Você está na página 1de 192

Diana Vidal (org.

SUJEITOS E ARTEFATOS
Territórios de uma história
transnacional da educação
Diana Vidal (org.)

SUJEITOS E ARTEFATOS
Territórios de uma história
transnacional da educação
Todos os direitos reservados à Fino Traço Editora Ltda.
© Diana Vidal
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer
meio sem a autorização da editora.
As ideias contidas neste livro são de responsabilidade de seus organizadores
e autores e não expressam necessariamente a posição da editora.

CIP-Brasil. Catalogação na Publicação | Sindicato Nacional dos Editores de Livros, rj


S946
Sujeitos e artefatos: territórios de uma história transnacional da educação / organização
Diana Vidal. - Ebook - Belo Horizonte [MG]: Fino Traço, 2020.
190 p.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-991561-7-5

1. Educação - Brasil - História I. Vidal, Diana.

20-67269 CDD: 370.981 CDU: 37(09)(81)

Coleção Estudos Brasileiros | Editora Fino Traço


Coordenadores:
Monica Duarte Dantas
Instituto de Estudos Brasileiros | USP (Brasil)
Marcos Antônio de Moraes
Instituto de Estudos Brasileiros | USP (Brasil)

Conselho Editorial:
Amy Chazkel
Columbia University (EUA)
John Tofik Karam
The Lemann Center for Brazilian Studies, University of Illinois (EUA)
Anthony Pereira
King’s College (Inglaterra)
Peter W. Schulze
Instituto Lusobrasileiro, Universidade de Colônia (Alemanha) 
Diana Gonçalves Vidal
Instituto de Estudos Brasileiros IEB | USP (Brasil)

Fino Traço Editora ltda.


finotracoeditora.com.br
Coleção Estudos Brasileiros

O desafio contemporâneo de refletir criticamente sobre a realidade


brasileira, em perspectiva inter/multi/trans e pós-disciplinar, materializa-
se nos títulos que integram a Coleção Estudos Brasileiros, do Instituto de
Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, na Série Paralelos 22,
publicada pela Editora Fino Traço.
Pensar a América portuguesa e o Brasil a partir de uma aguda e original
perspectiva epistemológica, à luz de expressiva fortuna bibliográfica, pressupõe
a ampliação, o adensamento e a interconexão de diferentes enfoques teóricos
e metodológicos capazes de propiciar a apreensão de experiências coletivas
e individuais, desvelando áreas de investigação fronteiriças ou ainda pouco
exploradas. Supõe, igualmente, a compreensão das múltiplas temporalidades
que constituem o processo histórico, tensionadas entre continuidades e
rupturas. Impõe um olhar, simultaneamente abrangente e verticalizado, sobre
sua complexa configuração social, étnica/racial e de gênero, contemplando
alteridades e diversidades, assim como sobre a sua conformação educacional,
cultural, artística e religiosa, atentando a violências, confrontos, negociações
e acomodamentos.
Os títulos da Coleção flagram imaginários de nação e projetos identitários
que produzem expectativas e representações, assim como consubstanciam
territórios e geografias. Descortinam a presença e as relações do Brasil
no contexto globalizado, colocando em pauta questões sociais, políticas,
econômicas, tecnológicas e ambientais. Discorrem sobre meandros da
Antropologia, Artes Visuais, Economia, Educação, Geografia, História,
História Econômica, Literatura, Museologia, Música, Sociologia, entre outras
áreas do saber, refletindo questionamentos elaborados no âmbito do Programa
de Pós-Graduação em Culturas e Identidades Brasileiras e sinalizando as
potencialidades da documentação primária, sobre a qual o IEB, reconhecida
instituição de guarda e extroversão de acervos, oferece consistentes reflexões.
A Coleção Estudos Brasileiros é um convite a leituras críticas sobre
passado e presente, incitando o leitor a imaginar novas perspectivas de futuro.

Os coordenadores
SUMÁRIO

Sobre territórios e história transnacional da educação........ 9


Diana Gonçalves Vidal

PARTE I: SUJEITOS EM VIAGEM

Capítulo 1
Trajetórias da família Loureiro de Andrade na educação da infância: um
debate transnacional.............................................................................. 23
Vinicius Monção

Capítulo 2
Luiz Alves de Mattos e suas redes: viagens e conexões no campo educacional
(1917-1990)..............................................................................................51
Vivian Batista da Silva e Keila da Silva Vieira

Capítulo 3
Em viagem: educadoras brasileiras partem aos Estados Unidos da América
em 1930...................................................................................................75
Diana Gonçalves Vidal

Capítulo 4
A educação sul-americana nas narrativas de Carleton Washburne: uma
análise sob a lente da política de boa vizinhança..................................105
Rafaela Rabelo
PARTE II: CIRCULAÇÃO DE ARTEFATOS

Capítulo 5
A difusão mundial da carteira escolar: Brasil e Estados Unidos da América
no âmbito de uma história transnacional (final do século XIX)........... 131
Wiara Rosa Alcântara

Capítulo 6
Mundos conectados pelo movimento pictorialista: a fotografia como
artefato.................................................................................................. 161
Rachel Duarte Abdala

Sobre os autores................................................................. 186


Sobre territórios e história transnacional da
educação

Diana Gonçalves Vidal

Conceber sujeitos e artefatos como territórios de uma história


transnacional da educação remete a explorar, inicialmente, o próprio conceito
de território; uma discussão que tem sua origem, de acordo com Carla
Holanda da Silva (2009, p. 100), na Geografia Política, do século XIX, no
momento de consolidação dos Estados-Nação, considerados como um “espaço
de poder demarcado, controlado e governado e, assim, fixo”.
Os Estados-Nação, segundo Pierre Bourdieu, emergiram na confluência
entre um Estado-administração e um Estado-território. O primeiro se
fazia em se fazendo o segundo. Ou seja, “a construção do Estado como
campo relativamente autônomo exercendo um poder de centralização da
força física e da força simbólica, e constituído assim no jogo das lutas, é
inseparavelmente acompanhado por um espaço social unificado que é a
sua instância1” (BOURDIEU, 2012, p. 197, tradução livre). Nesse sentido, ter
governo implicaria em ter território.
Mas para que o Estado representasse a Nação, outras condições eram
necessárias. Segundo Benedict Anderson (2008, p. 69), o século XVIII, na

1. No original “la construction de l’État comme champ relativement autonome exerçant un


pouvoir de centralization de la force physique et de la force symbolique, et constitué ainsi
en enjeu de lutes, est inséparablement accompagnée par la construction de l’espace social
unifié qui est son resort”.

9
Europa Ocidental, marcou o nascimento da era do nacionalismo, ao romper
com três condições culturais que exerciam o “domínio axiomático sobre
a mentalidade dos homens”. Foram elas: a indissociabilidade entre uma
determinada língua e a verdade; a crença na graça cosmológica (divina) dos
governantes; e a associação entre cosmologia e história. Os Estados-Nação
surgiram, assim, da busca de “uma nova maneira de unir significativamente
a fraternidade, o poder e o tempo” (Idem, p. 70).
A associação entre Estado, Nação e território deu substância à noção
de fronteira como limite entre o “nós” e o “eles”, barreira física e simbólica
a separar os de dentro dos de fora. Historicamente, afiança Doreen Massey
(2008, p. 28), produziu-se uma naturalização do território, cujo efeito foi
a construção de uma concepção atemporal do espaço, exemplificada na
planificação do mapa. O território seria aquilo que confina, que espacializa
uma determinada sociedade. As fronteiras, assim, não apenas delimitariam
o espaço habitado pelos cidadãos, mas restringiriam os cidadãos ao espaço
do território.
Fugindo da tradição ocidental, Marcel Detienne (2004, p. 48) refere-se
a práticas e maneiras “abundantes de territorialização” e se interroga sobre
os mecanismos de pensamento que “estabelecem o território”. Oscilando
entre o oficio do antropólogo e do historiador e retornando a uma pesquisa
realizada em 1990, denominada “Traçados de fundação”, discorre acerca de
investigações feitas por africanistas “sobre as maneiras de estabelecer um
território, de territorializar com rituais e conjuntos de representações e, de
outro lado, um etnólogo atento às pesquisas de um historiador helenista
descobrindo a gestualidade de um deus que fabrica um território durante
mais de quatro séculos sobre um horizonte político, entre dezenas de cidades
muito pequenas”. E se interroga: “o que é um sítio?” Provoca: “na Índia
bramânica, é a aldeia que gera o limite e não o limite que gera a aldeia”.
Doreen Massey (2008) parece concordar com a premissa quando
afirma que o território é “integralmente espaço-temporal”, construído por
meio de interações nas quais a coexistência de ideias é fundamental para a
compreensão de sua heterogeneidade. Dessa maneira, o espaço consiste em
uma simultaneidade de histórias. Para ela, sem espaço, não há multiplicidade
e, sem multiplicidade, não existe espaço. Multiplicidade e simultaneidade

10
emergem, assim, das práticas materiais. Instiga, portanto, a considerar
as práticas, materializadas em sujeitos e artefatos, como condições de
multiplicidade e da simultaneidade de histórias em territórios.
Nessa trama, toma pertinência a abordagem da história transnacional
da educação, na medida em que ela guarda, no seu próprio nome, a remissão
à Nação e, por conseguinte, à delimitação das fronteiras e à territorialização
plana historicamente constituída. O primado é epistemológico e se aplica tanto
à história quanto à educação. No que concerne à história, vale destacar que
a disciplina se produz como ciência no contexto da construção dos Estados-
Nação, com íntimas ligações com o debate de temas em torno do nacional.
Em texto já tornado clássico, Manoel Salgado Guimarães (1988, p. 5)
explora a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838, e
sua atuação na fundação de uma “linha de interpretação da história brasileira
baseada no papel civilizador e progressista do Estado (primeiramente
português e, a partir de 1822, brasileiro)”. Para Guimarães, o IHGB foi
responsável, no século XIX, por aglutinar as elites políticas e intelectuais,
“contribuindo significativamente para a formação dos mitos e do imaginário
da nacionalidade”. Seguia o Brasil um movimento internacional em que
o discurso historiográfico ganhou “foros de cientificidade num processo
em que a ‘disciplina’ história conquist[ou] definitivamente os espaços da
universidade”.
Nesse cenário, Nação, fronteiras e identidade despontavam como
construtos teóricos necessários na configuração das narrativas históricas,
desenhando similaridades e diferenças. Para o empreendimento, o recurso
à comparação surgiu como método que simultaneamente afirmava a
singularidade de um país e constituía os demais como alteridade. O expediente,
entretanto, não foi exclusivo dos canteiros da história. Se o século XIX viu
nascer a história como ciência, foi também considerado como o século da
escola. Infância, organização de sistemas educativos e obrigatoriedade escolar
tornaram-se investimentos importantes na consolidação de Estados-Nação.
Olhar o estrangeiro para construir o nativo foi um expediente mobilizado
por políticos e educadores. A referência mais remota nesse caso é a Marc
Antoine Julien e o seu Esboço e considerações preliminares de uma obra sobre
a educação comparada, publicado em 1817, em que defendia que somente

11
a sistematização de dados colhidos em vários países em quadros analíticos
poderia explicitar permitir comparação de “fenômenos”, contribuindo à
dedução de princípios e regras gerais capazes de tornar a educação uma ciência
positiva (NÓVOA, 1998, p. 56). No Brasil, autores como Rui Barbosa (1947
[1883]), Liberato Barroso (2005 [1867]) e Frederico José de Santa-Anna Nery
(1884) também se valeram da comparação para propor políticas educativas
ou defender a educação brasileira no exterior.
Não é a intenção aqui retraçar as trajetórias da discussão sobre história
e educação comparada, algo já realizado em publicações anteriores (VIDAL,
2001, 2010, 2017, 2018; VIDAL & GVIRTZ, 2015). Pretende-se apenas
evidenciar que uma história sobre a educação nos séculos XIX e XX, como
a que se entabula neste livro, não pode se descurar de problematizar o efeito
que a constituição de um território como nacional e da delimitação de suas
fronteiras tem produzido na elaboração de narrativas sobre o passado e
o presente da escola e da escolarização. Nesse processo, o recurso a uma
história transnacional da educação emerge como um lenitivo.
Para Eckhardt Fuchs (2014, p. 15), ainda é pequeno o consenso sobre as
abordagens teóricas da história transnacional na educação. A percepção é
compartilhada por Bernhard Struck, Kate Ferris e Jacques Revel (2011, p. 573).
Segundo os autores, a história transnacional – majoritariamente desenvolvida
nos Estados Unidos da América, Reino Unido, Alemanha e França – envolve
iniciativas distintas como a comparação histórica, transferência cultural,
circulação, conexões, sendo ao mesmo tempo uma forma moderna de história
internacional (p. 573). Afirmam, entretanto, que “todas estas ferramentas
ou perspectivas demonstram a importância da interação e circulação de
ideias, pessoas, instituições e tecnologias através do Estado ou das fronteiras
nacionais e assim a conexão e influência mútua dos Estados, sociedades e
culturas” (STRUCK, FERRIS & REVEL, 2011, p. 574).
Nesse panorama, a fronteira não assume uma conceituação unívoca.
Ao contrário, de acordo com Altenbernd & Young (2014), na história
transnacional, a fronteira pode ser considerada como binária ou plural;
linha ou zona; hibridação ou violência; confinamento ou transposição.
Eckhardt Fuchs (2014, p. 15) chega a afirmar que a história transnacional pode
ser, grosso modo, caracterizada como uma “história que cruza fronteiras”.

12
No processo, redefine territórios e regimes territoriais, focando em atores
não ligados ao Estado, colocando as histórias nacionais no interior de
contextos internacionais e apresentando relações transnacionais, conexões
e dependências.
A ênfase nos atores e suas agências é uma das principais características
dessa abordagem para Bernhard Struck, Kate Ferris e Jacques Revel (2011, p.
577). Ao possibilitar a análise da multiplicidade espacial das vidas dos sujeitos
e suas experiências, alternando de uma microescala para um macronível,
de dimensões nacionais a globais, a história transnacional põe em evidência
uma variedade de escalas policêntricas em interação. Simultaneamente,
favorece os deslocamentos entre as questões de grande e larga escala e os
estudos de caso individuais ou de pequenos grupos em procedimentos de
vai-e-vem, realçando o exercício do historiador junto às fontes primárias.
Deste modo, os autores distinguem a história transnacional da já
consagrada história global. Para eles, a principal diferença repousa no
enquadramento espacial. Argumentam que é possível realizar uma análise
transnacional a partir de uma escala inferior ao globo, como por exemplo,
uma escala regional. É justamente o “jogo de escalas” e o impacto que isso
tem na prática historiográfica o que mais atrai nessa perspectiva de estudo.
Ao considerar sujeitos e artefatos educacionais, como territorialidades,
este livro pretende enfatizar as multiplicidades e simultaneidade de histórias
narradas no espaço-tempo. Agindo assim, visa reiterar os alertas de Michel
de Certeau (1982) sobre a operação historiográfica, considerando que o
fazer histórico produz-se no interior também de territórios (físicos e
epistemológicos) que lhe asseguram validade científica em elaborações
construídas a partir de comunidades de interpretação e sentido; ou seja,
tanto as historiografias nacionais quanto as internacionais configuram-se
como territórios em que disputas são travadas. O problema, no entanto, não
se supera com o mero recurso a uma história transnacional da educação ou
com a atenção à circulação internacional. Em um mundo acadêmico em que
inglês é compreendido como língua franca, uma história transnacional da
educação deve estar permanentemente alerta para não subsumir a análise
do universo de estudo à literatura anglófona, reterritorializando objetos de
pesquisa a partir de competências linguísticas.

13
É nesse terreno movediço que esta publicação se situa e escolhe seus
interlocutores, tendo a certeza de que, ao efetuar este movimento, pretende
preservar as premissas fundamentais de compreender as fronteiras dos
Estados Nacionais simultaneamente como barreira e passagem à circulação
internacional de artefatos escolares e sujeitos educacionais; de insistir na
desterritorialização/reterritorialização desses objetos de pesquisa à luz
de discussões teóricas e de investigações empíricas; e de interpelar as
historiografias nacionais e internacionais da educação. Consistem estas
preocupações no conjunto de interrogantes do Projeto Temático FAPESP
(n. 2018/26699-4), intitulado “Saberes e práticas em fronteiras: por uma
história transnacional da educação (1810-...)”, em particular as relativas ao
eixo 2, “Sujeitos e artefatos: movimentos e vestígios”, ao qual pertencem as
seis autoras e o autor aqui incluídos.
Para dar visibilidade às investigações em curso, este volume está
estruturado em duas partes. O primeiro elemento aglutinador das narrativas é
o circuito das viagens, que emerge nos textos, como problemática recorrente
e transversal, invocando, ainda, o acionamento das categorias representação
social (CHARTIER, 1990) e networks/redes (FUCHS, 2007). Particularmente,
colocam-se em evidência as articulações entres educadores brasileiros e
estadunidenses, retraçando itinerários que se iniciam em 1884 com a ida de
Maria Guilhermina Loureiro aos Estados Unidos da América e se estendem
até 1942, quando, em sentido inverso, no Brasil recebe-se a visita de Carleton
W. Washburne. Contempla, no interregno, as missões de estudos realizadas
por Luiz Alves de Mattos e por uma delegação de educadoras brasileiras ao
continente norte-americano. A variação de escalas forja o cerne das análises.
Assim, de autoria de Vinicius Monção, o primeiro capítulo aborda
aspectos das trajetórias de formação intelectual e atuação profissional na
educação da infância dos membros da família Loureiro de Andrade entre
1860 e 1910. Como forma de identificar e seguir seus rastros, utiliza-se da
Hemeroteca Digital Brasileira da Biblioteca Nacional, por meio da qual
localiza informações variadas que indiciam a inserção da família no cenário
educativo da cidade do Rio de Janeiro e suas conexões internacionais,
centrando foco nos trânsitos efetuados por Maria Guilhermina. O expediente
permite acompanhar a circulação de ideias, modelos, sujeitos e artefatos

14
pedagógicos no decorrer do século XIX, bem como as estratégias mobilizadas
na construção de redes sociais.
No capítulo dois, Vivian Batista da Silva e Keila da Silva Vieira colocam
em pauta os percursos, conexões e saberes produzidos pelo educador Luiz
Alves de Mattos. De origem humilde, frequentou desde a infância instituições
católicas no Rio de Janeiro e em São Paulo. Com o apoio da Ordem Beneditina,
foi para os Estados Unidos da América continuar seus estudos. Retornou
ao Brasil, ocupou diferentes cargos, escreveu uma série de livros e contou
com o reconhecimento de seus pares. O exame das conexões estabelecidas
por Mattos delimita-se entre 1917, ou seja, desde quando ele ingressou no
magistério, até 1990, quando da reimpressão, em espanhol, de seu manual
Sumário de Didática Geral. O estudo suscitou investigar o significado das
relações estabelecidas, sua duração, intensidade, frequência, bem como a
velocidade das trocas e seus efeitos, contribuindo para entender as lógicas
por meio das quais os sujeitos constroem suas redes, produzem e fazem
circular saberes no campo educacional.
O terceiro capítulo, de autoria de Diana Gonçalves Vidal, tomando como
mote uma viagem, em missão de trabalho, empreendida por sete educadoras
brasileiras aos Estados Unidos da América entre janeiro de março de 1930,
discorre sobre as ambiguidades de ser mulher e profissional na época. O fio
da narrativa enlaça dois territórios geográficos, mas expande-se por outras
territorialidades sociais e epistemológicas, como as discussões em torno
do celibato pedagógico feminino, as disputas acerca das representações
sociais de feminino e masculino, os debates sobre a função social da mulher,
compondo um amplo mosaico em que o circuito dos deslocamentos alimenta
interpretações nas quais o conhecido se transforma em alteridade e instila
interrogações sobre o nacional vis a vis o internacional.
No capítulo quatro, Rafaela Rabelo debruça-se sobre a passagem do
educador estadunidense Carleton W. Washburne pela América Latina, em
1942, em missão de estudo comissionada pelo Departamento de Estado dos
EUA, durante a qual percorreu por quatro meses Colômbia, Equador, Chile,
Paraguai e Brasil. O objetivo é identificar as representações constituídas
sobre a educação sul-americana pelo educador e explorar suas conexões
com a política de boa vizinhança, delineando interlocuções entre história da

15
educação e diplomacia cultural. Ao mesmo tempo, a investigação visa insistir
no entendimento acerca das redes internacionais que uniam educadores de
vários países, entrelaçando organizações de diferentes naturezas no período.
A Parte II joga luz sobre o segundo elemento aglutinador das narrativas:
a circulação de artefatos, entretecendo novamente os dois territórios
nacionais. Tomam proeminência as carteiras escolares e as fotografias,
ativadas enquanto veículos de relações entre Brasil e Estados Unidos da
América. Como portadores de sentido, estes objetos atuam também como
semióforos, gerando novas interpretações sobre o espaço e o mobiliário
escolar, bem como sobre os modos de captar e representar a sociedade por
meio das imagens fotográficas. Neste último caso, os enlaces levam ainda
a percorrer outras territorialidades, como França, Inglaterra e Alemanha.
Assim, no quinto capítulo, Wiara Rosa Alcântara aborda a circulação
transnacional da carteira escolar na segunda metade do século XIX. Ao
lado das questões pedagógicas, médicas e higiênicas, a industrialização, as
inovações tecnológicas e a internacionalização propiciaram a fabricação e a
difusão desse novo artefato que se tornou cada vez mais imprescindível ao
funcionamento das instituições de ensino. Lançando mão de fontes como os
catálogos das indústrias de mobiliário escolar e das exposições universais, a
autora discorre sobre a atuação de empresas norte-americanas na produção,
propaganda, comercialização e proteção jurídica de seus produtos. Analisando
ofícios e correspondências da administração pública de São Paulo, intenta
demonstrar como, ao “consumir” as carteiras americanas, as escolas públicas
não estavam apenas adquirindo uma mercadoria, mas produzindo a “ideia
de uma moderna carteira escolar para uma escola moderna”.
No capítulo seis, Rachel Duarte Abdala, partindo da interrogação sobre
as disputas em torno aos modelos de representação fotográfica nos anos 1920
no Brasil, por meio do estudo da revista Photogramma, mergulha em circuito
internacional que une continentes no qual o movimento pictorialista toma
proeminência. Os artefatos que mobiliza na investigação não se cingem à
fotografia, mas abarcam manuais e revistas, cujo objetivo era disseminar
equipamentos e técnicas, debates em torno dos preceitos da foto arte, e
padrões estéticos, promovendo novos hábitos de produção e consumo do

16
objeto fotográfico, tanto por parte de fotógrafos, quanto da sociedade. O
procedimento leva a autora a recuar ao século XIX e percorrer as distâncias
entre Brasil e EUA, estendendo-se também a países europeus, exercitando,
assim, as artes de uma história conectada.
Os textos aqui incluídos revelam a amplitude da pesquisa em curso no
âmbito do Projeto Temático, as várias vertentes perseguidas no arco temporal
que abarca dois séculos e no qual o Brasil serve de ponto de partida e de
chegada às análises, em circuitos que, tramados no interior de fronteiras
nacionais, provocam refletir sobre trânsitos internacionais, hibridações
e apropriações em um processo de circulação transnacional de sujeitos e
artefatos, do qual modelos e saberes pedagógicos e sociais não estão de fora.
Neste exercício, os objetos de estudo são des e re-territorializados espacial,
histórica e epistemologicamente.

Referências bibliográficas
ALTENBERND, Erik & YOUNG, Alex Trimble. Introduction: The significance
of the frontier in an age of transnational history, Settler Colonial Studies,
4:2, 127-150, 2014.
ANDERSON, Benedict, Comunidades imaginadas. São Paulo: Cia. das
Letras, 2008.
BARBOSA, Rui. Reforma do ensino primário e várias instituições
complementares da instrução pública. Rio de Janeiro: MES, 1947 [1883].
BARROSO, José Liberato. A instrucção publica no Brasil. Pelotas: Seiva,
2005 [1867]
BOURDIEU, Pierre. Sur l’État. Cours au Collège de France, 1989-1992. Paris:
Éditios du Seuil, 2012.
BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
DE CERTEAU, Michel. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense-
Universitária, 1982.
DETIENNE, Marcel. Comparar o incomparável. Aparecida (SP): Ideias &
Letras, 2004.

17
FUCHS, Eckhardt. Networks and the history of education, Paedagogica
Historica, 43:2, 185-197, 2007.
FUCHS, Eckhardt, “History of education beyond the Nation? Trends in
Historical and Educational Scholarship”, In: BAGCHI, Barnita, FUCHS,
Eckhardt and ROUSMANIERE, Kate (ed), Connecting histories of education.
Transnational and cross-cultural exchances in (post) colonial education. New
York/Oxford, Berghahn Books, 2014.
GUIMARAES, Manoel S. Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto
Histórico Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional. Estudos
históricos, Rio de Janeiro, n. 1, 1988, p. 5-27.
MASSEY, Doreen B. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
NÓVOA, António. Modeles d’analyse en education comparée: le champ
et la carte. In: NÓVOA, António . Education comparée. Montreal/Paris:
L’Harmattan, p. 9-61, 1998.
SANTA’ANNA NERY, F.J. “L’instruction publique au Brésil”. Revue
Pédagogique, 1884.
SILVA, Carla Holanda. Território: uma combinação de enfoques – material,
simbólico e espaço de ação social. Geografar, Curitiba, v. 4, n. 1, p. 98-115,
jan./jun. 2009.
STRUCK, Bernhard; FERRIS, Kate & REVEL, Jacques. Introduction: Space
and Scale. Transnational History, The International History Review, 33:4,
573-584, 2011.
VIDAL, D. G. História da Educação Comparada: reflexões iniciais e relato de
uma experiência. História da Educação, Pelotas, v. 5, n. 10, p.31-42, set. 2001.
VIDAL, D. G. As viagens, os viajantes - tantas espécies deles! Os desafios
da pesquisa em história comparada da educação. In: FLORES, Cláudia;
ARRUDA, Joseane Pinto.. (Org.). A Matemática Moderna nas escolas do
Brasil e Portugal: contribuição para a história da educação matemática. São
Paulo: Annablume, 2010, v. , p. 09-24.
VIDAL, D. G . Transnational education in the late nineteenth century: Brazil,
France and Portugal connected by a school museum. History of Education,
v. 47, p. 1-14, 2017.

18
VIDAL, D. G Transnational education in the late nineteenth century: Brazil,
France and Portugal connected by a school museum. In: Heather Ellis. (Org.).
Science, Technologies and Material Culture in the History of Education. 1ed.
New York: Routledge, 2018, v. 1, p. 110-127.
VIDAL, D. G. & GVIRTZ, S. . Historia comparada de la educación entre
Brasil y Argentina: alcances y limites. In: Nicolas Arata, Maria Luz Ayuso.
(Org.). SAHE 20. La formación de una comunidad intelectual. 1ª ed.Buenos
Aires: SAHE, v. 1, p. 156-164, 2015.

19
PARTE I
SUJEITOS EM VIAGEM
CAPÍTULO 1

Trajetórias da família Loureiro de Andrade na


educação da infância: um debate transnacional

Vinicius Monção2

No decorrer do século XX e XXI, a comunidade acadêmica internacional


tem desenvolvido termos, categorias, conceitos, abordagens e perspectivas
historiográficas que buscam alterar as escalas de análise. Neste cenário vimos,
por exemplo, o florescimento de diversas pesquisas que discutem perspectivas
de análise, como a História Global (BERTRAND, 2010; CHARTIER, 2009), a
História Conectada (GRUZINSKI, 2001; SUBRAHMANYAM, 1994, 1997), a
História Cruzada (WERNER, ZIMMERMANN, 2003), a História Entrelaçada
(SOBE, 2013) e História Transnacional (ALTENBERND,  YOUNG, 2014;
STRUCK, FERRIS, REVEL, 2011; FUCHS, ROLDÁN VERA, 2019; VIDAL,
RABELO, 2020). Embora estas abordagens tenham como interesse em comum
as circulações, elas são distintas em seus objetos, pressupostos e projetos,
como considera Revel (2015).

2. As investigações fazem parte do projeto “A revista The New Era: produção e circulação
de saberes sobre a Educação Nova a partir da perspectiva da história transnacional da
Educação” (Processo FAPESP 2020/00219-6), vinculada ao projeto temático “Saberes e
Práticas em Fronteiras: por uma história transnacional da Educação (1810-...)” (Processo
FAPESP 2018/26699-4).
No interior dos debates metodológicos e epistemológicos tem sido
apontado para as possibilidades de análise e construção das narrativas
históricas que nos permitem rever as relações sociais constituídas ao longo
dos séculos, variando os pontos de vistas, misturando “centro” e “periferia”,
na busca por simetrias e anomalias. Estas discussões nos impulsionam a
olhar para os processos históricos de modo a abordar as complexidades das
interações e relações sociais como objeto de análise.
Pensar a construção de uma história da educação para além dos limites
do Estado-Nação tem sido o ponto de atuação de alguns historiadores da
educação nos últimos anos. Como apontado por Martin Lawn (2014), “a
história da educação tem tratado seu objeto de estudos como naturalmente
nacional, como se tivesse fronteiras impermeáveis, instituições comuns,
lugares distintos e objetos nativos”. A isto, ele considera que o “nacionalismo
metodológico” produziu uma cegueira sistêmica que não nos permite
visualizar as conexões e relações complexas que as sociedades criadas ao
longo dos tempos (LAWN, 2014, p. 132). A perspectiva trazida por Lawn
está ancorada nas discussões estabelecidas nas últimas décadas no campo
da História, que buscam realocar a história em um cenário mais complexo
ao considerar os trânsitos e conexões que perpassam as diferentes nações e
as histórias locais de forma conectada.
Nesse caminho, Roldán Vera (2013) considera que o termo “nacional” tem
sido utilizado como uma categoria analítica estática e que a força retórica dos
termos “História Nacional” ou “Educação Nacional”, pouco tem favorecido
para o exame do passado, já que partem do pressuposto, e da naturalização,
da existência do Estado-Nação. Diante dos apontamentos apresentados pela
autora, consideramos pertinente a adoção de sua perspectiva para olharmos
para um caso brasileiro.
Ao seguirmos as proposições de Lawn (2014) e Roldán Vera (2013),
tomarmos como objeto de análise aspectos relacionados às trajetórias de
formação intelectual e atuação profissional dos professores da família Loureiro
de Andrade. Diante dos indícios referentes aos contatos estabelecidos com
outros sujeitos e o contato com os saberes e artefatos pedagógicos oriundos de
países europeus e dos Estados Unidos da América, pelo qual nos aproximamos

24
da perspectiva da História Transnacional. Isto posto, tal perspectiva questiona
o paradigma da transferência cultural3, dado o interesse em abranger as
agências e experiências dos sujeitos e a criação de grupos e associações
não-estatais e suas buscas na efetivação dos projetos.
Sobre esse aspecto, Sobe (2013), considera que a ideia de transferência
cultural tende a postular pontos fixos de partidas e chegadas, sem levar
em consideração as perspectivas mais densas e complexas das trocas e
interações culturais, sociais e políticas que estavam em curso em determinado
período histórico. A crítica ao paradigma da transferência apresentado
pelo autor tem como princípio o risco do obscurecimento de conexões e
entrecruzamentos que engendram certas formas culturais e padrões sociais,
que a perspectiva da dinâmica “centro-periferia” não oportuniza, já que não
prevê as multidimensionalidades dos processos históricos.
Na mesma direção, Vidal (2019) destaca o interesse em identificar
os atores dos processos históricos, que, mesmo diante de mecanismos de
controle, fiscalização e constrangimentos manifestados pelo Estado, os sujeitos
exerceram suas agências. Nesse caminho, o jogo de escalas, em uma dinâmica
de vai-e-vem, da “microescala para um macronível, o que inclui dimensões
nacionais e globais, revelando uma variedade de escalas policêntricas em
interação”, atua com questões referentes a estudo de casos individuais ou
de pequenos grupos para proporções de larga escala como estudos sobre
instituições ou associações (VIDAL, 2019, p. 122).
Diante dos elementos, na sequência, discorremos sobre o desenvolvimento
da perspectiva da história transnacional da educação nos últimos anos, tanto
no Brasil quanto no exterior.

A história transnacional da educação, uma abordagem em


desenvolvimento
A história transnacional parte da redefinição da noção de fronteiras e
territórios. O foco está nos atores não ligados aos Estados e insere as histórias
nacionais no interior de contextos internacionais, valorizando as relações
transnacionais, de dependências e as conexões. De acordo com Fuchs e

3. A perspectiva engloba a discussão centro e periferia, no sistema-mundo. Ver Lima (2015).

25
Roldan Vera (2019), no campo da História da Educação, esta perspectiva
tem se manifestado em diferentes países desde finais dos anos 1990, na onda
dos debates sobre História Global e da História Mundial emergidos nos
Estados Unidos da América. Em um breve levantamento de literatura sobre
a história transnacional da educação no contexto europeu e estadunidense
nos últimos anos, Fuchs e Roldan Vera (2019) mapearam e categorizaram as
pesquisas em sete áreas temáticas que se referem a: interações internacionais
e a constituição de redes de educadores; aspectos referentes aos contextos
o colonial e imperial; o estabelecimento da educação enquanto ciência
na perspectiva internacional; difusão de saberes pedagógicos; histórias
institucionais; análises sobre livros didáticos e os estudos de gênero.
Com relação ao contexto brasileiro, destacamos o livro “Movimento
Internacional da Educação Nova”, organizado por Vidal e Rabelo (2020)
que é composto por pesquisas que se debruçaram a discutir a circulação da
educação nova no contexto internacional por meio da atuação de sujeitos; via
Networks, circulação de ideias, objetos e sujeitos; e as propostas e apropriações
da organização escolar, adoção de métodos de ensino. Em outra publicação,
Vidal (2019) considera que a perspectiva transnacional de educação contribui
significativamente para pensarmos os trânsitos de ideias, saberes e modelos
pedagógicos a partir da superação de uma noção das fronteiras geopolíticas e
o paradigma da transferência, ao trazer à tona as permeabilidades existentes
nas trocas sociais, políticas, econômicas e culturais entre projetos educativos
em uma escala internacional.
Com relação às fontes manuseadas, em razão do distanciamento sanitário
imposto pela pandemia do COVID-19 para a pesquisa, recorremos ao acervo
Hemeroteca Digital Nacional da Biblioteca Nacional (HDN/BN). Diante da
crescente discussão sobre História Digital, no próximo tópico realizamos
alguns apontamentos sobre a metodologia da pesquisa.

Apontamentos sobre a metodologia de pesquisa e a História


Digital
Se por um lado, a pandemia do COVID-19 tem suscitado entre
pesquisadores discussões acerca do uso de ferramentas digitais em

26
pesquisas históricas, seus usos datam de anos anteriores, sobretudo a partir
da digitalização de fontes e a disponibilização em repositórios digitais.
Contudo, Brasil e Nascimento (2020) apontam que mesmo diante do
aumento das pesquisas históricas que se utilizam de fontes digitalizadas,
há uma carência de reflexões tanto dos suportes digitais, assim como sobre
aspectos metodológicos. Para os autores, percebe-se um uso quase ingênuo
das ferramentas digitais (fontes digitalizadas, bases de dados e uso de
softwares) e que estas precisam ser “desnaturalizadas”, frente à necessidade
de validação e estabelecimento de parâmetros metodológicos da produção
do conhecimento histórico.
Com relação ao surgimento da História Digital, Lucchesi (2014) e Lopes
(2018) apontam que ela está relacionada com a virada digital, marcada pela
popularização dos computadores pessoais, expansão da internet e outros
elementos. Acompanhando a virada do milênio, corresponde com um
processo de modificação da forma como a humanidade está se relacionando
com a informação que pelo desenvolvimento da internet atravessa e altera
de modo significativo as noções de tempo e espaço e suas relações.
Com relação aos debates sobre a temática, Lucchesi (2014) demarca que
estes já são perceptíveis e intensificaram-se desde o início dos anos 2000,
dos quais resultaram em publicações nos Estados Unidos da América, Itália,
Inglaterra, França, Brasil e Alemanha. No caso brasileiro, um dos primeiros
textos data de 1997 (LUCCHESI, 2014).
Para Decker (2020) e Seefeldt e Thomas (2009), compreende-se por
História Digital o processamento e armazenamento digital de textos, fontes da
história oral e visual, e para além, refere-se a uma abordagem de recuperação,
interpretação e representação do passado, a partir do uso das tecnologias de
informação e comunicação (TIC’s). Extrapolando o processo de digitalização
de fontes em formato físico, refere-se à criação de bancos de dados, ao uso
de softwares e da web, como possibilidades para o estabelecimento de novas
abordagens para a escrita da história.
De acordo com Brasil e Nascimento (2020), o trabalho do historiador
diante do arquivo digital não se difere do trabalho com os arquivos físicos, já
que esta modalidade “exige tanto rigor metodológico no tratamento da fonte

27
quanto ao tratamento de uma fonte não digital” (BRASIL, NASCIMENTO,
2020, p. 203). Assim como os documentos físicos possuem materialidade,
aqueles digitalizados ou nascidos digitalmente (born digital) também
possuem. Os autores também consideram que, quando um registro físico é
convertido a documento digital, ele assume novo formato, passa a ocupar
outros espaços de armazenamento e são empreendidas novas formas de
gestão para materialidade criada. E continuam:
A rematerialização envolve o desaparecimento parcial ou total de uma
considerável gama de propriedades organolépticas (a cor, o brilho, a luz,
o odor, a textura, a maciez, o som, o sabor etc.) que, de fato, podem ser
determinantes na descrição de determinadas fontes históricas (BRASIL,
NASCIMENTO, 2020, p. 201)

Com relação ao crescente uso da HDB/BN em pesquisas históricas,


para além de suas vantagens e potencialidades, Brasil e Nascimento alertam
sobre o uso das ferramentas de localização de termos e/ou palavras-chave
sem a devida atenção aos problemas relacionados com os falsos cognatos,
a não identificação do termo inserido por razões de falha no sistema de
Reconhecimento Ótico de Caracteres (Optical Character Recognition – OCR)
que pode ser tanto resultado da qualidade do documento digitalizado como
incongruências ortográficas e/ou tipográficas presentes na documentação
digitalizada. A busca e não localização de determinado termo pela ferramenta
de busca nem sempre significa a sua inexistência. Ou, ao inverso, pode-se
encontrar aquilo que não se buscava (BRASIL, NASIMENTO, 2020, p. 204).
Por fim, diversos autores chamam a atenção para os riscos de uma leitura
fragmentada do documento, ou seja, o uso da ferramenta de localização de
palavras-chave/termos, sem a devida preocupação metodológica, pode ser
uma armadilha já que impede a compreensão do documento como um todo.
Diante disso, as observações metodológicas sobre o uso de periódicos
em pesquisas históricas, publicadas ainda na década de 1990 por Vidal e
Camargo (1992), Catani (1996) e por outros autores posteriores, continuam
atuais, como também os aspectos relacionados com a operação historiográfica
elaborados por Certeau (2017).

