer espécie de animal feroz. […] Não se quer dizer com isto que eles não se exercitem com muita assiduidade na disciplina
militar; as próprias mulheres são a isto obrigadas tanto quanto os homens; […] Mas os utopianos não fazem a guerra sem graves
motivos. Só a empreendem para defender suas fronteiras ou repelir uma invasão inimiga nas terras de seus aliados, ou ainda para
libertar da escravidão e do jugo de um tirano um povo oprimido. […]
As religiões, na Utopia, variam não unicamente de uma província para outra, mas ainda dentro dos muros de cada cidade; estes
adoram o sol, aqueles divinizam a lua ou outro qualquer planeta. Alguns veneram como Deus supremo um homem cuja glória e
virtude brilharam outrora de um vivo brilho Não obstante, a maior parte dos habitantes, que é também a mais sábia, repele estas
idolatrias e reconhece um Deus único, eterno, imenso, desconhecido, inexplicável, acima das percepções do espírito humano,
enchendo o mundo inteiro com sua omnipotência e não com sua vastidão corpórea . Este Deus é chamado Pai; é a ele que atribuem
as origens, o crescimento, o progresso, as revoluções e o fim de todas as coisas. É a ele unicamente que rendem homenagens
divinas. […] Esta variedade de superstições tende, dia a dia, a desaparecer e a converter-se numa única religião, a qual parece
muito mais razoável. […] Entretanto, quando aprenderam connosco o nome do Cristo, sua doutrina, sua vida, seus milagres, a
admirável constância de tantos mártires, cujo sangue voluntariamente vertido submeteu à lei do Evangelho a maioria das nações da
terra, não podeis imaginar com que afetuosa inclinação ouviram esta revelação. […] O que na minha opinião contribuiu sobretudo
para inspirar-lhes estas felizes disposições foi a narração da vida em comum dos primeiros apóstolos, tão cara a Jesus Cristo, e
atualmente ainda em uso nas sociedades dos verdadeiros e perfeitos cristãos. […]
Os utopianos incluem no número de suas mais antigas instituições a que proíbe prejudicar uma pessoa por sua religião. […]
Utopus, decretando a liberdade religiosa, não tinha unicamente em vista a manutenção da paz outrora pe rturbada por combates
contínuos e ódios implacáveis; pensava ainda que o próprio interesse da religião exigia tal medida. Nunca ousou ele estatuir
temerariamente qualquer coisa, em matéria de fé, na incerteza de que o próprio Deus não tenha inspirado aos homens as diversas
crenças no intuito de experimentar, por assim dizer, esta grande variedade de cultos. Quanto ao emprego da violência e de ame aças
para constranger alguém a adotar a mesma crença que outrem, pareceu-lhe tirânico e absurdo. Previa que se todas as religiões
fossem falsas, à exceção de uma, tempo viria em que, com o auxílio da doçura e da razão, a verdade se desprenderia
espontaneamente, luminosa e triunfante, da noite do erro. […]
Os utopianos, ao limitar a tão pequeno número a quantidade de padres, procuram não baratear a dignidade de uma ordem que goza
atualmente da mais alta consideração, transmitindo esta dignidade a muitos indivíduos. A razão principal é que lhes parece di fícil
encontrar muitos homens dignos de preencher uma função cujo exercício exige uma perfeição invulgar. […]
Se bem que os utopianos não professem a mesma religião, entretanto todos os cultos desse país, em suas múltiplas variedades,
convergem por diversos caminhos para o mesmo fim que é a adoração da natureza divina; É por isto que não se vê e não se
encontra nada nos templos que não sirva a todas às crenças em conjunto. Cada um celebra em sua casa, em família, os mistérios
particulares à sua fé. O culto público é organizado de maneira a não contradizer em nada o culto d oméstico e privado. Não se
encontra nos templos nenhuma imagem de deuses, a fim de que fique cada um livre de conceber a Divindade sob a forma que
corresponda à sua crença. […]
Tenho tentado, continuou Rafael, descrever-vos a forma desta república, que julgo ser, não somente a melhor, como a única que
pode se arrogar, com boa justiça, do nome de república. Porque, em qualquer outra parte, aqueles que falam de interesse geral não
cuidam senão de seu interesse pessoal; enquanto que lá, onde não se possui nada em particular, todo mundo se ocupa seriamente
da causa pública, pois o bem particular realmente se confunde com o bem geral. […] Na Utopia, ao contrário, onde tudo pertence a
todos, não pode faltar nada a ninguém, desde que os celeiros públicos estão cheios. A fortuna do Estado nunca é injustamente
distribuída naquele país; não se vêm nem pobres nem mendigos, e ainda que ninguém tenha nada de seu, no entretanto todo mundo
é rico. Existe, na realidade, mais bela riqueza do que viver alegre e tranqüilo, sem inquietações nem cuidados? Existe sorte mais feliz
do que não tremer pela existência, não ser azoinado pelos pedidos e queixas da esposa, não temer a pobreza para seu filho, nã o
apoquentar-se pelo dote da filha; mas estar sempre seguro e certo da existência e do bem estar, seu e dos seus, mulher, filhos,
netos, bisnetos, até à mais longínqua posteridade de que poderia orgulhar-se um fidalgo? […]
Thomas More, Utopia (1516)

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