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Material Complementar

Disciplina: Matemática para Computação

Professor: Larissa Rodrigues Damiani

O que é a matemática? Um modelo da realidade ou a própria realidade?


Artigo publicado por: BBC News Brasil, em 17 de novembro de 2019.

Pense em Netuno. À primeira vista, ele é invisível. Mesmo com um bom telescópio.

A uma distância de 4,3 bilhões de quilômetros da Terra, o oitavo planeta do nosso Sistema
Solar é pouco mais que um pequeno ponto branco no céu.

É por isso que os planetas mais próximos da Terra, como Vênus ou Marte — que brilham
intensamente no céu durante a noite — nos surpreendem desde os tempos antigos.

Por outro lado, só passamos a saber sobre a existência de Netuno no século XIX. Sua
descoberta, no entanto, foi duplamente significativa.

Urano e Netuno

Não apenas encontramos um novo vizinho, mas "Netuno marcou a exploração do Sistema
Solar, porque não foi encontrado olhando o céu com nossos olhos ou com a ajuda de um
telescópio", diz Lucie Green, uma astrofísica do Mullard Space Science Laboratory da
University College London.

CRÉDITO,N
Netuno foi descoberto a partir de cálculos, e não da simples observação
Netuno foi encontrado graças à matemática. No século XIX, as leis da gravidade de Newton
eram bem entendidas e, com elas, as órbitas dos planetas ao redor do Sol podiam ser
previstas. Exceto a de Urano, que se desviou um pouco do caminho esperado.

Naquela época, Urano era o planeta conhecido que estava mais distante do Sol e alguns
cientistas especularam que as leis da gravidade de Newton poderiam não funcionar a uma
distância tão grande.

Outros, porém, acreditavam na matemática, o que os levou a pensar que havia um imenso
objeto por perto, alterando o caminho de Urano ao redor do Sol.

"Eles calcularam o que, como e onde. E quando giraram o telescópio em direção à área que
a matemática indicava, o planeta foi encontrado", diz Green.

A descoberta de Netuno entrou na história como evidência de que a matemática não é


inventada, mas existe. E foi exatamente isso que intrigou um ouvinte do programa da BBC
CrowdScience, Sergio Huarcaya, do Peru.

"De Galileu, que podia prever a velocidade de uma bola rolando ladeira abaixo, até, por
exemplo, a existência do bóson de Higgs — que foi previsto com a matemática antes que a
partícula fosse encontrada na realidade -, esse poder de prever a existência de coisas que
ainda não tinham sido vistas é incrível", escreveu ele.

"A matemática é um modelo, uma descrição, uma metáfora da realidade... ou é a própria


realidade?"

Sergio não está sozinho. Os filósofos refletem sobre isso há milhares de anos. E a questão
continua sendo uma causa de profundo debate.

Não há 'bolo negativo'

É quase certo que os humanos começaram a brincar com a matemática por razões mundanas,
como contar e medir as coisas, então vamos começar por aí. E vamos usar um bolo como
exemplo.

Você tem um pouco de bolo ou não tem bolo


A matemática pode nos dizer todo tipo de coisa sobre esse bolo: suas dimensões, seu peso,
como dividi-lo – tudo muito tangível.

E o bolo pode nos mostrar que a matemática pode ir aonde a realidade não chega. Se você
come um terço do bolo, você tem dois terços restantes. Até aí, tudo bem. E, se você comer
os outros dois terços, ficará sem nada.

"Estamos descrevendo os pensamentos dos antigos", diz Alex Bellos, autor de livros de
matemática. "Eles usaram matemática prática para medir e contar, e não chegaram a números
negativos".

Se seu conceito de realidade consiste em objetos que você pode medir ou contar, é difícil
imaginar algo que seja menor que zero.

O advento do dinheiro nos fez pensar em números negativos de forma mais natural

Dívida e negativos

Assim que você come as migalhas do bolo, ele acaba: não há bolo negativo.

No entanto, diz Bellos, há uma área em que você usa números negativos e é completamente
natural pensar neles. Ele está se referindo ao dinheiro: "Você pode ter dinheiro, mas também
pode dever dinheiro".

"O primeiro uso prático de números negativos foi no contexto de contas e dívidas".

Se você deve R$ 5 e eu lhe der esse valor, você terá R$ 0. E essa é uma realidade que
começa com um número negativo.

Hoje, é difícil pensar em matemática sem eles, e não apenas em termos de dívida. Até aqui,
continuamos enraizados na realidade. Mas há coisas estranhas que acontecem quando você
usa números negativos.
Enigma tremendo

Se você multiplicar dois números negativos, o resultado é um número positivo: -1 x -1 = 1, e


isso traz um verdadeiro enigma.