28
Para a construção desse artigo, recorremos a HDN/BN como forma de
identificar e coletar os vestígios sobre os membros da família Loureiro de
Andrade que foram acumulados nos periódicos cariocas entre 1860-1910.
Conscientes das discussões em torno da História Digital, foram levadas em
consideração suas potencialidades e fragilidades, as variáveis que interferem
nos resultados da pesquisa no sistema de busca da HDN/BN, bem como a
relação com a fonte digitalizada. Consideramos que os resultados de busca
são importantes chaves de entrada para a pesquisa já que elas nos permitiram
identificar aspectos de vida dos sujeitos, suas vinculações institucionais,
seus projetos, trânsitos e acontecimentos diversos que foram registrados
nas páginas do periódico. Contudo, reconhecemos que outros vestígios não
foram contemplados e que a pesquisa não se refere a um esgotamento das
informações nos jornais sobre os sujeitos. O aperfeiçoamento da inteligência
artificial, bem como dos softwares e hardwares poderão revelar outros vestígios
e indícios em um futuro-próximo não contemplados neste momento.
Dentre os jornais em circulação na cidade do Rio de Janeiro, e que
foram digitalizados e estão disponíveis na HDN/BN, priorizamos o Jornal
do Commercio, em razão da sua ampla circulação e consumo por parte da
sociedade carioca a partir da segunda metade do século XX. No campo de
buscas do repositório inserimos como palavra-chave o sobrenome “loureiro
andrade”. Dos resultados apresentados, compilamos um material variado
que contemplou informações escolares, atividades comerciais, reclamações/
denúncias, trânsito marítimo, participações em grupos e associações diversas,
notas de despedida por viagem, informes de falecimento, convites para missa
de sétimo dia, dentre outras.
Para além dos periódicos, utilizamos da historiografia já existente
que, majoritariamente, analisaram a vida e atuação de Maria Guilhermina,
membro da família Loureiro de Andrade, personagem destacada pelos
historiadores como Chamon (2008) e Monção (2018), e outros estudos em
que a personagem atravessa a temática.

29
Trajetórias da família Loureiro de Andrade
Leonor Augusta Loureiro e João Estanislau Pereira de Andrade, unidos
pelo matrimônio em meados do século XIX na cidade de Ouro Preto, em
Minas Gerais, deram origem a uma numerosa família da qual o ofício do
magistério foi adotado pela maior parte de seus filhos. Por volta da década
de 1850, o casal migrou para o vale do café fluminense, seguindo as notícias
e os rumores do crescimento econômico daquele lugar em função da alta
produtividade cafeeira. Estabelecidos na Freguesia de Nossa Senhora
da Conceição de Vassouras, os vestígios localizados informam que João
Estanislau trabalhou como procurador da Câmara Municipal de Vassouras,
e Leonor era professora pública da única escola de meninas da localidade.
Em 1860, a região do Vale do Café foi atingida por uma epidemia de febre
amarela e nesse contexto a família Loureiro Andrade mudou-se para a Corte
(CHAMON, 2008, MONÇÃO, 2018).
Da união foram gerados alguns filhos que, dada a dificuldade de
localização e reunião de informações e algumas divergências, não foi possível
precisar a quantidade. Segundo o Jornal do Brasil, tiveram 17 filhos, dos quais
12 sobreviveram; já O Paiz publicou que nasceram 11 filhos, cuja as datas
de nascimento e falecimento ainda são ignoradas (JORNAL DO BRASIL,
29/5/1934, n. 126, p. 1; O PAIZ, 4/2/1897, n. 4507, p. 3). Pela pesquisa no
Jornal do Commercio localizamos 11 personagens pertencentes à família:
Maria Guilhermina, Anna Guilhermina, Amélia Angélica, Eugênia Augusta,
Mariana, Francisca, Emília, Francisco Luiz, Paulo Emílio, Jacintho e Eugênio.
Uma característica que pode ser destacada entre os Loureiro de Andrade
é seu envolvimento com o cenário educativo4, seja como professores,
administradores, diretores e proprietários de estabelecimentos de ensino. Dos
11 filhos, 8 seguiram o ofício do magistério, o que nos permite compreendê-
la como uma “família de professores” no qual, como veremos no decorrer
do artigo, a aprendizagem do ofício se deu no ambiente doméstico e nas
escolas que eram proprietários, e no caso de Maria Guilhermina também
pelo período que permaneceu nos Estados Unidos da América. Do total de

4. Schueler (2005), Gondra e Schueler (2008), Costa e Cunha (2008), Munhoz e Vidal (2015) e
Uekane (2016), abordaram a temática da formação para o magistério via trajetória familiar.

30
filhos que seguiram o magistério como profissão, apenas os 3 últimos listados
não atuaram no ramo da educação, assim como o pai que foi pagador da
Estrada de Ferro Central do Brasil.
Ao seguir os anúncios publicitários nas páginas do Jornal do Commercio,
identificamos que os Loureiro de Andrade criaram alguns colégios entre as
décadas 1860 a 1910 na cidade do Rio de Janeiro, denominados como Colégio
de Meninas, Colégio Andrade5/Externato Andrade6, o “Externato Primário
para meninos” e o “Colégio Loureiro”. Embora as propagandas apresentem
variações gráficas e informativas no decorrer dos anos, foi possível identificar
que os nomes dos Loureiro de Andrade, além de proprietários, ocuparam
cargos de direção e atuavam como professores junto com outros sujeitos
não advindos da árvore familiar.
As ações da família acompanharam o processo de disseminação e
intensificação do processo de escolarização. Colégios, liceus, escolas primárias
e secundárias, preceptores e professores particulares, aulas domésticas
individuais ou coletivas, passaram a configurar uma rede de serviços que,
por um lado, atendiam a uma população ávida por instrução, e por outra
atuava numa questão de interesse do Estado que era a formação do povo.
No cenário de franca expansão dos estabelecimentos de instrução
privada, o Regulamento da Instrução Primária e Secundária no Município
da Corte de 1854 que, além de legislar sobre as delimitações do público alvo
do ensino primário e secundário público, estendeu para o equipamento
privado de ensino, os mesmos termos normatizadores que estavam destinados
ao sistema público de ensino, inscrevendo-as em mecanismos de controle,
fiscalização e regulação (LIMEIRA, 2008, 2010).
O primeiro indício da existência de um estabelecimento escolar criado
por um dos membros da família Loureiro de Andrade foi localizado em
1868. A primeira referência aponta que no mês de julho, o “Colégio de
Meninas” sob a direção de Maria Guilhermina, oferecia cursos na modalidade
externato, semi-internato e internato, e funcionava na rua da Saúde, n.

5. Em algumas propagandas, entre as décadas de 1860 a 1880, o Colégio era intitulado como
“Colégio de Meninas”.
6. O termo “Externato” passou a ser utilizado em substituição a “Colégio” a partir da
década de 1880.

31
58, região portuária da cidade do Rio de Janeiro. Em setembro do mesmo
ano, o Colégio passou a funcionar na rua de Santa Christina, na região da
Glória, em proximidades ao centro da cidade (JORNAL DO COMMERCIO,
31/7/1868, n. 212, p. 3; 9/12/1868, n. 342, p. 1).
Recém-chegados à Corte e na busca pela inserção do Colégio na
concorrência existente entre colégios particulares na cidade, a família Loureiro
de Andrade recorreu a sua network como forma de divulgar a instituição.
Assim, José Malaquias Baptista Franco7, publicou um texto no Jornal do
Commercio propagandeando o Colégio de Meninas. No texto, declara seu
desejo de beneficiar a uma família digna de proteção e indicar, através da
imprensa, o Colégio aos amigos e conhecidos, dada a atuação ilustrada
de Maria Guilhermina que “fala e escreve corretamente o inglês, sabe a
fundo a geografia e a história, ensina gramaticalmente o francês e o latim”.
Além dessas matérias, destacou que a professora sabia a aritmética e que
“seus conhecimentos nesta árdua matéria vão muito além das decimais e
proporções”. Além de Maria, no Colégio, a mãe e duas de suas irmãs (cujos
nomes não foram mencionados) se encontravam habilitadas para o ensino
primário (JORNAL DO COMMERCIO, 9/12/1868, n. 342, p. 1).
Por motivo não localizado, mais uma vez, o Colégio mudou de
endereço. Em 1869, o estabelecimento de instrução passou a ocupar um
prédio no Campo da Aclamação, n. 67, em proximidades da estação de trem,
a atual Central do Brasil. Na instituição atuaram como professoras e nos
cargos relativos à administração da escola, Maria Guilhermina, sua mãe e
algumas irmãs mais velhas. Já as irmãs mais novas tornaram-se alunas onde,
provavelmente, aprenderam no cotidiano do colégio os meandros do ofício
docente (CHAMON, 2008).
A relação da família com as pautas sobre ensino em circulação no
contexto internacional pode ter se iniciado no contato e proximidade que os
Loureiro de Andrade mantiveram com missionários presbiterianos que viviam

7. Atuou na Assembleia Legislativa Provincial em Ouro Preto na década de 1848 (LIVRO


DA LEI MINEIRA, 1947) e Ministério da Fazenda do Rio de Janeiro na década de 1860
(ALMANAK LAEMMERT, 1863). Posteriormente, seu filho Honório Alonso Baptista Franco,
filho de José Malaquias casou-se com Francisca Loureiro de Andrade (MONÇÃO, 2018).

32
no Rio de Janeiro, em especial com Harriet Greenman e Mary Dascomb8.
De acordo com um mapa escolar existente no Fundo Instrução Pública do
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ/FIP), as duas mulheres
atuavam como professoras, ao lado de Maria Guilhermina e sua mãe Leonor
(AGCRJ/FIP, 12.4.12, p. 65).
A presença de religiosos missionários estrangeiros no Rio de Janeiro
pode ser vinculada ao espaço cosmopolita que a cidade adquiriu no decorrer
do século XIX. Na efervescência social, política e cultural, o cenário
educativo passou a ser ponto de debates e proposições por diversos sujeitos,
influenciados por sua vez, por experiências educativas em progresso em
outros países. Nesse contexto, livros, manuais pedagógicos, conferências e
reuniões das associações educativas faziam circular pela cidade as notícias
e as ideias pedagógicas em disputa no período.
Em 1870, o Colégio Andrade passou a ocupar um prédio na rua
Aprazível n. 9, no morro de Santa Tereza. A hipótese para essa mudança
pode estar atrelada à busca da família Loureiro de Andrade por adequação
do serviço de instrução, enquadrando-o nos discursos médicos-higienistas
que valorizaram a região como um local livre das contaminações do ar, dos
“vícios” e afastado da confusão da grande circulação de pessoas existente
na região central da cidade. De acordo com um dos anúncios o local era
ideal para aqueles que estivessem interessados em oferecer para suas filhas
educação moral e intelectual e “influência benéfica do desenvolvimento
físico, que é consequência dos bons ares, e, portanto, da robustez da saúde”,
que a localização do sítio ofereceria (JORNAL DO COMMERCIO, 3/5/1870,
n. 120, p. 3; 19/12/1871, n. 350, p. 6; 20 /12/1871, n. 351, p. 2).
Com relação ao programa de ensino do Colégio Andrade, eram
ministradas disciplinas de leitura, caligrafia, português, doutrina cristã,
história sagrada, história universal e do Brasil, geografia, aritmética, álgebra e
geometria. Além das disciplinas listadas, eram oferecidas aquelas consideradas
pertencentes ao universo feminino como desenho, música, canto, piano e
dança, costura lisa, flores, trabalhos de tricô, de crochê, de filet, de marca,
de miçanga e de fantasia; bordados de branco de ouro, de matiz e de froco.

8. Sobre Mary Dascomb ver Nicolete e Ribeiro (2016).

33
O Colégio também oferecia aulas de francês, inglês, latim, italiano, alemão e
hebraico que deveriam ser contratadas à parte (JORNAL DO COMMERCIO,
4/1/1872, n. 4, p. 5). Além da influência dos missionários presbiterianos outra
forma de identificarmos a presença e circulação de saberes pedagógicos
se dá pelos anúncios de contratação que Maria Guilhermina publicava.
Como foi o caso de um anúncio que buscava a contratação de “uma senhora
brasileira, francesa ou alemã” para lecionar trabalhos de agulhas e outra para
ser inspetora de meninas no Colégio Andrade (JORNAL DO COMMERCIO,
27/5/1873, n. 146, p. 6).
Seguindo as notícias e propagandas de 1877, o Colégio desceu o morro
de Santa Tereza para ocupar um prédio rua do Riachuelo n. 160, Freguesia
de Santo Antônio, região central da cidade. É possível considerar que a
mudança se deu pela baixa adesão de matrículas, os custos necessários para
a manutenção do prédio e distância do centro da cidade, que era a região
mais populosa. Neste novo endereço, o Colégio Andrade (para meninas)
dividiu espaço com o “Externato primário para meninos”.
Dos estabelecimentos de instrução da família, o Externato primário para
meninos foi o que localizamos uma menor quantidade de informações. As
referências encontradas no Jornal do Commercio indicam que era destinado
para meninos com idades entre 5 e 10 anos e cuja direção estava a cargo
de Emília Luiza e Francisca. Além das professoras da família, lecionaram
no externato a professora francesa Mathilde Catherine Kerling, que havia
chegado ao Rio de Janeiro no ano de 1876 (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO,
25/8/1876, n. 229, p. 3). Manoel Peixoto Cursino de Amarante, bacharel e
lente da Escola Militar do Brasil, professor de matemática e mecânica, amigo
de Benjamin Constant e um dos fundadores da Associação de Socorros
à Invalidez (ALMANAK LAEMMERT, n. 59, p. 1330; CASTRO, 1995, p.
67; MAGALHÃES, 2009, p. 53, BRASIL, 1873). Paulo Faulhaber, alemão,
professor de piano, compositor, diretor de concerto e de corais, atuou como
professor do Colégio Aquino e do Colégio Cruzeiro, e em 1895 integrou o
Instituto Nacional de Música como membro honorário. É possível supor
que a presença de professores estrangeiros no colégio era uma forma de
anunciar à sociedade que ali se exerciam os saberes pedagógicos em voga no

34
período, como forma de legitimação da instituição e em busca de destaque
no comércio da instrução.
Referente ao Colégio Loureiro, a instituição foi criada em 1892 por
Francisco Luiz, engenheiro civil, formado pela Escola Politécnica do Rio
de Janeiro e um dos fundadores do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro.
Sua criação deu-se pela compra do Colégio Augusto, instituição privada
localizada no bairro do Engenho Novo, no subúrbio carioca, em razão do
falecimento do proprietário. Antes de adquirir o Colégio, Francisco Luiz
exerceu atividades técnicas nas estadas de ferro dos estados de Sergipe,
Pernambuco, Ceará, São Paulo, Maranhão, Rio Grande do Sul e Paraná
(JORNAL DO COMMERCIO, 11/11/1952).
Entre os anos 1892 a 1915, o Colégio Loureiro mudou de endereço
por algumas vezes, porém sem sair do bairro do Engenho Novo. Todos
os endereços eram próximos à estação de trem, o que pode ser entendido
como uma estratégia voltada para alcançar a clientela que morava em bairros
adjacentes dado pela facilidade de locomoção por conta da ferrovia (JORNAL
DO COMMERCIO, 1/4/1900, n. 91, p. 10; 1/1/1910, n. 1, p. 16; 3/2/1915, n.
63, p. 14).
A trajetória da família Loureiro de Andrade no “comércio da instrução”9
permitiu que seus membros se integrassem nas discussões mais amplas
sobre a Instrução. Como foi o caso de Maria Guilhermina, convocada a
participar do Congresso de Instrução que seria realizado em 188310. Para
o evento, Guilhermina ficou responsável por apresentar um parecer sobre
a “Organização dos jardins de infância”. Embora o evento não tenha sido
realizado, o parecer produzido pela professora foi publicado junto ao de
outros pareceristas, pela Tipografia Nacional em 1884, compondo assim o
livro “Atas e Pareceres do Congresso de Instrução”. Naquele mesmo ano,
Maria Guilhermina viajou aos Estados Unidos da América, em companhia

9. Sobre a categoria “comércio da instrução” ver Limeira (2010)


10. Evento proposto por personagens políticos em acolhimento às reivindicações de grupos
diversos que lutavam pela criação de espaço de modo que pudessem ser discutidos projetos
de reformulação da instrução pública no Império. Ver: Schelbauer (2000), Bastos (2014),
Monção (2020). Evento proposto por personagens políticos em acolhimento às reivindicações
de grupos diversos que lutavam pela criação de espaço de modo que pudessem ser discutidos
projetos de reformulação da instrução pública no Império. Ver: Schelbauer (2000), Bastos
(2014), Monção (2020).

35
de sua mãe, em busca de formação na metodologia froebeliana dos jardins
de infância, onde permaneceu até 1887 (CHAMON, 2008; MONÇÃO, 2018,
2020).
Durante o período de ausência de Leonor e Maria Guilhermina, a
família efetuou nova mudança de endereço do Colégio Andrade. No segundo
semestre de 1884, o estabelecimento de instrução passou a ocupar um prédio
na rua Visconde do Bom-Retiro, n. 21, na Freguesia do Engenho Novo, no
subúrbio carioca. A direção ficou a cargo de Francisca11, mas o nome de
Maria Guilhermina permaneceu como diretora nos anúncios e propagandas
do Colégio (JORNAL DO COMMERCIO, 31/8/1884, n. 243, p. 6).
Entre 1884 e 1887, os anúncios no Jornal do Commercio destacavam a
estrutura física da instituição bem como a capacitação dos profissionais:
“situada no centro de uma vastíssima chácara arborizada, oferece todas
as garantias de salubridade e comunidade”; onde atuavam “professoras,
competentemente habilitadas (...) e são auxiliadas na direção interna do
estabelecimento por sua venerada mãe, professora jubilada”. Como forma
de minimizar o obstáculo da distância em relação à região central da
Corte, apregoavam a facilidade de se chegar ao local, dada a existência dos
serviços de trem e bondes que passam próximos ao Colégio (JORNAL DO
COMMERCIO, 31/8/1884, n. 243, p. 6; 3/9/1887, n. 248, p. 7).
Com relação ao período de formação de Maria Guilhermina nos Estados
Unidos da América, Monção (2018) apontou para possíveis contatos que
a professora brasileira estabeleceu com destacados personagens inseridos
nas discussões sobre educação. Foi aluna de Maria Kraus-Boelte e John
Kraus, proprietários New York Seminary for Kindergartners with a Model
Kindergarten; frequentou o Normal College of New York, onde assistiu as
aulas de Nicholas Murray Butler (1862-1947) professor de filosofia e educação
da Universidade de Columbia, e Felix Adler (1851-1933), professor da cadeira de
ética política e social da mesma universidade (O ESTADO DE SÃO PAULO,
8/7/1890, n. 4897, p. 2); e pelo contato que possivelmente estabeleceu com

11. Francisca, em 1911, foi membro do conselho da “Caixa Beneficente da Corporação Docente”,
associação voltada para o socorro dos professores invalidados e familiares e, casos de
viuvez ou orfandade, com o pagamento de pensões mensais (JORNAL DO COMMERCIO,
11/1/1911, n. 11, p. 3).

36
membros do Movimento Kindergartiano Estadunidense12, como Elizabeth
Peabody, Susan Blow, Henry Barnard, Horace Mann, e outros. Embora não
tenha sido possível localizar documentação sistematizada que enumera os
aspectos de sua formação, Monção (2018) apontou para possíveis contatos
com personagens e instituições que foram estabelecidos pela professora
quando esteve nos Estados Unidos.
Com o retorno de Maria Guilhermina ao Brasil em 1887, o Colégio
Andrade regressou para a região central da Corte, na rua do Catete, Freguesia
da Glória. O pedido de autorização para a abertura do Colégio no novo
endereço foi apresentado à Diretoria de Instrução Pública, ao qual foram
anexados os documentos comprobatórios de sua formação no exterior, que
fundamentavam o pedido de abertura das classes de jardim de infância e de
formação para jardineiras. O documento redigido à mão pela proponente
declarava que ela se encontrava “autorizada para dirigir colégio de instrução
primária e secundária”, pois havia “completado o curso de estudos práticos
e teóricos da “Educação de Kindergarten” de Froebel, no Seminário de
Jardineiras, dirigido pelo Professor John Kraus e Mrs. Maria Kraus-Boelte”.
Com a comprovação por meio dos documentos que constavam junto à
solicitação, pedia o consentimento de licença para “abrir um Externato de
Instrução Primária e Secundária, e anexar-lhe um Kindergarten ou Jardim
de Infância e um Seminário de Jardineiras, à rua do Catete n. 109” (AGCRJ/
FIP, 12.4.27, p. 93).
Após a autorização, em janeiro de 1888, o Externato Andrade iniciou
suas atividades, ofertando o curso primário, secundário, o para a formação
para jardineiras e um jardim de infância. Embora jardins de infância fossem
encontrados em diversas freguesias da cidade13, o da família Loureiro de

12. O termo “Movimento kindergartiano Estadunidense” é uma tradução livre do proposto


por Hewes (1988) ao analisar as proposições sobre a ampliação dos jardins de infância e do
pensamento froebeliano nos Estados Unidos, identificado sobretudo a partir de 1870, no qual
participaram homens e mulheres que criaram associações, editaram revistas, produziram
livros e outros materiais informativos, além de atuarem no campo político em prol do jardim
de infância como serviço oferecido por instituições e pelo Estado. Ver em Monção (2017).
13. Vale apontar que entre as décadas de 1870 e 1880 havia na cidade do Rio de Janeiro
aproximadamente oito jardins de infância, segundo levantamento realizado em anúncios de
periódicos cariocas. Todos as escolas infantis eram privadas e espalhavam-se pelo subúrbio,
região central e pela Glória (MONÇÃO, 2015).

37
Andrade destacava-se pela formação adquirida de um por seus membros. O
trunfo de destaque no concorrido comércio da instrução carioca se centrou
no período de formação de Maria Guilhermina com o casal Kraus, em Nova
York. A novidade pedagógica trazida dos Estados Unidos da América pela
professora foi a criação do Seminário para Jardineiras e do Kindergarten
Modelo voltado a preparar e formar moças e senhoras para atuação na
educação infantil (JORNAL DO COMMERCIO, 22/12/1887, n. 356, p. 7).
A criação de um Seminário para a formação de jardineiras valia-se
das proposições sobre formação de professores que ela recebeu no exterior,
pautado no saber científico apreendido no âmbito teórico e prático, em
superação ao modelo artesanal de aprendizagem do ofício do magistério
(GONDRA, UEKANE, 2005; GONDRA; SCHUELER, 2008). Assim, para
além das aulas, as jardineiras em formação poderiam treinar e se formar na
prática a partir do jardim de infância modelo que funcionava nas dependências
do Colégio Andrade, aos moldes da educação nova que previa a integração
entre teoria e prática.
Mesmo o Externato tendo sido celebrado por notícias na imprensa
carioca, dada a aplicação de metodologia pedagógica apreendida em uma
“das mais cultas nações”, onde deixava-se de mão a prática da “velha rotina
de aprender as sílabas sem a menor significação para quem as aprende, nem
a decoração automática da tabuada”, o Seminário de Jardineiras teve vida
curta. Figurou nos classificados do Jornal do Commercio por seis anos, dentre
1888 a 1893. Um dos motivos pode ter sido a baixa procura por matrículas
já que, até aquele momento, os jardins de infância públicos não haviam
sido implementados e com isso não havia demanda para a formação de
jardineiras para ocuparem os espaços no magistério infantil (JORNAL DO
COMMERCIO, 21/12/1891, n. 354, p. 4).
Na nova configuração do Externato, as responsabilidades escolares
estavam a cargo das mulheres Loureiro de Andrade. Atuaram ali como
professoras Anna Guilhermina e Eugênia, possivelmente formadas pelo
convívio familiar no ambiente escolar e pela matriarca Leonor e a irmã
mais velha Maria Guilhermina (JORNAL DO COMMERCIO, 21/12/1891,
n. 354, p. 4).

38
Além de professora, dado o domínio da língua inglesa, Maria Guilhermina
traduziu livros didáticos, como foi o caso do Compêndio de Aritmética de
autoria do professor norte-americano Stoddard. A. Felter, na década de
1870, o qual não foi publicado pela falta de apoio e pelo desaparecimento
do exemplar original da Diretoria de Instrução Pública (MONÇÃO, 2018).
Posteriormente, inspirada no livro didático de história estadunidense
escrito por G. W. Pockels, escreveu o Resumo da História do Brasil para o
uso das escolas primárias. O livro Resumo da História do Brasil teve suas três
impressões entre os anos 1888 a 1920, todas produzidas nos Estados Unidos
da América. Embora os estudos históricos sobre a temática já publicados
não tenham localizado o livro original escrito por Pockels, o nome dessa
personagem figura na lista dos professores do Externato Jasper14, situado na
cidade do Rio de Janeiro, em um dos anúncios do jornal O Globo, em 1875.
Pockels preenche a categoria de professor de alemão do referido externato,
que estava localizado na rua do Hospício, n. 99, região central da Corte.
Seu nome também figura em outros anúncios de escolas particulares nos
periódicos cariocas a partir da década de 1870 e no “Relatório do Estado
da Instrução Primária e Secundária do Município da Corte” no mesmo
período. Residentes na mesma cidade e no mesmo período, é possível que
supor que ambos tenham tido contato e estabelecido parcerias profissionais.
A professora também produziu uma série graduada de livros voltados
para o ensino de leitura e escrita, o “Livro de Leitura”. Os livros eram impressos
pela American Book Company, que possuía escritórios nas cidades de Nova
York, Boston e Chicago, na década de 1890 (CHAMON, 2008).
Para a instrumentalização das professoras da infância, Maria Guilhermina
traduziu o livro Cultura de Kindergarten no Kindergarten ou Jardim das
Crianças. Esboço completo do sistema de Froebel sobre a primeira educação
para uso das professoras, escrito por William Nicholas Hailmann, publicado
no Rio de Janeiro em 1887. E o folheto O Kindergarten ou Jardim da Infância
que foi publicado em 1888, na mesma cidade (CHAMON, 2008). Sobre este
último, não localizamos referências, logo, tnão é possível saber se é uma
tradução ou obra de autoria da professora.

14. Sobre o Externato Jasper ver Santos (2017).

39
Sua atuação se espraiou para além dos muros escolares. Fez parte de
grupos e associações pedagógicas como membro do conselho diretor da
Associação dos Professores do Brasil e editora da revista A Eschola, organizada
e mantida pela mesma associação. De acordo com Teixeira (2016), a Associação
foi uma das primeiras que surgiu no período republicano. Também, participou
de conferências científicas, como foi o caso das Conferências Populares da
Glória, onde marcou a história do evento tornando-se a primeira mulher a
apresentar uma comunicação, em 18 de abril de 1888. Sob o título “A mestra e
a escola entre nós”, defendeu a necessidade da formação escolar da professora
para atuação com crianças (MONÇÃO, 2018).
Das suas diversas formas de atuação e circulação, tanto no Brasil como
nos Estados Unidos da América, a constituição de network fez com que fosse
convidada por Caetano de Campos e Francisco Rangel Pestana, em 1890,
para participar da reforma do ensino na capital paulista, sob indicação de
Horace Lane. Neste evento, o destaque dado à professora por Caetano de
Campos é que ela havia estudado nos Estados Unidos, tinha conhecimento
sobre os métodos de ensino e escrevia compêndios. O período de quatro anos
de estudo no exterior foi fator determinante. Como apontado por Caetano
de Campos, como ela “não há segunda no Brasil e como não há melhor na
América do Norte. Estudou lá, sabe todos os segredos do método, escreve
compêndios, sabe grego e latim” (CAETANO DE CAMPOS, 1890 apud
REIS FILHO, 1981, p. 48). As ações empreendidas por Maria Guilhermina
podem ser compreendidas tanto como a materialização da circulação dos
conhecimentos e saberes pedagógicos por suas diversas formas de atuação.
No tempo em que esteve em São Paulo, o Externato ficou a cargo de Amélia
que respondia como vice-diretora.
Em 1907, partiu para a Belo Horizonte, a convite da prefeitura da
cidade, para participar da reforma da instrução (CHAMON, 2008). Além
dos trabalhos com o ensino primário e com conferências destinadas às
normalistas, Maria Guilhermina participou da organização do primeiro
jardim de infância público de Belo Horizonte, a Escola Infantil Delfim
Moreira, fundada em 1908. Por motivos de saúde, em 1913 licenciou-se do
serviço público e retornou ao Rio de Janeiro.

40
Sobre o Externato Andrade, em 1899, deixou o prédio da rua do Catete
n. 115 e passou a ocupar o prédio de número seis na rua Conselheiro Bento
Lisboa, rua próxima a anterior. Já na primeira década de 1900, especificamente
a partir de 1906, a direção do Externato passou para a responsabilidade de
Amélia. Nesse ano, mais uma vez, o empreendimento familiar mudou de
endereço e passou a ocupar prédio de número 10, na mesma rua (JORNAL
DO COMMERCIO, 3/2/1899, n. 34, p. 6).
A permanência da escola na mesma região pode indicar que a família
conseguiu estabelecer uma clientela fiel ao seu empreendimento. O projeto
familiar, tendo Maria Guilhermina à frente, parece ter logrado sucesso já
que notícias sobre o Externato foram localizados até o ano de 1915. O último
anúncio veiculado no Jornal do Commercio foi simples, sem nenhum tipo
de referência aos métodos empregados ou à professora responsável pela
instituição.

Considerações finais
A pesquisa teve como objetivo analisar aspectos das trajetórias de
formação intelectual e atuação profissional dos professores da família
Loureiro de Andrade através de um aporte teórico oriundo das discussões
em História Transnacional da Educação, via corpus documental variado
e, sobretudo, a partir de informações localizadas em periódicos cariocas,
nos quais priorizamos o Jornal do Commercio, entre as décadas de 1860 a
1910, dado o número de tiragem e seu amplo consumo na cidade. Tendo
em vista o manuseio da HDN/BN, discutimos os aspectos metodológicos
referentes à História Digital e ao uso de repositórios digitais na produção
da pesquisa histórica.
A partir dos dados localizados foi possível construir um panorama sobre
os membros da Família não priorizados pela historiografia da educação,
identificar aspectos referentes aos campos de atuação e suas vinculações
com o cenário educativo da cidade do Rio de Janeiro. Do levantamento foi
possível concluir que os professores da família Loureiro de Andrade atuaram
principalmente no ensino privado como proprietários escolares, professores
e intelectuais. Dentre eles, destaca-se a proeminência de Maria Guilhermina,

41
por sua formação nos Estados Unidos, pela produção de livros, participação
em conferências e associações. Pela sua ampla participação na vida pública
é possível considerar que o estabelecimento de networks oportunizou sua
participação como professora nos movimentos reformistas da instrução
pública paulista e belo-horizontina entre os séculos XIX e XX. Contudo,
não foi possível apontar os motivos para a não participação da professora
no ensino público carioca.
Embora Maria Guilhermina seja uma personagem de destaque na
família, não é possível desvinculá-la dos demais membros, por partirmos
do pressuposto que os investimentos empreendidos se referem às ações
do grupo familiar e não individual, tendo em vista os arranjos e modos de
organização dos estabelecidos de ensino, sobretudo aqueles administrados
pelas mulheres. Aqui, cabe destacar a importância da atuação feminina na
instrução da infância no século XIX, tanto no ensino público quanto no
privado, como espaço de disputas e conquistas pela ampliação dos espaços
ocupados pelas mulheres.
Ao que compete às discussões sobre a circulação de sujeitos, ideias,
saberes e objetos pedagógicos, pelas propagandas do Colégio Andrade foi
possível perceber um interessante fluxo de saberes pedagógicos em prática
na instituição, tanto pela presença de estrangeiros como os indícios de
consumo de uma “pedagogia moderna” em voga naquele período. Além
disso, o Colégio exercia a função de espaço de formação pedagógica para
os próprios familiares, entendendo que, ao retornar de sua experiência de
formação no exterior, Maria Guilhermina capacitou sua mãe e irmãs para
a atuação no Colégio, a partir das “novidades pedagógicas” trazidas como
bagagem.
Se tomarmos as escalas “micro” (o Colégio Andrade e as experiências
de formação do ofício do magistério para membros da família Loureiro de
Andrade), e “macro” (como o contexto social ampliado de trocas, proposições
e interferências internacionais no campo pedagógico), é pelo micro que se
torna perceptível como a educação escolar oferecida pela família Loureiro
de Andrade pode ser entendida como parte de um movimento maior que
superou a agência estatal. No decorrer das décadas de atuação no magistério

42
foram empreendidas ações e estratégias diversas, sobretudo referente a
adoção de métodos e modelos educativos, bem como ações voltadas em
prol da formação intelectual da família de professores.
Por fim, ao tomarmos as escolas particulares criadas e conduzidas
pelos membros professores da família Loureiro de Andrade, enquanto
foco de análise, identificamos os trânsitos de ideias, saberes, sujeitos e
objetos pedagógicos entre o Brasil e os Estados Unidos da América, em
uma abordagem não enquadrada na perspectiva da transferência cultural,
mas como ações que se conectaram a partir de agências e experiências
compartilhadas entre os sujeitos.

Fontes e referências
ALMANAK LAEMMERT ADMINISTRATIVO, MERCANTIL E
INDUSTRIAL DA CORTE E PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO. Rio
de Janeiro: tipografia própria, ano 1863. (Hemeroteca Digital da Fundação
Biblioteca Nacional).
ALTENBERND, Erik; YOUNG, Alex Trimble. Introduction: The significance
of the frontier in an age of transnational history, Settler Colonial Studies,
vol. 4, n. 2, p. 127-150, 2014.  
ARQUIVO GERAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Série Instrução
Pública. Códices: 12.4.12, 12.4.27. (Setor de manuscritos – Arquivo Geral da
Cidade do Rio de Janeiro).
BASTOS, Maria Helena Câmara. Intelectuais e Universidade: O Ensino
Superior no Congresso de Instrução Pública (Rio de Janeiro, 1883-1884). Foro
de Educación, v. 12, n. 17, p. 23-44, 2014.
BERTRAND, Romain. Histoire globale, histoire connectée.  In: DELACROIX.
Christian et al (Org.). Historiographies, concepts et débats. Paris: Gallimard,
2010, p. 366-377, 2010.  
BRASIL. Decreto n. 5853, de 16 de janeiro de 1873. Aprova os Estatutos da
Associação de socorros a invalidez denominada - Previdência.
BRASIL, Eric; NASCIMENTO, Leonardo Fernandes. História Digital:
reflexões a partir da Hemeroteca Digital Brasileira e do uso do CAQDAS

43
na reelaboração da pesquisa histórica. Estudos Históricos, v. 33, n. 69, p.
196-219, jan./abr., 2020.
CASTRO, Celso. Os militares e a república: um estudo sobre cultura e ação
política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
CATANI, Denice Barbara. A imprensa periódica educacional: as revistas
de ensino e o estudo do campo educacional. Educação e Filosofia. n. 10, n.
20, p. 115 - 130, jul/dez. 1996.
CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Rio de Janeiro, Ed. Forense
Universitária, 2017.
CHAMON, Carla Simone. Escolas em reforma, saberes em trânsito: a trajetória
de Maria Guilhermina Loureiro de Andrade (1869-1913). Belo Horizonte:
Autêntica, 2008.
CHARTIER, Roger.  A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte:
Autêntica, 2009.
COSTA E CUNHA, Beatriz Rietmann da.  Experiências de professores
primários na Corte Imperial: a trajetória de Antônio Estêvão da Costa e
Cunha. In: Anais do V Congresso Brasileiro de História da Educação. Aracaju:
Sociedade Brasileira de História da Educação, 2008, p. 1-12. O Ensino e a
pesquisa em história da educação. 9-12 de Novembro de 2008.
DECKER, Michael J. The finger of God is here! Past, present and future of
digital history. The Historian, v. 82, 2020.
DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO. Rio de Janeiro: 1876. (Hemeroteca Digital
da Fundação Biblioteca Nacional).
ESTADO DE SÃO PAULO, O. São Paulo: tipografia própria, período: 1890
(Hemeroteca Digital do jornal O Estado de São Paulo).
FERNANDES, Ana Lúcia Cunha. A construção do conhecimento pedagógico:
análise comparada de revistas de educação e ensino, Brasil – Portugal (1880-
1930). Lousã: Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação para a Ciência e
a Tecnologia.
FERNANDES, Fabiana Silva; KUHLMANN JÚNIOR, Moysés. Análise de
periódicos na história da educação: princípios e procedimentos. Cadernos
de Pesquisa, v. 42, n. 145, maio/ago., p. 562-585, 2012.

44
FUCHS, Eckhardt; ROLDAN VERA, Eugenia. The Transnational in the
History of Education. In: FUCHS, Eckhardt; ROLDAN VERA, Eugenia
(Org.).  The Transnational in the History of Education: concepts and
perspectives. New Tork: Palgrave Macmillan, p. 1-47, 2019. 
GLOBO, O. Órgão da agência americana telegráfica dedicado aos interesses
do Commercio, Lavoura e Industria. Rio de Janeiro: 1875. (Hemeroteca Digital
da Fundação Biblioteca Nacional).
GONDRA, José Gonçalves; UEKANE, Marina Natsume. Em nome de uma
formação científica: um estudo sobre a Escola Normal da Corte. Revista do
Centro de Educação. Santa Maria, n.º 2, jul./dez. 2005, p. 55-70.
GONDRA, José Gonçalves; UEKANE, Marina Natsume ; SCHUELER,
Alessandra. Educação, Poder e sociedade no império brasileiro. São Paulo:
Cortez, 2008.
GRUZINSKI, Serge. Os mundos misturados da monarquia católica e outras
“connected histories”. Topoi, Rio de Janeiro, p. 175-195, mar. 2001.
HEWES, Dorothy. Kindergarten teacher training in United States from 1870
to 1920. MEETING OF THE INTERNATIONAL STANDING WORKING
GROUP FOR THE HISTORY OF CHILDHOOD EDUCATION, V,
JOENSUU. Anais do 5th Meeting of the International Standing Working
Group for the history of early childhood education. University of Joensuu,
Joensuu, Finland, 1988.
JORNAL DO BRASIL. Rio de Janeiro: tipografia própria, período 1934.
(Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional – PRC – SPR 00009
030015).
JORNAL DO COMMERCIO Rio de Janeiro: tipografia própria, período
1860-1910. (Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional – PR – SPR
00001).
LAWN, Martin. Um conhecimento complexo: o historiador da educação e
as circulações transfronteiriças. Revista Brasileira de História da Educação, v.
14, n. 1, p. 127-144, 2014.  
LIMA, Marcos Costa. As teorias do desenvolvimento: a propósito dos
conceitos de centro e periferia. Século XXI, v. 6, n. 1, p. 13-24, jan./jun. 2015.

45
LIMEIRA, Aline de Morais. O comércio da instrução: práticas educativas
e publicidade no século XIX. Linguagem, Educação e Sociedade (UFPI), v.
13, p. 84-102, 2008.
LIMEIRA, Aline de Morais. O Comércio da Instrução no Século XIX: colégios
particulares, propagandas e subvenções públicas. Rio de Janeiro, RJ UERJ,
2010, 282f. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade do Estado
do Rio de Janeiro.
LIVRO DA LEI MINEIRA, Tomo XIII, Parte 1, 1947. Disponível em: http://
memoria.bn.br/pdf/253634/per253634_1847_00005.pdf. Acesso em: 02 jul.
2020
LOPES, André Pereira Leme Lopes. Virada digital? Pesquisa histórica no
ciberespaço. Revista Tempo e Argumento, v. 10. N. 24, p. 136-169, abr./jun. 2018.
LUCCHESI, Anita. Por um debate sobre História e Historiografia Digital.
Boletim Historiar, n. 2, p. 45-57. 2014.
MAGALHÃES, Bernardina Botelho de. O diário de Bernardina: da Monarquia
à República pela filha de Benjamin Constant. CASTRO, Celso; LEMOS,
Renato Luís de Couto Neto e. (Org.). Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
MONÇÃO, Vinicius de Moraes. Espinhos no Jardim: conflitos e tensões na
criação do jardim de infância Campos Salles (Rio de Janeiro, 1909-1911).
Rio de Janeiro, RJ: UFRJ, 2015, 167f. Dissertação (Mestrado em Educação),
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
MONÇÃO, Vinicius de Moraes. O protagonismo de três mulheres na difusão
dos jardins de infância nos Estados Unidos da América na segunda metade do
século XIX. Revista Contemporânea de Educação. v. 12, n. 25, p. 420-437, 2017.
MONÇÃO, Vinicius de Moraes. Maria Guilhermina Loureiro de Andrade
nas redes do Kindergarten. Rio de Janeiro. 2018. 226 f. Tese (Doutorado em
Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
MONÇÃO, Vinicius de Moraes. Debates sobre os jardins de infância no
Congresso de Instrução (Rio de Janeiro, 1883). Revista Caminhos da Educação:
diálogos, culturas e diversidades, v. 2, n. 1, p. 43-68, 2020.

46
MUNHOZ, Fabiana Garcia; VIDAL, Diana Gonçalves. Experiencia docente
y transmisión familiar del magisterio en Brasil. Revista Mexicana de Historia
de la Educación, v. III, p. 125-157, 2015.
NICOLETE, Jamilly Nicacio; RIBEIRO, Arilda Ines Miranda. Educação e
História: a vida de Mary Parker Dascomb. Fides Reformata, vol. XXI, n. 1,
p. 39-52, 2016.
PAIZ, O. Rio de Janeiro:1890 (Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca
Nacional).
REIS FILHO, Casemiro dos. A educação e a ilusão liberal. São Paulo: Ed.
Cortez & Autores Associados, 1981.
REVEL, Jacques. A história redescoberta? In: BOUCHERON, Patrick;
DELALANDE, Nicolas. Por uma História-Mundo. Belo Horizonte: Ed.
Autêntica, p. 21-28, 2015.
ROLDAN VERA, Eugenia. Para “desnacionalizar” la Historia de la Educación:
reflexiones en torno a la difusión mundial de la escuela lancasteriana en el
primer tercio del siglo XIX. Revista Mexicana de Historia de la Educación,
v. 1, n. 2, p. 171-198, 2013.
SANTOS, Elaine Maria. Influências americanas e inglesas no ensino de inglês
no brasil oitocentista: prosódia ingleza (1878). Estudos Anglo Americanos.
v. 46, n. 2, 2017.
SCHELBAUER, Analete Regina. Fonte para o estudo da História da
Educação brasileira: o Congresso da Instrução do Rio de Janeiro. In: I
Congresso Brasileiro de História da Educação. Educação no Brasil: História
e Historiografia. Anais do I Congresso Brasileiro de História da Educação.
Educação no Brasil: História e Historiografia. Rio de Janeiro: Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 2000.
SCHUELER, Alessandra Frota Martinez. Combates pelo ofício em uma escola
moralizada e cívica: a experiência do professor Manoel José Pereira Frazão
na Corte imperial (1870-1880). Revista Brasileira de História da Educação,
v. 5, n. 1[9], p. 109-138, 2005.
SEEFELDT, Douglas; THOMAS, William G. Intersections: history and new
media what is digital history? The newsmagazine of the American Historical
Association. Perspectives on History. 2009.

47
SOBE, Noah. Entanglement and Transnationalism in the History of
American Education. In:  POPKEWITZ, Thomas (org.). Rethinking the
History of Education Transnational Perspectives on Its Questions, Methods,
and Knowledge. New York: Palgrave Macmillan, p. 93-107, 2013.
STRUCK, Bernhard; FERRIS, Kate & REVEL, Jacques. Introduction: Space
and Scale in Transnational History, The International History Review, v. 33,
n. 4, p. 573-584, 2011.
SUBRAHMANYAM, Sanjay. Comércio e conflito: a presença portuguesa no
Golfo de Bengala, 1500-1700. Lisboa: Eduções 70, 1994.
SUBRAHMANYAM, Sanjay. Connected Histories: notes towards a
reconfiguration of early modern Eurasia. Modern Asian Studies, v. 31, n. 2,
p. 735-762, 1997.
TEIXEIRA, Gisele Baptista. A imprensa pedagógica no Rio de Janeiro: os
jornais e as revistas como agentes construtores da escola (1870-1919). Tese
(Doutorado em Educação). Niterói: UFF, 350 fls. Programa de Pós-Graduação
em Educação, Universidade Federal Fluminense, 2016.
UEKANE, Marina Natsume. “Como o bom professor tudo está feito, sem elle
nada se faz”. A Escola Normal e a conformação do magistério primário no
Distrito Federal (1892-1912). Tese (Doutorado em Educação). Niterói: UFF.
276 fls. Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal
Fluminense, 2016.
VIDAL, Diana Gonçalves. História transnacional da educação: (des)conexões
entre Brasil e a New Education Fellowship (1920-1948). ARATA, Nicolás;
PINEAU, Pablo (Org.). Latinoamérica: la educación y su historia. Nuevos
enfoques para su debate y enseñanza. Buenos Aires: Editorial de la Faculdad
de Filosofia y Letras Universidad de Buenos Aires, 2019.
VIDAL, Diana Gonçalves ; CAMARGO, Marilena Jorge Guedes de. A
imprensa periódica especializada e a pesquisa histórica: estudos sobre o
boletim de educação pública e a revista brasileira de estudos Pedagógicos.
Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 73, n. 175, set./dez. 1992, p.
407- 430.
VIDAL, Diana Gonçalves ; RABELO, Rafaela (Org.). Movimento Internacional
da Educação Nova. Belo Horizonte: Argumentum, 2020.

48
WERNER, Michael; ZIMMERMANN, Bénédicte. Penser l’Histoire Croisée:
Entre Empirie Et Réflexivité. Annales Histoire, Sciences Sociales, v. 1, n. 58,
p. 7-36, 2003.

49
CAPITULO 2

Luiz Alves de Mattos e suas redes: viagens e


conexões no campo educacional (1917-1990)

Vivian Batista da Silva


Keila da Silva Vieira

A pedagogia só pode ser concebida no âmbito internacional e os


pedagogos sempre foram grandes viajantes que funcionaram em rede.
(HOUSSAYE, 2007)

Desde o século XIX, a escola vem construindo seus modos de trabalho,


reunindo os alunos em classes graduadas, distribuindo os professores para
atuarem individualmente junto a uma turma de estudantes, em salas de
aula, percorrendo um currículo próprio, em tempos específicos (NÓVOA,
1995). Este é o ensino moderno, facilmente reconhecível, fruto de saberes
e experiências historicamente construídas e compartilhadas em diferentes
lugares do mundo. A força desse modelo pode ser resumida na expressão
“the one best system” (TYACK, 1974), traduzida aqui como “o único melhor
sistema possível” ou como uma espécie de “gramática escolar” (NÓVOA,
1995). Destaque-se não apenas a sua longa duração, mas ainda sua expansão
mundial, de uma forma razoavelmente semelhante em países geograficamente
próximos ou não, até mesmo econômica, social e politicamente diferenciados.
O ponto de partida do presente capítulo é entender que esse processo
só foi possível graças às interações de sujeitos e aos seus esforços para fazer

51
circular artefatos e conhecimentos a partir dos quais a escola, seus princípios
e práticas, se fundamentaram. É nesse sentido que a epígrafe com a qual se
inicia o texto é tão significativa, pois Houssaye (2007) destaca justamente a
importância dos contatos para a edificação da pedagogia e dos pedagogos.
No seu entender, eles “sempre foram grandes viajantes que funcionaram em
rede”, noção fundamental na análise aqui proposta, que visa a contribuir com
a história transnacional da educação (RABELO & VIDAL, 2020).
Coloca-se em pauta a trajetória, conexões e saberes produzidos e postos
a circular por um educador, Luiz Alves de Mattos, em meados do século XX.
De origem humilde, ele frequentou desde a infância instituições católicas
no Rio de Janeiro e em São Paulo. Com o apoio da Ordem Beneditina,
foi para os Estados Unidos continuar seus estudos. Retornou ao Brasil e
ocupou diferentes cargos, entre eles, a cátedra de Filosofia e História da
Educação na Universidade do Distrito Federal durante os anos de 1938
e 1939, a chefia da cátedra de Didática Geral e Especial da Faculdade de
Filosofia da Universidade do Brasil, a atual Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) até 1972; foi Diretor do Instituto de Estudos Avançados em
Educação (IESAE) e diretor da Faculdade de Educação da UDF (Centro
Universitário do Distrito Federal). Também contou com o reconhecimento
de muitos educadores, numa trajetória que será mais bem detalhada neste
capítulo. Em suma, Mattos foi um exemplo de sujeitos que, à época, exerceram
diferentes funções na carreira docente, estudaram no país e no exterior,
participaram de eventos nacionais e internacionais, tiveram publicações
lidas e traduzidas em diferentes tempos e espaços (MICELI, 1979; LEITE,
1984). A trajetória de Mattos representou uma experiência singular que,
ao mesmo tempo, remeteu para uma lógica de relações presente no campo
social e educacional como um todo.
A análise assim concebida nos conduz à teoria das redes de sociabilidade
(networks) (FUCHS, 2007; RABELO & VIDAL, 2018). De acordo com Fuchs
(2007, p.185-186), ela permite reinterpretar temas considerados nacionais
segundo uma perspectiva transnacional. As redes correspondem a uma
metáfora usada já no século XIX para se referir às infraestruturas técnicas,
de comunicação, transportes e conexão entre diferentes pessoas e lugares

52
e, aqui, permite articular movimentos estabelecidos em largas escalas,
nacionais ou internacionais, com ações mais locais e individuais. O exame
das conexões estabelecidas por Mattos delimita-se entre 1917, isto é, desde
quando ele ingressou no magistério, até 1990, quando temos conhecimento
da reimpressão, em espanhol, de seu manual Sumário de Didática Geral,
publicado originalmente no Rio de Janeiro, no ano de 1957, pela editora
Aurora. Luiz Alves de Mattos faleceu em 1980, mas a circulação de sua obra
teve continuidade, por isso a periodização aqui proposta é mais ampla.
O olhar através das redes amplia a percepção das múltiplas conexões
possíveis, que não partem apenas dos países mais ricos e desenvolvidos para
os países mais periféricos, supostamente aqueles que teriam mais “lições a
aprender” (STEINER-KHAMSI, 2002). Pretende-se considerar também
outras tramas que enlaçam os países, embaralham os pontos de partida
e chegada dos sujeitos e saberes, incorporando as mútuas influências e as
variadas apropriações de modelos e práticas educativas. É por isso que o
estudo da trajetória de Mattos não versa exclusivamente sobre iniciativas
governamentais e envolve redes estabelecidas no âmbito de instituições
públicas ou privadas, em relações postas em espaços locais ou transnacionais.
De fato, Mattos circulou de modo intenso e plural. Suas redes, como todo
encontro, estabeleceram reciprocidades, algumas postas em relações
formais, outras informais, consolidando vínculos individuais ou coletivos
(ZIJDERVELD, 2000), em meio aos quais Luiz Alves de Mattos produziu
e deu visibilidade a suas propostas, que ele mesmo vinculou à chamada
“moderna Didática”1. Tal como se procurará evidenciar, as redes forneceram
ao autor capitais que lhe permitiram expandir sua formação, seus espaços
de atuação e divulgação, consolidando-o como um autor de referência no
espaço ibero-americano, notadamente no Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília,
Colômbia, Portugal, Argentina, entre outros.

1. Note-se uma das publicações mais conhecidas do autor, escritas para aulas da Escola
Normal e outros cursos de formação docente. O título é justamente A linguagem didática
no ensino moderno (1960), editada pela primeira vez em 1956. Para uma análise detida no
conteúdo deste manual, pode-se consultar o artigo “Por aplicações concretas e imediatas
na sala de aula”: um estudo sobre livros que ensinam a ensinar (L. Mattos, RJ, anos 1960)
de Silva & Vieira (2019).

53
A partir dessa premissa, as páginas que se seguem mapeiam a trajetória
do educador brasileiro Luiz Alves de Mattos, atentando-se para suas redes de
influências pedagógicas. Este mapeamento mobilizou diferentes fontes, tais
como: relatórios da Ordem Beneditina, entrevistas concedidas por Mattos
ao Jornal A Forja do Grêmio estudantil do Colégio de Aplicação (CAp),
jornais que o mencionaram, publicados entre 1920 e 1980, encontrados na
Hemeroteca da Biblioteca Nacional. Também foram consultados manuais
didáticos escritos pelo professor Mattos, revistas pedagógicas nas quais
ele trabalhou como redator. Por fim, foram examinados outros materiais
concedidos pelo Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, onde Mattos atuou entre 1948 e 1965 e pelo Arquivo da Cúria
Metropolitana de São Paulo, que em seu vasto acervo sobre a Igreja Católica
reúne documentos da Ordem Beneditina, junto à qual Mattos atuou em boa
parte de sua trajetória2. Também foram consultados trabalhos já realizados
sobre Luiz Alves de Mattos, como os de Abreu (1992) e Vilarinho (1999).
Trilhou-se um caminho que considerou as relações internacionais, pessoais
e profissionais de Mattos, formando, assim, um itinerário que marca suas
redes de sociabilidade (FUCHS, 2007).
Este capítulo organiza-se de modo a dar conta de importantes movimentos
a partir dos quais Mattos foi estabelecendo suas conexões ao longo de sua
trajetória. Movimentos que podem ser comparados a viagens. De filho de
jardineiro a professor, escritor e administrador educacional reconhecido,
Mattos percorreu vários espaços em sua vida e carreira, aspectos a serem
tratados na parte relativa às viagens da trajetória. Em seguida, tratar-se-á de
suas viagens entre lugares no sentido mais conhecido da palavra, quando o
autor percorreu diferentes países e instituições nas quais foi aluno ou lecionou.
Por fim, o capítulo versará sobre as chamadas viagens da “moderna Didática”,

2. Além de colaborar com o Projeto Temático Saberes e práticas em fronteiras: por uma
história transnacional da educação (1810-...) (Processo: 2018/26699-4) através da pesquisa de
Iniciação Científica: Saberes pedagógicos entre Fronteiras: um estudo sobre a circulação das
ideias de Luiz Alves de Mattos (Processo: 2018/19450-2), as fontes aqui analisadas também
têm suas origens em outro trabalho, realizado entre 2017 e 2018 pela bolsista Keila da Silva
Vieira com apoio da FAPESP. Trata-se d’ O Magistério na sala de aula: um estudo sobre A
linguagem didática no ensino moderno (1960) e O quadro-negro e sua utilização no ensino
(1954) de Luiz Alves de Mattos - (Processo: 2017/08108-6).

54
objeto de estudos e proposições elaboradas por Mattos e postas a circular
em publicações e traduções. É justamente esse conjunto de iniciativas que
descrevem suas redes e ajudam a compreender de que maneira, no campo
educacional, conexões como essas são estabelecidas.

Viagens da trajetória

A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos,


não é o que vemos, senão o que somos. (Fernando PESSOA, 2008)

Destacadas por evocarem movimentos e encontros, as viagens são


especialmente importantes porque são caminhos através dos quais as redes
se constituem. Em outras palavras: “Viagens educam. Viagens legitimam.
Viagens abrem caminhos. Viagens se desdobram em outras viagens, em
redes”, afirma Ana Chrystina Mignot (2017, p. 264). Nos últimos anos, a
pesquisa em história da educação vem dando cada vez mais visibilidade a esse
tipo de experiência (MIGNOT, 2017; VIÑAO, 2007; MIGNOT, GONDRA,
2007; SILVA, 2018). Como toda metáfora, a viagem é profícua e permite
apreender inúmeras questões, porque indica paralelos significativos, analogias
e similaridades (SCHEFFLER, 1974; HAMELINE, 1986; CHARBONNEL,
1983).
No caso do problema aqui colocado, referente às motivações, destinos,
repercussões e desdobramentos das redes estabelecidas no campo educacional,
destacar a viagem significa assinalar idas a diferentes lugares, sejam eles
geográficos, culturais ou sociais. As palavras de Fernando Pessoa (2018, p.
410), sublinhadas na epígrafe acima, evocam justamente os efeitos da viagem
na constituição do sujeito: “As viagens são os viajantes”, vale repetir. Convém,
então, estudar os caminhos percorridos por Luiz Alves de Mattos em sua
trajetória, evidenciando os lugares sociais que foram sendo ocupados por
ele. Na medida em que Mattos se movimentava entre cursos e trabalhos,
adquirindo diplomas, títulos e cargos, ia tecendo suas redes de sociabilidade.
Esses movimentos podem ser comparados a travessias e ajudam a pensar a
vida e a carreira dos sujeitos.

55
Foto cedida pela Biblioteca do Mosteiro de São Bento de São Paulo em fevereiro de 2020.
Não há informações exatas sobre data e local onde a foto foi tirada.

Luiz Narcizo Alves de Mattos nasceu em 12 de novembro de 1907, em


São Paulo. Filho de imigrantes portugueses, Antônio Alves de Mattos e
Augusta Ribeiro dos Santos, desde criança se destacou por sua inteligência
e foi educado pelas freiras do Seminário da Glória, onde seu pai trabalhava
como jardineiro (VILARINHO, 1999). Mattos seguiu sua formação católica
até o ensino superior quando, aos dezessete anos, iniciou-se nos estudos de
Teologia e Filosofia, na Ordem de São Bento, do Rio de Janeiro. Quando
terminou seu curso de Filosofia, em 1926, Mattos lia e falava fluentemente,
além do português, seis idiomas: latim, grego, francês, alemão, espanhol e
italiano (VILARINHO, 1999, p. 349), sendo também conhecido pelo apelido
“metralhadora latina” (CARVALHO, 2000).
Luiz Alves de Mattos movimentou diferentes redes de influência na
educação brasileira. Foi professor catedrático e diretor na Faculdade de
Filosofia da Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de
Janeiro), idealizador e diretor do primeiro Colégio de Aplicação no Brasil

56
(Colégio de Aplicação da Universidade do Brasil). Ademais, trabalhou como
redator-chefe na Revista Escola Secundária, do Ministério da Educação do
Rio de Janeiro e escreveu manuais pedagógicos, dentre os quais: O quadro-
negro e sua utilização no ensino (1954); Súmulas de Didática Geral (s.d.);
Os objetivos e o planejamento do ensino (1957); Sumário de Didática Geral
(1957); Primórdios da Educação no Brasil: o período heroico (1958), no qual
trata de periodizar a história da educação brasileira. É através dos escritos
de Mattos que podemos adentrar em seu pensamento e reflexões sobre a
“moderna Didática” e compreender as repercussões deste conceito para seu
trabalho e escritos.
Seus manuais, em especial, versaram sobre conceitos da prática docente
e destacaram experiências vividas por seus alunos quando da sua atuação
como professor na Faculdade de Filosofia no Rio de Janeiro. Dessa maneira,
seu pensamento foi marcado pela conciliação entre o pragmatismo de Dewey
(um dos grandes expoentes da Escola Nova, muito reconhecido e utilizado
por outros educadores brasileiros à época), a filosofia e a experiência didática,
a qual recebeu mais visibilidade em suas asserções. Também trabalhou como
diretor e criador de diversas instituições, destacando-se sua expressiva relação
com a Fundação Getúlio Vargas: 1. Escola Brasileira de Administração Pública
(EBAP) da FGV do Rio de Janeiro (1951-1953); 2. Escola Interamericana de
Administração Pública (EIAP) da FGV/RJ (1964-1966); 3. Departamento
de Ensino da FGV (1947-1951); 4. Instituto Brasileiro de Administração da
FGV (1951- 1972). Organizou e supervisionou o Colégio Nova Friburgo da
FGV e participou da equipe que idealizou o IESAE (Instituto de Estudos
Avançados em Educação) da Fundação Getúlio Vargas, hoje extinto, sendo
seu Diretor no período de 1971/1973 (VILARINHO, 1999, p. 349).
Dentre todos os cargos que Mattos exerceu em sua vida, destacou-se
sua propensão e forte gosto pela formação de professores e pela Didática.
Ele dirigiu muitas instituições ao longo de sua história, mas foi na Faculdade
Nacional de Filosofia (FNFi) que pôde congregar melhor as ideias de um
ensino moderno, uma vez que em suas aulas prezava sempre pelos estágios
dos licenciandos e pela inovação das técnicas do professorado. No entanto, a
FNFi não possuía um local próprio para esses fins e Mattos teve que utilizar
o Colégio Pedro II e colégios particulares como espaços de estágio. Com

57
essa dificuldade, o educador tentou durante seis anos criar um ambiente
onde poderia demonstrar na prática as aplicações ensinadas nos cursos de
formação. Ocorreram muitos impedimentos para a criação do Colégio de
Aplicação, como, por exemplo, a falta de autorização do governo, verbas e
espaço. Mas em 1948 foi criado o Colégio de Aplicação da FNFi, que seria
conhecido posteriormente como CAp. Nas palavras de Mattos: “A criação
do CAp resultou de um esforço de mais de 10 anos. Se pudemos começar
foi graças à ajuda da Faculdade Getúlio Vargas, pois a incompreensão dos
políticos e da Faculdade representava um obstáculo quase intransponível”
(A forja, 1966).
A criação do CAp reverberou em muitos interesses, foi uma instituição
moderna que, no tocante às práticas de ensino, era considerada “um colégio
de vanguarda, um colégio com técnicas experimentais” (ABREU, 1992, p. 15).
Embora Mattos tenha sofrido com as diferenças das tecnologias educacionais
brasileiras, ele recebeu apoio de muitas pessoas para conseguir implantar
suas ideias. Um de seus maiores apoiadores foi Luiz Simões Lopes, fundador
e primeiro presidente da FGV (1944-1992), onde Mattos também trabalhou
por muitos anos e criou o colégio de Aplicação Nova Friburgo. Por haver
mais liberdade no CAp, o autor também criou espaços inovadores no colégio,
destacando-se: os clubes de língua, ciências e geografia, centros de matemática
e física, o teatro do CAp, o grêmio literário, o cineclube e o SOE (Serviço de
Orientação Educacional), que servia para o acompanhamento psicológico,
familiar e pessoal dos alunos. Outro componente deste novo método de
conceber o ensino esteve relacionado à formação de professores. No CAp,
Mattos conseguiu criar um polo de formação docente. O que antes era
realizado em colégios fora da Faculdade Nacional de Filosofia passou a ser
feito no Colégio de Aplicação. Mattos recebia mais de cem licenciandos da
FNFi para o estágio de Didática e com eles colocava em prática suas ideias
e teorias expostas nos seus manuais. Assim, o Colégio se constituiu como
laboratório experimental das pesquisas no campo da educação secundária e foi
fundamental para a revolução das práticas escolares (SILVA, VIEIRA, 2019).
Além do Colégio de Aplicação da Faculdade Nacional de Filosofia
do Rio de Janeiro, outro cenário de práticas educacionais em que Mattos
se desenvolveu foi nas instalações da Faculdade Getúlio Vargas, cujas

58
reverberações do seu trabalho marcaram sua consolidação e reconhecimento.
No livro Fundação Getúlio Vargas: concretização de um ideal (1999), Simões
Lopes, à época, presidente da FGV, quando perguntado sobre a atuação de
Luiz Alves de Mattos na estruturação da Fundação, disse:
Simões Lopes — Sim. Em primeiro lugar, eu queria aproveitar o Mattos,
de quem tinha as melhores referências. Ele me foi apresentado não me
lembro por quem. Tinha estado nos Estados Unidos muitos anos, era
um homem excepcional, com um preparo profundo. Era um ex-padre
e tinha uma formação cultural vastíssima. Além disso, era um homem
muito modesto e bom. Foi extremamente útil à Fundação. Tudo o que eu
tinha de fazer, em primeiro lugar entregava a ele. Tudo saía perfeito. Era
muito jeitoso, hábil, escrevia muito bem. Eu o nomeava para criar os
órgãos e depois, quando ele acabava de criar, passava aquilo para um
terceiro e o mandava criar outra coisa. Ele era a pessoa mais perfeita
que se possa imaginar para fazer isso. (p.19, grifos nossos,)

Simões Lopes foi bastante claro e destacou com exatidão a confiança


que tinha em Mattos, cujas referências, segundo ele, eram as melhores. Em
suas palavras apareceu uma das características mais singulares do professor
Mattos: a organização e a criação de instituições de ensino. Ao longo das
páginas do mesmo livro, observa-se a reiteração dessa propensão, chegando
a ser dito pelo Dr. Jorge Flores (presidente da FGV na década de 1990) que:
“Todas as nossas escolas foram montadas por ele [Luiz Alves de Mattos]”
(p. 31). O papel desenvolvido por Mattos na criação das escolas foi explicado
por Diogo Lordello, quando perguntado se o conhecia, como qualidade de
um pedagogo que se interessa por conceber escolas e não administrá-las:
Diogo Lordello — Sim. Era um grande pedagogo, tanto que seu interesse
era criar escolas, e não administrar. Ele concebia as escolas, o conteúdo
das disciplinas, as metodologias, e passava a direção para outra pessoa.
Não dirigiu por muito tempo nenhuma das escolas que criou. Foi o
primeiro diretor da EBAP, mas pouco tempo depois passou-a para
o professor Benedito Silva. Ele também concebeu o Colégio Nova
Friburgo. (p.115)

59
Ao atrelar a teoria à prática, Mattos conseguiu circular por diferentes
lugares do campo educacional, a partir do qual suas redes não se restringiram
apenas ao âmbito brasileiro. Além de sua viagem por meio da Ordem
beneditina, voltou aos Estados Unidos para visitar instituições na área
da administração com o intuito de “tirar lições” e fundar uma escola de
administração no Brasil. Conta Maria Celina de D’Araújo (1999, p.112) que
nesta viagem, ele visitou 17 instituições e fez relatórios minuciosos sobre
o que foi aprendido e sua esposa, Dora Alves Mattos, também educadora,
visitou escolas de segundo grau. Como resultado dessa viagem, foi possível a
abertura do colégio Nova Friburgo, bem como o início, em 1951, dos cursos
de administração em colaboração com a ONU. Cabe ressaltar também que
o nome de Mattos foi publicado em 1979, no Jornal dos Sports, na relação
de patronos e titulares das 41 cadeiras da Academia Brasileira de Educação.
De filho do jardineiro, passando a seminarista, monge, professor,
estudioso indo aos Estados Unidos, voltando ao Brasil, lecionando cursos
de aperfeiçoamento3 ou sendo lido em países do circuito ibero-americano,
Mattos firmou-se como educador com uma trajetória reconhecida. Reunir os
aspectos da trajetória de Luiz Alves de Mattos aqui descritos foi um desafio
porque esses “retratos” estão dispersos em fontes variadas, localizadas em
várias consultas feitas ao longo da pesquisa sobre sua vida e obra. Algumas
informações constaram em notas biográficas de livros que ele escreveu.
Outras apareceram em artigos de periódicos, relatórios da Ordem beneditina,
arquivo do Colégio de Aplicação, entre outros locais. De qualquer forma,
elas deixaram entrever o que, no entender dos biógrafos, correspondeu às
qualidades mais louváveis de Mattos. Certas experiências de vida e trabalho
foram destacadas, como foi o caso de sua dedicação à religião. Embora tenha
deixado de ser monge para se casar, sua “missão educativa” não deixou de
ser objeto de elogios e transpareceu no seu ofício de professor e na sua obra
sobre o ensino moderno, tema recorrente de estudos e publicações. A sua
ascensão no magistério também foi iluminada, constituindo Mattos como

3. Foi docente nos cursos de aperfeiçoamento promovidos pelo Inep/MEC (Área de


organização e Administração Escola, 1947-1963); Ministério da Guerra/Estado Maior (área
de Didática, 1949-1963), Escola de Serviço Público do Dasp (área da Didática, 1960-1963),
entre outros (VILARINHO, 1999).

60
exemplo de um intelectual que concentrou seus investimentos na aquisição
de diplomas, títulos e cargos.
Em Intelectuais e classe dirigente no Brasil, Miceli (1979) notou esforços
semelhantes em trajetórias como as de Lourenço Filho. Nesses casos, houve
uma espécie de devoção ao trabalho coincidindo com os interesses de poderes
públicos e privados em contar com um corpo de especialistas para a gestão
de instituições de ensino. A trajetória de Mattos evidenciou, portanto, vias de
acesso ao magistério e aos altos cargos na carreira, que podem ser resumidas
na inserção em congregações religiosas, na aquisição de diplomas no exterior,
nos intercâmbios com os poderes públicos e na divulgação de ideias para a
formação de outros professores em diferentes espaços. O Professor Mattos
veio a falecer na cidade do Rio de Janeiro, em 6 de agosto de 1980.

Viagens entre lugares

As viagens funcionam como um exercício de comparação, base para se


extrair lições do mundo descrito como moderno e civilizado. (MIGNOT
& GONDRA, 2007)

Entre os vários significados para os quais a metáfora da viagem nos


remete estão as idas e vindas dos sujeitos entre diferentes lugares. Essas
transições foram frequentes na trajetória de Luiz Alves de Mattos. Algumas
foram mais longas, compreendendo períodos de estudo, como quando ficou
nos Estados Unidos (entre 1929 e 1931) para aprender lições do mundo dito
moderno e civilizado, como sugerem Mignot e Gondra (2007) sobre esse
tipo de experiência. A transição entre diferentes lugares foi marcada também
por períodos de viagem mais curtos, com participação em eventos. Mattos
coordenou seminários e congressos internacionais, bem como participou
de missões técnicas em organismos internacionais como a Organização
das Nações Unidas (ONU), Organização dos Estados Americanos (OEA),
Banco de Desenvolvimento Interamericano (BID) e Fundação Ford
(BITTENCOURT, 2010; VILARINHO, 1999).
Foi possível assinalar aqui a formação católica que Mattos teve desde
a infância. Ao longo de sua trajetória, Luiz Alves de Mattos realizou, pelo
menos, quatro viagens de importante significado. Primeiramente, partiu de

61
São Paulo para o Rio de Janeiro, ainda muito jovem, para cursar Teologia e
Filosofia, na Ordem de São Bento. A partir dessa primeira viagem, podemos
perceber sua projeção tanto nacional, como internacional, dado que após
o término do curso, ganhou a já referida bolsa planteada pela Ordem
Beneditina para estudar nos Estados Unidos da América. Assim, com o
apoio da Ordem Beneditina, estudou na Catholic University of America
de Washington (MARTINS, 2015), onde entrou em contato com referências
teóricas inspiradoras em sua carreira. Retornou ao Brasil e construiu sua
obra. Esse tipo de iniciativa foi comum em congregações religiosas à época,
como uma maneira de formar seus professores para, posteriormente, atuarem
nas instituições superiores católicas. Provavelmente a escolha deveu-se
à atuação de Mattos na Ordem Beneditina, uma vez que foi evidenciada
a sua participação na Liga do Professorado Católico (PINHEIRO, 2013;
2015; NARCIZO, 2008). A Liga foi fundada em 1919 e representou uma
organização de militância católica que propunha difundir a fé cristã aos
professores paulistas.
Francisco Xavier de Mattos - seu nome religioso - atuou na Catholic
University of America, onde conseguiu os diplomas em Bacharel em
Teologia, Bacharel em Direito Canônico, Doutor em Teologia e Mestre em
Educação e foi ordenado sacerdote em 1931. Também exerceu o cargo de
reitor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e do Instituto Superior de
Educação (Sedes Sapientiae), onde começou sua extensa trajetória de diretor
e fundador de instituições de ensino. Foi a partir da viagem aos EUA que
Mattos interagiu com práticas inovadoras na educação e as conciliou com a
sua formação clássica e humanística. Luiz Alves de Mattos retornou ao Brasil
em 1932 - ano em que foi publicado o Manifesto dos Pioneiros da Educação
-, movimento ao qual posteriormente se conciliou (CARVALHO, 2000).
A formação híbrida de Mattos foi a metáfora mais simbólica que temos de
sua concepção de ensino, dado que conseguiu relacionar a metodologia
didática, o pragmatismo de John Dewey (CUNHA, 1999) e autores clássicos
para galgar sua tese sobre a Filosofia da experiência (SILVA, 2018). Mattos
permaneceu na Ordem Beneditina até 1939, quando teve seu pedido de
laicização aprovado pelo Papa. Após essa decisão, o educador casou-se com
Dura Kulmann e se dedicou totalmente ao ensino laico. Viajou para o Rio de

62
Janeiro e lá deu início à sua trajetória dedicada exclusivamente à educação,
na qual se centrou mais no campo da Didática e da Administração escolar.
Em 1939, iniciou sua atuação como Titular de Didática Geral e Especial da
Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil e permaneceu
na mesma até 1972. Em meio às viagens, Mattos estabeleceu suas redes
e constituiu-se como um intelectual de origem católica que defendeu a
“renovação” do ensino.

Viagens da “moderna Didática”

O ensino sempre pode e deve ser melhorado, quanto ao conteúdo da


matéria e quanto à técnica do trabalho. O rendimento escolar é, em
grande parte, uma decorrência desses fatores e da atitude construtiva,
do dinamismo com que o professor acomete sua missão de estimular,
orientar e controlar a aprendizagem de seus alunos. (MATTOS, 1957)

As viagens feitas por Luiz Alves de Mattos não se restringiram apenas às


viagens físicas, mas também se relacionaram ao movimento transfronteiriço
que seus saberes percorreram através de livros e trabalhos. Ao mapear as
relações e trocas estabelecidas, percebeu-se que o principal propagador das
ideias de Mattos foi seu manual pedagógico Sumário de Didática Geral (cuja
primeira edição datou de 1957), o qual, em suas diversas edições, percorreu
diferentes universidades latino-americanas e serviu como base teórica para
estudos sobre a história e a prática da Didática.
No prefácio à primeira edição do manual, Mattos se dirigiu “aos colegas
do magistério militante do país [apresentando] as fecundas perspectivas
e sugestões que a moderna Didática oferece para esse equacionamento
inteligente entre meios e fins, no afã de melhorar o nosso ensino” (1957, p.
11). Esta primeira asserção já apontou para o objeto de estudo que Mattos
se apropriou durante toda a sua trajetória como escritor e professor, a saber,
a moderna Didática, cujo significado, em suas palavras, correspondeu à
parte do postulado fundamental de Gilbreth de que há diversas maneiras
de ser realizar qualquer tarefa, uma das quais será sempre a melhor e a

63
mais eficiente, dentro das circunstâncias e recursos que se apresentam.
(MATTOS, 1975, p. 10).

Ao longo das 382 páginas deste manual, o autor dividiu o Sumário em


três partes, quais sejam: 1) Fundamentos, 2) Orientação da Aprendizagem e 3)
Controles da Aprendizagem e explanou, entre outros temas, a organização da
classe, os fundamentos da Didática, os procedimentos para planejar o ensino e
expor a matéria, a avaliação, diagnóstico de dificuldades de aprendizagem. Ao
abordar esse conteúdo, Mattos reiterou a importância da moderna Didática,
assinalando-a como fundamental para que o docente seja capacitado e saiba
distinguir com clareza “o que no ensino é essencial, necessário e indispensável
e o que é acidental, secundário, acessório” (MATTOS, 1957, p.14).
Ele conta ainda que o manual surgiu a partir de notas das suas aulas
ministradas nos cursos patrocinados pela Campanha de Aperfeiçoamento e
Difusão do Ensino Secundário (CADES) e Aperfeiçoamento e expansão do
ensino comercial (CAEC). No prefácio de 1957, o professor Mattos deixou
entrever o seu importante papel no campo educacional do período, dado que,
além do manual ser escrito, este também foi lecionado através da Rádio do
Ministério da Educação (MATTOS, 1973, p. 10). É a partir de suas palavras
que se pode traçar algumas pontas do emaranhado de redes das quais Mattos
fazia parte e perceber como esse manual expandiu suas conexões para além
dos leitores, chegando aos ouvintes brasileiros. Segundo o autor, no prefácio
à quarta edição, o manual Sumário de Didática Geral foi recebido de maneira
positiva “em mais de cinquenta Faculdades de Filosofia espalhadas por todo
o País” (MATTOS, 1973, p. 18), o que aponta uma significativa diferença dos
outros títulos que o autor escreveu, dado que apenas dois destes, A linguagem
Didática no Ensino Moderno e O quadro-negro e sua utilização no ensino
chegaram à sua segunda edição, em 1960 e 1958, respectivamente. Já no tocante
ao Sumário de Didática Geral, foram publicadas dezessete edições ao longo
de dezoito anos, sendo que este também foi traduzido para o espanhol em
1963 pela editora argentina Kapelusz. Consoante o autor:
A aceitação que o nosso trabalho está tendo junto às cátedras de Didática
Geral de mais de cinquenta Faculdades de Filosofia espalhadas por todo
o país, parece confirmar esta nossa aparentemente imodesta afirmação.

64
Com a recente publicação de sua tradução castelhana (“Compendio de
Didáctica General”) pela Editorial Kapelusz, S.A. de Buenos Aires, em
junho de 1963, sua influência está se estendendo às demais repúblicas
latino-americanas; já o adotaram as cátedras de Didática General de
quatro Faculdades de Filosofia do Paraguai, bem como as de outras
faculdades e institutos de educação da Argentina, Peru e Colômbia.
(MATTOS, 1963, p. 18)

Verifica-se em suas palavras, embora lance mão de uma retórica que


propõe minimizar o êxito de seu trabalho, que este manual foi um dos
responsáveis por fazer com que suas ideias viajassem e ultrapassem as
fronteiras nacionais. Ao longo das nossas investigações, buscou-se entender os
impactos desta tradução nos países latino-americanos e, através de pesquisas
nos acervos de bibliotecas, programas de ensino e trabalhos que o citam de
maneira direta e indireta, foram sistematizados alguns dos lugares aonde
este texto chegou. Dentre os acervos online de bibliotecas latino-americanas,
foram encontrados exemplares na Argentina, onde foi publicada a tradução,
também no Uruguai, Colômbia, México, Equador, República Dominicana,
Venezuela e no território brasileiro, totalizando 67 exemplares e a publicação
de resumo escrito por Ángel Alfredo Hernández Moreno (2018). Foi a partir
desse dado que foram mapeados também os trabalhos que utilizaram as
ideias de Mattos, expostas no Sumário, como base. Dentre os dez artigos,
oriundos de diferentes países, percebe-se que Mattos foi evocado como
autoridade para explicar temas pertencentes à moderna Didática, como o
método, a definição dessa concepção de Didática, a planificação das aulas,
a técnica de ensino, entre outros.
Os trabalhos que citam os saberes de Mattos sobre a moderna Didática
destacam-se pela diversidade da ótica a partir da qual interpretaram essas
ideias. Embora todos estejam relacionados à educação, há artigos sobre
formação de professores, teses que versam sobre a tecnologia na sala de aula e,
ainda, pesquisas sobre o uso dos manuais pedagógicos na formação docente
argentina. A título de exemplificação, tomemos dois excertos do artigo “La
ensenanza de la matemática: de la formación al trabajo de aula” de Quiños
e Dugarte (2012) publicado na Revista Venezuelana de Educação (Educere):

65
Es conveniente señalar que la didáctica proporciona un conjunto de
“normas, recursos y procedimientos específicos que todo profesor debe
conocer y saber aplicar para orientar con seguridad a sus alumnos en
el aprendizaje” (MATTOS, 1963: p. 27). (p. 362)

Analizando los resultados de las encuestas, se identifica una de las


principales causas que determina la problemática del estudio, esta se
refiere a la planificación que realizan los docentes, ya que una gran
parte de ellos no aplican los procedimientos de instrucción de una
clase, dejando a un lado la aplicación de la prueba diagnóstica, para
Mattos (1963) define la misma como el procedimiento que permite
identificar las deficiencias o errores constantes de los alumnos, enfocando
principalmente los aspectos mecánicos del aprendizaje deficiente, la
actitud y método de estudio, el nivel de comprensión y la presencia de
algún bloqueo emocional. (p.363)

Através das citações transcritas, pode-se entrever algumas das maneiras


como Mattos foi referenciado nos trabalhos de língua espanhola. A primeira
questão é que, em todos os trabalhos analisados, seu nome foi vinculado
como a principal fonte na definição da Didática, a qual foi descrita como
um conjunto de normas e procedimentos que deveriam ser aprendidos pelo
professor. Esta definição, embora seja relacionada apenas ao termo “didática”,
dialoga com o que Mattos propôs e defendeu como prática da “moderna
Didática”. Esta concepção foi trazida em seus manuais, a partir da experiência
que ele teve com os seus colegiados, isto é, os preceitos traçados ao longo de
seus capítulos fizeram parte do programa de estágio dos professores quando
da sua atuação como docente nas faculdades de filosofia.
É possível entender um pouco mais do programa de estágio elaborado
por Mattos através do texto exposto no calendário de comemoração aos 60
anos do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro:
Nas décadas de 1950 e 1960 a cada ano passavam pelo CAp entre 150 e
160 licenciados da FNFi para o estágio de didática. Nesse momento os
futuros professores eram introduzidos nos segredos da moderna técnica
de ensino, debatendo seus problemas, observando as aulas do Colégio,

66
participando na condução dos trabalhos e, por fim, assumindo a direção
de um determinado número de aulas da sua especialidade, sempre
acompanhados, orientados e criticados pelos professores regentes.