"Se você começar a usar equações que têm números negativos e positivos, você poderá
pensar 'Como assim? Como você pode encontrar algo que, quando você coloca ao quadrado,
é igual a -1?'”, diz Bellos.

"Não pode ser um número positivo, porque quando você o soma, ou multiplica por ele mesmo,
o resultado é um número positivo. E nem pode ser um número negativo, pela mesma razão",
diz ele. "Quando se tratou disso pela primeira vez, as pessoas pensaram que era um absurdo".

Mas, pouco a pouco, os matemáticos disseram, segundo Bellos: "Sim, é um absurdo, mas
quando o uso no meu trabalho, chego à resposta certa. Vamos deixar para os filósofos
descobrirem o que pode ser. Nós, matemáticos, precisamos de respostas e, se isso nos ajudar
a encontrá-los, tudo bem."

E é assim que saímos da realidade. Mas, de qualquer forma, a matemática ainda serve para
explicá-la.

O imaginário

"A raiz quadrada de -1 é chamada de 'número imaginário', que é um nome terrível, porque dá
a impressão de que a matemática era real e de repente se tornou imaginária", diz Bellos.

"Não, a matemática é imaginária desde o início. Podemos falar de três bolos, mas o que
estamos vendo são bolos, não estamos vendo 'três': três é uma abstração", enfatiza.

"Isso vale para quando você tem números imaginários. Parece totalmente louco, mas uma
vez que você começa a entender como eles se encaixam, é muito lógico. E o comportamento
do que chamamos de números reais, com números imaginários - ao que chamamos de
números complexos -, é uma linguagem brilhante para descrever coisas como rotação".

"Hoje em dia, a raiz quadrada de -1 é tão real quanto o próprio -1", mesmo que seja tão difícil
para nós entender como foi -1 para nossos ancestrais.

Não se assuste

Se você estiver perdido, não se preocupe - continue lendo e tudo ficará claro. Sério. Números
complexos permitem soluções para certas equações que não têm soluções em números reais.

Eles são incrivelmente práticos para entender a realidade e funcionam como uma ferramenta
em quase tudo que envolve rotação ou ondas.

Eles são usados em engenharia elétrica, radares, imagens médicas e podem ser aplicados
para entender o comportamento de partículas subatômicas.

Mas como pode ser que algo que parece existir apenas em sonhos matemáticos acaba sendo
tão útil no mundo real? Para alguns, como o físico húngaro do século 20 Eugene Wigner é
quase um milagre.
Wigner se referiu a números complexos em um influente ensaio de 1960 chamado "The
unreasonable effectiveness of mathematics in the physical sciences" ("A eficiência irracional
da matemática nas ciências naturais").

Se a matemática é uma ferramenta projetada para nos ajudar a entender a realidade, por que ficamos
surpresos quando isso acontece?

Eficácia irracional

Mas se a matemática é projetada pelos humanos exatamente para descrever a realidade, não
é lógico que sirva para isso? O que há de irracional nisso?

Vamos nos voltar para alguém que se move entre os campos da filosofia e da matemática:
uma especialista em filosofia da física, Eleanor Knox.

"É verdade que, se inventamos a matemática para nos ajudar a entender os sistemas físicos,
é muito lógico que o faça. Mas a matemática parece não ter se desenvolvido dessa maneira",
explica ela.

"Há muitos casos em que os matemáticos fizeram algo apenas porque estão interessados em
um problema matemática, o que acaba sendo exatamente o que é necessário em algum
momento posterior para uma descoberta crucial na física".

"Um exemplo famoso é a geometria não euclidiana", diz Knox, referindo-se a um ramo da
geometria em que muitos matemáticos trabalharam no final do século XIX, sobretudo porque
pensavam que parecia interessante.

"Pensava-se que nosso mundo inteiro pudesse ser descrito com a geometria euclidiana, a
que você aprende na escola. As regras para um ângulo reto, que os ângulos de um triângulo
somam 180 graus, por exemplo."

Os matemáticos dos anos 1800 não estavam no processo de derrubar a geometria euclidiana.
Eles estavam simplesmente explorando e encontraram estruturas matemáticas interessantes.