Dessa maneira, o que Mattos quis foi que seus alunos vivenciassem na
prática o que foi exposto e citado por ele em seus manuais sobre a Didática
experimental e moderna, levando em consideração o aprendizado do método,
a reflexão e prática. Além das conexões latino-americanas de Mattos através
dos manuais, seus saberes também estiveram em movimento durante os
anos que trabalhou na Faculdade Getúlio Vargas. Nesta instituição, Mattos
participou, em 1964, da criação da Escola Interamericana de Administração
(EAIP), uma escola voltada apenas para estrangeiros. Mattos era responsável
por receber visitantes de diferentes países, como: Peru, Colômbia, Equador e
México (ARAÚJO, 1999, p. 115). Possivelmente, sua projeção como educador
brasileiro para América latina tenha se fortalecido nesse período também. Essa
projeção continua ainda hoje alimentando as redes de influências estabelecidas
pelo professor Mattos, dado que os artigos acadêmicos, teses e programas de
cursos4, em espanhol, investigados, datados de 1914 até 2014, ainda retomam
suas ideias como autoridade no campo e na definição da Didática.

Considerações finais
A consolidação da escola moderna aponta para o fortalecimento
das trocas de modelos e influências para além das fronteiras locais. Isso
é evidenciado nas viagens pedagógicas, importação e tradução de livros e
teorias cuja rede de ações movimenta e remodela a circulação de saberes
(SILVA, 2018; MIGNOT, GONDRA, 2007). Contra uma visão romantizada
das viagens, valeria considerar que elas também produzem hierarquizações no
campo educacional. São fundamentais para constituir o grupo de educadores
memoráveis, relegando outros ao esquecimento. Apenas para se ter um
exemplo desse processo, vale a pena retomar alguns resultados de um estudo
sobre a trajetória de autores de manuais pedagógicos (SILVA, 2018). No

4. Os textos mencionados fazem parte da busca e sistematização feitas na Iniciação Científica:


Saberes pedagógicos entre Fronteiras: um estudo sobre a circulação das ideias de Luiz Alves
de Mattos (Processo:2018/19450-2).

67
Brasil, livros de Didática, Pedagogia, Metodologia e Prática de Ensino usados
em Escolas Normais (alguns assinados pelo próprio Luiz Alves de Mattos)
foram escritos desde 1870, mas nem todos os seus signatários se tornaram
autores reconhecidos. Foram notáveis as relações entre a legitimidade dessas
pessoas e o significado das redes que elas construíram em meio às suas
viagens (tanto no sentido de sua mobilidade social, de trabalho, quanto de
seus deslocamentos entre lugares) (SILVA, 2018).
Talvez valha a pena atentar para as ponderações de Bourdieu (2002)
acerca desse processo de internacionalização:
Acreditamos com frequência que a vida intelectual é espontaneamente
internacional. Não há nada mais falso. A vida intelectual, como todos
os outros espaços sociais, é o lugar de nacionalismos e imperialismos,
e os intelectuais veiculam, quase tanto quanto os outros, preconceitos,
estereótipos, ideias pré-concebidas, representações muito sumárias,
muito elementares, que se alimentam dos acidentes da vida cotidiana,
das incompreensões, dos mal-entendidos, das feridas (por exemplo,
aquelas que o fato de ser desconhecido em um país estrangeiro pode
infligir ao narcisismo) (BOURDIEU, 2002, p. 05)

Como se procurou evidenciar até aqui, Luiz Alves de Mattos viajou


entre lugares, saberes e grupos distintos. Sua trajetória consolidou a figura
de um educador que ainda hoje permanece entrelaçado à rede educacional
latino-americana, o que é possível notar pelas traduções de suas obras e pelo
fato de que ele ainda é citado nesse circuito5. Sua formação e seus estudos
iniciais, sua participação em associações e grupos de intelectuais católicos
e/ou defensores da Escola Nova, suas iniciativas de criação e administração
de instituições de ensino e seu expressivo papel na consolidação e difusão
da moderna Didática resumem os efeitos de suas viagens, a consolidação
de suas redes. Ao viajar, Mattos buscou inspirações, mas também produziu
e fez circular saberes especializados. Não se trata apenas de reconhecer a
amplitude dessa transição, mas convém destacar principalmente o significado
das relações assim estabelecidas, sua duração, intensidade, frequência,

5. A título de exemplificação, pode-se citar os trabalhos de Jiménez (2010); Prado & Cruz
(2014); Picco (2014).

68
bem como a velocidade das trocas e seus efeitos (FUCHS, 2007). Foi essa
problemática que mobilizou o presente capítulo, contribuindo para entender
não apenas a trajetória de Mattos, como também as lógicas através das quais
os sujeitos constroem suas redes, produzem e fazem circular saberes no
campo educacional.

Referências Bibliográficas

Manuais pedagógicos:
MATTOS, Luiz Alves de. O quadro-negro e sua utilização no ensino. Rio de
Janeiro, 2º ed., Aurora, 1958.
MATTOS, Luiz Alves de. Primórdios da educação no Brasil – período heroico
(1549 a 1570). Rio de Janeiro, Aurora, 1959.
MATTOS, Luiz Alves de. A linguagem didática no ensino Moderno. Aurora,
Rio de Janeiro, 1960.
MATTOS, Luiz Alves de. Sumário de Didática Geral. Rio de Janeiro, Aurora,
1973.
MATTOS, Luiz Alves de. Compendio de Didáctica general, 2ª ed., Buenos
Aires: Kapelusz, 1974.

Fontes:
ABREU, Alzira Alves de. Intelectuais e Guerreiros, RJ: Editora UFRJ, 1992.
D’ARAÚJO, Maria Celina (org.). ORIGENS da Fundação Getúlio Vargas.
In: Fundação Getulio Vargas: concretização de um ideal. Rio de Janeiro: Ed.
Fundação Getúlio Vargas, 334 p. 1999.
EDELSTEIN, Gloria y Azucena RODRÍGUEZ. “El método: factor definitorio
y unificador de la instrumentación didáctica”. En: Revista de Ciencias de la
Educación, Buenos Aires, Editorial Axis, IV (12), pp. 21-33. 1974.
JIMÉNEZ, Elsa Julia Barrientos. Programa de Licenciatura para profesores de
Lenguas Extrajeras. Universidad Nacional Mayor de San Marcos, Perú, 2010.
MATTOS, Luiz Alves de. “Calendário de comemoração 60 anos do CAp”, 2008.
MATTOS, Luiz Alves de. “Prof. Mattos deixa o CAp”. Jornal: A Forja.
Setembro, maio, n.1 (Arquivo pessoal José Carlos) , 1965.

69
MATTOS, Luiz Alves de. “O planejamento do Ensino”, Revista Brasileira de
Estudos Pedagógicos. v. 27; n. 66. abril – jun. de 1957.
MATTOS, Luiz Alves de. “Prof. Mattos deixa o CAp”. Jornal: A Forja.
Setembro, maio, n.1 (Arquivo pessoal José Carlos) , 1965.
MATTOS, Luiz Alves de. “Prof. Mattos fala a “A Forja”. Jornal: A Forja.
Setembro, p.06. (Arquivo pessoal José Carlos) ,1966.
MAYTA, Lourdes Apaza; SALAS, Maribel Rocio Cana. La motivación que
ejercen los docentes y su relación con el rendimiento escolar en el área de
ciencia, tecnología y ambiente en los estudiantes del primer grado de educación
secundaria de la institución educativa José Lorenzo cornejo acosta del distrito
de Cayma. Arequipa, Perú, 2015.
MENDIZÁBAL, Carlos López. Comunicación Didáctica de los Institutos de
Telelesecundaria de San Marcos, Guatemala. Disponível em: https://issuu.com/
carlos_lopez_mendizabal/docs/comunicaci_n_did_ctica_en_los_institutos_
de_telese. Acesso: 01 out. 2020.
MORENO, Ángel Alfredo Hernández. Disponível em: https://
tallerdepedagogiapica.files.wordpress.com/2018/02/resumen-compendio-
de-didc3a1ctica-general_aahm.pdf. Acesso em: 05 set. 2020.
PAREDES, Rosa Zumba. Estrategias y técnicas metodológicas alternativas del
desempeño docente del área de lengua y literatura de la unidad educativa 24
de mayo del cantón Quevedo. Quevedo, Los Ríos, Ecuador, 2014.
PICO, Sofía Picco. Concepciones en torno a la normatividad en la didáctica.
Un análisis interdisciplinario de obras teóricas didácticas y curriculares en
la Argentina, entre 1960 y 1990. Tesis de doctorado. La Plata, 2014.
PRADO, Nathaly Goméz; CRUZ, Javier Mauricio Mejía. Los problemas
de enseñanza de la lectura y escritura en básica primaria, abordados por el
análisis cinematográfico. Bogotá, 2014.
QUIÑONES, Ramón Erasmo Devia; DUGARTE, Carolina Pinilla. La
enseñanza de la matemática: de la formación al trabajo de aula. Educere
investigación arbitrada. año 16, n. 55, p. 361 – 371, septiembre-diciembre de
2012.
R., Alfonso Serna. El método didáctico y sus variables en educación física.
Educación Física y Deporte, v. 8, n. 1-2 Medellín, enero-diciembre 1986.

70
SUÁREZ, David Restrepo; BARRERA, Hugo Ferney Tabares. Uso del
computador por parte del docente en los procesos de enseñanza - aprendizaje
con estudiantes del área de informática de primer semestre de la licenciatura
en etnoeducación y desarrollo comunitario de la universidad tecnológica de
Pereira. Universidad Tecnológica de Pereira, Colombia, 2012.
VILARINHO, Lúcia R. G., Luiz Narcizo Alves de Mattos, In: FÁVERO,
Maria de Lourdes de Albuquerque & BRITTO, Jader de Medeiros (org.),
Dicionário de Educadores Brasileiros: da Colônia aos Dias Atuais. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, MEC – INEP, p. 715-722- 2º ed., 2002.
Referências bibliográficas:
BOURDIEU, Pierre. As condições sociais da circulação internacional das
ideias (Tradução de Fernanda Abreu). Revista Eletrônica, Rio de Janeiro,
v.1, n. 01, p. 4-15, 2002.
BUENO, Manuela Priscila de Lima. Sumário de Didática Geral e programas
das escolas normais de São Paulo: A articulação entre a normatização e a
prescrição para a prática pedagógica. XI Congresso nacional de educação
Educere, 2013. 
CARVALHO, M. S. Luiz Alves de Mattos e a Construção de uma Didática
Experimental. In: X Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, 2000,
Rio de Janeiro. Ensinar e aprender: sujeitos, saberes, espaços e tempos. Rio
de Janeiro: DP&A, v. 1. 2000.
CHARBONNEL, N. Les aventures de la métaphore. In: La Tâche aveugle.
T1, Strasbourg: PUS, 1991.
CUNHA, Marcus Vinicius. Três versões do pragmatismo de Dewey no
Brasil dos anos cinquenta. São Paulo: Educação e Pesquisa, v. 25, n.2, p. 39-
55, jul./dez., 1999.
FUCHS, Eckhardt. Networks and the History of Education. Paedagogica
Historica, v. 43, n. 2, pp. 185-197, april 2007.
HAMELINE, D. L’Education, ses images et son propos. Paris: Éditions ESF, 1986.
HOUSSAYE, Jean. Pedagogias: importação-exportação. In: MIGNOT, Ana
Chrystina; GONDRA, José Gonçalves (org.) Viagens pedagógicas. São Paulo:
Cortez, p.294-314, 2007.

71
LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia.
São Paulo: Pioneira, 1983.
MARTINS, Glaucia Moreira Monassa. Prestígio escolar: uma corrida de
obstáculos – um estudo sobre o Colégio de Aplicação da UFRJ. Tese de
doutorado. Campinas, 2015.
MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São
Paulo/Rio de Janeiro: Difel, 1979.
MIGNOT, Ana Chrystina. Viagens e narrativas (auto)biográficas. Revista
Brasileira de Pesquisa (Auto) Biográfica. v.2, n.5, p.263-267, 2017.
MIGNOT, Ana Chrystina; GONDRA, José Gonçalves (org.) Viagens
pedagógicas. São Paulo: Cortez, 2007.
NARCIZO, Rodrigo Mota. “MINISTRO DE DEUS, PORTADOR DA LUZ”:
Ações e discursos católicos de modelação docente na década de 1930.
Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro, 2008.
NÓVOA, António. Uma educação que se diz nova. In: CANDEIAS, António;
NÓVOA, António; FIGUEIRA, Manuel (org.) Sobre a educação nova: cartas
de Adolfo Lima a Álvaro Viana de Lemos (1923-1941). Lisboa: Educa, p.25-
41, 1995.
PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. Barueri-SP: Principis, p. 410, 2008.
PINHEIRO, Ana Regina. Instrução do povo sob a proteção do catolicismo
– militância docente e a expansão da escolarização em São Paulo. Revista
Brasileira de História da Educação, Maringá-PR, v. 15, n. 2 (38), p. 193-219,
maio/ago. 2015.
PINHEIRO, Ana Regina. Militância educacional católica e a memória da
escola pública, em São Paulo, na década de 1930, Simpósio, p.1-11, 2013.
SCHEFFLER, I. A linguagem da educação. São Paulo: EDUSP, 1974.
SILVA, Vivian Batista da. Saberes em viagem nos manuais pedagógicos:
construções da escola em Portugal e no Brasil (1870-1970). São Paulo: Editora
Unesp, 2018.
SILVA, Vivian Batista da.; VIEIRA, Keila da Silva. “Por aplicações concretas
e imediatas na sala de aula”: um estudo sobre livros que ensinam a ensinar
(L. Mattos, RJ, anos 1960). IARTEM e-Journal. v. 10 n. ½, p. 49-77, 2019.

72
STEINER-KHAMSI, Gita. Reterritorializing educational import - explorations
into the politics of educational borrowing. In: NÓVOA, António, LAWN,
Martin (ed.) Fabricating Europe - the formation of an educational space.
Netherlands: Kluwer Academic Publishers, p.69-86, 2002.
TYACK, David. The one best system - a history of American urban education.
Cambridge, Massachusetts, Londres: Harvard University Press, 1974.
VIDAL, D. G.& RABELO, R. Movimento internacional da Educação Nova:
um problema de pesquisa. In: VIDAL, D.G & RABELO, R. (org.) Movimento
Internacional da Educação. Nova Belo Horizonte: Argumentum, 2020.
VIÑAO, Antonio. Viajes que educam. In: MIGNOT, Ana Chrystina;
GONDRA, José Gonçalves (org.) Viagens pedagógicas. São Paulo: Cortez,
p.15-38, 2007.
XAVIER, Libânia Nacif; MAGARRO, Maria João. Itinerários profissionais
de professores no Brasil e em Portugal: redes de intercâmbio no contexto
de expansão do movimento da escola nova. Revista História da Educação -
RHE Porto Alegre. v. 15, n. 34 , p. 117-136, Jan./abr. 2011.
ZIJDERVELD, Anton. The institutional imperative: the interface of institutions
and networks. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2000.

73
CAPÍTULO 3

Em viagem: educadoras brasileiras partem aos


Estados Unidos da América em 19301

Diana Gonçalves Vidal

Ora, eu penso que o feminismo, como vai, acabará tomando conta do


mundo. Um dia, decerto no começo do século seguinte, o Rio de Janeiro
não possuirá mais a carioca: as raparigas das margens da Guanabara não
se distinguirão das raparigas do resto do planeta: idênticas preocupações,
atitudes iguais, o mesmo modo de vestir, gravidade, pessimismo...
(MOREYRA, p. 28.)

Afligia-se Álvaro Moreyra (1991), temendo o desaparecimento da carioca,


ameaçada, em sua ótica, pela ação das feministas. Moreyra, provavelmente,
escrevia A cidade mulher no mesmo momento em que se constituía a
Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), presidida por Bertha
Lutz, conhecida no cenário político do Rio de Janeiro por sua atuação na
Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher, fundada em 1918. O romance
veio a lume em 1923. A Federação foi criada em agosto de 1922.
Apenas quatro anos depois, em 1927, Nestor Lima, Diretor da Instrução
Pública do Rio Grande do Norte, em tese apresentada à I Conferência Nacional

1. As investigações fazem parte do Projeto temático FAPESP, processo n. 2018/26699-4, e


da Bolsa Produtividade em Pesquisa 1B do CNPq, processo n. 305639/2016-1.

75
de Educação, realizada na cidade de Curitiba, defendia o celibato feminino
para professoras primárias. Afirmava que “não se pode ser, ao mesmo tempo,
boa professora e boa dona de casa”, asseverando inclusive que a mulher,
que se dedicava ao trabalho mental, era pouca afeita à maternidade (LIMA
apud ORICO, 1927).
A tese estava longe de ser consensual; no entanto, alguns educadores,
entre eles, professoras, concordavam com o argumento. Benevenuta Ribeiro,
diretora da Escola Profissional Feminina Rivadávia Corrêa no Rio de Janeiro,
considerava o celibato pedagógico para as mulheres uma necessidade. Ela,
que era celibatária, chegou a afirmar que “o magistério é uma vocação e uma
profissão de renúncia”. “Algumas excelentes professoras solteiras, quando
casadas, tiveram que ser repreendidas”, completava (RIBEIRO, 1928).
De modo a compreender como estas questões se enraizavam nas
trajetórias femininas do magistério primário, pretendo explorar o caso da
viagem de um grupo de sete educadoras brasileiras, em missão de trabalho,
aos Estados Unidos da América no ano de 1930. Tanto Silmara Cardoso
(2015), quanto Ana Cristina Santos Rocha (2016), já discorreram sobre
o tema. Portanto, minha intenção não é detalhar o evento, mas tomá-
lo como emulador de uma narrativa que permita tramar o mosaico de
relações que enredavam mulheres e docência, no período, em circuitos que
enlaçam o trânsito entre os dois países do continente americano2 e explorar
representações sociais (CHARTIER, 1990) de feminino em litígio na época.

Sair do Brasil para conhecer o Brasil


O convite veio da União Pan-Americana, com apoio da Carnegie
Endowment for International Peace (ROCHA, 2016, p. 111). Ofereciam dez
bolsas a professores brasileiros para uma estada de cinco semanas nos Estados
Unidos da América, com visitas a instituições escolares de vários níveis e
modalidades de ensino. O benefício havia sido obtido por Carlos Delgado
de Carvalho, então professor de Sociologia do Colégio Pedro II e um dos
fundadores da ABE, em 1924, quando esteve nos EUA. Foi mediado por

2. As matérias publicadas em jornais do Rio de Janeiro sobre a viagem foram coligidas junto
ao Arquivo do IEB-USP, Fundo Fernando de Azevedo.

76
Stephen Duggan, reitor do Instituto Internacional de Educação (IIE), do
Teachers College (TC), Columbia University.
A iniciativa se incluía em um rol de intercâmbios estabelecidos entre
educadores e educadoras brasileiros e o IIE, desde sua criação em 1923, que
envolviam tanto deslocamentos provenientes do Brasil, quando dos EUA.
Somente nos anos iniciais de funcionamento, o IIE recebeu missões saídas
do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Bahia, e promoveu viagens
de professores do TC à América Latina. Ao explorar a passagem de Isaac
Kandel por estados brasileiros em 1926, Rafaela Rabelo (2019a)3 menciona,
dentre outros, os exemplos de Carneiro Leão, Ignácia Guimarães e Anísio
Teixeira, como integrantes desse circuito durante os anos 1920, tendo os dois
últimos educadores sido beneficiados com bolsas de estudos do IIE (Macy
Student Fund) em 1927 e 1928, respectivamente.
Os preparativos para a viagem de 1930, iniciaram-se em 1929 com a
escolha dos bolsistas. Coube à Associação Brasileira de Educação indicar oito
nomes e ao governo de São Paulo os outros dois, levando em consideração três
critérios: conhecimento da língua inglesa, apego à causa do ensino e entrega
posterior de relatório escrito. Na seleção efetuada pela ABE, acrescentaram-se
mais dois critérios: ter dinheiro suficiente para pagar as passagens de navio,
posto que os recursos das bolsas se restringiam às despesas efetuadas em
solo estadunidense; e viajar só, ou seja, sem levar um acompanhante.
A delegação ficou constituída por três professores - Décio da Lyra
Silva, Othon Henry Leonardos e Otávio Barbosa de Couto e Silva - e quatro
professoras do Rio de Janeiro- Consuelo Pinheiro, Julieta Arruda, Laura
Lacombe e Maria dos Reis Campos; e três educadoras de São Paulo - Carolina
Rangel, Eunice Caldas e Noemy da Silveira. Para os efeitos da argumentação
circunscrita neste capítulo, o foco recai apenas sobre o contingente feminino.
No entanto, de modo a que se tenha uma noção de como o grupo estava
configurado, detenho-me também, brevemente, na trajetória dos professores
indicados.

3. O tema das viagens de educadores e educadoras brasileiros aos EUA, nos anos 1920 e 1930,
é recorrente na historiografia brasileira da educação. Para um estudo da arte atualizado
sobre a temática, conferir Rabelo (2019).

77
Othon Leonardos, graduado pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro,
mesma instituição em que atuava como professor livre-docente das cadeiras
de Geologia e Economia, dedicou toda a sua vida às especialidades da
geociências, como geologia regional, paleontologia e geologia do Brasil.
Até 1925, no cargo de geólogo do Departamento de Nacional da Produção
Mineral, realizou expedições no território brasileiro, tendo percorrido de
canoa o rio Xingu em viagem registrada fotograficamente. Décio Lyra da
Silva dava aulas de Química e Física nas escolas: Escola Normal de Artes
e Ofícios Wenceslau Braz e Profissional Souza Aguiar. Couto e Silva era
professor livre-docente em Psicologia na Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro (CARDOSO, 2015, p. 104, 106).
Quando à comitiva feminina, Consuelo Pinheiro era professora adjunta
de 1ª. classe da Escola Manoel Cicero, depois vindo a ocupar os cargos de vice
e de diretora na mesma escola. Julieta Arruda atuava como docente na Escola
Rodrigues Alves. Laura Lacombe, que trabalhava no Colégio Lacombe, escola
particular de orientação católica, criada por sua mãe, gozava de experiência
internacional, tendo estudado no Instituto Jean Jacques Rousseau em Genebra
em 1925 e representado o Brasil no Congresso da New Education Fellowship
em Locarno no ano de 1927. Maria dos Reis Campos era inspetora escolar,
autora de vários livros didáticos, tendo, inclusive, colaborado com Fernando
de Azevedo na elaboração do texto da reforma da educação do Rio de Janeiro
implantada em 1927 e então em curso (CARDOSO, 2015; MIGNOT, 2017).
No que concerne às paulistas, Carolina Rangel era educadora sanitária no
Instituto de Higiene de São Paulo. Eunice Caldas, de todas a com mais idade,
também aparecia como educadora sanitária. Era irmã do médico sanitarista
Vital Brazil. Fora professora no Grupo escolar Cesário de Barros (Santos,
1902), havia fundado o Liceu Santista (hoje UNISANTOS), dado aulas na
escola isolada do Butantã (1908), e criado o Collegio Eunice Caldas. Entre
1907 e 1924 escreveu livros sobre educação feminina, história, teatro e poesia.
Participou, entre 1901 e 1903 da Associação Beneficente de Instrução fundada
por Anália Franco, tendo organizado a associação O Espírito feminino.
Noemy da Silveira, formada no magistério na Escola Normal do Brás, em
São Paulo, desde 1927, desenvolvia junto a M.B. Lourenço Filho um plano
de estudos sobre as teorias da psicologias europeias e norte-americana

78
para a Cadeira de Psicologia e Pedagogia da Escola Normal da Praça, além
de aplicar testes e desenvolver experimentos no Laboratório de Psicologia
Experimental anexo à Cadeira (WARDE, 2002; CARDOSO, 2015; CAPUTO,
2008; RABELO, 2019b).
A comitiva, chefiada por Décio da Lyra Silva, partiu do Brasil em 1º de
janeiro de 1930 e tinha por destino as cidades de Nova York, Washington,
Baltimore, Filadélfia e Boston. Recebeu ainda o apoio da companhia de
navegação Munson Line Company, sendo beneficiada com preços de
passagens e acomodações especiais. No dia 14 de janeiro, a delegação, que
viajou a bordo do American Legion, chegou a Nova York. À sua espera
estavam Lawrence Duggan, diretor da divisão latino-americana do IIE,
Stephen Duggan, diretor do IIE, Sebastião Sampaio, cônsul brasileiro, e
Carlos Delgado de Carvalho (LACOMBE, 1930, p. 90). Na fotografia abaixo,
tem-se o registro da delegação em sua passagem por Washington.

Fundo Fernando de Azevedo, Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros (USP). AFA


A8, 232

79
O Instituto Internacional de Educação cuidou do programa de excursões
em Nova York em nome da União Pan-Americana. Incluía a frequência a
aulas no Teachers College e visitas a escolas. No TC, a delegação entrou em
contato, dentre outros, com Isaac Kandel, Paul Monroe, William Russel e
Nicholas Murray Butler. As observações de atividades pedagógicas ocorreram,
dentre outros estabelecimentos, na Lincoln School, Horace Mann School,
Public School of 15th Street (para meninas) e Public School of 108th Street
(para meninos) e Bronxiville Public School, em Nova York; além de Spaulding
School e Edgmont, em Montclair, New Jersey. Este conjunto de escolas
fazia parte da prática regular de formação na Escola de Educação de Artes
Práticas do Teachers College, como consta dos Annoucements (TEACHERS
COLLEGE, 1889-1994, p. 219) relativos aos anos 1928-1929,
A fim de complementar sua instrução em objetivos, currículo, métodos
e procedimentos educacionais, e para cultivar a habilidade profissional
para resolver problemas reais, a TC desenvolveu como parte integrante
de seu trabalho uma série de escolas. A Horace Mann School e a
Horace Mann School for Boys, para observação e experimentação; a
Speyer School, anteriormente uma escola de prática e experiência, mas
atualmente o centro do trabalho do Institute of Child Welfare Research;
e a Lincoln School, uma escola experimental conduzida em cooperação
com o General Education Board. O total de matrículas nessas escolas é
de aproximadamente 1.900. Estas escolas estão abertas à observação de
todos os estudantes profissionais do College, e o uso é feito livremente
de seu trabalho em conexão com a instrução em cursos do College.4

4. No original: In order to supplement its instruction in educational aims, curriculum,


methods, and procedures, and to cultivate professional skill in the meeting actual problems,
TC has developed as an integral part of its work a series of schools. The Horace Mann School
and the Horace Mann School for Boys, for observation and experiment; the Speyer School,
formerly a school for practice and experiment, but at the present the center of the work of
the Institute of Child Welfare Research; and the Lincoln School, an experimental school
conducted in cooperation with the General Education Board. The total enrollment in these
schools is approximately nineteen hundred. These schools are open for observation to all
professional students of the College, and use is freely made of their work in connection
with instruction in College courses.

80
A delegação brasileira passou uma semana em Nova York, lugar em que
permaneceu por mais tempo. Daí seguiu para Washington, onde foi recebida
pelo embaixador brasileiro Gurgel do Amaral, que acompanhou a comitiva
a um encontro com o presidente dos Estados Unidos da América, Herbert
Hoover. Nessa cidade, o programa foi organizado pelo Dr. Rowe, presidente
da União Pan-Americana. Incluiu visitas a museus e escolas, como a Bryan
School, Junior High School e Brent School.
Na sequência, a delegação deslocou-se para Baltimore e conheceu a
Cantoon Platoon School, a Montebello School, a Vocational for Girls e a
Vocational for Boys e Normal School; para a Filadélfia, onde passou por
Shipley School, Baldwin School e Rosemont College; e finalmente para
Cambridge, onde visitou a Normal School, Ogden School, Vocational School
for Girls e High School for Girls (um exemplo do Plano Dalton), Buckingham
School e Shady Hill.
Embora viajassem em grupo, cada educadora tinha um interesse
diferente, em função de sua trajetória profissional ou do cargo que ocupava,
o que repercutiu em atividades distintas, realizadas individualmente ou em
duplas. Para Eunice Caldas e Carolina Rangel o principal objetivo consistia
em experiências associadas à educação sanitária; para Maria dos Reis Campos,
Consuelo Pinheiro e Laura Lacombe o método de projeto emergia como
atração; Julieta Arruda preocupava-se com a educação sexual e sua influência
na sociedade; e Noemy da Silveira pretendia acompanhar as iniciativas
relativas à orientação profissional.
Desse modo, enquanto Couto e Silva e Othon Leonardos, que atuavam
no ensino superior, se ocuparam em travar contato com a organização
universitária estadunidense, visitando as universidade da Columbia, Yale,
Pensylvania, Harvard, dentre outras; Maria dos Reis Campos, Julieta Arruda,
Laura Lacombe e Consuelo Pinheiro, por estarem vinculadas ao ensino
primário, privilegiaram em Nova Iorque as escolas anexas ao TC, Lincoln
School e Horace Mann School; a escola pública de Bronxville.; Spalding e
Edgmonts School, em Montclair, Canton Dalton School em Baltimore, e Shady
Hill School. Além das observações que efetuaram, Maria dos Reis Campos e
Noemy da Silveira proferiram palestras sobre o sistema educacional brasileiro
em Washington e Baltimore, respectivamente (LACOMBE, 1930, p. 93-94).

81
No dia 7 de março de 1930, o Pan American chegou ao Porto do Rio
de Janeiro trazendo de volta a comitiva. No entanto, a delegação não voltou
completa. Segundo matéria veiculada no Diário Carioca, no mesmo dia, Othon
Leonardos, Couto e Silva, Carolina Rangel e Eunice Caldas permaneceram
nos Estados Unidos da América, com o intuito de prosseguirem com os
estudos e visitas.

Trajetórias femininas ambíguas5


Talvez o fato de precisarem viajar desacompanhadas, como estabelecido
por critério pela ABE, tenha feito com que todas estas mulheres partilhassem
ainda de uma outra característica em comum: não eram casadas. Julieta
Arruda estava separada, e além da carreira de professora, era dona de pensão
familiar no bairro do Catete, maneira como conciliava o trabalho com a
necessidade de criar sozinha seus três filhos (CARDOSO, 2015, p. 108). As
demais eram solteiras e, com exceção de Noemy da Silveira, que se casou
quatro anos depois, continuaram solteiras por toda a vida. No entanto,
mesmo Noemy permaneceu casada por pouco tempo. Após oito anos de
matrimônio, enviuvou e conservou-se viúva até falecer.
Os termos solteira e viúva, em português, e spinster, em inglês, emergem
na literatura do e sobre o período como qualificativo de professoras primárias.
Os argumentos mobilizados permitem traçar as tramas que enredavam essas
mulheres nos anos 1920 e 1930, e indiciar as táticas de que se valeram, com
mais ou menos sucesso, para sobreviver na sociedade. Na época, tanto no
Brasil quanto nos Estados Unidos da América, não só as professoras eram
maioria na escola primária, como também “enfrentavam dois espectros
ameaçadores e contraditórios: a imagem idealizada da professora gentil e
carinhosa e a realidade das frias e confusas condições de trabalho das escolas
municipais”(ROUSMANIERE, 1994, p. 49).
Segundo Sheila Cavanagh (2005, p. 247), na América do Norte, até 1950,
esperava-se que as professoras permanecem solteiras e castas. Expectativa
partilhada por parcela dos educadores brasileiros, como Nestor Lima e
Benevenuta Ribeiro, mencionados anteriormente, que acreditavam ser o

5. Este item retoma algumas formulações presentes em Vidal & Carvalho, 2001.

82
celibato pedagógico feminino benéfico tanto para a ordem da escola quanto
para a da família. Com eles, corroborava Oswaldo Orico, professor da Escola
Normal do Rio de Janeiro, que aconselhava: “Contra o casamento de uma
professora protesta a escola, a administração, a economia pública e até a
eugenia. São proclamadas pouco aptas para a ‘profissão materna’ as mulheres
que vivem do trabalho mental” (ORICO, 1927).
O tema, entretanto, não era consenso. Tomando o ponto de vista
psicanalítico, educadores, como Luiz Palmeira (1928), consideravam as
funções de esposa e mãe como complementares ao ensino. Para ele, “a
professora casada é mais carinhosa, mais paciente do que a solteira”, pois
quando “a mulher chega a certa idade, quando certos fenômenos de sua
sexualidade atingem determinados pontos, seu psiquismo é vitimado por
um desequilíbrio nervoso” se não for casada. O diagnóstico era partilhado
por Walter McColley (1936, p. 195), para contexto norte-americano. De
acordo com o autor, “mulheres solteiras parecem sempre enervar, irritar e
assustar involuntariamente grandes faixas da população, tanto femininas
quanto masculinas”6.
As oposições expressavam não apenas as diferentes opiniões desses
educadores, mas principalmente as diferentes representações de feminilidade
que enunciavam. Lima, Ribeiro e Orico entendiam o papel da mulher no
espaço social (doméstico e público) relacionado às funções de mãe, professora,
esposa. Era o cumprimento adequado desses deveres que tornava incompatível
a associação das tarefas domésticas com a atividade docente. Palmeira e
McColley, no entanto, enraizavam a feminilidade na dimensão biológica,
compreendendo a maternidade e a sexualidade como necessidades inerentes
ao corpo feminino para a constituição saudável (física e mental) da mulher
e, portanto, das professoras.
O trabalho feminino fora do lar era um tema delicado no período, capaz
de despertar grandes controvérsias. Nos discursos jurídicos do início do
século, a simples condição de trabalhadora colocava a mulher em posição
de inferioridade moral ao homem, na medida em que ela se apropriava de
um espaço que lhe era alheio: a rua (ESTEVES, 1989; SOUZA, 1989). Na

6. No original, “single women seem forever to unnerve, anger and unwittingly scare large
swaths of populations, both female and male”.

83
geografia da moral jurídica, ao doméstico concernia a atividade feminina.
Assumindo a esfera pública, a mulher esgarçava os limites do lícito e do
ilícito. Afastando-se do lar, punha em tensão o modelo ideal de família.
A Igreja via na crescente emancipação feminina a destruição das bases
do casamento sadio. Os sociólogos, em perspectiva inversa, apontavam os
desajustes da família higiênica moderna como elementos que levaram à
ruptura do papel doméstico da mulher (LASCH, 1991, p. 30 e seg.). A família
era percebida como em crise. Coincidência ou não, no mesmo ano em que
a mulher brasileira adquiria direito ao voto, 1932, era instituído o Dia das
Mães (BESSE, 1983, p. 222.)
Nesse cenário, um movimento social emergiu com o objetivo de captar
a atenção feminina no Brasil. Em 1935, era oficializada pelo Vaticano a Ação
Católica Brasileira (ACB), inspirada na Ação Católica Italiana, advinda
das ordenações de Pio XI (VILHENA, 1988, p. 17). Vinha para coordenar
os movimentos católicos leigos, até então ligados ao Centro D. Vital. A
organização da ACB era sugerida em todas as paróquias do território nacional.
Deveria dividir-se em comissões, dentre elas “obras de caridade e assistência
popular” e “obras sociais e operárias”. Além do trabalho caritativo, defendia
a educação feminina como forma de aperfeiçoar a mulher para melhor
desempenhar suas funções de esposa e mãe.
Outra iniciativa foi a fundação, em 1937, pelo Grupo de Ação Social
(GAS) do Instituto de Educação Familiar e Social do Rio de Janeiro, onde
seriam oferecidos cursos de formação social geral e de especialização em
educação familiar ou assistência social a moças maiores de 18 anos, com
diploma de secundário, atestado médico e de idoneidade moral. As alunas
além de frequentarem aulas teóricas eram convidadas a estagiar em creches
e ambulatórios (curso geral), e a visitar famílias operárias (especialização)
(VILHENA, 1988, p. 250 e seg.).
Para o discurso católico, o modelo familiar ideal consistia na união
hierarquizada entre um homem e uma mulher, com intenção de gerar e
cuidar de uma prole. No topo da hierarquia encontrava-se o marido, ao qual
se deveria submeter a esposa e, a estes dois, submeter-se-iam os filhos e filhas.
A ação da mulher no lar era tida como fundamental para a manutenção
da coesão familiar. A ela cabia a formação sadia da prole e o cuidado do

84
marido. Somente na família, a mulher, como esposa e mãe, poderia cumprir
sua vocação natural, alcançando a “satisfação de seus mais leves desejos e
tornando-se plenamente realizada” (Idem, ibidem).
A domesticidade feminina vinha a par de sua docilidade, conforme
pregava Pio XII: “Sentimentos leves, delicados acenos do rosto, ingênuos
silêncios e sorrisos, um condescendente movimento de cabeça, dão-lhe a
graça de uma flor eleita e simples, que abre suas corolas para receber e refletir
as cores do sol” (PIO XII, 1944, apud PEREIRA, 1996, p. 271).
Delicada, a mulher deveria, ao mesmo tempo que proteger o lar, ser,
por este, protegida. A competitividade e a rudeza do trabalho moderno não
poderiam ser suportadas por suas “frágeis pétalas”. O lar era seu castelo; da
família, a rainha: imagens usadas pelo professor Lindolfo Xavier em seu
discurso na Segunda Conferência Nacional de Educação, ocorrida em Belo
Horizonte, em 1928.
Ao sair de casa para trabalhar, a mulher, esposa e mãe, perturbava este
equilíbrio. Não somente deixava marido e filhos sem o conforto de seu “doce
sorriso” e sem o amparo de sua “mão sempre estendida”, mas colocava em
dúvida a função de “provedor” do esposo, subvertendo a hierarquia familiar,
assumindo uma postura de gênero masculino. Pois,
numa família em condições salariais perfeitas, o esquema deve ser este:
os recursos econômicos provêm do trabalho manual ou intelectual do
pai; a mãe provê e dirige os trabalhos domésticos e os filhos se dedicam
aos trabalhos intelectuais, isto é, à sua formação pedagógica. (LIMA,
1967, p. 26.)

Nesse “esquema”, tanto pai quanto filhos dedicavam-se ou poderiam vir


a dedicar-se a um trabalho intelectual. A mãe, entretanto, somente deveria
preocupar-se com o trabalho doméstico. Segundo Valerie Walkerdine (1995),
uma das estratégias de sujeição da mulher, nos EUA no séc. XIX, foi atribuir-
lhe incapacidade ao trabalho intelectual. Como primitiva, ou infantil, a
mulher passava a distinguir-se por sua ingenuidade e capacidade de amar.
Mais próxima à Natureza, compartilhava com esta os signos de pureza e
inocência que lhe eram atribuídos. No discurso católico da década de 1930,
vemos reafirmadas essas imagens: o homem é qualificado como a “cabeça”

85
da família, enquanto a mulher, como seu “coração” (PIO XI, 1930, apud
PEREIRA, 1996, p. 255).
Para o discurso higiênico moderno, o lugar da mulher também era o
lar e sua função prioritária o cuidado de filhos e filhas. Na família ideal, a
mulher não deveria trabalhar. Ainda de acordo com Walkerdine, referindo-
se ao contexto norte-americano,
As mães da classe trabalhadora tendiam a ser acusadas pelas agências
de educação e do serviço social como patológicas, mas as mães de
classe média tinham que sofrer uma normalidade asfixiante que não
era realmente menos opressiva (WALKERDINE, 1995, p. 218).

A domesticidade da mulher encorajava-a a manter aspirações que o


casamento e a família não podiam realizar, como por exemplo, o amor
romântico, de acordo com Christopher Lasch (1991, p. 32). Para o autor, tais
aspirações acabaram por converter-se em elementos da crise do casamento,
iniciada no fim do século XIX e que na década de 1920 apresentava sinais
“alarmantes” aos defensores da família. Entre 1870 e 1920, nos Estados Unidos
da América, o número de divórcios havia aumentado quinze vezes. Em 1924,
um em cada sete casamentos terminava em divórcio (LASCH, 1991, p. 30). No
Brasil, Alceu Amoroso Lima (1940, p. 133) alertava para a grande quantidade
de “pseudoanulações” nos casamentos da elite brasileira e das novas bodas
7
realizadas no Uruguai, bem como a proliferação de “companheirismo” nas
favelas (LIMA, 1967, p. 25), além de chamar atenção sobre o crescimento da
limitação artificial da natalidade.
Para a Igreja, o risco do companheirismo repousava na sua fragilidade.
O matrimônio, por ser um sacramento, era (ou deveria ser) eterno, o
companheirismo anunciava a possibilidade da mudança constante de parceiro.
Em que pesem as afirmações de Esteves (1989) sobre a estabilidade e a
frequência dos amasiamentos nas classes populares, inclusive assinalando a
atuação de cônjuges e companheiras/os na escolha de futuros/as parceiros/
as para os/as filhos/as e na orientação/cerceamento/normalização de novos

7. Maria Ezolina Pinheiro, analisando a organização familiar no Parque Proletário n. 2,


Ponta do Caju, em 1943, constatou que dos 258 casais que lá habitavam, apenas 114 uniões
(44,19%) eram legítimas, sendo ilegítimas as demais 144 (55,81%). (LOBO, 1992, p. 166.)

86
amasiamentos (ações similares a dos casais legítimos), esse tipo de família
não era aceito pelo discurso católico e era visto com restrições pelo discurso
jurídico.
Esteves (1989, p. 181), ao analisar os processos de defloramento, estupro
e atentados ao pudor relativos aos primeiros anos do século XX, afirma
que, muitas vezes, pelo depoimento, podia-se perceber que as testemunhas
eram amasiadas, entretanto o termo amasiado vinha substituído, em raros
momentos, pela palavra casado, e frequentemente por solteiro. Segundo a
autora, era possível que os escrivães realizassem a tradução de amasiado
por solteiro, dado que para os parâmetros da Justiça só haviam três opções
de estado civil: casado, solteiro, ou viúvo.
Entretanto, o próprio discurso jurídico via-se na contingência de tentar
regularizar esse tipo de relação conjugal. Na década de 1920, nos EUA, o
Juiz Ben Lindsey pretendendo reformar a família, defendia a legalização
das uniões monogâmicas normais (LASCH, 1991, p. 39). O movimento
encontrava eco no Brasil. Em 1934, o decreto 24.637, de 10 de agosto, sobre
acidentes de trabalho, afirmava em seu Art. 20, parágrafo 4: “equiparam-
se aos legítimos os filhos naturais e à esposa a companheira mantida pela
vítima” (LIMA, 1940, p. 134).
O discurso médico, também, por meio da eugenia, pretendia normatizar
a uniões conjugais. A questão não era tanto a estabilidade do matrimônio, mas
sua possibilidade de gerar uma prole sadia. Uma série de precauções pretendia
aprimorar o tipo brasileiro, conformando-o ao tipo humano eugênico ou
ideal. Os cuidados iniciavam-se muito antes do casamento. Dever-se-ia
impedir a procriação de tipos malformados, pelo ensino, persuasão, leis ou
mesmo por esterilização. Como medidas necessárias para inibir a procriação
indesejada, a realização dos exames pré-nupciais, a esterilização e o controle
dos nascimentos.
A união precoce era considerada como nociva à saúde dos cônjuges, à
sua fecundidade e à vitalidade dos filhos. Os cuidados eugênicos estendiam-
se à educação dos filhos, devendo as mulheres serem preparadas para a
maternidade pelos ensinamentos da puericultura. Apesar de combatidos pela
Igreja por sua ingerência na família, os princípios da eugenia encontravam
ressonância no discurso religioso. Pio XI, na Encíclica Casti Connubii (1930)

87
alertava para a necessidade de dissuadir do matrimônio aqueles casais com
possibilidades de gerarem filhos deficientes (VILHENA, 1988, p. 127).
Em sintonia ao discurso eugênico, em que os cuidados com o corpo eram
tidos como imprescindíveis à boa conformação da futura prole, laboratórios
veiculavam diversas propagandas de remédios na imprensa. Ofereciam-se
tônicos, remédios para os rins, fígado, potência sexual, má digestão, desinteria,
vermes e depuração do sangue.

Sexualidades femininas equívocas


8
A construção desses diversos campos discursivos sobre a família e as
representações sociais de masculino e feminino apontava para tentativas de
normalizar a sexualidade tanto feminina quanto masculina. Nos anos 1920
e 1930, via-se, tanto no Brasil, quanto nos Estados Unidos da América, a
constituição de um discurso médico que tentava disciplinar o comportamento
sexual feminino, masculino e infantil. A tematização da “inversão sexual”, ou
o homossexualismo, por exemplo, trazia no interior da discussão médico-
cientifica, a preocupação em constituir categorias normais de homem e mulher
(PEREIRA, 1994, p. 89). Essa tentativa de ordenar o comportamento sexual
era partilhada por médicos, educadoras e educadores, juristas e representantes
da Igreja Católica.
A Igreja, por meio do matrimônio, pretendia disciplinar não apenas
papéis de esposa e esposo, de mãe e pai, na relação familiar, como também
determinar formas corretas e incorretas da manifestação da sexualidade. O
sexo só seria permitido numa união sacramentada, baseada na fidelidade
dos cônjuges e na virgindade da mulher, e deveria ser praticado apenas
com objetivos procriadores. O puro prazer sexual era condenado. Mesmo
casada e fiel ao seu esposo, aos olhos da Igreja, a mulher poderia ser imoral
se aceitasse manter relações sexuais, utilizando-se de meios para obter uma
esterilização artificial ou, ainda, se praticasse o aborto.

8. É interessante ressaltar que, em 1933, Gilberto Freyre publicava Casa grande e Senzala, texto
em que, através de uma homogeneização histórica, a organização familiar do grupo dominante
substituía as histórias das formas de organização da sociedade brasileira, constituindo um
padrão familiar extensivo a todo o Brasil (CORRÊA, 1982, p. 17).

88
O discurso eugênico, ao fixar um padrão de normalidade do ser
humano, colocava sob suspeita o comportamento de homens e mulheres.
Os riscos de uma união doentia e de gestação de uma prole defeituosa ou
deformada sinalizavam para uma produção científica da sexualidade. As
prescrições eugênicas pretenderiam agir como obstáculo aos amores furtivos,
considerando-se que toda experiência sexual deveria ser precedida por
uma etapa de estudo, ou indicariam formas adequadas de controle contra
conceptivo: duas maneiras de intervir na sexualidade das classes populares.
Esteves (1989) demonstra como era comum, no início do século, nas camadas
mais pobres da população a prática sexual entre pessoas que se conheciam há
poucos dias. O curto namoro era rapidamente seguido das carícias sexuais
e da conjunção carnal.
A sexualidade também era objeto de esquadrinhamento do discurso
jurídico, especialmente a sexualidade feminina. Segundo Esteves (1989), ao
lado do reforço ao longo conhecimento do par antes do início da intimidade
sexual, cumprindo todos os rituais do flerte, namoro, noivado e casamento;
da prescrição de sexo somente após o matrimônio, com a devida ressalva
à moça que, enganada com promessa de próximas bodas, se entregasse ao
futuro cônjuge, toda uma biologia jurídica foi construída para, a partir da
análise do corpo da ofendida, identificar-se sua moral.
possuir vagina dilatada, seios flácidos, grandes e pequenos lábios também
flácidos tornou-se sinal de ser muito ‘afeita’ a contatos sexuais e de
ter perdido a virgindade há muito tempo. Os corpos das mulheres
eram considerados atestados de sua moralidade. As partes flácidas
levantavam para os juristas suspeitas de prostituição e afastavam a
hipótese de terem precedentes normais, dificultando a punição dos
suspeitos. (ESTEVES, 1989, p. 64.)

Outros dados que serviam para revelar a imoralidade da ofendida eram


a afirmação de haver sentido prazer em lugar de dor e de não ter sangrado
durante a primeira relação sexual. Esses dois elementos indicavam que a
mulher não era virgem. Havia assim, também, uma produção das reações
femininas no momento de rompimento do hímen. Para provar sua honra,
necessariamente a moça deveria sangrar e sofrer. Como essa experiência

89
era tida por extremamente dolorosa, deveria, ainda, a deflorada lembrar-se
exatamente do dia em que aconteceu o defloramento. Dúvidas quanto à data
levantavam suspeitas sobre a virgindade (ESTEVES, 1989).
O crescimento do número de divórcios e de uniões livres, no fim da
década de 1920, nos Estados Unidos da América despertou um movimento
para a liberação sexual das limitações convencionais. Proclamavam os prazeres
do corpo, defendiam o divórcio e o controle da natalidade, punham em dúvida
a monogamia e condenavam a interferência do Estado ou da comunidade
na vida sexual (LASCH, 1991, p. 32). Mais, desacreditavam da virgindade e
pregavam que caberia a esposas e esposos decidirem o que consideravam
por infidelidade.
No Brasil, Ercília Nogueira Cobra, autora de Virgindade Anti-higiênica
(1924) e Virgindade inútil: a novela de uma revoltada (1927), e Maria Lacerda
de Moura, de Amai e... não vos multipliquei (1932), denunciaram o culto
à virgindade e à noção de honra masculina. As autoras opunham-se ao
casamento, que associavam à doença social, à prostituição legalizada, ao
arranjo econômico perverso, à imoralidade altamente desenvolvida (capaz
de reduzir o amor de um ato sublime a degradado), à escravidão mental da
mulher e ao meio de perpetuar a servidão e a ignorância femininas enquanto
se explorava o trabalho da mulher (BESSE, 1983, p. 114).
Os riscos das uniões mal estabelecidas, segundo os defensores do
eugenismo (KEHL, 193l), o avanço da liberdade sexual (LASCH, 1991), a
defesa da família cristã, o medo da sífilis, a difusão da psicanálise, dentre
9
outros, colocaram em debate o sexo e a sexualidade e, consequentemente
os padrões de uma sexualidade considerada normal em oposição a outra
tida por desviante. Foi neste cenário que um episódio, ocorrido durante a
viagem da delegação brasileira aos EUA em 1930, ganhou relevância, com
repercussões duradouras para uma das mulheres da comitiva: Eunice Caldas.
Nos relatos, a educadora foi acometida de um “surto” em Nova Iorque.
De acordo com seus colegas, durante a primeira semana, ela expressou

9. Na década de 1930, no Rio de Janeiro, passou-se a comemorar, em 20 de novembro, o Dia


do Sexo. Nos Boletins de Educação Sexual, há informações sobre a comemoração do Dia
do Sexo em 1935 e 1936. No ano de 1935, os festejos foram realizados no centro da cidade,
tendo sido tocados o “Hino da Educação Sexual” e a sinfonia “Ode ao Sexo” e os discursos
irradiados na “Hora do Brasil” (VIDAL, 1998).

90
uma excitação incomum. Depois disso, foi diagnosticada como maníaco-
depressiva e enviada para o Hospital Bellevue. De lá, saiu em camisa de força
e assim voltou de navio ao porto de Santos. Ao chegar, internaram-na no
Hospital Psiquiátrico do Pinel, em São Paulo, em 21 de fevereiro de 1930,
onde permaneceu por 14 anos (de 1930 a 1944), sendo depois transferida
para o Asilo Bela Vista, na capital paulista, lugar em que faleceu aos 88 anos
de idade (CAPUTO, 2008, p. 55-77). Eunice Caldas, portanto, não retornou
junto com a delegação porque ficara para aprofundar os estudos e visitas
nos EUA, como relatara o Diário Carioca. Ao contrário, já estava no Brasil
quando a comitiva aportou no Rio de Janeiro em 7 de março de 1930.
Do acontecido, a educadora nunca deixou registro. Mas vale lembrar
que, na época, no Brasil, o tratamento para seu diagnóstico era baseado em
eletrochoques. Somente 14 anos depois do seu retorno à São Paulo, outra
mulher, casada mas que se recusava a ter filhos para seguir a carreira de
médica, Nise da Silveira, desenvolveria a terapia ocupacional no Asilo Pedro
II, no Rio de Janeiro (GULLAR, 1996, p. 10).
Melissa Caputo (2008, p. 52-56) apresenta aspectos da vida de Eunice
Caldas que permitem indiciar o que poderia ter sido considerado como as
raízes de sua patologia: ter tido dois noivados desfeitos antes do casamento,
contrariando os conselhos paternos; e morar, em São Paulo, junto com a
amiga portuguesa Anna Galheto. Antes da internação em 1930, Eunice,
aos 30 anos de idade, havia ingressado pela primeira vez em um hospital
psiquiátrico, o Juquery, em Pirituba, diagnosticada, em 1910, com “loucura
maníaco-depressiva”.
Maria Clementina Cunha (1986, p. 151) compilou o prontuário da
primeira internação. Nele, encontra-se a descrição da doença de Eunice.
Nossa doente é a última filha nascida e como tal sempre habituada
a mimos e carícias excessivas. Muito inteligente, estudou na Escola
Normal, onde salientou-se, recebendo sempre os maiores elogios,
que a tomaram orgulhosa. Realmente os merecia, pois três anos após
sua formatura foi nomeada diretora de grupo escolar em Santos. Ali,
sempre se distinguiu, multiplicando a sua atividade. (...) Por uma
futilidade, desgostou-se e pediu remoção para Araras; achou o meio

91
muito acanhado para o seu talento e abandonou o lugar. Trabalhava
demais: havia uma hiperexcitação intelectual; escrevia livros escolares
que julgava modelos; fundava escolas noturnas; comprava livros e livros
para ler; já neste tempo tornara-se completamente independente: não
admitia intervenção ou mesmo conselhos dos pais ou irmãos mais
velhos; confiava exclusivamente em si (...).

Intenso trabalho intelectual, independência e autoconfiança eram,


portanto, outros indicadores da patologia. Dessa internação, a educadora
foi liberada ou, no dizer do prontuário médico, “sahiu curada”: “a disciplina
asilar volta a docilizar a paciente e, meses depois ela ‘aceita’ voltar à casa
paterna e se adequar às condições impostas pela família e pela sociedade”
(CUNHA, 1986, p. 151-152). Nos vinte anos que se passaram entre as duas
internações, Eunice Caldas infringiu novamente as normas. Em 1911, passou
a atuar como preceptora na casa de Anna Galheto. A amizade se manteve
mesmo após Galheto ter enviuvado em 1916. Para Melissa Caputo, a indicação
da educadora para viajar aos EUA talvez tenha decorrido do desejo da
família de afastá-la do convívio com a amiga portuguesa, normalizando o
seu comportamento social.

Feminismos flutuantes
No discurso pronunciado, em 1927, por Antonio Ferreira de Almeida
Jr, na solenidade da Formatura, na Escola Normal de São Paulo, a relação
entre docência e matrimônio adquire ainda outras colorações. O educador
advertia às alunas para evitarem o “chupim”. Não se referia ao pássaro real,
mas a um tipo de homem que escolhia se casar com professoras para viver de
seus salários. Em seu discurso, citava o depoimento de algumas professoras: -
“Prefiro casar, diz a primeira, do que ser solteirona, mas evitarei os chupins”;
- “Se eu casar, diz a segunda, evitarei os chupins. Se eu continuar solteirona,
temo ser amarga, fofoqueira e mesquinha”; - “Cuidado com os parasitas! diz
a terceira. Hoje em dia, amor e casa de campo não são suficientes. Casarei
por amor, mas um amor prudente, com um homem capaz de ganhar a vida”
(ALMEIDA JR., 1951, p. 106-107).

92
Nessas citações, emergia outro dilema de ser professora do ensino
primário brasileiro na época. Como ganhavam o mesmo salário que os
professores, sua posição tornava-se atraente a um casamento por interesse.
Assim, ser professora poderia ser concebida tanto como um obstáculo ao
casamento, quanto um impeditivo a um matrimônio fiel, ou potencialmente
um caminho para o destino de se tornar uma solteirona “amarga, fofoqueira
e mesquinha”. Mas poderia também vir a ser uma saída às convenções sociais,
sempre com o cuidado em observar um certo equilíbrio instável, risco que
se revela no caso de Eunice Caldas.
Este dilema, no entanto, não se limitava à esfera individual. Na verdade,
não apenas na profissão docente, as mulheres bem-sucedidas eram solteiras,
viúvas ou separadas. Segundo Sussan Besse (1983), a solução valeu para as
advogadas, como “Myrthes de Campos e para a líder feminista, administradora
e política Bertha Lutz, bem como para as mulheres da pequena burguesia
como Lola Delgado que optou pelo trabalho como vendedora em vez de
casamento”. Permanecer solteira ou adiar temporariamente o casamento,
portanto, podia acomodar outros projetos de vida, como formação contínua
e/ ou progresso na carreira, conforme evidenciado pela delegação de mulheres
que seguiu aos EUA em 1930.
Nos relatos que elaboraram sobre as impressões da viagem, além das
observações pedagógicas, pode-se identificar um olhar atento sobre às
condições de vida das mulheres na sociedade estadunidense, bem como
um entusiasmo com o papel que nela desempenhavam.
Laura Lacombe, em entrevista ao jornal Diário Carioca, disse:
Vi a verdadeira vida de uma casa talvez mais intensa do que a conhecemos,
e era perto de Nova York: uma mulher culta cuida de seu jardim e prepara
a refeição, e seu marido, ao voltar do escritório, a ajuda a colocar lenha
na lareira! Não uma mulher servindo seu marido e mestre, mas uma
cooperação justa de ambos no trabalho de casa! (12/03/1930)

Julieta Arruda, em entrevista ao jornal Correio da Manhã, afirmou:


Os meios mecânicos de trabalho atingiram o lar e a posição da mulher.
A mulher não é um fator novo na indústria, é apenas um fator mudado.

93
Ela não perdeu o seu valor, mudou apenas de atitude na contribuição
para o mundo econômico e social. O público compreendeu melhor a
obreira que não é mais considerada como reserva de trabalho e sim como
fonte legitima de trabalho. Visitei a escola “precursora” da adaptação da
mulher como fator importante na época industrial, a Manhattan Trade
School em Nova York. Nessa escola, o oficio que a menina aprende é
o centro de interesse de seu estudo, a ele se relacionam todas as outras
matérias. Do programa, fazem parte todas as profissões que lhe possam
dar meios de sustento, figurando como ultimamente acrescentados as
de cultura da beleza: pedicuras, manicuras, cabeleireiras... A educação
acompanha a sociedade. (11/04/1930).

No mesmo Correio da Manhã, foi publicada uma nota sobre a conferência


proferida por Maria dos Reis Campos na Federação Brasileira pelo Progresso
Feminino, segunda a qual a educadora
Comunicou as ótimas impressões que trouxe da Norte América,
onde se veem amplamente realizadas as aspirações que animam as
mulheres nos outros países. Depois de falar na atividade feminina
visível em todos os ramos da iniciativa humana, desde choferes
amadoras de sort [sic] às oito deputadas que têm assento na Câmara,
resumiu suas impressões dizendo que o que mais caracterizava os
Estados Unidos a seu ver é o conceito elevado em que é tida a mulher
na Norte América (16/03/1930).
Seriam estas mulheres feministas? A nota publicada no Correio da
Manhã pela Federação Brasileira para o Progresso Feminino informava
que pelo menos Maria dos Reis Campos era uma de suas associadas. Logo
após o retorno do grupo dos EUA, Bertha Lutz publicou notícia, no jornal O
Jornal, cumprimentando o Diretor de Educação do Rio de Janeiro, Fernando
de Azevedo, pela indicação de mais uma professora inspetora de educação,
e “transmitindo os aplausos do movimento feminino brasileiro pelo justo
critério de reconhecimento da capacidade do magistério público feminino,
dando acesso a cargos superiores”. A matéria intitulava-se “O feminismo na
instrução” (30/03/1930).

94
Os principais objetivos da FBPF, assumidos desde sua constituição
em 1922, orbitavam em torno aos direitos femininos ao voto, à educação
secundária, à saúde e ao trabalho, demonstrando especial interesse em
melhorar as condições de vida das mulheres da zona rural. Os esforços, no
tocante à educação, concentravam-se na solicitação de cursos de Economia
Doméstica e Economia Doméstica Agrícola.
A defesa do sufrágio da mulher era a maior bandeira das feministas,
presente como reivindicação feminina desde meados do século XIX em jornais
fundados e dirigidos por mulheres no Rio de Janeiro (BERNARDES, 1989, p.
151). Era tema aglutinador de muitas das ações da FBPF: ainda na década de
1920, a Federação havia constituído a Escola para Eleitoras, com o objetivo
de “preparar a mulher para o exercício inteligente dos direitos políticos e
10
interessá-la nas questões de alcance público”. Outro tema polêmico na época.
Se no Senado Federal, algumas vozes se erguiam afirmando a importância
da ação política das mulheres - “Tem-se alegado que no Brasil só um pequeno
grupo de senhoras se interessa pelas questões políticas e pleiteia a concessão
11
do direito de cidadania. Não é verdade.” - na imprensa, matérias realçavam
o descaso feminino para com as questões políticas.
A senhorita é favorável à intervenção da mulher na atividade política?
- indagamos a uma das entrevistadas.
_ Sou radicalmente contrária...
_ Por quê?
12
_ Porque acho que o lugar da mulher é no lar...

A mesma reportagem afirmava que, de dezesseis senhoras entrevistadas,


apenas cinco foram a favor do feminismo e não a favor do voto feminino, como
deveria ter-se expressado o jornalista. Tal identificação, operada pelo jornal,
entre os dois termos, talvez apontasse para a intensa atividade feminista na
defesa do sufrágio, ou, tentasse, ao destacar o desinteresse das senhoras pela

10. Art. 6., II parte dos Estatutos da FBPF, Arquivo “Federação Brasileira pelo Progresso
Feminino”, Arquivo Nacional, AP 46, Cx. 16.
11. Senado Federal, Parecer n. 695, de 1927, FBPF. AP 46 Cx. 16.
12. A mulher brasileira e o seu direito ao sufrágio”, 14/10/31. FBPF. AP 46 Cx. 16. (Sem
indicação do nome do jornal.)

95
política, desqualificar as demais reinvindicações da FBPF como, também,
alheias ao universo feminino. De qualquer forma, o debate estava nas ruas.
Em 1928, na Segunda Conferência Nacional de Educação, das teses
defendidas sobre educação política, a única a desencadear polêmica foi a
relativa ao voto feminino. Enquanto Tobias Moscoso, Frota Pessoa e Veiga
de Miranda manifestavam-se favoravelmente; Renato Jardim, Faria Góes,
Jayme Barros e Lindolfo Xavier diziam-se contrários. Dos 66 conferencistas
presentes, 30 eram mulheres. No entanto, dessas, as opiniões não foram
registradas. Ou porque preferiram abster-se do debate, ou pelo descaso do
relator.
O discurso mais enfático, foi o proferido por Lindolfo Xavier (SEGUNDA,
37 (265), nov. 1928), professor da Escola Normal de Artes e Ofícios Wenceslau
Braz, no Rio de Janeiro. Ao exaltar as qualidades femininas - “ternura,
bondade e nobreza” - e a influência da mulher na formação infantil, Lindolfo
Xavier utilizava-se de artifício retórico para negar às mulheres o acesso à
vida política. Não era pela incapacidade intelectual, como alguns educadores
afirmavam, defendendo que o voto feminino só fosse concedido à mulher
“convenientemente preparada” para o exercício público da cidadania; mas
pela superioridade moral que a mulher deveria abster-se de votar. Igualando-
se ao homem, perdia seu “altar”, passava a concorrente, a rival. Idealizada,
a mulher deveria afastar-se vórtice das paixões, para, assim, “santificada”,
contraditoriamente, manter sua sexualidade (VIDAL & CARVALHO, 2001,
p. 216-218)
O professor da Wenceslau Braz se apropriava de signos do imaginário
católico para compor uma imagem ideal de mulher, intocada pelas tensões
e contradições da vida humana - pura e santa -, defendendo um normal de
comportamento para o sexo feminino: nesse sentido, associando valores
morais a determinantes biológicos. A mulher seria dessexualizada se
competisse com o homem, pois opor-se-ia à sua constituição biológica
natural. Vale esclarecer que a Escola Normal de Artes e Ofícios oferecia
basicamente dois cursos: o Profissional, frequentado por alunos e o de
Trabalhos Manuais, formado por alunas. Portanto, a pregação de Xavier

96
possuía também um interlocutor direto, o corpo discente da instituição
em que trabalhava.
Apesar da reivindicação pelo voto feminino não ser consenso na
sociedade brasileira, em 24 fevereiro de 1932, finalmente, era concedido
o direito às brasileiras maiores de 21 anos e alfabetizadas (BESSE, 1983, p.
233). Um ano depois, em janeiro de 1933, na sede da Federação, fundava-se
o partido político Liga Eleitoral Independente que apoiou a candidatura de
Bertha Lutz à deputada pelo Partido Autonomista.
Como seis pontos capitais do programa eleitoral de Lutz estavam: o
amparo ao lar (segurança, conforto e tranquilidade assegurados pelo Estado);
a defesa do trabalho (remuneração adequada e garantia legal); a justiça para
com as mulheres (igualdade de direitos entre os sexos); a socialização da
previdência (criação de um sistema previdenciário brasileiro); a difusão da
cultura (mesmo direito “ao livro que ao pão”); e, finalmente, a paz e relações
internacionais (alerta aos perigos da guerra).
No mesmo ano, no pleito de 14 de outubro, elegeu-se deputada Bertha
Lutz. A atividade na Câmara, entretanto, não se lhe revelaria muito fácil.
Em janeiro do ano seguinte, acusações de fraude eleitoral, estampadas nos
diversos jornais cariocas, apontavam a feminista como uma das principais
beneficiadas. Defendia-se Lutz (1923, p. 23), afirmando que a denúncia não
se baseava “em uma só prova documental direta ou indireta, nem quaisquer
13
presunções que chegassem a justificar vínculos de uma ação criminosa”.
No entanto, somente voltaria a ocupar a Câmara em junho de 1936.
A Constituição de 1934, além de reiterar o direito ao voto feminino,
contemplou outras propostas da FBPF, tais como: o direito da brasileira reter
sua cidadania e passá-la a seu filho ou filha a despeito de seu casamento
com um estrangeiro; igualdade perante a lei, sem distinção de sexos; igual
remuneração para igual serviço, salário mínimo, dia de oito horas, férias
anuais pagas, seguro contra doença, acidente, incapacidade e aposentadoria,
direito da mulher ocupar qualquer cargo público sem distinção de estado
civil e direito a três meses de licença maternidade remunerada; participação
preferencial de mulheres qualificadas na direção e administração de programas

13. FBPF, AP 46, Cx. 16.

97
de assistência social relativos à maternidade, infância, trabalho feminino e
14
organização do lar (BESSE, 1983, p. 234) .
Essa era outra grande linha de atuação da FBPF: à defesa do trabalho
da mulher, associava-se a da igualdade salarial entre os sexos, “dentro da
orientação básica do movimento feminino, de que a mulher deve velar
15
em primeiro lugar pela sua independência econômica pelo trabalho.” No
entanto, em que pese o caráter conciliatório da FBPF, reunindo mulheres em
luta pelos direitos políticos a envolvidas com ações sociais e organizações
caritativas; defendendo o trabalho fora do lar e a ação doméstica da
mulher; usando estereótipos femininos para justificar a atuação da mulher
em determinadas áreas, como a educação, e evitando confrontos com a
Igreja Católica; não logrou o apoio da maioria das mulheres brasileiras, não
conseguindo sobreviver ao golpe de 1937 - seja pelo formato elitista que o
movimento assumiu, partilhando medos, preconceitos e atitudes da classe
média, seja pela indefinição discursiva (BESSE, 1983, p. 244).

Comentários finais
A viagem feita pela comitiva de educadoras aos EUA em 1930 foi o
mote que organizou a narrativa deste capitulo, indiciando as várias formas
de ser mulher e profissional nos anos 1920 e 1930, em particular no Brasil.
Solteiras, viúvas e separadas, por terem trabalhos remunerados, gozavam de
certa liberdade e transitavam no limite entre o lícito e o ilícito socialmente.
Era justamente sua posição nas franjas da sociedade que lhes franqueou a
participação na delegação. Se na narrativa muitas semelhanças nos discursos
sobre o feminino foram traçadas, aproximando os dois países, nos relatos da
experiência legados pelas educadoras, marcaram-se as distinções, revelando

14. Segundo PAOLI (1982), os empresários brasileiros não reclamavam de pagar salários
iguais a mulheres, mas tentavam repassar ao Estado as demais implicações da lei, sob pena
de exclusão da trabalhadora casada do âmbito da fábrica. Como consequências, o não
cumprimento das determinações legais e a manutenção da exploração do trabalho feminino.
15. FBPF, AP 46, Cx. 10. Apesar das conquistas da Constituição de 34, o golpe de 37 e a
nova Constituição deixaram sem efeito vários dispositivos: não proibiu especificamente a
discriminação sexual, não garantiu igualdade de remuneração, não privilegiou a participação
feminina em programas relacionados à mulher, nem declarou a proteção à maternidade
como uma obrigação do Estado. (BESSE, 1983, p. 241.)

98
uma acurada sensibilidade para com a diferença, ou o desejo explicito de
enfatizá-la na imprensa.
Nos anos que seguiram, cinco dessas mulheres continuaram atuando
no setor da educação. Julieta Arruda, entre 1931 e 1933, fundou junto com
Paschoal Lemme uma escola com os preceitos da pedagogia ativa, o Instituto
Brasileiro de Educação. Maria dos Reis Campos assumiu cadeira na Escola
de Professores Instituto de Educação do Distrito Federal. Laura Lacombe
substituiu sua mãe na direção do Collegio Lacombe. Noemy da Silveira
formou-se em psicologia e ocupou o cargo de professora da Universidade
de São Paulo. Consuelo Pinheiro tornou-se presidente da Seção de Ensino
Primário da ABE, secretária da Comissão executiva da Quarta Conferência
Nacional de Educação de 1931 e professora de Linguagem também na Escola
de Professores do Instituto de Educação do Distrito Federal. Não foi o caso de
Eunice Caldas, para a qual a viagem não significou maior inserção profissional
ou social, mas reclusão e silenciamento.
Ao tomar um evento específico, pretendi operar no âmbito de uma
história transnacional, para a qual o circuito das viagens alimenta análises
em que o conhecido se transforma em alteridade e instila interrogações sobre
o nacional vis a vis o internacional. Ou seja, intentei mobilizar escalas de
análise e transitar entre territórios geográficos, sociais e epistemológicos. Foi
assim que, ao olhar para o outro, estas viajantes provocaram novas visões
sobre si, a sociedade brasileira, e o lugar que as mulheres nela ocupavam.
Simultaneamente permitiram a produção desta escrita de contrastes acerca
do feminino, dos espaços doméstico e público, da esfera profissional e das
ambiguidades e perigos de ser mulher nos anos 1920 e 1930.

Referência bibliográficas
ALMEIDA JR., A. F. A escola pitoresca e outros trabalhos. São Paulo: Cia.
Ed. Nacional, 1951.
BERNARDES, Maria Thereza C.C. Mulheres de ontem? Rio de Janeiro, século
XIX. São Paulo: T.A. Queiroz Ed., 1989.
BESSE, Susan K. Freedom and bondage: the impact of capitalism on women.
In: São Paulo, Brazil, 1917-1937. Doutorado, Graduate School of Yale University,
1983.

99
CAPUTO, Melissa. Eunice Caldas, uma voz feminina no silêncio da história.
Santos, Mestrado; Universidade Católica de Santos, 2008.
CARDOSO, Silmara de Fátima. Viajar é ser autor de muitas histórias:
experiências de formação e narrativas educacionais de professores brasileiros
em viagem aos Estados Unidos (1929-1935). Doutorado, Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo, 2015.
CAVANAGH, S. Female-Teacher Gender and Sexuality in Twentieth-Century
Ontario, Canada. History of Education Quarterly,45(2), 247-273, 2005.
CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
COBRA, Ercília. Virgindade Anti-higiênica. São Paulo: Monteiro Lobato, 1924.
COBRA, Ercília . Virgindade inútil: a novela de uma revoltada. S.l; Edição
da Autora, 1927.
CUNHA, Maria Clementina P. O espelho do mundo. Juquery. A História de
uma Asilo. São Paulo: Paz e Terra, 1986.
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas. Os populares e o cotidiano
do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
GULLAR, Ferreira. Nise da Silveira. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996.
KEHL, Renato. Aparas eugênicas: sexo e civilização. Rio de Janeiro: Livraria
Francisco Alves, 1933.
LACOMBE, Laura. Cinco semanas nos Estados Unidos. Revista Schola, ano
1, n. 3, p. 90-96, março de 1930.
LASCH, Christopher. Refúgio num mundo sem coração. A família: santuário
ou instituição sitiada? Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1991.
LIMA, Alceu Amoroso. “A família e o Estado”. In: A família e a questão social.
São Paulo: Editora Grupo de Ação Social, 1940, p 121-135, 1940.
LIMA, Alceu Amoroso. A família no mundo moderno. Rio de Janeiro: Livraria
AGIR Editora, 1967. (Escritos de 1954.)
LOBO, Eulália Maria Lahmeyer (coord.). Rio de Janeiro operário. Natureza
do Estado, conjuntura econômica, condições de vida e consciência de classe.
Rio de Janeiro: Access Editora, 1992.
MCCOLLEY, W. “The vestal virgins of education”. Clearing house, 11, 1936,
p. 195.

100
MIGNOT, Ana Chrystina, Eternizando travessia: memórias de formação
em álbum de viagem. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica 2, n.
5, p. 330-342, 2017.
MOREYRA, Álvaro. A cidade mulher. Biblioteca Carioca. Rio de Janeiro:
Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes. Departamento Geral
de Documentação e Informação Cultural. Divisão de Editoração, 1991. (1a.
edição 1923.)
MOURA, Maria Lacerda. Amai e... não vos multipliquei. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1932.
ORICO, Oswaldo.(1927) O celibato pedagógico feminino - Os debates
travados na Conferência Nacional de Educação em torno de tão interessante
assumpto - Fala-nos sobre o caso o prof. Oswaldo Orico. O Globo, 2 fev. 1927.
PAOLI, Maria Célia. “Os trabalhadores urbanos na fala dos outros: tempo,
espaço e classe na história operária brasileira”. Rio de Janeiro, Museu Nacional/
UFRJ, 1982, mimeo.
PALMEIRA, Luiz. (1928) A ideia do celibato obrigatório para as professoras.
A Pátria, 14 fev. 1928.
PEREIRA, Lusia Ribeiro. “O fazer feminino do magistério: tateando um
objeto de pesquisa”. Projeto História, São Paulo (11): 115-128, nov. 1994.
PEREIRA, Lusia Ribeiro. De donzela angelical e esposa dedicada... a profissional
da educação (a presença do discurso religioso na formação da professora).
Doutorado. FEUSP, 1996.
RABELO, R.S. Isaac Kandel e a constituição de redes entre Brasil e Estados
Unidos. Rev. Cienc. Educ., Americana, ano XXI, n. 43, p. 67-96, jan./jun. 2019a.
RABELO, R. S.. Noemy da Silveira Rudolfer e a vanguarda da psicologia
educacional no Brasil. In: Diana Gonçalves Vidal; Paula Perin Vicentini.
(Org.). Mulheres inovadoras no ensino (São Paulo, séculos XIX e XX). 1ª
ed.Belo Horizonte: Fino Traço, v. 1, p. 219-239, 2019b.
RIBEIRO, Benevenuta. (1928) A ideia do celibato obrigatório para as
professoras. A Pátria, 15 fev. 1928.
ROCHA, Ana C. Santos Matos. Experiências norte-americanas e projetos
de educação no Distrito Federal e em São Paulo (1927-1935): Anísio Teixeira,
Noemi Silveira, Isaias Alves e Lourenço Filho. Doutorado, Fiocruz, 2016.

101
ROUSMANIERE, Kate. (1994) Losing patience and staying professional:
women teachers and the problem of classroom discipline in New York City
schools in the 1920s. History of Education Quarterly, v. 34, n. 1, p. 49-68.
SEGUNDA Conferência Nacional de Educação. Minas Geraes. Órgão Official
dos Poderes do Estado, Belo Horizonte, Ano XXXVII, n. 260-269, nov. 1928.
SCHWARTZMAN, Simon , BOMENY, Helena M.B. e COSTA, Vanda M.R.
Tempos de Capanema. Rio de Janeiro: Paz e Terra; São Paulo: EDUSP, 1984.
TEACHERS COLLEGE. Announcement of the School of Education. New
York: Teachers College, 1889-1994.
VIDAL, Diana Gonçalves. Sexualidade e docência feminina no ensino primário
do Rio de Janeiro (1930-1940). In: BRUSCHINI, Cristina; HOLLANDA,
Heloisa B.. (Org.). Horizontes plurais: novos estudos de gênero no Brasil.
São Paulo: Fundação Carlos Chagas; Editora 34, v. , p. 281-314, 1998.
VIDAL, Diana Gonçalves; CARVALHO, M. P. Mulheres e magistério primário:
tensões, ambiguidades e deslocamentos. In: VIDAL, Diana Gonçalves e
HILSDPRF, Maria Lucia. (Org.). Brasil 500 anos: tópicos em história da
educação. 1ªed.São Paulo: Edusp, v. 1, p. 205-224, 2001.
VILHENA, Cynthia P. S. Família, mulher e prole: a doutrina social da Igreja
e a política social do Estado Novo. Doutorado, FEUSP, 1988.
WALKERDINE, V. “O raciocínio em tempos pós-modernos”. Educação &
Realidade 20 (2): 207-226, jul./dez 1995.
WALKERDINE, V. Schoolgirl fictions. New York: Verso, 1990.
WARDE Miriam. Noemy da Silveira Rudolfer. In: FAVERO & BRITTO.
Dicionário de educadores do Brasil. Rio de Janeiro/Brasília, Editora UFRJ,
MEC/INEP, p. 860-866, 2002.