"No século XX, quando Albert Einstein precisou de uma teoria para descrever as regras do
espaço e do tempo para a relatividade geral, o que o ajudou foi a geometria não euclidiana -
ele não teria conseguido sem ela", acrescenta Knox.
"Hoje em dia, pensamos que o mundo tem a estrutura dessa geometria que antes era
estranha, mas nenhum dos matemáticos que começaram a trabalhar nela previu essa
descoberta específica", conclui ela.

Casos como esse nos fazem pensar que, se não milagrosa, a relação da matemática com a
realidade é, no mínimo, surpreendente.

A realidade fundamental

À medida que a física moderna avança, é difícil para nós, meros mortais, entender a
matemática complicada e a estranha realidade que ela descreve.

O que é surpreendente é que, com a matemática, parece possível explorar muito mais do que
nossos sentidos permitem.

No entanto, na busca de uma realidade fundamental, será que a matemática atingirá um limite
em sua capacidade de descrevê-la?

"O século 20 nos deu duas de nossas teorias físicas mais bem-sucedidas: a da mecânica
quântica (o mundo na escala do ultrapequeno, dos átomos e subátomos) e a da relatividade
geral", diz Knox.

"Acontece que fazer as contas dessas duas teorias para trabalharem juntas é incrivelmente
complicado."

"Não temos uma abordagem coerente para entender como essas duas teorias podem existir
no mesmo mundo - como elas podem descrever a mesma realidade", diz. "Você precisa lidar
com níveis impressionantes de complexidade sem poder, no momento, conectar o que está
pensando às experiências".

No entanto, como vimos antes, muita coisa começou assim: uma ideia em busca de sua
função prática. Mas talvez tenhamos chegado a um limite?

"Nesse ponto, talvez se possa concluir que, até agora, tivemos muita, muita sorte pelo fato de
a matemática descrever nosso universo", diz Knox.

"Outra opção é pensar que a matemática descreve partes do mundo, não sua totalidade. Ou
que entender o mundo em sua totalidade é realmente complicado. Ou que a matemática é
diabolicamente complicada e demais para nós, ou que ainda não a entendemos, mas que
eventualmente entenderemos", diz ela.

Descoberta ou inventada?

De onde vem a matemática? Esta é uma pergunta para um matemático.

Eugenia Cheng é cientista residente na Escola do Art Institute, em Chicago. Ela pode
responder se a matemática é algo que é descoberto ou inventado.

"Eu realmente sinto que descubro conceitos e invento maneiras de pensar sobre eles. Quando
faço pesquisas abstratas, sinto que estou vagando por uma selva abstrata em busca de coisas
e então invento uma maneira de falar e teorizar sobre elas para conseguir organizar meus
pensamentos e comunicá-los", diz ela.

Cheng trabalha no campo da teoria das categorias (às vezes chamada de "matemática da
matemática"), que tenta construir pontes entre diferentes áreas da matemática.

É difícil pensar em algo mais abstrato. Por isso, perguntamos se ela sente que a matemática
que estuda também está relacionada à realidade.

Algo abstrato não é sinônimo de algo que não é real

"Quando as pessoas me perguntam sobre a realidade, quero responder: 'o que é real, afinal?'.
O que chamamos de 'realidade' são alucinações que assumimos como reais porque todos
tendemos a percebê-las da mesma maneira."

"As pessoas dizem que os números não são reais porque você não pode tocá-los. Mas há
muitas coisas reais que eu não consigo tocar, como a fome", exemplifica ela.

"É por isso que prefiro falar sobre coisas concretas, aquelas que podemos tocar e com as
quais podemos interagir diretamente, e coisas abstratas, com as quais interagimos em nosso
cérebro", diz. "A matemática é abstrata, mas uma ideia abstrata pode ser tão real quanto
qualquer outra coisa."

O que é real?

Por um lado, pode-se afirmar que a matemática é realidade.

Pense, por exemplo, em nossa biologia, que é baseada na química, que é essencialmente
governada pelas leis da física... e aí chegamos a números.

Ou pense no céu azul, que é explicado pelos comprimentos de onda da luz refratada... e tudo
isso são números.

Parece que, se você se aprofundar o suficiente, a realidade física é matemática. No entanto,


a matemática parece não ser capaz de nos dizer algo significativo sobre algumas das coisas
mais importantes da vida, como amor, fome ou moralidade.
Portanto, de todas as perguntas realmente grandes, só podemos responder uma com alguma
certeza: talvez não encontremos respostas definitivas para a pergunta que Sergio Huarcaya
enviou do Peru à BBC.

Bem, agora podemos dizer que certamente não as encontraremos. Mas ainda valia a pena
procurar.

Fonte: adaptado de: https://www.bbc.com/portuguese/geral-50377079.

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