Jornais
A Gazeta de Noticia, 07/03/1930
O “Pan Americano” em viagem ao Prata. O regresso da delegação da
Associação Brasileira de Educação – O que disseram ao “Diário Carioca” e
seu chefe e a professora Maria Campos. Diário Carioca, 07/03/1930.
Os novos métodos de ensino americano no Brasil. Fixando impressões das
professoras Laura Lacombe e Julieta Arruda. Diário Carioca, 12/03/1930.

102
Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. O que as delegações brasileiras
maria dos reis Campos e Celina Padilha dizem dos Estados Unidos e do
Uruguay. Correio da Manhã, 16/03/1930.
O feminismo na instrução. Aplausos pela nomeação de mais uma inspectora.
O Jornal, 30/03/1930.
O problema educacional e os cursos de férias nos Estados Unidos. Entregue
à Associação Brasileira de Educação o relatório da professora d. Julieta
Arruda. Correio da manhã, 11/04/1930.

103
CAPITULO 4

A educação Sul-Americana nas narrativas de


Carleton Washburne: uma análise sob a lente da
política de boa vizinhança1

Rafaela Silva Rabelo

Em abril de 1942, Carleton W. Washburne (1889-1968), um educador


estadunidense, desembarcou na Colômbia. Aquela não era uma viagem
qualquer, era o começo de uma missão de estudo sobre a educação sul-
americana comissionada pelo Departamento de Estado dos EUA que duraria
quatro meses e meio e incluiria no itinerário Equador, Chile, Paraguai e
Brasil. Washburne também não era um educador qualquer, era conhecido
internacionalmente desde os anos 1920 devido às experiências educacionais

1. Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP),
por meio do projeto de pós-doutorado “Perscrutando o papel da Progressive Education
Association na circulação da New Education Fellowship no Brasil (1920-1940)” (Processo n.
16/07024-0). A pesquisa tem sequência por meio do Projeto Temático “Saberes e práticas em
fronteira” (Processo n. 2018/26699-4). A autora agradece os bibliotecários Maria Aparecida
Gabriel, Antonio Marcos Amorim e Maria José Fagundes (Bibliotecas da Universidade de
São Paulo), cujos esforços foram fundamentais para conseguir os documentos provenientes
da Michigan State University.

105
que conduziu em Winnetka, Illinois.2 Além disso, na época da excursão
ocupava a presidência da Progressive Education Association (PEA).3
O presente capítulo toma os escritos de Washburne sobre essa viagem
como objeto de estudo com o objetivo de identificar as representações
constituídas sobre a educação sul-americana em suas narrativas e explorar
as conexões com a política de boa vizinhança que tais escritos, aliados ao
contexto da época, permitem abstrair.
A relevância dessa discussão permeia várias camadas. Em uma dimensão
biográfica, permite explorar partes da trajetória de Washburne e de sua
contribuição em frentes pouco conhecidas. Em uma dimensão prosopográfica,
possibilita compreender melhor as redes internacionais que uniam educadores
de diferentes países e os entrelaçamentos entre organizações de diferentes
naturezas, fossem elas políticas ou não-governamentais. Uma terceira
dimensão diz respeito às interlocuções entre história da educação e os estudos
sobre diplomacia cultural, ao inquirir sobre os projetos desenvolvidos pelo
Departamento de Estado dos EUA voltados para a educação no âmbito da
política de boa vizinhança. Apesar do presente texto não ter a pretensão de
aprofundar todos esses aspectos, ele traz à luz alguns elementos que ajudam
a avançar nessas frentes.
A discussão aqui apresentada é um desdobramento de pesquisa de
pós-doutorado sobre as conexões entre a New Education Fellowship (NEF)4
e o Brasil, tomando os Estados Unidos como intermediador. Durante a
investigação, Carleton Washburne emergiu como figura central na criação
da seção brasileira da NEF. As informações sobre a viagem pela América do

2. O conjunto de experiências desenvolvidas por Washburne durante sua atuação como


superintendente das escolas de Winnetka, cargo que ocupou entre 1919 e 1943, ficou conhecido
como Plano Winnetka, por vezes referido como Sistema Winnetka. A gênese da proposta,
bem como a aplicação em diferentes disciplinas e áreas, é apresentada no livro “Winnetka: the
history and significance of an educational experiment” (WASHBURNE; MARLAND, 1963).
3. A Progressive Education Association foi uma associação fundada nos EUA, em 1919, e que
reunia educadores vinculados à educação progressiva, incluindo nomes como John Dewey,
William Kilpatrick, Hardold Rugg e Helen Parkhust. Foi extinta em 1955 (GRAHAM, 1967).
4. A New Education Fellowship foi uma organização educacional fundada em 1921, durante
um congresso de educação em Calais, França, e que reuniu ao longo dos anos educadores
e entusiastas de vários países, incluindo nomes de prestígio, como Ovide Decroly, Maria
Montessori, William Kilpatrick, Adolphe Ferrière, entre tantos outros. Em 1966, foi renomeada
World Education Fellowship, nome que mantém nos dias atuais.

106
Sul e a vinculação com o Departamento de Estado foram desdobramentos
da investigação sobre o contexto de criação da referida seção.5
Enquanto principais fontes, analiso três artigos publicados por
Washburne logo após retornar da América do Sul, além de colunas que
escreveu para o periódico Winnetka Talk durante a excursão. Os seus livros
também serviram de referência para rastrear informações tanto sobre a
missão na América do Sul quanto suas viagens anteriores, traçando, desta
forma, um cenário mais amplo que auxilia a compreender os deslocamentos
do educador estadunidense.
A análise se dá principalmente a partir dos conceitos de representação
(CHARTIER, 1990; 2009) e leitura em contraponto (SAID, 2011). O conceito de
representação é mobilizado para identificar o tipo de imagem que Washburne
formou a respeito da educação sul-americana a partir da análise de seus
escritos. Já a leitura em contraponto é empregada para explorar como a
política de boa vizinhança se insinua nessas publicações, mesmo quando
não explicitada.
O capítulo se divide em quatro partes. A primeira sintetiza o que foi a
política de boa vizinhança e a atuação do Departamento de Estado dos EUA.
A segunda parte explora a figura de Washburne e suas inúmeras viagens,
traçando o cenário que culmina na viagem à América do Sul. A terceira
analisa os textos de Washburne, focando as representações sobre a educação
sul-americana, seguida pelos indícios da política de boa vizinhança na
quarta parte. As considerações finais apontam para outros desdobramentos
dessa discussão.

A política de boa vizinhança e o Departamento de Estado dos


EUA
Oposta às intervenções que marcaram a relação dos EUA e América
Latina no século XIX, a política de boa vizinhança foi uma estratégia de
aproximação por meios diplomáticos com vistas à colaboração econômica
e militar, e à consolidação da liderança dos EUA no hemisfério ocidental.

5. Sobre a seção brasileira da New Education Fellowship, conferir Rabelo e Vidal (2018;
2020). Outros resultados da pesquisa de pós-doutorado são apresentados em Rabelo (2019a;
2019b) e Vidal e Rabelo (2021).

107
Desta forma, buscava afastar a intervenção europeia e, posteriormente, com
a eclosão da Segunda Guerra Mundial e a entrada dos EUA no conflito,
neutralizar a influência nazifascista.
Foi implementada durante o governo de Franklin Delano Roosevelt,
presidente dos EUA entre 1933 e 1945, mas começou a ser gestada em governos
anteriores. Segundo esclarece Tota (2000), a política de boa vizinhança
remete à gestão de Herbert Hoover, presidente entre 1929 e 1933. O termo
“good neighbor”, usado por Hoover em um discurso durante viagem pela
América Latina, foi posteriormente incorporado por Roosevelt.6
Sob a política de boa vizinhança, o pan-americanismo floresceu, e os anos
1930 presenciaram um número crescente de conferências interamericanas,
com grande participação do governo estadunidense, que buscava “uma
política pan-americana que enfatizasse um programa de integração política e
econômica no hemisfério, modernização e estabilização sob a liderança dos
EUA”7 (BERGER, 1993, p. 20). O pan-americanismo também era propagado
nas escolas por meio de práticas como concursos de redação e elaboração
de cartazes.
O pan-americanismo serviu inicialmente como um meio pelo qual os
EUA poderiam manter sua hegemonia no hemisfério ocidental. Apesar
do declarado anti-intervencionismo da política de boa vizinhança, os
EUA eram ainda mais intervencionistas que antes. A ‘intervenção’ era
feita por embaixadores, oficiais de assuntos estrangeiros, conselheiros
econômicos e políticos reunidos por meio de assistência econômica e
capital privado, ao invés dos fuzileiros navais e canhoneiras do passado
(BERGER, 1993, p. 20).8

6. Sobre a política de boa vizinhança, conferir verbete em: https://cpdoc.fgv.br/producao/


dossies/AEraVargas1/anos30-37/RelacoesInternacionais/BoaVizinhanca. Uma discussão
mais aprofundada, focando o Office of Inter-American Affairs e conexões com a Division
of Cultural Relations, é apresentada por Cramer e Prutsch (2012) e Sadlier (2012).
7. No original: “a Pan-American policy which emphasised a program of hemispheric political
and economic integration, modernisation and stabilisation under US leadership”.
8. No original: “Pan-Americanism served primarily as a means by which the USA could
maintain its hegemony in the western hemisphere. Despite the stated anti-interventionism
of the Good Neighbor Policy, the USA was even more interventionist than previously.
‘Intervention’ was carried out by ambassadors, foreign service officers, economic and

108
O Office of Inter-American Affairs (OIAA),9 vinculado ao Departamento
de Estado, criado em 1940 e coordenado por Nelson Rockefeller, exemplifica
uma dessas formas de intervenção. Com a proximidade da guerra, via-se
cada vez mais a necessidade de incorporar a América Latina como parte de
um sistema de segurança do hemisfério sob a liderança dos EUA.
O discurso propagado pela política de boa vizinhança nem sempre
condizia com as práticas resultantes.
Um dos objetivos da política de boa vizinhança após 1933, que
eventualmente foi incorporada pelo Office of the Co-ordinator of
Inter-American Affairs [CIAA] em 1940, era gerar um ambiente de
apreciação e respeito à cultura hispano-americana. No entanto, na
prática, especialmente quando o CIAA apareceu, tinha menos a ver com
a apreciação da cultura hispânica e mais com o uso das relações culturais
como um canal para a transmissão da influência norte-americana. Pela
primeira vez, no governo de Roosevelt, o Departamento de Estado
buscou explicitamente o entendimento cultural internacional enquanto
componente de sua agenda de política externa (BERGER, 1993, p. 20).10

De fato, Berger (1993) argumenta que mesmo no discurso era possível


perceber resquícios persistentes de uma percepção anglo-saxônica sobre a
América Latina, caracterizada por uma interpretação racista e nacionalista,
na qual culturalmente os EUA possuíam uma missão civilizatória.

military advisers hacked up by economic assistance and private capital, instead of the
marines and gunboats of the past.”
9. Quando foi criado em 1940, se chamava Office for the Coordination of Commercial and
Cultural Relation between the Americas. Em 1941, passou a Office of the Coordinator of
Inter-American Affairs. Em 1944, Office of Inter-American Affairs. Em 1946, durante a
gestão de Harry Truman, foi extinto (TOTA, 2000). Por uma questão de padronização,
adoto o último nome, abreviado como OIAA.
10. No original: “One of the goals of the Good Neighbor Policy after 1933, which was
eventually taken up by the Office of the Co-ordinator of Inter-American Affairs in 1940,
was to generate an environment of appreciation and respect for Hispanic-American culture.
However, in practice, especially by the time the CIAA appeared, this had less to do with the
appreciation of Hispanic culture and more to do with using cultural relations as a conduit
for the transmission of North American influence. For the first time, under Roosevelt, the
State Department explicitly pursued international cultural understanding as a component
in its foreign policy agenda.”

109
No âmbito da política de boa vizinhança, qual seria o papel da educação?
Nos estudos de Tota (2000; 2014) focados na atuação do OIAA no Brasil,
é possível identificar várias conclusões a que o autor chega e que podem
ser aplicadas a outras divisões do Departamento de Estado. Nesse sentido,
o investimento na educação seria uma forma de fortalecer a democracia,
baseado no entendimento que um povo analfabeto não seria capaz de
compreender o funcionamento de um governo democrático. No âmbito
da guerra, o conflito armado não era a única forma de se ganhar. A cultura,
a propaganda e os meios de educação eram armas tão poderosas quanto.
Segundo Tota (2000), ao se referir ao OIAA, as denominadas missões
culturais abarcavam diferentes áreas. De modo geral, a documentação
sobre essas pesquisas incluía em seu título a expressão “relações culturais”,
denominação ampla o suficiente para abrigar o intercâmbio de professores
universitários, elaborados sistemas de informação e todos os ramos da
comunicação de massa. Apesar de Tota (2000) se referir especificamente ao
OIAA, sua análise pode ser estendida ao Departamento de Estado de uma
forma geral, especialmente à Division of Cultural Relations que carregava,
em seu próprio nome, o termo elástico referido pelo autor.
A Division of Cultural Relations e o OIAA colaboraram em vários
projetos. A “colaboração” era uma forma de evitar atritos na briga por
protagonismo e permitia que ambos ficassem a par das atividades de cada
em uma constante vigilância, ao mesmo tempo que evitavam invadir o
terreno do outro ou perder o próprio espaço. A criação e reestruturação
desordenada dos escritórios do Departamento de Estado ao longo dos anos
1930 e 1940 resultavam com frequência na sobreposição de funções.11
Ambos os escritórios desenvolviam projetos relacionados à educação
e, com frequência, comissionavam educadores estadunidenses em missões
de estudo pela América Latina, ou financiavam bolsas de educadores
latino-americanos nos EUA. A própria viagem de Washburne exemplifica
as proximidades entre o OIAA e a Division of Cultural Relations. Em 1941, o
OIAA financiou o 8º congresso internacional da New Education Fellowship

11. Sobre os projetos do OIAA e da Division of Cultural Relations, conferir Cramer e Prutsch
(2012) e Sadlier (2012).

110
que ocorreu nos EUA e que foi organizado pela PEA. Na mesma época, o
OIAA também financiou um projeto sobre a América Latina desenvolvido
pela PEA. No ano seguinte, Washburne partiu para a América do Sul em
missão de estudo comissionada pela Division of Cultural Relations. Vale
destacar que Washburne foi presidente da PEA entre 1939 e 1943 (RABELO,
2019c).

As viagens internacionais de Carleton Washburne


A viagem de Washburne à América do Sul foi antecedida por várias
outras viagens internacionais, o que provavelmente influenciou na escolha
de seu nome para a missão comissionada pelo Departamento de Estado. No
ato de viajar, ele conheceu novas experiências educacionais, construindo e
ampliando constantemente seu repertório, assim como divulgou seus estudos.
Participou de vários congressos, visitou inúmeras escolas em diferentes países
durante missões de estudo, e relatou o que observou na forma de artigos
em revistas dos EUA e do exterior e em livros, muitos dos quais traduzidos
para outros idiomas, o que certamente ajudou a projetar ainda mais a sua
figura nacional e internacionalmente.
Entre 1922 e 1923, excursionou pela Europa visitando escolas
experimentais. Washburne esclarece que foi durante essa primeira missão
de estudo pela Europa que tomou conhecimento da existência da NEF
(WASHBURNE, 1971, p. 477). Escreveu um relatório na forma de uma
pequena brochura sob os auspícios do Departamento de Interior dos EUA,
intitulado “Progressive tendencies in European education”, que veio a lume
pouco depois da viagem. É por meio desse relatório que nos é dado a saber
que se baseou no livro de Ferrière, “L’Ecole Active”, para colher informações
sobre as escolas europeias antes da viagem (WASHBURNE, 1923, p. 1). Uma
versão mais elaborada da experiência foi publicada na forma de livro em
1926, sob o título “New schools in the old world”. Neste, relata as experiências
desenvolvidas em escolas progressivas que visitou na Inglaterra, Bélgica,
Holanda, França, Suíça, Alemanha e Tchecoslováquia (WASHBURNE;
STEARNS, 1926).

111
Em 1927, participou da conferência da NEF em Locarno (Suíça) e na
sequência, logo após passar por Berlim, foi à União Soviética visitar escolas.
Presença frequente nos congressos da NEF, participou também dos encontros
que ocorreram em Nice, na França (1932), Cheltenham, Inglaterra (1936)
e México.12
Em 1931, ao longo de nove meses, excursionou por Europa e Ásia. Para
essa viagem, colheu informações por meio do International Institute/Teachers
College da Columbia University e da NEF (WASHBURNE, 1932, p. 5). Os
resultados da missão são relatados no livro “Remakers of mankind”, publicado
no ano seguinte. Nele discorre sobre o que observou em sua passagem pelo
Japão, China, Índia, nações árabes, Turquia, Rússia, Polônia, Alemanha,
além da realidade da educação nos próprios EUA (WASHBURNE, 1932).
Após a viagem à América do Sul, se seguiram várias outras viagens,
mas não me deterei nelas. Todavia, vale destacar a viagem que fez logo
na sequência para a Itália, onde permaneceu entre 1943 e 1948, primeiro
prestando serviços ao exército americano e, posteriormente, ao Departamento
de Estado, em ambos os casos desenvolvendo atividades voltadas à reforma
da educação italiana (WASHBURNE, 1971).
Sobre a viagem à América do Sul foram localizados apenas três artigos
em revistas pedagógicas além de algumas colunas em periódicos, mas nada
expressivo. Em seu livro “What is progressive education?” há uma rápida
menção à sua passagem pela América do Sul, que mal ocupa três linhas
(WASHBURNE, 1952, p. 9). Em seu texto autobiográfico, Washburne volta
a mencionar rapidamente a viagem, com o acréscimo de pequenos detalhes:
Em 1942, sob subvenção do Departamento de Estado, eu fiz um estudo
dos problemas da educação elementar e da secundária em cinco países
sul-americanos, relatando os resultados ao Departamento de Estado.
Nessa viagem fomos acompanhados por nosso filho, recém-saído da
high school (WASHBURNE, 1971, p. 478).13

12. Na autobiografia, Washburne afirma que a conferência da NEF no México foi em 1940. É
possível que se referisse ao congresso regional da NEF realizado na Cidade do México em 1935.
13. No original: “In 1942, under a State Department grant, I made a study of the problems
of elementary and secondary education in five South American countries, reporting the
results to the Department of State. On this trip we were accompanied by our son, just out
of high school”.

112
A produção reduzida de Washburne sobre a passagem pela América do
Sul causa estranheza devido à prática reiterada que ele tinha de publicizar
suas viagens. Uma hipótese é que a viagem envolvesse detalhes que não
pudessem ser divulgados, considerando o contexto da guerra. Outra possível
explicação seria a viagem que fez logo na sequência para a Itália em nova
missão, o que não teria lhe permitido investir tempo na escrita de um livro.

Representações de Washburne sobre a educação sul-americana


Ao todo, foram localizados três artigos publicados em revistas
educacionais dos EUA, além de textos publicados no periódico Winnetka
Talk14 contendo notícias sobre a viagem de Washburne.
Os artigos sobre a educação sul-americana possuem um tom genérico e
sem muitos detalhes sobre o itinerário de viagem. O Departamento de Estado
é citado no início de cada texto para informar de onde partiu o financiamento,
uma menção rápida mas suficiente para advertir que a narrativa apresentada
por Washburne é construída não apenas com base naquilo que considera
importante, mas também carrega em si vinculações oficiais, que interferem
nos (inter)ditos. A vinculação com o Departamento de Estado é relevante na
análise do conteúdo visto que, como lembra Chartier (1990), um texto, seja
ele literário ou documental, remete às suas próprias condições de produção.
O primeiro artigo foi publicado em novembro de 1942, na revista Illinois
Education, sob o título “Building South American Friendship: Progressive
Education Ass’n President Reports Recent Study”. Apesar do artigo dividir
a página com outros textos, o título ocupa o alto da página, o que lhe dá
lugar de destaque. O conteúdo da revista é distribuído em três colunas. O
artigo de Washburne está dividido em duas páginas: começa na página 80a
(ocupa uma coluna e meia, aproximadamente metade da página) e termina
em 80d (ocupa metade da terceira coluna). O primeiro parágrafo informa
sobre a natureza da viagem de forma bastante resumida.

14. Foram consultadas as edições do periódico Winnetka Talk publicadas entre abril e início
de outubro de 1942, buscando localizar notícias veiculadas enquanto a viagem estava em
curso e logo após sua conclusão. Os exemplares estão disponíveis no acervo da Winnetka
Historical Society.

113
Em uma viagem comissionada pela Division of Cultural Relations do
Departamento de Estado dos EUA, recentemente eu passei quatro meses
e meio na Colômbia, Equador, Chile, Paraguai e Brasil, realizando um
estudo dos objetivos e problemas da educação elementar e da secundária
nesses países. Por meio da Embaixada Americana e das lideranças
educacionais em cada país, tive a oportunidade de ver não apenas as
escolas, mas também algo do contexto social e econômico em cada país
(WASHBURNE, 1942b, 80a).15

Washburne informa, ainda no início do texto, que um relatório completo


seria publicado posteriormente, mas não há quaisquer evidências que essa
pretensão tenha se concretizado. O artigo traz uma descrição geral do
que observou nos países visitados, destacando o potencial em termos de
recursos naturais e humanos e a relevância que a educação tem para o
desenvolvimento desse potencial. Elenca características do ensino primário/
secundário/universitário e faz rápidas referências à formação de professores.
Em linhas gerais, Washburne constrói o texto em termos de diagnóstico dos
problemas, dos avanços (principalmente relacionados ao ensino vocacional) e
da relevância da interlocução com os vizinhos latino-americanos, destacando
as lideranças educacionais existentes, compostas em sua maioria por pessoas
que já estiveram nos EUA ou que, no mínimo, se mantinham atualizadas
acerca das propostas estadunidenses.
O segundo artigo foi publicado em janeiro de 1943, na revista School and
Society, sob o título “Notes on South America Trip”, distribuído ao longo de
três páginas e um quarto. Dos três textos publicados sobre a viagem, esse é
o mais longo. Também apresenta uma estrutura um pouco diferente, pois
Washburne desenvolve a discussão dialogando com um artigo publicado
anteriormente por Paul Hanna16 sobre excursão à América do Sul, comparando
as impressões de viagem.

15. No original: “On a travel grant from the Division of Cultural Relations of the U. S. State
Department I recently spent four and a half months in Colombia, Ecuador, Chile, Paraguay,
and Brazil, making a study of the aims and problems of elementary and secondary education
in these countries. Through the American Embassy and through educational leaders in
each country I was given an opportunity to see not only the schools but something of the
social and economic background of each country.”
16. O artigo de Paul Hanna, ao qual Washburne se refere, foi publicado alguns números
antes na mesma revista, School and Society. A partir das menções feitas por Washburne

114
Com base no que Washburne discute, podemos apreender que Paul
Hanna discorreu sobre as semelhanças entre as repúblicas latino-americanas e
norte-americanas. Washburne aponta aspectos de concordância e discordância
em relação às impressões sobre os países sul-americanos, a começar do
processo de colonização, que retomarei adiante.
O terceiro e último artigo identificado foi publicado em abril de 1943,
na School and Society, com o título “South American Education”. É o único
que veicula imagens, duas fotografias logo abaixo do título, tiradas pelo filho
Chandler, de cenas cotidianas da Colômbia e Equador. O artigo se assemelha
bastante ao primeiro publicado em 1942, incluindo alguns trechos idênticos.
Enfatiza as diferenças de povoamento entre América Latina e América do
Norte, mencionando a mestiçagem de negros e índios como característica
da primeira. Também alude ao cenário político, afirmando que governos
efetivamente democráticos apenas existiam na Colômbia e no Chile.
Imagem 1: detalhe de página de artigo publicado por Washburne com
fotografias de seu filho Chandler com cenas do Equador (à esquerda) e da
Colômbia (à direita).

Fonte: Washburne (1943b).

é possível apreender que Hanna discutia suas impressões de viagem ao Peru, Bolívia e
Equador, também em missão de estudo pelo Departamento de Estado. Segundo notas
biográficas disponíveis no Register of Paul Robert Hanna Papers (disponível em http://www.
oac.cdlib.org/findaid/ark:/13030/tf5s2004dd/entire_text/), Hanna foi consultor do Office
of Inter-American Affairs entre 1940 e 1942, designado para missões nas Américas do Sul
e Central. Também cabe destacar que foi membro da Progressive Education Association.

115
De fato, os três artigos têm mais em comum do que diferenças.
Perscrutando os temas recorrentes, é possível identificar as percepções mais
fortes de Washburne ou, mais precisamente, para onde ele quer direcionar
o olhar do leitor. As diferenças residem basicamente na extensão dos textos
e no maior ou menor detalhamento de alguns aspectos. Entre os temas
que são retomados estão a defesa da semelhança entre os países visitados,
considerações sobre os currículos dos cursos primário e secundário, formação
de professores, as lideranças educacionais, as escolas vocacionais e elementos
relacionados à interlocução e boa relação com os EUA. Na sequência apresento
uma síntese do que é discutido por Washburne nos artigos, focando nas
representações que o educador constrói acerca da educação sul-americana
Ao identificar os temas recorrentes, um que invariavelmente é invocado
no início dos artigos é a semelhança entre os países visitados e o potencial
em termos de recursos naturais e humanos. Para Washburne, há “muito
mais semelhanças entre os países sul-americanos que diferenças. As
semelhanças são básicas; as diferenças são relativamente superficiais” (1942b,
80a).17 É preciso cotejar os dados dos três artigos para apreender, ao menos
parcialmente, o que ele estaria considerando em termos de semelhanças e
diferenças. Ele enfatiza as riquezas naturais e humanas como uma semelhança,
mas que precisam ser mais bem exploradas/desenvolvidas.
Os países se diferenciam “em geografia, em riqueza, em grau de progresso,
em grau de democracia e – no caso do Brasil – no idioma”, há, todavia,
“um padrão comum básico”. Esse padrão básico, que é “fundamentalmente
diferente do padrão básico dos Estados Unidos” (WASHBURNE, 1943b, p.
97),18 também diz respeito à potencialidade de recursos naturais e humanos.
Sobre as diferenças em relação aos EUA, é o segundo artigo, que
dialoga com o texto de Paul Hanna, que melhor explicita sua percepção.
Ele concorda com Hanna no que diz respeito às similaridades entre os
países sul-americanos, mas discorda quando a comparação se dá entre as

17. No original: “There is far more similarity among South American countries than there
is difference. The similarities are basic; the differences are relatively superficial.”
18. No original: “in geography, in wealth, in degree of advancement, in degree of democracy,
and – in the case of Brazil – in language […] there is, nevertheless, a basic common
pattern” […] “fundamentally different from the basic pattern of the United States.”

116
repúblicas latino-americanas e norte-americanas, o que ele justifica com
bases históricas do processo de colonização. Para Washburne, a natureza
da colonização na América do Norte tem como característica a presença de
Europeus com o objetivo de se estabelecerem. Na América Latina, por outro
lado, o objetivo consistia em explorar a população nativa e “construir uma
sociedade feudal na qual eles não teriam trabalho manual para fazer”. Essas
diferenças seriam em parte responsáveis pela “falta de educação universal e a
extrema academicidade da educação existente” (WASHBURNE, 1943a, p. 29).19
Sobre a educação, Washburne faz uma caracterização geral dos sistemas
de ensino, destaca os maiores problemas que identificou – altos índices de
analfabetismo, ensino muito livresco e baseado na memorização, pouca ou
nenhuma atividade prática, etc. – e os pontos positivos ou aspectos em vias
de desenvolvimento. Entre os aspectos positivos enfatizados, ele identificou
que em cada país havia “um movimento em direção à educação vocacional
que é o movimento mais promissor no secundário e, por vezes, no primário”20
e que havia algumas escolas vocacionais que estavam no mesmo nível das
americanas e das europeias das quais ele tinha conhecimento (WASHBURNE,
1943a, p. 30-31). Ele descreve a educação vocacional nos seguintes termos:
As escolas vocacionais são um dos pontos altos na educação sul-
americana. Enquanto as escolas primárias e secundárias comuns são
extremamente pobres, acadêmicas, e quase desprovidas de relação com
as experiências das crianças e das necessidades dos países, as escolas
vocacionais dão trabalho prático, intimamente relacionado com as vidas
das crianças, intimamente relacionado com as necessidades do país. Elas
estão se desenvolvendo rapidamente na Colômbia, muito mais devagar
no Equador. Elas foram estabelecidas há muito tempo no Chile e agora
estão aumentando. O Paraguai está apenas no início deste trabalho. O
Brasil está dando grandes passos adiante (WASHBURNE, 1942b, 80a).21

19. No original: “building up a feudal society in which they would have no manual work
to do.” […] “lack of universal education and the extreme academicness of such education
as exists.”
20. No original: “a movement toward vocational education which is the most promising
movement in the secondary and sometimes the primary fields”.
21. No original: “These vocational schools are one of the brightest spots in South American
education. While the regular primary and secondary schools are exceedingly poor, academic,

117
Ao descrever os ensinos primário e secundário, destaca os problemas
do currículo, fortemente baseado na memorização, inadequado para as
crianças, e “sem relação com as necessidades culturais, sociais e econômicas
do país” e que a única exceção que ele teve conhecimento foi o “programa
oficial para as séries primárias em um estado no Brasil”22 (WASHBURNE,
1943a, p. 30). Ele conclui que:
O currículo nas escolas primárias e secundárias foi transplantado da
França uma geração ou mais atrás. Ele é, portanto, árido, acadêmico,
enciclopédico, sem relação com as necessidades do país ou com as vidas
das crianças. O método de ensino consiste em palestras ministradas pelo
professor; às vezes algumas perguntas, e, principalmente nas escolas
primárias, um debate feito pelas crianças; ditados feitos pelo professor e
anotados pelas crianças em seus cadernos [...]; memorização do material
ditado; recitação; e exames (WASHBURNE, 1943b, p. 97).23

Sobre os professores, afirma que a maioria não possuía formação


específica para atuar, e que o “curso da escola normal, que é simplesmente
um curso de escola secundária especializado, é bastante inadequado”24
(WASHBURNE, 1943a, p. 30). Apesar dos problemas que identificou, destaca
a presença de lideranças educacionais de visão em cada um dos países,
constituídas em sua maioria por pessoas que estudaram nos EUA.

and almost devoid of relation to the children’s experience and the countries’ needs, the
vocational schools give work which is practical, closely related to the lives of the children,
closely related to the needs of the country. They are growing by leaps and bounds in Colombia,
much more slowly in Ecuador. They have been long established and are now increasing in
Chile. Paraguay is just at the beginning of this work. Brazil is taking strong steps forward.”
22. No original: “unrelated to the cultural, social and economic needs of the country” […]
“official program for the primary grades in one state in Brazil”.
23. No original: “The curriculum in the primary schools and secondary schools has been
transplanted from France of a generation or more ago. It is, therefore, arid, academic,
encyclopedic, unrelated to the needs of the country or the lives of the children. The method
of teaching consists of lectures by the teacher; sometimes a little questioning, and, specially
in the primary schools, a discussion by the children; dictation by the teacher taken down
by the children in their notebooks or cuadernos; memorization of this dictated material;
recitation; and examination.”
24. No original: “normal-school course, which is simply a specialized secondary-school
course, is quite inadequate”.

118
Em cada país que visitei há homens e mulheres que sabem tanto sobre
educação quanto nós, que têm visão, entusiasmo, habilidade e coragem.
Em cada país eu fui capaz de encontrar pessoas que viam tão claramente o
que era necessário quanto qualquer um de nós nos Estados Unidos vemos
nossos problemas. Enquanto os sul-americanos saudariam os norte-
americanos em tais missões, a permanência do trabalho e a adaptação
dos planos à situação local requer que um número dos líderes locais
esteja nessas missões (WASHBURNE, 1943a, p. 31).25

Nas narrativas apresentadas por Washburne, a precisão das informações


sobre a educação sul-americana por ele compiladas não constitui o cerne da
análise visto que as “representações não são simples imagens, verdadeiras ou
falsas, de uma realidade que lhes seria externa, elas possuem uma energia
própria que leva a crer que o mundo ou o passado é, efetivamente, o que
dizem que é” (CHARTIER, 2009, p. 51-52). As representações são como
“entidades que vão construindo as próprias divisões do mundo social”
(CHARTIER, 2009, p. 7).
Importa identificar quais imagens Washburne formou sobre a educação
entrelaçadas à cultura sul-americana, e que elementos ganharam a sua atenção
a ponto de serem incluídos nos relatos, construídos segundo “modelos
discursivos e delimitações intelectuais próprias de cada situação de escrita”
(CHARTIER, 1990, p. 63). Cotejando os três artigos, entre outros aspectos,
fica evidente o destaque dado à educação vocacional, e se insinua a percepção
que os EUA é o modelo a ser seguido e centro de difusão das discussões
educacionais. Várias dessas representações, mesmo que não explicitadas,
podem ser analisadas sob a lente da política de boa vizinhança.

25. No original: “In every country there are men and women who know as much about
education as we do, who have vision, enthusiasm, ability, and courage. In every country I
was able to find people who saw as clearly what was needed as any of us in the United States
see our problems. While the South Americans would welcome North Americans on such
missions, the permanency of the work and the adaptation of the plans to the local situation
requires that a number of the local leaders of thought be on those missions”.

119
Vestígios da política de boa vizinhança
Apesar de Washburne não abordar diretamente a política de boa
vizinhança, ela se insinua em seus artigos no uso de expressões e em
referências a aspectos que de outra forma passariam despercebidos. São
representações construídas a partir de uma linguagem cujos significados são
compartilhados (HALL, 2016), neste caso, por meio de referências a temas
e uso de termos que podem ser rastreados diretamente às ideias e agenda
propagadas pela política de boa vizinhança.
A menção aos governos democráticos feita por Washburne é um desses
temas que ganha outro significado se levado em consideração o contexto
da política de boa vizinhança.
Escolas elementares públicas não foram estabelecidas na América do
Sul durante os trezentos anos do período colonial, e nenhum país
possui ainda uma quantidade suficiente de escolas e professores. Uma
porcentagem considerável de pessoas em cada país sul-americano é,
portanto, analfabeta e a grande maioria das pessoas que vai à escola
apenas frequentou um, dois ou no máximo três séries da educação
primária. O estabelecimento da democracia sob essas condições tem
sido quase impossível – de fato, democracia como a conhecemos, existe
apenas na Colômbia e no Chile (WASHBURNE, 1943b, p. 97).26

Os investimentos em projetos educacionais/culturais seria uma forma


de fomentar a democracia nos países sul-americanos, como defendido por
Tota (2000; 2014). Isso explicaria, ao menos em partes, as missões de estudo
comissionadas pelo Departamento de Estado voltadas à educação nos países
Latino-Americanos, incluindo a excursão de Washburne.
A vinculação dos artigos de Washburne à agenda latino-americana
promovida pelo governo estadunidense é evidenciada por um detalhe no

26. No original: “No public elementary schools were established in South America during
the three-hundred-year colonial period, and no country yet has a sufficient supply of schools
and teachers. A considerable percentage of people in each South American country are
therefore illiterate and the vast majority of people who go to school at all have only one,
two, or at the most three grades of primary education. The establishment of democracy
under these conditions, has been almost impossible – indeed, democracy as we know it,
exists only in Colombia and Chile. (I cannot speak for Uruguay)”.

120
periódico Winnetka Talk. No número que reproduz o texto de Washburne
publicado em um jornal colombiano, há uma pequena nota introdutória do
editor justificando a veiculação da matéria. Afinal, por que um periódico de
uma vila nos arredores de Chicago, nos EUA, publicaria um texto sobre a
educação na Colômbia? Segundo o editor, “com a América Latina agora o
foco de muito do pensamento americano, o artigo a seguir foi considerado
não apenas oportuno, mas vital em interesse, e é publicado devido à sua
clareza sobre alguns aspectos das relações interamericanas que geralmente
não são contemplados” (Winnetka Talk, 20 ago. 1942).27 Referências e
publicações específicas sobre a América Latina passaram a ser cada vez
mais frequentes em diferentes meios de comunicação durante o governo
Roosevelt, principalmente no final dos anos 1930 e início dos 1940, com a
eclosão da guerra e, posteriormente, com a adesão dos EUA após o ataque
a Pearl Harbor em dezembro de 1941.
Retomando os artigos de Washburne, algo que aparece nos três textos
é a ênfase na atitude amistosa e receptiva dos sul-americanos em relação
aos EUA. No primeiro artigo, ele pondera que:
A atitude geral em relação aos Estados Unidos é amigável e de admiração.
Eles querem nossa ajuda, não de uma forma condescendente, mas de
uma forma compreensiva. Aqueles que podem, leem nossos livros e
vêem para nossas faculdades. Outros aprendem desses. Eles querem
ser capazes de enviar seus melhores estudantes para cá. Eles querem
ser capazes de enviar seus professores e outros líderes para este país
para treinamento adicional (WASHBURNE, 1942b, 80d).28

São recorrentes referências às interlocuções, ao auxílio mútuo, mas


também transparece que a liderança cabe aos EUA, são eles que estabelecem

27. No original: “With Latin America now the focus of much American thought, the following
article has been considered not only timely, but vital in interest, and is published for its
insight into some aspects of inter-America relations not generally considered.” (“Educator
dishearted, then cheered with South America”, Winnetka Talk, 20 ago. 1942).
28. No original: “The general attitude toward the United States is friendly and admiring.
They want our help, not in a condescending way, but in an understanding way. Those who
can, read our books and come to our colleges. Others learn from these. They want to be able
to send their best students up here. They want to be able to send their teachers and other
leaders to this country for further training.”

121
as diretrizes. Apesar de reconhecer as lideranças educacionais nos países
sul-americanos, destaca que são compostas na maioria por pessoas que
estiveram nos EUA.
A percepção de Washburne se alinha com as representações contidas na
política de boa vizinhança. Sendo uma pessoa bem articulada em diferentes
organizações dos EUA, e com conexões no governo, ele estava familiarizado
com o discurso vigente e a plataforma promovida de aproximação da América
Latina, principalmente após o congresso da NEF em Ann Arbor, Michigan,
em 1941, que contou com financiamento do OIAA.
A exemplo das análises de Said (2011), é possível que Washburne
estivesse a par da agenda da política de boa vizinhança, e que as omissões
de conexões diretas nos artigos fossem deliberadas. Todavia, isso não quer
dizer que estivesse consciente de todas as implicações e de como isso afetava
em suas representações resultantes. Uma leitura em contraponto permite
perceber um discurso que, mesmo pretendendo ser conciliatório, deixa
entrever práticas culturais de dominação. Defende-se a colaboração entre
as repúblicas americanas, mas a liderança cabe aos EUA. Destacam-se as
lideranças educacionais sul-americanas, mas são mencionados apenas os
educadores alinhados com os modelos e ideias estadunidenses. Pontuam-se
a atitude amistosa e desejo de colaboração por parte dos sul-americanos,
mas ignora-se o antiamericanismo presente em certos grupos.
Um detalhe que chama atenção nos textos de Washburne é a expressão
“um continente do futuro”, com a qual encerra o primeiro e o terceiro artigos
com parágrafos praticamente idênticos.
A América do Sul se desenvolveu muito mais lentamente que a América
do Norte. É um continente do futuro. Possui os tipos de recursos e o tipo
de pessoas que, uma vez desenvolvidos rumo a suas potencialidades,
se tornarão vizinhos fortes, prestativos, amigáveis e cooperativos. A
América do Sul pode ser um suporte para nós no futuro e será em
proporção aos recursos culturais e econômicos que disponibilizamos
em sua luta para se elevar (WASHBURNE, 1943b, p. 98).29

29. No original: “South America has developed very much more slowly than North America.
It is a continent of the future. It has the kind of resources and the kind of people which,

122
A semelhança com outra expressão muito conhecida entre os brasileiros,
“Brasil, um país do futuro”, pode não ser mera coincidência. Segundo Alberto
Dines (2006), a expressão se popularizou a partir de livro de mesmo título
escrito por Stefan Zweig e publicado em 1941 simultaneamente em diferentes
línguas: entre agosto e setembro foram publicadas a edição brasileira e a
norte-americana, no fim do mesmo ano as edições alemã, sueca e portuguesa,
no início de 1942 as edições francesa e espanhola.
Não é improvável que Washburne tenha travado conhecimento de tal
obra durante sua passagem pelo Brasil, todavia, outra hipótese remete às
páginas da revista Progressive Education. Na edição de outubro de 1941, a
revista divulgou o livro de Zweig, além de outras obras sobre a América
Latina. Aliás, a seção “Book reviews” daquele número trazia resenhas de
vários livros de temática latino-americana. Aquele era o primeiro número
da revista publicado após o congresso da NEF, realizado em julho em
Michigan, e trazia na capa um garoto de traços latinos e o tema daquela
edição: “N.E.F. Conference Issue”.30 A divulgação do livro de Zweig nas
páginas da Progressive Education reforça a hipótese que Washburne estivesse,
no mínimo, familiarizado com o título.
Ao analisarmos a viagem de Washburne a partir da lente da política de
boa vizinhança, o trabalho promovido pelo governo dos EUA em mão dupla
fica evidente. Ou seja, por um lado, promover a cultura norte-americana entre
os vizinhos latino-americanos tornando-os receptivos e, por outro, incutir
nos estadunidenses interesse e maior conhecimento sobre os vizinhos. Desta
forma, pretendia-se integrar os países das Américas visando efetivamente o
espírito pan-americano. E neste cenário, caberia aos EUA o papel de liderança.

once developed to anything like their potentialities, will make strong, helpful, friendly,
and cooperative neighbors. South America can be an economic and cultural asset to us in
the future and will be so in proportion as we make our cultural and economic resources
available to them in their upward struggle”.
30. A conferência em Ann Arbor deu grande destaque à América Latina em sua programação e,
entre os delegados latino-americanos, contou com a participação de Giselle Shaw (Argentina),
Agustin Nieto Caballero (Colombia), Luis Padrino (Venezuela), Gustavo Adolfo Otero e
Marina Nunez del Prado (Bolívia), Paz Davila, Carlos Davila e Cora B. de Sigren (Chile)
e Noemy da Silveira Rudolfer e Ceição Barros Barreto (Brasil) (RABELO; VIDAL, 2020).

123
Considerações finais
Vários estudos têm abordado as missões comissionadas pelo
Departamento de Estado dos EUA que se inserem no contexto da política
de boa vizinhança. É o caso das investigações de Mauad (2005) sobre a
fotógrafa Genevieve Naylor, e de Freire Júnior e Silva (2014) sobre o físico
Arthur Compton. No entanto, a exemplo da viagem de Washburne, pesquisas
que explorem especificamente as missões de estudo e projetos voltados à
educação financiados pelo governo estadunidense na esteira da política de
boa vizinhança, principalmente durante o período da segunda guerra, ainda
são pouco expressivas.
Vinculados à PEA, por exemplo, além de Washburne, pelo menos
outros dois educadores também excursionaram pela América Latina em
datas próximas, mas sem maiores referências na historiografia. Um deles,
Paul Hanna, foi mencionado anteriormente. O outro, Willard Beatty, viajou
pela América do Sul em 1942, cruzando caminhos com Washburne no
Equador. Beatty ocupou a posição de comissário no Office of Indian Affairs
no Departmento de Interior dos EUA, além de ter sido presidente da PEA
entre 1933 e 1936 (GRAHAM, 1967)
Os artigos escritos por Washburne, mesmo em suas poucas páginas,
combinados com as colunas publicadas pelo periódico Winnetka Talk,
deixam entrever uma representação sobre a América Latina alimentada pela
política de boa vizinhança: atrasados em relação à América do Norte, mas
com grande potencial e no caminho do progresso. Os artigos, sem dúvida,
trazem um discurso “polido” e de cunho mais geral com conteúdo pensado
e moldado para o público das revistas nas quais foram publicados, afinal,
todo relato é seletivo.
Para além dos estudos sobre a educação primária e secundária nos países
visitados, teria Washburne desempenhado alguma missão diplomática? A
exemplo do estudo de Freire Júnior e Silva (2014), a resposta possivelmente
é sim. Os relatórios da viagem e as correspondências oficiais – ainda não
localizados – podem esclarecer essa questão, além de possibilitar aprofundar
as representações de Washburne sobre a educação sul-americana.

124
O eterno “continente do futuro” perdeu um pouco de seu fascínio aos
olhos do governo dos EUA com o fim da Segunda Guerra e frente a uma
nova conjuntura internacional, apesar do intercâmbio econômico e cultural
e das relações políticas terem se mantido, todavia com novos contornos.
De qualquer forma, a rápida passagem de Washburne pela América do Sul
lança luz sobre um tipo de relação que, apesar de comum naquela época,
ainda tem sido pouco explorado no âmbito da história da educação, ou seja,
aquele que diz respeito à forma como a educação estava sendo mobilizada
no âmbito da política de boa vizinhança, e os consequentes entrelaçamentos
entre educação e diplomacia.

Referências
BERGER, M. T. Civilising the South: the US rise to hegemony in the Americas
and the roots of ‘Latin American Studies’ 1898-1945. Bulletin of Latin American
Research, v. 12, n. 1, p. 1-48, 1993.
CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
CHARTIER, R. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica,
2009.
CRAMER, G., PRUTSCH, U. Americas Unidas! Nelson A. Rockefeller’s Office
of Inter-American Affairs (1940-1946). Madrid, Frankfurt: Iberoamericana,
Vervuert, 2012.
DINES, A. Prefácio. In: S. Zweig. Brasil, um país do futuro. Porto Alegre:
L&PM Editores, 2006.
FREIRE JUNIOR, O., SILVA, I. Diplomacia e ciência no contexto da Segunda
Guerra Mundial: a viagem de Arthur Compton ao Brasil em 1941. Revista
Brasileira de História, v. 34, n. 67, p. 181-201, 2014.
GRAHAM, P. A. Progressive Education: from arcady to academe. New York:
Teachers College Press, 1967.
HALL, S. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Apicuri, 2016.
MAUAD, A. M. Genevieve Naylor, fotógrafa: impressões de viagem (Brasil,
1941-1942). Revista Brasileira de História, v. 25, n. 49, p. 43-75, 2005.

125
RABELO, R. S. Carleton Washburne e o Departamento de Estados dos
EUA: a educação latino-americana em meio à política de boa vizinhança.
In: Anais do 1º Congresso Pensamento e Pesquisa sobre a América Latina.
São Paulo, SP, 2019a.
RABELO, R. S. O ensino de matemática em um número especial da revista
The New Era. Bolema, v. 33, n. 65, p. 1109-1132, 2019b.
RABELO, R. S. The New Education Fellowship, the Progressive Education
Association, and the American Department of State: South America as part
of an awkward entanglement. comunicação não publicada e apresentada no
41st ISCHE, Porto, jul. 2019c.
RABELO, R. S.; VIDAL, D. G. A seção brasileira da New Education Fellowship:
explorando o cenário de sua criação. In: Anais XIII Congreso Iberoamericano
de Historia de la Educación, Montevideu, Uruguai, 2018.
RABELO, R. S., VIDAL, D. G. A seção brasileira da New Education Fellowship:
(des)encontros e (des)conexões. In: D. G. Vidal; R. S. Rabelo (org.). Movimento
internacional da Educação Nova. Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2020.
SADLIER, D. J. Americans All: Good Neighbor Cultural Diplomacy in World
War II. Austin, USA: University of Texas Press, 2012.
SAID, E. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
TOTA, A. P. O imperialismo sedutor. São Paulo, SP: Companhia das Letras,
2000.
TOTA, A. P. O amigo americano. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2014.
VIDAL, D. G.; RABELO, R. S. Fórmula e utopia: o movimento internacional
da educação nova. Sarmiento: Revista Galego-Portuguesa de Historia da
Educación, 2021 (no prelo).
WASHBURNE, C. W. Progressive tendencies in European education.
Department of the Interior, Bureau of Education, Bulletin 37. Washington:
Government Printing Office, 1923.
WASHBURNE, C. W. Remakers of mankind. New York: The John Day
Company, 1932.
WASHBURNE, C. Building South American friendship. Illinois Education,
Nov., p. 80a e 80d, 1942b. Carleton W. Washburne educational publications;
Michigan State University Libraries Special Collections.

126
WASHBURNE, C. Notes on a South American trip. School and Society, v.
57, n. 1463, p. 29-32, 1943a. Paul Robert Hanna papers, Box 153, Folder 12,
Hoover Institution Archives.
WASHBURNE, C. South American education. School and Society, v. 32, n. 4,
p. 97-98, 1943b. Carleton W. Washburne educational publications; Michigan
State University Libraries Special Collections.
WASHBURNE, C. What is progressive education? New York: The John Day
Company, 1952.
WASHBURNE, C. W. An autobiographical sketch. Teachers College Record, v.
72, n. 6, p. 457-486, 1971.
WASHBURNE, C. W.; MARLAND, S. P. Winnetka: the history and significance
of an educational experiment. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1963.
WASHBURNE, C. W., STEARNS, M. M. New schools in the old world. New
York: The John Day Company, 1926.

127
PARTE II
CIRCULAÇÃO DE ARTEFATOS
CAPITULO 5

A difusão mundial da carteira escolar: Brasil e


Estados Unidos da América no âmbito de uma
história transnacional (final do século XIX)

Wiara Rosa Alcântara

A proposta de investigar as carteiras escolares a partir de uma perspectiva


transnacional fundamenta-se na recusa de tomar o primado geográfico de
definição das fronteiras nacionais para compreender a constituição e expansão
da escola pública e obrigatória, na passagem do século XIX ao XX. Com
a história transnacional, fica em evidência a rede complexa de relações na
qual a escola e seus materiais encontram-se imersos.
O problema aqui levantado será analisado atentando para os aportes
da cultura material. Nesse âmbito, Ulpiano Menezes levanta questões
teórico-metodológicas que são instigadoras quando se lança mão de artefatos
materiais como documento:
qual a natureza do objeto material como documento, em que reside sua
capacidade documental, como pode ele ser suporte da informação?
[...] que tipo de informação podem os artefatos conter, especialmente
de conteúdo histórico? (MENEZES, 1998, p. 90).

131
Para o autor, os traços materialmente inscritos nos artefatos orientam
leituras que permitem inferências, pois a matéria-prima, as técnicas de
fabricação, a morfologia do artefato, os sinais de uso, os indícios de diversas
durações, selam no objeto informações materialmente observáveis sobre
a natureza e as propriedades dos materiais, bem como da organização
econômica, social e simbólica da existência social e histórica do objeto.
Nesse caso, os “objetos materiais têm uma trajetória, uma biografia”
(MENEZES,1998, p. 92) que é preciso considerar; não para recompor o
cenário material, mas para entender os artefatos na interação social. Portanto,
são fontes “excepcionais para se entender a sociedade que os produziu ou
reproduziu enquanto, precisamente objetos históricos” (MENEZES, 1998,
p. 95).
Investigar a biografia dos objetos é um procedimento fértil que pode
ser usado para perceber como em torno, neste caso, da carteira escolar
foram instituídos discursos médicos, higiênicos, pedagógicos, econômicos,
tecnológicos e comerciais. O destaque aqui será dado a estes três últimos
aspectos.
Além da abordagem da cultura material, a categoria transnacionalização
será central na análise. Bagchi, Fuchs e Rousmaniere (2014) falam em uma
virada transnacional e defendem a recontextualização da noção de espaço e
redefinição de fronteiras territoriais. Para eles, os processos de globalização
requerem novas pesquisas que vão além das narrativas históricas tradicionais
baseadas no Estado-nação.
Fuchs salienta que o espaço não pode ser visto como uma categoria
objetiva, mas como “uma forma de representação e interpretação espacial
coletiva do grupo social e da comunidade” (FUCHS, 2014, p.11). Segundo ele,
o conceito de história transnacional, como história para além das fronteiras,
refere-se a três aspectos: a) centra-se não em espaços nacionais, mas em
espaços que são mutáveis; b) considera os contextos das dependências,
relações e envolvimentos transnacionais; c) examina o desenvolvimento da
nação como um fenômeno global.
Falar de uma difusão mundial da escola no século XIX (NÓVOA;
SCHRIEWER, 2000) exige considerar relações e envolvimentos transnacionais
na produção, circulação e consumo dos objetos escolares como mercadoria.

132
Permite também compreender como a escola se tornou objeto de disputa
cultural e econômica que atravessava fronteiras. Em outras palavras, cada
nação percebia que poderia alavancar o seu desenvolvimento aumentando
sua influência cultural e econômica de modo global e as escolas foram
instâncias privilegiadas para consecução destes propósitos.
No fim do século XIX, fica em evidência a natureza tripla da modernidade,
apontada por Schriewer (2004): a) a transmissão de uma ideologia da
educação e do desenvolvimento particularmente moderna; b) a aceitação
global de modelos racionais de escolarização pública, conduzida pelo
Estado; c) e, finalmente, o processo mundial de uma expansão educacional
pela escolaridade obrigatória. Essa modernidade se expressa nos objetos
escolares, adquiridos pelos Estados para promover a expansão educacional e a
escolaridade obrigatória. Para propagação dos objetos escolares, as exposições
universais contribuíram decisivamente.
Nas exposições, um conjunto de material e mobiliário escolar, dentre eles,
as carteiras escolares, aparecem em abundância como exemplos do progresso
científico, técnico e material no campo da educação. Nesse momento, os
modelos ali apresentados são aqueles que deveriam figurar nas escolas e
países que pretendessem estar em dia com o progresso, também no campo
da instrução.
Pensar o mobiliário escolar nas exposições universais ajuda a entender a
escolaridade obrigatória, a partir da cultura material, da história transnacional
e econômica da escola, e, ilumina aspectos relevantes da constituição da escola
pública. O final do século XIX e as exposições desse período, importante
expressão da sociedade industrial, traziam uma ordem transnacional
articulada pelo comércio, pela tecnologia, pela mercadoria, mas também
pela escola.
Para desenvolver esta reflexão, lancei mão de fontes como catálogos
das indústrias de mobiliário escolar norte americanas e relatórios do júri de
exposições universais, além de ofícios e correspondências de escolas públicas
paulistas tratando da aquisição de carteiras e outros materiais escolares
produzidos por empresas americanas. Os catálogos dos materiais exibidos
nas exposições universais eram enviados às escolas que poderiam fazer seus
pedidos às empresas. Os relatórios do júri consistem em um documento

133
elaborado por especialistas, no qual descrevem os objetos que concorreram
a prêmios, bem como os motivos das premiações recebidas na exposição.
Tais relatórios indiciam a apreciação e a apropriação dos modelos de carteira
disponíveis no mercado pelos educadores brasileiros.
A partir dessas fontes foi possível saber mais sobre a aquisição, pelas
escolas paulistas, de carteiras e outros objetos escolares produzidos nos
Estados Unidos da América; sobre as empresas norte-americanas que
comercializavam carteiras escolares no período em estudo, que tecnologias
e materiais empregavam em suas mercadorias, que argumentos eram usados
pelos industriais para conquistar os diferentes Estados e suas respectivas
escolas como mercado consumidor.
Para abordar tais questões, o texto está dividido em três partes. Na
primeira, destaco as estratégias das empresas norte-americanas para ampliar,
mundialmente, o fornecimento de suas carteiras escolares, por meio dos
catálogos e das exposições universais. Na segunda, trato das patentes de
carteiras norte-americanas. Por fim, discorro sobre como as carteiras
produzidas nos EUA foram adquiridas por escolas públicas paulistas.

Catálogos e exposições universais: a difusão transnacional da


carteira escolar
No âmbito da cultura material escolar e de uma história transnacional
da escola, os catálogos, as patentes e as exposições universais formaram uma
tríade que ajuda a entender as redes de relações nas quais as carteiras escolares
estavam imersas. As exposições se constituíram em espaço privilegiado
de divulgação e propaganda de novos objetos, cujos fabricantes tinham
como alvo a escola. Os catálogos das empresas favoreceram a circulação
transnacional dos produtos comercializados, com seus respectivos preços e
formas de compra. As patentes serviam para proteger as invenções (processo
ou produto) de uma empresa das concorrentes, reservando o direito de
exploração comercial da produção intelectual pelo afastamento da cópia,
reprodução indevida.

134
Peyranne (2001) aponta a relevância de duas exposições para a questão
do mobiliário escolar: a de 1867, em Paris; e a de 1873, em Viena. O Brasil
participou das duas, sendo que o tema da última foi “cultura e educação”1.
Os EUA vão despontar nas exposições universais como o primeiro país
a se dedicar à produção de um mobiliário exclusivo para a escolas, buscando
novos padrões de higiene e conforto. Acusando a França de se debruçar
sobre a questão apenas na Exposição Universal de 1867, o inspetor geral do
ensino primário, Ferdinand Buisson (1888, p.1941), corrobora com a ideia
do pioneirismo estadunidenses ao afirmar que “em 1854, a obra de Henry
Barnard tinha chamado a atenção para a importância da boa mobília escolar”.
De acordo com Peyranne (2001, p.132), depois desse período, “toda
uma cultura nasce em torno da carteira”. Na exposição de 1867, “uma sala
é reservada ao espaço escolar. Modelos de carteira inteiramente novos são
apresentados” (PEYRANNE, 2001, p. 132). Na ocasião, segundo a autora,
a superioridade dos modelos americanos é reconhecida. Tomando como
fonte o relato de visita feito por C. Defodon2, para quem os modelos mais
marcantes provieram da América, Peyranne (2001) afirma que o destaque
foi a mesa-banco americana de Illinois.
O modelo americano apresentado em Paris é de um lugar, descrevemos
um banco sólido e confortável, cada carteira é fixada sobre um sólido
suporte de ferro [...] uma das novidades é no banco, ele se eleva de
maneira a deixar cada criança tomar seu lugar mais facilmente. Os
suportes, munidos de um sistema de cremalheira, permitem ajustar a
altura da mesa ao tamanho das crianças. É a primeira carteira de altura
variável (PEYRANNE, 2001, p.132).

1. A participação do Brasil é mencionada por Brigitte Schoroeder-Gudehus e Anne. Rasmussen


(1992).
2. Charles-Jacques Defodan foi um “pedagogo francês, nascido em Rouen 14 de maio de
1832, foi professor na Escola Normal de formação de professores de Auteuil (1872-1879),
bibliotecário do Musée pédagogique (1879- 1885); inspector primário em Paris (1885-1891);
membro da maioria das comissões de educação primária”, cf. http://www.inrp.fr/edition-
electronique/lodel/dictionnaire-ferdinand-buisson/document.php?id=2523. Acesso em:
19 ago. 2013.

135
Essa mesa-banco americano de Illinois, conterá os princípios de
fabricação de um modelo de carteira que ficará mundialmente conhecido
como carteira americana, ou seja, os pés de ferro, assento e mesa em madeira.
Peyranne (2001) situa aí o nascimento de um novo comércio, quando
os modelos americanos são comprados, depois do fim da exposição, pela
empresa francesa Hachette et Cie. Os antigos bancos sem encosto e as longas
mesas de madeira, que compunham o mobiliário de muitas escolas até então,
passam a ser, em comparação com o mobiliário moderno das exposições,
considerados impróprios à saúde física dos alunos e à organização do trabalho
escolar.
Se, em 1867, há o nascimento do comércio internacional do mobiliário
escolar com o predomínio estadunidense, em 1873, há o nascimento da
concorrência não só quanto às propostas e aos conceitos de carteira escolar,
mas também de mercado consumidor.
Ferdinand Buisson (1875, p.91) associa a “rivalidade que se exprime no
domínio do mobiliário escolar” à expressiva participação da França, nesse
domínio, a partir de então.
Numerosos países participaram desta exposição, a carteira se diversificou,
ela pode ser fixa ou com tabuleta móvel, o assento ou ambos. A invenção
e originalidade são homenageadas; cada um apresentou seu mobiliário
e argumentou as vantagens de sua própria criação. A França, na escolha
dos modelos expostos, afirma uma certa experiência neste domínio
(PEYRANNE, 2001, p.135).

Além dos modelos franceses, Peyranne (2001) apresenta os modelos


mais representativos de outros países. Segundo a autora, os modelos vindos
dos Estados Unidos “[...] adquiriram, à época, uma reputação inigualável
pela elegância e solidez” (PEYRANNE, 2001, p.138).
Dentre os modelos expostos pelas empresas americanas, ganharam
destaque a carteira Andrew, o sistema Stevens e o Sistema Ross (carteira de
Boston). Os dois primeiros modelos continham os princípios de fabricação
que marcariam o estilo de carteira conhecido mundialmente como carteira
americana. Diferentes empresas americanas, com pequenas variações nos
modelos, fabricariam carteiras de base em ferro, com a mesa integrada ao

136
banco do aluno sentado à frente dele, munida de um tinteiro e uma gaveta
fechada por uma grade.
Segundo Peyranne (2001), os “americanos” ganharam duas distinções:
o diploma de mérito concedido ao mobiliário da escola superior e da escola
normal de Boston; e uma medalha de mérito atribuída a Joseph Ross, de
Boston, por sua coleção de carteira. A medalha de mérito, de acordo com
Schoroeder-Gudehus e Rasmussen (1992, p. 88), “recompensa a qualidade e
o acabamento do trabalho, a importância da produção, a abertura de novos
mercados, o emprego de ferramentas e de máquinas avançadas ou o bom
preço dos produtos [...]”.
Além da exibição dos modelos das carteiras nas exposições, outra
estratégia importante de lucratividade era o uso de catálogos das empresas.
A empresa de Joseph L. Ross editou, em 1872, o Illustrated Catalogue of
Ross’Improved School, Church, and Vestry Furniture. Nele, além do modelo
premiado na exposição de 1867, constam, dentre outras informações, o
material de fabricação das carteiras, suas dimensões e formas de aquisição.
Na abertura do Illustrated Catalogue, o proprietário se dirige aos
oficiais da escola, professores e educadores explicando que “sempre foi seu
objetivo melhorar o mobiliário; e ele agora acredita que, em seus móveis, a
perfeição está muito próxima de ser atingida” (Illustrated Catalogue, 1872, p.
5). Resistência, durabilidade e adequação à idade e à estrutura do escolar são,
segundo Ross (1872), as grandes características desses móveis, combinadas
com um estilo de acabamento que não pode ser ultrapassado. A força e a
durabilidade são atribuídas à combinação da madeira com o ferro, utilização
de operários experientes, máquinas engenhosas e o melhor material.
O “designer e manufacturer” de mobiliário escolar ainda informa que
a maioria dos móveis foi desenhada por ele mesmo, desde 1847. Isso atesta
a durabilidade do trabalho, já que “as escolas que adquiriram o mobiliário
naquele ano ainda o têm em uso, com eficiência intacta” (Illustrated Catalogue,
1872, p. 5). Por isso, os móveis Ross são propagados no catálogo como os mais
baratos do mercado, quando se conjugam o preço, a qualidade e estilo de
acabamento. Outro atrativo é acrescido para aqueles que pretendiam fazer
encomendas à distância: a manutenção do preço.

137
Após as informações de caráter propagandístico, são dadas as instruções
de como fazer a encomenda do mobiliário escolar: 1) Devem ser indicadas
a altura das mesas e cadeiras e também a quantidade necessária de cada
altura, conforme o catálogo; 2) Apesar da existência de estoque, é necessário
fazer a solicitação com certo prazo, pois as encomendas são crescentes; 3)
Os preços indicados incluem todos os parafusos necessários para as mesas
e cadeiras dos alunos; 4) Os tinteiros para as carteiras dos alunos têm preço
adicional; 5) No preço é considerado o tipo de madeira utilizado – cerejeira
ou carvalho, envernizada ou oleada no grão de madeira; 6) O encaixotamento
terá preço extra. Os catálogos, via de regra, traziam figuras de planos de
disposição das carteiras na sala de aula.
Outra importante empresa americana, The National School Furniture
Co. A empresa desenvolvia suas atividades tanto em Nova York, quanto
em Chicago, conforme o Ilustrated Catalogue of New and Improved Styles
of School and Church Furniture. O catálogo, que data de 1872, portanto um
ano antes da exposição de Viena, acrescenta informações importantes sobre
o modelo ali exposto. Todas as carteiras tinham o novo assento dobrável,
patenteado em 20 de fevereiro de 1872. E conforme costume do comércio, o
conjunto do mobiliário escolar é apresentado como o melhor do mercado.
No texto de introdução do catálogo manifesta a intenção de fabricar
mobiliário para todo o país e também para clientes de outros países. Por isso,
foi estabelecida uma fábrica em Chicago, com venda na loja A.S. Barnes & Co.
O titular das patentes das carteiras dobráveis era John Peard, supervisor direto
do departamento de produção. Conforto e elegância são as características
atribuídas às carteiras da The National School Furniture Co. Semelhante a
Ross, a empresa informa que os pedidos devem ser feitos com antecedência
devido à grande demanda por parte de escolas e igrejas.
A quantidade de expositores de cada país que compareciam às exposições
permite concluir que o mercado do mobiliário escolar, nas últimas décadas
do século XIX, não era desprezível. A crescente concorrência exigia que
cada fábrica e empresa fosse eficiente na propaganda dos seus produtos.

138
The National School Furniture Co. apresentou em Viena o modelo The
Peard Desk and Settee Combined, descrito como “o mais aprovado estilo de
Mobiliário Escolar no Mercado” (The National School Furniture Co., 1872, p. 5).
Imagem 1 – The Peard Desk and Settee Combined

Fonte: The National School Furniture Co, 1872, p.5

Como o padrão de carteira americana que se ia forjando nas últimas


décadas do século XIX, tratava-se de uma carteira com base em ferro, mesa
e assento em madeira, com a mesa integrada com o banco do aluno assento
à frente.
As variações deste modelo consistiam em pelo menos quatro elementos:
a) embaixo da mesa não há uma gaveta fechada por uma grade, a prateleira
de livro está acessível no encosto do banco da frente; b) o assento é dobrável;
c) a carteira é móvel; d) e individual.
The National School Furniture Co., por exemplo, relacionou em seu
catálogo nove vantagens de suas carteiras sobre todas as outras no mercado.
Essas razões são indicativas tanto do que a indústria do mobiliário podia
oferecer, quanto do que a escola e os educadores almejavam encontrar na
carteira escolar. As vantagens apresentadas foram: 1) Ela economiza espaço,
pois fecha de maneira compacta; 2) Favorece a limpeza, pois a mesa não é

139
fixa no chão; 3) A prateleira de livro está sempre acessível; 4) A dobra da
mesa aumenta muito sua durabilidade; 5) Elas são construídas com referência
especial para o conforto e a saúde do aluno e o assento e o encosto são assim
moldados para garantir facilidade ao educando que, inconscientemente, é
obrigado a assumir uma posição ereta e saudável; 6) A dobradiça do assento
é patenteada e silenciosa, construída de forma a ser facilmente apertada
quando, através do uso longo e contínuo, o assento fica solto e frouxo; 7)
Deixam as salas de aulas espaçosa, confortável e elegante; 8) A madeira é
de qualidade e tem acabamento elegante; 9) É possível comprar a carteira
desmontada e economizar no frete.
A empresa ainda destaca a “Patente de Assento Conjunto”, em 20 de
fevereiro de 1872, o qual, “por meio de uma aplicação de pastilhas, é totalmente
livre de ruído e é, sem exceção, a mais forte dobradiça no mercado. Ela nunca
se tornará ruidosa e é o único assento dobrável sobre o qual isso pode ser
dito” (The National School Furniture Co., 1872, p.7).
Por meio do Official Catalogue of the American Department (BREWER,
1873, p. 99-114)) divulgado na exposição de Viena, em 1873, tem-se notícia
de todos os expositores estadunidenses que, no período, atuavam no ramo
do mobiliário escolar. Quais sejam3:
Relatório de instruções em bairros e cidades, distrito de Boston.
“Mobiliário de escola compreendendo carteiras simples e cadeiras de
duas dimensões e modelos diferentes para os alunos; uma carteira para
desenhar, uma mesa de professor com uma carteira para ensinar […]”
(BREWER, 1873, p.100).
Manufacturers of School Furniture, Apparatus, & C.
A. H. Andres & Co., Chicago, Illinois
Três caixas de mobiliário escolar, carteiras e bancos.
National School Furniture Co. New York City
Completo conjunto de móveis para uma sala de aula, incluindo carteiras
de professores e 48 carteiras e bancos para alunos.

3. Aqui, optei por manter a ordem da relação conforme aparece no catálogo

140
New-York Silicate Bookslate Co. New York City Ardósias em silicato
para as escolas.
S. W. Nichols, Boston, Massachusetts. Uma carteira de parede.
H. A. OESTERLE, PHILADELPHIA, Pennsylvania
Conjunto de livros de mão e de bolsas a tiracolo para livros escolares.
ROBERT PATON, New York City Carteira escolar.
H. REFFETT, Hoboken, New-Jersey
Moldura fracionada, “Moldura Russa Doppel” e máquina calculadora.
JOSEPH L. ROSS, Boston, Massachusetts Móveis escolares de vários
tipos.
G. W. SHATTUCK, Boston, Massachusetts Carteiras escolares, bancos
& C.
W. A. SLAYMAKER, Atlanta, Georgia Carteira escolar e outros móveis.
JOHN CHARLES SPARR. Tinteiro melhorado.
F. SOCHNER, Hamilton, Ohio. Patente Ruler.
E.M.THURSTON & Co. Providence, Rhode Island Carteira escolar
e bancos.
OSEPH TROLL, Belleville, Illinois Telúrio Automático do “Troll” .
WHITE, R. Boston, Massachusetts
Ventilador patenteado para uso em salas de aula não fornecido com
hélices ventilantes.
WILLIAMS, T.H. Plymouth, Indiana Carteira escolar & C.

A relação de expositores e industriais estadunidenses na exposição de


Viena permite o cruzamento de informações com os catálogos produzidos
por essas fábricas de mobiliário escolar. Mais que isso, nas exposições, os
Estados Unidos não deixam dúvidas quanto ao seu domínio na produção da
carteira escolar fazendo com que outros países, na corrida pelo domínio dos
mercados, buscassem também seu destaque seja pela semelhança (produção
de carteira pé de ferro fundido), seja pela diferença (carteira toda em madeira).

141
Os catálogos não se restringiam a trazer a relação dos produtos e
respectivos preços. Continham uma série de comentários adicionais
e explicativos sobre alguns produtos em especial e comentários gerais
intentando convencer os clientes da superioridade das mercadorias ofertadas
pela empresa.
Essas críticas entre os países podem ser vislumbradas no catálogo sobre
Le Mobilier Scolaire a l’Exposition Internationale de 1878, em Paris. Apesar de
ser um catálogo de preços do mobiliário do sistema Lenoir, em sua Introdução
faz uma abordagem sobre o desenvolvimento do mobiliário escolar até
aquele ano, além de uma breve descrição do mobiliário apresentado por
outros países. O catálogo da empresa francesa contém uma depreciação
das carteiras, mas o grande rival eram os Estados Unidos. Como os demais
países, a França queria concorrer com os Estados Unidos pelo rentável
mercado do mobiliário escolar.
Em tom mais moderado o catálogo Le Mobilier Scolaire a l’Exposition
Internationale de 1878 (1878, p.13) esclarece que
Por mais de vinte anos, a questão do mobiliário escolar foi suscitada
nos Estados Unidos. Desde então, outros países se dedicaram ao estudo
científico desta importante questão no desenvolvimento das escolas em
termos de higiene e bom ensino. O mobiliário para escolas tornou-se
então objeto de atenção por todas as nações preocupadas com a emulação
louvável. Esta preocupação geral teve o efeito imediato de fazer emergir
uma indústria especial, aquela da fabricação do mobiliário escolar.

O lugar de destaque que o mobiliário escolar adquiriu nas exposições


universais sinaliza que a escola ganhou a atenção não somente dos Estados,
mas da indústria que viu nela um poderoso mercado consumidor. Daí, a
quantidade de fábricas especializadas na produção de diferentes modelos
de carteira.
Segundo Lawn e Grosvenor “[…] há um discurso poderoso sobre a
escola como lugar de consumo, crescente ao longo de décadas, especialmente
em períodos de construção e de inovação escolares, mas presente agora na
nova forma de encarar a educação como um serviço lucrativo” (LAWN;
GROSVENOR, 2005, p. 8).

142
Com isso, empresas comerciais reconheceram a escola como lugar de
publicidade e de desenvolvimento de novos clientes (LAWN, 2005). Fazendo
uma exploração histórica das exibições educacionais Ian Grosvenor (2005,
p.165) afirma que “educação no mundo contemporâneo significa negócios”.
As exposições, para ele, permitem pensar a relação entre educação e consumo
e têm um papel importante na promoção de ideias educacionais, objetos e
práticas. “A proposta era ‘ver’ e através do ver, acreditar e, acreditando, ter
um modelo de uma boa prática para seguir” (GROSVENOR, 2005, p.174).
Cada empresa objetivava que os clientes acreditassem em seu modelo
de carteira como o mais inovador e higiênico. A respeito dessas disputas no
âmbito das Exposições, Josette Peyranne (2001, 141) afirma:
Estas primeiras Exposições são muito inovadoras nos mobiliários
apresentados. Cada país desejava ser referência neste domínio. Eles se
copiavam, criticavam, concebiam, propunham claramente, tentavam
vender. As várias honras e os prêmios distribuídos na Exposição de Viena
traduzem o novo interesse em relação à carteira. De fato, mobiliário
escolar é uma parte integrante da sociedade infantil escolarizada de
meados do século XIX.

A busca pela conquista de novos mercados consumidores se torna


evidente nas exposições universais e, a Exposição de 1873, em Viena, é
exemplar a esse respeito. Devido à acirrada concorrência, proteger as
invenções de cópias e reproduções não autorizadas era fundamental para
a sobrevivência das empresas. Para entender a corrida dos países pela
hegemonia no mercado de mobiliário escolar é preciso não desconsiderar
as patentes de carteira escolar.

Patentes de carteiras norte-americanas: a proteção


transnacional das invenções
Abordar a questão das patentes é elucidativo para o problema aqui
proposto, pois ela evidencia, de modo ímpar, a estreita relação que se foi
estabelecendo, a partir da segunda metade do século XIX, entre escola e
indústria; a emergência da escola como importante mercado consumidor;

143
e a transnacionalização dos objetos escolares, no caso, as carteiras, cujos
modelos poderiam ser reproduzidos por pessoas do mundo inteiro.
A patente é um privilégio de invenção cuja concessão tem como um dos
requisitos a industriabilidade. “A invenção deve ser suscetível de exploração
industrial. Deve ter utilidade” (REQUIÃO, 2011, p. 366). Em outras palavras,
“a industriabilidade é a qualidade da invenção de permitir uma aplicação
industrial, isto é, de ser utilizada em um ramo qualquer de produção”
(REQUIÃO, 2011, p. 367).
Esse “diploma oficial que assegura o monopólio da exploração do
invento” (REQUIÃO, 2011, p. 360) é de suma relevância para a indústria e
para o inventor.
A patente confere ao seu titular o direito de impedir terceiro, sem o seu
consentimento, de produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar
com estes propósitos: I – produto objeto de patente; II – processo ou
produto obtido diretamente por processo patenteado.

Pode-se imaginar a importância desse instituto no contexto das


exposições universais e da expansão da escola de massa no mundo ocidental.
O problema não se limitava à reprodução do todo ou de parte do produto
por empresas concorrentes. Os esforços para patentear a carteira ou partes
de mecanismos nela empregados evidenciam que não era raro os governos,
de posse dos catálogos das empresas, selecionarem um modelo de carteira
e encomendar a reprodução dele a marceneiros locais, barateando assim
os custos.
É precisamente no contexto das exposições universais e da
transnacionalização do consumo que surge a discussão sobre a proteção
dos direitos de propriedade intelectual. Se, de um lado, as exposições e os
catálogos favoreciam a comercialização mundial dos produtos; de outro,
deixavam as empresas suscetíveis a cópias indevidas de suas invenções, o
que significaria uma transferência de lucro.
A proteção dos direitos de propriedade intelectual tem início no
fim do século XIX, com as convenções de Paris (1883 – Propriedade
Industrial) e Berna (1886 – Obras Literárias e Artísticas), ambas com fins
preponderantemente jurídicos (BASSO, 2000). Das invenções dependiam

144
não só “a expansão industrial e tecnológica” (BASSO, 2000, p. 23), mas
também o domínio de um setor do mercado por um país ou uma empresa.
“O aumento da proteção do direito de propriedade intelectual e a certeza da
proteção ensejaram o incremento do poder do mercado e o desenvolvimento
do comércio internacional” (BASSO, 2000, p. 26).
No fim do século XIX, a expressão “propriedade industrial” designaria
os direitos privados para defesa da indústria e do comércio, como os
direitos de patentes, de desenhos e modelos de fábrica ou ornamentais,
desenhos e modelos de utilidade e marcas, defesa contra a concorrência
desleal e contra as falsas indicações de proveniência dos produtos e
outras regras afins (BASSO, 2000, p.69).

A descrição, muitas vezes minuciosa, das carteiras, de sua fabricação


e peças nas exposições e catálogos servia como poderosa ferramenta de
propaganda, mas gerava como efeitos colaterais, a possibilidade e a realidade
da cópia dos modelos por marceneiros e outras empresas, de pequeno porte
ou não. Poderiam os visitantes das exposições ou aqueles que tivessem
acesso aos catálogos, como por exemplo, educadores de diversos países, de
posse dos desenhos das carteiras, mandar reproduzi-las, lançando mão de
uma opção local mais barata e com menor custo de frete. Essa opção, via de
regra, eram os marceneiros, que também se proliferavam com a expansão
das cidades nas últimas décadas do século XIX e início do XX.
Não é por acaso que muitas indústrias e fábricas de mobiliário escolar
possuem patentes de suas carteiras e não hesitam em mencionar nos catálogos
as punições e processos nos quais incorreriam aqueles que assim procedessem.
Com isso, o público é advertido:
O público está prevenido contra as produções ou as compras de qualquer
mobiliário escolar com o tampo da carteira virado contra o encosto do
banco, então formando o assento, presente em outras que não a Perad’s,
bem como contra todas as demais infrações em suas patentes; e aqueles
que venderam ou compraram serão processados de acordo com as penas
da lei (The National School Furniture Co.,1872, p. 7).

145
Outra forma de abrir novos mercados nos países mais distantes e
evitar a reprodução indevida era oferecer carteiras com custo mais baixo,
mantendo algumas características do mobiliário mais sofisticado, porém com
material inferior. É o caso da The Economic Desk, produto da The National
School Furniture Co., para aqueles que desejassem “um estilo barato e ainda
substancial de mobiliário” (The National School Furniture Co., 1872, p. 12).
O assento dessa carteira era feito de ripas, curvado, dobrável, com a
mesma articulação conjunta e silenciosa das melhores mesas. “Nós fornecemos
esta carteira a um preço 20 por cento menor que a de nossos estilos regulares
e muito abaixo do preço de qualquer outra carteira fabricada” (The National
School Furniture Co., 1872, p. 12). Na pretensão dos fabricantes, era um
modelo para desafiar e dispensar qualquer competidor.
A questão da propriedade industrial estava de tal modo vinculada
às exposições universais que, em 1889, houve, no âmbito da Exposição
Universal de Paris, o Congresso Internacional da Propriedade Industrial,
na mesma cidade, sob a direção do Ministério do Comércio, da Indústria
e das Colônias francesas.
Antes disso, porém, os Estados Unidos logo tomaram providências
para solucionar o problema da reprodução da invenção alheia. Em 1870,
muitas indústrias de carteira escolar norte-americanas já possuíam patentes
de seus produtos – patentes dos tinteiros, assentos dobráveis, dentre outros.
Nos Estados Unidos, “em 1787, sua Constituição assegurou o direito dos
inventos como um estímulo ao desenvolvimento industrial” (REQUIÃO,
2011, p. 361). Referência mundial no ramo, quais as novidades produzidas
pelas indústrias americanas de mobiliário escolar?
A empresa Geo & C. W. Sherwood, em seu catálogo de 1864, destaca
um elemento patenteado da Pupils’ desks. “Esta carteira é bem acabada,
geralmente feita de cerejeira, produzida com nosso tinteiro patenteado,
parafusos de fixação, tudo completo” (Geo. & C. W. Sherwood, 1864, p. 8).
Joseph L. Ross era outro importante negociante norte-americano do
ramo de carteira. Ele também obteve a patente de um tinteiro. “O melhor em
uso! Superior a qualquer tinteiro usado até então e possui todos os méritos
atribuídos a ele” (ROSS, 1872, p. 51).

146
A Casa de Mobiliário Escolar J. A. Bancroft & Co., de igual modo,
arrogava para si o melhor tinteiro patenteado – o “Andrew’s New Patent
Ink Well”. “O novo e melhor tinteiro que não só combina as excelências e as
soluções dos defeitos daqueles atualmente em uso, mas que também adiciona
vários recursos novos e importantes, nunca antes vistos” (J. A. Bancroft &
Co., 1870, p. 17). Além do tinteiro, havia duas carteiras patenteadas, como
Soper’s Patent School Desk e Andrews’ Patent Graduated Desk. Nota-se que
a patente agregava de tal forma valor ao produto que passava a compor o
nome do mesmo.
Algumas empresas americanas produziam mobiliário tanto para a escola
como para igrejas. É o caso da J. C. BROOKE Manufacturers. Sua principal
carteira era a New Excelsior Desk, feita em seis tamanhos. “A dobradiça do
assento é certamente a melhor no mercado, patenteada em 8 de abril de
1879. Ela funciona perfeitamente, de forma suave e sem fazer barulho” (J.
C. Brooke, 1884, p. 8).
A Union School Furniture Company, na propaganda de sua carteira
Automatic, também destaca a dobradiça, assegurando que é uma carteira
notável, pois
embora no mercado há relativamente pouco tempo, ela já foi adotada
por muitas das principais escolas do país, e já conquistou o seu caminho
em Estados distantes e em outros países. Ela cria entusiasmo sempre
que apresentada, não só porque é nova, mas porque é tão obviamente
superior, em princípio, e em construção do que qualquer outro banco.
Desde que os assentos rebatíveis foram inventados, o problema tem sido
o de melhorar a dobradiça (Union School Furniture Company, 1889, p. 4).

A Union School Furniture Company promete ter resolvido o problema,


de que é prova sua patente da dobradiça do assento. Segundo a empresa,
as insatisfações permanecem quanto aos assentos das carteiras de outros
fabricantes, embora prometam “vários dispositivos a fim de tornar a
articulação mais forte, menos suscetível ao desgaste e menos ruidosa” (Union
School Furniture Company, 1889, p. 4). Na Automatic, “toda dificuldade é
afastada [...] Não há mais fraqueza, flacidez, movimento desajeitado e ruído.

147
Há, em vez disso, resistência, durabilidade, um movimento natural, fácil, e
nenhum ruído” (Union School Furniture Company, 1889, p. 4).
O catálogo dessa empresa é de 1889, mas nele não é possível identificar
de que ano é a patente da dobradiça tão aclamada. O emprego da dobradiça
parece ter sido uma atrativa inovação técnica que tornava a carteira com
assento dobrável diferenciada. Em 1872, The National School Furniture
Co., também obteve a patente de seus assentos dobráveis. Essa informação
encontra-se em uma nota inicial de advertência ao público quanto a
Certos vendedores inescrupulosos de móveis comuns que estão se
esforçando para impressionar a comunidade com a ideia de que eles
controlam todas as combinações de elevação do assento. Advertimos
o público contra essa fraude audaciosa e insistimos nas vantagens de
nossos assentos integrados (The National School Furniture Co.,1872, p. 12).

Do excerto acima se depreende que o industrial, ao explicitar que o


seu produto, ou parte dele, era patenteado tinha em vista não somente sua
proteção. A patente era um elemento de vantagem na corrida pela garantia
e pela conquista de mercado.
Os Estados Unidos estavam tão à frente na produção industrial do
mobiliário escolar que, ainda em 2 de fevereiro de 1869, foi patenteada a Peard’s
Desk. John Peard era o titular da patente da carteira dobrável e também o
supervisor do departamento de produção da The National School Furniture
Co. A Sterling School Furniture Co. possuía uma dobradiça patenteada na
carteira (The Peerless (Sterling School Furniture Co.,1875, p. 4).
O grande adversário das carteiras dobráveis era o tempo, que as deixava
barulhentas e desconfortáveis. A Peard’s Desk foi “construída para ser
facilmente apertada ao longo do tempo” (The National School Furniture
Co., 1872, p. 6). Por isso, “é absolutamente a única dobradiça silenciosa
do mercado, e continuará a ser assim” (The National School Furniture Co.,
1872, p. 6).
Diversas patentes podiam ir se justapondo em um mesmo produto, pois
a novidade poderia estar em suas engrenagens e partes. No caso da Peard’s
Desk, em 20 de fevereiro de 1872, foi patenteado seu assento integrado.
Apesar da patente já implicar em proibição a terceiros de “produzir, usar,

148
colocar à venda, vender ou importar com estes propósitos produto objeto de
patente” (The National School Furniture Co., 1872, p. 7), em seus catálogos,
muitos industriais reforçam as punições a que estariam sujeitos aqueles que
assim procedessem.
Essa empresa possuía outra carteira patenteada em 23 de maio de 1871,
The Study Desk. Sua armação tinha a finalidade de evitar a “encurvatura dos
ombros e compressão do tórax” (The National School Furniture Co., 1872, p. 11).
Isso porque as questões ergonômicas e higiênicas não eram alvo somente
das preocupações de educadores, médicos e higienistas. O discurso sobre
o corpo do cidadão também era utilizado como meio de propaganda das
carteiras – um produto que não gerava deformidades no corpo da criança.
No caso do Brasil, num primeiro levantamento no Arquivo Nacional do
Rio de Janeiro, a primeira patente de carteira escolar, foi concedida a Amando
de Araújo Cintra Vidal, em 1889. A partir desse ano até 1907, localizei 20
pedidos de privilégio para carteira escolar (ALCÂNTARA, 2014).
Isso indica a forte concorrência não apenas das grandes fábricas
americanas e francesas, mas também de empresas e fabricantes brasileiros.
Sinalizam também uma efervescência no mercado de mobiliário escolar
no Brasil nas últimas décadas do século XIX. É importante destacar que o
Brasil não se insere nessa problemática da criação das condições físicas de
funcionamento das escolas como um reprodutor de modelos de carteiras
apresentadas nas exposições universais. É como inventor e protagonista que
o país se manifesta, tanto no mercado, quanto nas exposições universais e
locais.
Todavia, mesmo havendo já uma crescente produção de carteira
escolar em São Paulo, nas últimas décadas do século XIX, os ofícios e as
correspondências de escolas públicas paulistas indiciam a compra deste
mobiliário de empresas norte-americanas.

Do produto à ideia: o consumo de carteiras americanas nas


escolas públicas paulistas
No último decênio do século XIX, embora fosse crescente o número de
fábricas de carteira escolar em São Paulo e no Brasil, ainda se tem notícia de

149
importação de carteiras americanas. Em 19 de junho de 1893, Miss. Marcia
Browne, professora-diretora da escola modelo anexa à Escola Normal de
São Paulo, pede autorização a Cesário Motta para ir ao seu país de origem
e visitar a Exposição Universal de Chicago. A estadunidense alegou que
pretendia, na referida exposição, estudar as mobílias da França, Bélgica,
Suíça, Alemanha e Estados Unidos4. É possível que desta viagem tenha
resultado a compra de mobiliário e diversos objetos para a Escola Normal
e para a escola modelo anexa, como se lê no oficio número 103 da Escola
Normal de São Paulo, do ano de 18945.
Também no ofício número 150, de 16 de dezembro de 1895, o diretor
da Escola Normal, Gabriel Prestes informa ao Secretário de Estado dos
Negócios do Interior, Cesário Motta:
Tenho a honra de enviar-vos com este as facturas e os respectivos
conhecimento de 128 caixas de móveis escolares e apparelhos de
ensino, destinado á escola modelo complementar anexa a esta eschola,
adquiridos nos Estados Unidos por intermédio do Dr. H. Lane e ordem
do governo. Como vereis pelos conhecimentos juntos, essa encomenda
foi expedida pelo Vapor “Port Darwin” que já deve ter chegado a Santos6.

Como se lê no trecho acima, além de Miss. Browne, outro norte-


americano ligado à Escola Americana, Horace Lane, tinha relações estreitas
com a administração pública paulista e serviu de intermediário na compra
de móveis e objetos, nos Estados Unidos, para escolas públicas paulistas.
Embora fosse bastante custosa a importação de carteiras, dado o peso
e tamanho dos volumes para frete e encaixotamento, não constituiu uma
prática isolada naquela última década do século XIX. No caso do ofício 150,
foram 128 caixas de móveis escolares.
Em outro ofício, o de número 129 de 20 de junho de 1895, é o Secretário
do Interior, Cesário Motta, que autoriza o Diretor Geral da Instrução Pública

4. Fonte: APESP. Série Manuscritos. Secretaria do Interior. Escola Normal. Ano 1892.
Ordem = 7135
5. Fonte: APESP. Série Manuscritos. Secretaria do Interior. Escola Normal. Ano 1892.
Ordem = 7135
6. Fonte: APESP. Série Manuscritos. Secretaria do Interior. Escola Normal. Ano 1892.
Ordem = 7135

150
dizendo: “Em resposta ao vosso ofício no 604, de 14 do corrente autoriso-vos
a enviardes 120 carteiras-bancos, das que vieram dos Estados Unidos, 60
para cada um dos grupos escolares de Itu”7.
Esse ofício indica que não apenas a Escola Normal da Capital foi
contemplada com as modernas carteiras americanas. Grupos escolares do
interior também o foram. Confrontando as informações do ofício n.. 150 da
Escola Normal e 129 da Secretaria do Interior percebe-se que se trata de duas
compras diferentes no mesmo ano, pois este trata de uma mercadoria que
já se encontrava em São Paulo no mês de junho de 1895, enquanto aquele
trata de mercadoria que chegaram no porto de Santos em dezembro de 1895.
Ou seja, naquele mesmo ano pelo menos duas importações de móveis e
carteiras escolares americanas foram feitas pela Secretária do Interior para
escolas públicas paulistas.
A autorização constante no ofício n. 129 provavelmente tenha sido
referente a um pedido feito em dezembro de 1894, no qual o inspetor do
18º distrito literário solicita 60 carteiras americanas para o primeiro grupo
escolar masculino de Itu e 45 carteiras americanas para o segundo grupo
escolar feminino da mesma localidade, como se lê na correspondência
transcrita a seguir.

7. Série Manuscritos. Instrução Pública. Ofícios do Governo ao Inspetor Geral. Anos


1894-1896. Ordem – 4992.

151
Secretaria do Estado dos Negócios do Interior São Paulo,
19 de dezembro de 1894

Autorização ao inspetor do 18º distrito literário para adquirir os


móveis constantes da inclusa relação, mesmo as carteiras que irão
depois.

Relação da mobília necessária para as escolas de Itu Para o primeiro


grupo escolar (sexo masculino)
- 60 carteiras americanas
6 poltronas
1 armário
6 cadeiras ordinárias

Para o 2º grupo escolar Dr. Cesário Motta (sexo feminino)


- 45 carteiras americanas
6 mesas pequenas
6 poltronas
6 cadeiras ordinárias
1 armário
2 quadros-negro
3 relogios de parede

Fonte: Série Manuscritos. Instrução Pública. Ofícios do Governo ao Inspetor Geral.


Anos 1894-1896. Ordem – 4992.

No ano de 1896, receberam carteiras americanas as duas seções do grupo


escolar de São José dos Campos, um total de duzentas8; quatro escolas da

8. Série Manuscritos. Instrução Pública. Ofícios do Governo ao Inspetor Geral.


Anos 1894-1896. Ordem – 4992

152
cidade de Bragança, duzentas carteiras9; grupo escolar Luiz Leite de Amparo
(30 carteiras).
No inventário do ano de 189510, da Escola Normal de São Paulo, constam
363 carteiras escolares americanas, 355 bancos escolares americanos, 11
carteiras americanas para professores, 120 cadeiras americanas que servem
no salão nobre, 120 cadeiras americanas de braço que servem no anfiteatro, 11
cadeiras americanas de mola e palhinha, 51cadeiras americanas envernizadas
de amarelo.
Há notícias da importação de carteiras americanas também no Rio de
Janeiro. Pelas informações do jornal O vulgarisador sabe-se que
[...] a casa commercial dos Srs. Cunha, Guimarães & C., á rua da
Quitanda, n.68, que importa grande porção destes gêneros [carteiras]
americanos, tem fornecido já, por ordem da presidência da provinca do
Rio de Janeiro, á directoria da instrução publica, carteiras-bancos para
mais de trinta escolas [...] O Collegio Pedro II comprou 100 carteiras-
bancos para 136 alumnos. A
Escola Polytechinica comprou em 1876 carteiras americanas para 200
alumnos e este anno mais 150 para igual numero, achando-se por
consequência regularmente mobiliada11.

O mesmo número do jornal traz uma imagem de uma carteira americana,


como se vê a seguir.

9. Série Manuscritos. Instrução Pública. Ofícios do Governo ao Inspetor Geral.


Anos 1894-1896. Ordem – 4992
10. ESCOLA NORMAL CAETANO DE CAMPOS. Inventário de Bens, 1895
11. RIO DE JANEIRO. O vulgarisador, n.29 – 30 de out. de 1878, p.228.

153
Imagem 2 – Carteira americana

Fonte: Rio de Janeiro, O vulgarisador, n.29 – 30 de out. de 1878, p.229.

Nos casos das carteiras americanas compradas até o fim do século


XIX, conforme se lê no jornal e nos ofícios das escola públicas paulistas, é
possível afirmar que uma parte significativa delas foi importada e fabricada
por empresas norte-americanas. Avançando-se no século XX, o significante
“carteira americana” não necessariamente pode ser interpretado como
artefatos produzidos nos Estados Unidos.
Mesmo com toda a discussão a respeito das patentes, no âmbito de um
movimento transnacional, a designação “carteira americana” foi se deslocando
cada vez mais de um produto específico vendido por uma empresa norte-
americana para designar uma ideia. Do ponto de vista da produção material,
via de regra, a carteira americana seria fabricada com pé de ferro fundido,
assento e superfície de trabalho em madeira, tinteiro e gaveta para guardar
livros. Do ponto de vista da produção de sentido, incorporou uma ideia. A
ideia de uma moderna carteira escolar para uma escola moderna.
É o que se nota, por exemplo, nas carteiras “Brazil”, fabricada pela
empresa paulista Eduardo Waller & Cie; na Carteira Paulista, da empresa
Luiz Mellone & Cie; na carteira Ypiranga, da empresa José Refinetti, Irmão
& Co., todas atuando em São Paulo nas três primeiras décadas do século XX.

154
Imagem 3 – Carteira Brazil (Eduardo Waller & Comp)

Fonte: Centro de Referência em Educação Mário Covas

Comparando-se as imagens 1 (carteira americana premiada na Exposição


Universal de Viena, em 1873), 2 (carteira americana divulgada no jornal O
vulgarizador, em 1878) e 3 (carteira Brazil fabricada em São Paulo no início
do século XX), percebe-se a consolidação de um mobiliário cujo design se
difundiu em escala transnacional.
Nós três modelos, a base da carteira é de ferro fundido, o assento e a
mesa de madeira, o assento é dobrável, a mesa é integrada com o banco
do aluno assento à frente, tinteiro e gaveta para guardar livro. As variações
eram poucas. Na carteira Brazil, por exemplo, a gaveta para guardar livros
estava embaixo da mesa e fechada por uma grade.
É a transnacionalização deste modelo, a despeito das restrições iniciais
das leis de patentes, que permite dizer que a carteira americana deixou de
ser um produto e se tornou uma ideia, uma ideia que ultrapassou fronteiras.

Considerações finais
A carteira escolar, a partir da segunda metade do século XIX, compõe,
de modo intrínseco, a compreensão de escola moderna de modo que o

155
espaço da sala de aula, em diversos países do Ocidente é organizado com a
distribuição de carteiras escolares. Isso conduziu a uma necessidade crescente
e mundial por este novo mobiliário. Nesse cenário, emergiram as indústrias de
mobiliário escolar que viram na escola clientes promissores de seus produtos.
Tais indústrias, por meio das exposições universais e dos catálogos
tiveram um alcance transnacional. Neste trabalho, o destaque foi dado às
empresas norte-americanas, fabricantes de carteira escolar pela posição
hegemônica que seus modelos de carteira assumiram no período. Todavia,
além de adquirir as carteiras americanas, o Brasil desde o fim do século XIX,
se apresentou como fabricante de novos modelos de carteira escolar, inclusive
empregando novos sentidos e adaptações ao modelo da carteira americana.
Esse movimento transnacional de adaptações de um modelo
hegemônico da carteira americana se justifica porque, nas palavras de
Ulpiano Meneses (1998, p.91), “seria vão buscar nos objetos o sentido dos
objetos”. Para ele, os únicos atributos intrínsecos nos artefatos são aqueles
de natureza físico-química. Meneses (1998, p. 91) continua esclarecendo
que “os traços materialmente inscritos nos artefatos orientam leituras que
permitem inferências diretas e imediatas sobre um sem-número de esferas
de fenômenos”.
Por isso, os objetos devem ser entendidos na interação social, na rede
de relações que lhes dá suporte. Isso nos permite compreender, como
Meneses (1998), que se os atributos não são inerentes aos objetos, eles são
historicamente selecionados e mobilizados pelas sociedades e pelos grupos
nas operações de produção, circulação e consumo. O que significa que nós
não apenas produzimos a moderna carteira escolar; produzimos os sentidos
atribuídos a ela. Nós não apenas fazemos circulação transnacionalmente a
carteira escolar; nós produzimos os sentidos por meio dos quais as carteiras
deveriam/poderiam circular. Nós não consumidos apenas os produtos;
consumimos as ideias que eles ensejam. A carteira é uma ideia.

Referências
ALCÂNTARA, Wiara Rosa Rios. Por uma história econômica da escola: a
carteira escolar como vetor de relações (São Paulo, 1874-1914). 2014. 339 f.

156
(Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São
Paulo, São Paulo. 2014.
BAGCHI, Barnita; FUCHS, Eckhardt; ROUSMANIERE, Kate (org.).
Connecting Histories of Education: Transnational and Cross-Cultural
Exchanges in (Post-) Colonial Education. Nova Iorque: Berghahn Books,
p. 225, 2014.
BASSO, Maristela. O Direito Internacional da Propriedade Intelectual. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2000.
BUISSON, Ferdinand. Rapport sur l’instruction primaire à l’Exposição
Universelle de Vienne em 1873. Paris: Imprimerie Nationale, 1875.
BUISSON, Ferdinand. Dictionnaire de Pédagogie et d’instruction primaire.
Paris: Librairie Hachette et Cie., Parte I, Tomo II, 1888.
FUCHS, Eckhardt. History of Education beyond the nation? Trends in
Historical and Educational Scholarship. In: BAGCHI, Barnita; FUCHS,
Eckhardt; ROUSMANIERE, Kate (org.). Connecting Histories of Education:
Transnational and Cross-Cultural Exchanges in (Post-)Colonial Education.
Nova Iorque: Berghahn Books, p. 11-26, 2014.
GROSVENOR, Ian. Pleasing to the Eye and at the Same Time Useful in
Purpose: a historical exploration of educational exhibitions. In: LAWN,
Martin; GROSVENOR, Ian. Materialities of Schooling: Design, Technology,
Objects, Routines. Oxford: Symposium Books, 2005.
LAWN, Martin. A Pedagogy for the public: the place of objects, observation,
mechanical production and cupboards. In: LAWN, Martin; GROSVENOR,
Ian (éd.). Materialities of Schooling: design, technology, objects, routines.
Oxford: Symposium Books, p.145- 162, 2005.
LAWN, Martin; GROSVENOR, Ian (org.). Materialities of Schooling: design,
technology, objects, routines. Oxford: Symposium Books, 2005. (Comparative
Histories of Education).
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Memória e cultura material: documentos
pessoais no espaço público. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n.21, p.
89-104, 1998.
NÓVOA, António; SCHRIEWER, Jürgen (org.). A difusão mundial da
escola – alunos professores - currículo - pedagogia. Lisboa: EDUCA, 2000.

157
PEYRANNE, Josette. Le mobilier scolaire du XIXe siècle a nos jours: contribution
a l’étude des pratiques corporelles et de la pédagogie à travers l’évolution du
mobilier scolaire. Lille: ANRT, 2001.
REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 30a ed. São Paulo: Saraiva,
2011.
SCHOROEDER-GUDEHUS, Brigitte; RASMUSSEN, Anne. Les fastes Du
progrès: guide des expositions universelles, 1851-1992. Paris: Flammarion, 1992.
SCHRIEWER, Jürgen. L’internationalisation des discours sur l’éducation:
adoption d’une “idéologie mondiale” ou persistence du style de “réflexion
systémique” spécifiquement nationale? Revue Française de Pédagogie. Paris,
n.146, p. 7-26, janvier-février-mars, 2004.

Fontes
ALMANAK ADMINISTRATIVO, Mercantil e Industrial do Rio de
Janeiro, do ano de 1898 e indicador para o ano de 1898. Rio de Janeiro:
Companhia Typographica do Brazil. Disponível em: http://hemerotecadigital.
bn.br/acervo-digital/almanak-administrativo- mercantil-industrial-rio-
janeiro/313394. Acesso em: 20 set. 2013.
Biblioteca Nacional Digital Brasil
Bibliotèque Nationale de France
BREWER, Eben. Vienna Universal Exhibition de 1873. Official catalogue of the
American Department. Nova Iorque: J. M. Johnson & Sons, p. 99-114, 1873.
BROOKE, J.C. Catalogue church school and hall furniture. Cincinatio: The
Firm, 1884.
GEO & C. W. SHERWOOD. A descriptive and illustrated catalogue of
school furniture. Chicago: Tribune company’s printing establishment, 1864.
EXPOSITION DE 1878. Le Mobilier Scolaire à l’Exposition Internationale
de 1878. Disponível em: gallica.bnf.fr / Bibliothèque Nationale de France.
Acesso em: 27 fev. 2013.
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
J.A.BANCROFT & CO. Descriptive and Illustrated Catalogue of School
Merchandise, Furniture, apparatus, Charts, & C. Philadelphia: The Company,
1870.

158
ROSS, JOSEPH L. Illustrated Catalogue of Improved School, Church, and
Vestry Furniture. Boston: Hollis & Gunn, Book and Job Printers, 1872.
STERLING SCHOOL FURNITURE CO. Price list of school furniture. Albany/
New York, 1875.
THE NATIONAL SCHOOL FURNITURE Co. Illustrated Catalogue of New
and Improved Styles of School and Church Furniture and School Apparatus.
New York/Chicago, 1872.
UNION SCHOOL FURNITURE COMPANY. Descriptive catalogue of school
furniture and supplies. Michigan: Factory and Office, Battle Creek, 1889.

159
CAPÍTULO 6

Mundos conectados pelo movimento pictorialista: a


fotografia como artefato

Rachel Duarte Abdala

Perseguiu-se um fio, representado por um fotógrafo, Nicolas Alagemovits,


descoberto durante Iniciação Científica realizada no Instituto de Estudos
Brasileiros-IEB da Universidade de São Paulo, quando se trabalhou com
o acervo fotográfico do Arquivo Fernando de Azevedo. Na pesquisa
desenvolvida no Mestrado, intitulado A fotografia além da ilustração: Malta e
Nicolas construindo imagens da Reforma Fernando de Azevedo no Distrito
Federal (1927-1930), o objetivo foi analisar as imagens fotográficas produzidas
durante a reforma da Instrução Pública no Distrito Federal, na década de
1920, pelos fotógrafos Augusto Malta e Nicolas Alagemovits. A questão
que emergiu foi: por que Fernando de Azevedo, como diretor de Instrução
Pública, contratou um outro fotógrafo, se já estava garantido o registro das
ações reformistas pelo fotógrafo Augusto Malta, funcionário da prefeitura do
Distrito Federal? E, não só por que um outro fotógrafo, mas por que aquele,
em especial? Por que Nicolas? Assim, buscaram-se informações sobre esse
fotógrafo, com o intuito de compreender o porquê de ter sido ele também
chamado para registrar as ações reformistas.

161
Ao iniciar a pesquisa sobre a trajetória de Nicolas, foi possível descobrir,
entre outros aspectos, sua vinculação ao movimento pictorialista, que defendia
a fotografia como uma das belas artes. A foto-arte era praticada por fotógrafos
profissionais comprometidos com o objetivo de produzir arte utilizando
a técnica fotográfica. A vinculação de Nicolas ao pictorialismo pôde ser
desvendada após exame da revista Photogramma, criada e mantida pelo
Photo Club Brasileiro. A inserção de Malta nesse movimento, ainda que
menos comprometida, também pôde ser constatada.
A fotografia afirmava-se, na passagem do século XIX para o século XX,
como um dos ícones de modernidade. A polêmica em torno da questão de
ser ou não a fotografia uma forma de expressão artística chamou ainda mais
a atenção para essa forma de registro imagético. No século XIX surgiu o
movimento pictorialista, que se firmou no Brasil na década de 1920, com
a fundação do Photo Club Brasileiro, que criou a revista Photogramma,
em cujas páginas o debate se tornou contundente. Revistas e jornais, tanto
os da chamada grande imprensa, quanto os especializados, com a revista
Photogramma, contribuíram para a expansão da fotografia nas primeiras
décadas do século XX..

A fotografia como arte e o movimento pictorialista: conexões e


circulações
Pictorialismo pode ser definido como um movimento estético cujo
objetivo era firmar o estatuto de arte da fotografia. Fundamentava-se em
uma relação entre teoria e técnica que pretendia superar a preponderância
do automatismo na fotografia. Foi, segundo Costa (1998, p. 262), “[...] a
tentativa de dar à fotografia o estatuto de arte” [...] uma preocupação comum
a inúmeros fotógrafos a partir de meados do século XIX”. Esse movimento
emergiu em diversas dimensões e em diferentes lugares, e o desafio proposto
neste capítulo é pensar sobre a possibilidade de considerá-lo a partir dos
pressupostos teóricos da História Conectada, buscando perceber as conexões
e a circulação de sujeitos, de modelos e de artefatos.
A discussão sobre o caráter artístico da fotografia fundamenta-se na
crítica à dicotomia do caráter da fotografia, estético ou documental; criação

162
ou testemunho. Não é possível dissociar o aspecto estético do comprobatório,
pois ambos são partes constitutivas do documento fotográfico.
Um dos processos mais importantes da arte moderna é a ação racional
do artista, a qual, apesar de não deixar de lado o despertar da sensibilidade,
nunca deixa de ser um espetáculo ao olhar. A racionalidade está no trabalho
do artista que articula percepção e razão, e a ideia de que a arte é produção, é
construção, surgiu no começo do século XX. Relacionava-se à arte, portanto,
à máquina.
Helouise Costa (1998, p. 262) pondera que: “Não podemos deixar de
sublinhar esse momento: a década de 50 marca definitivamente o ingresso
da fotografia no universo da industrialização. O trabalho desses fotógrafos
tentará se contrapor ao destino, já então inexorável, da massificação”. Aqui,
a autora refere-se à década de 1850, momento quando a fotografia alcançou
a autonomia da reprodutibilidade.
As fotografias, no início do século XX, à exceção das de autoria dos
seguidores do movimento pictorialista, não eram produzidas para serem
obras de arte, mas com a intenção de registrar e documentar aspectos da
realidade.
Em seu conhecido texto “A obra de arte na época das suas técnicas de
reprodução”, Walter Benjamin (1980, p. 61-62) afirma que,
[...] com o advento do século XX, as técnicas de reprodução atingiram
tal nível que, em decorrência, ficaram em condições, não apenas de se
dedicar a todas as obras de arte do passado e de modificar de modo
bem profundo, os seus meios de influência, mas de elas próprias se
imporem, como formas originais de arte.

Benjamin (1980) aponta que a primeira técnica de reprodução


verdadeiramente revolucionária foi justamente a fotografia. Isso porque, desde
o seu surgimento, foi marcada como a resolução ao problema da reprodução
fiel do real, como uma espécie de duplicata exata e prova inquestionável. Na
passagem do século XIX para o século XX, diversas inovações tecnológicas
também surgiram, como exemplos, o cinema e a luz elétrica, e a fotografia
estava incluída entre essas inovações. Nesse contexto, embora à fotografia
fosse atribuído o papel de documento, “[...] o surgimento de uma técnica

163
mecânica para a criação de imagens estabelece uma nova relação entre arte
e técnica, alterando a própria natureza da arte e sua função social”. (MELLO,
1998, p. 14),
A fotografia, não só provocou uma transformação na arte, como
também, de acordo com Armando Martins de Barros (1997, p. 74), “[...]
impôs uma reeducação do olhar e um reordenamento da própria cultura”.
O aprimoramento da técnica fotográfica possibilitou, entre outras coisas,
a reprodução em larga escala, sendo este um dos fatores responsáveis por
essa “reeducação do olhar”.
Helouise Costa (1998, p. 261) assim avalia o movimento pictorialista:
Vítima de abordagens unilaterais devido ao caráter elitista de sua prática,
o pictorialismo merece ser reconsiderado sob a luz do seu momento
histórico específico. Alavanca de superação da estética documental do
século XIX, instaurou a fotografia como realidade construída e abriu
caminho para as experimentações modernistas.

Em seu estudo a autora se propôs a reavaliar o pictorialismo sob esses


novos parâmetros expostos por ela, e neste texto a proposta foi olhar para o
movimento pictorialista pelo prisma da História conectada, em concordância
com o que propõe Costa (1998) ao afirmar que o pictorialismo merece ser
reconsiderado sob a luz do seu momento histórico específico e pode-se
acrescentar que ele mesmo foi um movimento muito específico.
A tensão entre a arte e a reprodução mecânica de imagens foi expressa
de forma bastante polêmica, desde o final do século XIX, na Europa, até
as primeiras décadas do século XX, no cenário mundial e no Brasil. Costa
(1998) indica que o auge do pictorialismo na Europa foi de 1890 a 1914.
No Brasil, a discussão intensificou-se justamente nas décadas de 1920 e
1930, sob a forma do movimento pictorialista, perdendo força paulatinamente
nas duas décadas subsequentes, e a fotografia pictorial passou a ser substituída,
na produção fotográfica e nos debates teóricos, pela chamada fotografia
moderna, influenciada pelo movimento concretista.
Maria Teresa Bandeira de Mello (1998, p. 14) define o pictorialismo como

164
[...] um movimento de oposição à conceituação e à valorização da
fotografia exclusivamente como técnica, afastada de seu sentido estético:
o pictorialismo define a imagem fotográfica como o resultado da
interpretação do sujeito-fotógrafo, que atua como um intermediário
entre o tema/objeto e o médium.

O objetivo do pictorialismo centrava-se na preocupação em delimitar


um estatuto específico para a fotografia, concebendo-a como arte, pois até
então era percebida apenas como produto do registro mecânico e automático
da câmara fotográfica. Assim como a pintura era o fruto da subjetividade do
pintor, reivindicava-se para a fotografia o caráter artístico, argumentando-
se ser ela o fruto do olhar e, portanto, da subjetividade do fotógrafo, o
que bastava para caracterizá-la como arte. O obturador foi identificado, de
forma sistemática, com o olho humano. “Quantas vezes tem-se escrito que
o apparelho photographico não é em summa, senão um olho mechanico
aperfeiçoado, cuja placa seria a retina e o objectivo o crystallino”. Essa
citação foi publicada Revista Photogramma, anno III nº. 32, maio de 1929.
p. 13, e é do texto intitulado “O olho é um apparelho photographico”, de M.
Gandet, publicado originalmente em La Photo pour Tous e traduzido para
a Photogramma.
Convém mencionar que, a despeito dessa tensão oriunda do
desenvolvimento da técnica para fixar a imagem por meio de reações físico-
químicas, a técnica da câmara escura, que dispunha a imagem captada em
perspectiva, data do período do Renascimento. Em outras palavras, a técnica
mecânica, ou física, para a produção da fotografia foi desenvolvida e utilizada
por pintores alguns séculos antes que fosse possível fixar quimicamente essa
imagem em um suporte. Dessa forma, é possível inferir que a fotografia teve
seu surgimento em etapas. A primeira etapa descrita está vinculada de forma
indissociável à pintura no século XVI. Nesse sentido, pode parecer paradoxal
a fotografia reivindicar seu estatuto de arte, no século XX, pois alguns de
seus princípios foram desenvolvidos justamente por artistas. Entretanto,
deve-se ponderar que, no Renascimento, essa técnica foi criada como um
instrumento, um meio para a arte, similar ao pincel ou à tela.

165
As técnicas empregadas pelos fotógrafos pictorialistas eram amplamente
debatidas, e os fotógrafos dividiam-se principalmente em dois grupos: os
puristas, ou seja, os que defendiam temas e texturas fotográficas, e os adeptos
da manipulação da fotografia com intervenções do fotógrafo, adotando
temas e tratamentos nos moldes da pintura. O primeiro era geralmente
identificado com o pictoralismo francês, e o segundo, representado pelo
norte-americano. (MELLO, 1998, p. 80)

Associações de fotógrafos e o fotoclubismo


No que se refere à organização, na década de 1850 foram fundadas as
primeiras associações de fotógrafos, destacando-se a Photographic Society of
London, em 1853, e a Société Française de Photographie, em 1855 (MELLO,
1998, p. 21)
No início do século XX o pictorialismo norte-americano era fortalecido
com iniciativas como a fundação, em 1902, do Photo-Secession, por um
grupo liderado pelo fotógrafo Alfred Stieglitz.
A expansão do pictorialismo como movimento internacional durante a
primeira década do século XX coincide com o período em que Stieglitz,
à frente da Photo-Secession, atua como curador de mostras de fotógrafos
americanos e europeus dentro e fora dos Estados Unidos. Em 1904,
por exemplo, cerca de 400 exposições são montadas por ele na Europa
(PHOTO-SECESSION, 2020).

Stieglitz, não só promoveu a difusão da fotografia nos Estados Unidos,


como fez circular artefatos e discussões, por meio da realização dessas
exposições. Mello (1998, p. 39) menciona que “[...] os trabalhos de Stieglitz
encontram uma ampla receptividade no âmbito internacional e o entusiasmo
de críticos da época”. Apontado como o principal representante dos fotógrafos
pictorialistas norte-americanos, Stieglitz estabeleceu e manteve laços nacionais
e internacionais que incluíam pintores. De acordo com Mello (1998, p. 40),
“[...] para muitos, Stieglitz é considerado um elemento de transição entre
a fotografia clássica e a moderna”. Na interpretação da autora, o próprio
movimento pictorialista teria duas vertentes: “[...] uma que se volta para

166
o passado – através das referências ao academicismo e ao naturalismo – e
outra para o futuro”.
De acordo com Boris Kossoy (1983, p. 884), a denominada “fotografia
artística” nasceu com o fotoclubismo. No Brasil, pode-se dizer que de fato
o pictorialismo começou diretamente vinculado ao desenvolvimento do
fotoclubismo. Apesar de a relação entre arte e fotografia apresentar diversas
facetas, conformou-se de modo mais sistemático a partir das primeiras
manifestações do pictorialismo, em 1890, em Viena, Londres e Paris, segundo
Maria Teresa de Mello (1998, p. 14).
A partir de 1903 surgiram os primeiros grupos e associações, dispersos,
movidos pela disposição de promover a fotografia como arte. Em 1910,
foi fundado o Photo Club do Rio de Janeiro. Para Maria Teresa de Mello
(1998), o marco inicial do fotoclubismo brasileiro surgiu devido ao anseio
de se criar um espaço privilegiado para o aprendizado, desenvolvimento e
normatização da incipiente técnica fotográfica. Congregava, sob a forma de
associação, os praticantes da fotografia, promovendo reflexões, concursos,
exposições e publicações. Os objetivos que motivaram a criação dos fotoclubes
foram mantidos; contudo, as discussões a respeito do caráter artístico da
fotografia, que marcaram seus primórdios e que se aprofundaram com o
pictorialismo, passaram a ser identificadas como premissas do fotoclubismo.
Portanto, a estética apregoada pelo movimento pictorialista disseminou-se
fundamentalmente por meio dos fotoclubes.
Com a fundação dos fotoclubes, surgiram publicações dedicadas
à fotografia, tais como a Revista Photographica, em 1909, a Illustração
Photographica, em 1919, e a Photo Revista do Brasil, em 1925.
Fundado em 1923, o Photo Club Brasileiro, representou a consolidação
do fotoclubismo no país, devido à sua abrangência espacial e temática. Essa
foi uma iniciativa de um grupo de fotógrafos amadores, entre eles Alberto
Fridmann e F. Guerra-Duval. Com sede no então distrito Federal, o Rio de
Janeiro, e com esse anseio manifestado em sua denominação, tornou-se
referência para a prática fotográfica em todo o país. A revista Photogramma,
publicação do Photo Club Brasileiro, recebia e publicava cartas oriundas
de todo o país com comentários e dúvidas de fotógrafos amadores sobre

167
os mais diversos aspectos da técnica fotográfica. Reunindo associados do
Photo Club do Rio de Janeiro, o Photo Club Brasileiro desempenhou papel
fundamental na produção de fotografias pictoriais e na reflexão sobre a
fotografia como arte.
Com o intuito de difundir e legitimar a arte fotográfica, o Photo Club
Brasileiro promovia, a partir do ano de sua fundação, Salões Anuais de
Fotografia. Prestigiados e concorridos, os Salões cumpriram seu papel,
perdurando até 1939. A importância atribuída a esses salões e o empenho em
realizá-los podem ser percebidos no texto publicado na revista Photogramma,
por ocasião do VI Salão. O fotoclubismo foi um fenômeno que se expandiu
para outros estados do Brasil, tendo como principal referência o Photo Club
Brasileiro. Para Mello (1998, p. 197), um aspecto que:
[...] atesta a eficiência da atuação do Photo Club Brasileiro foi
o estabelecimento de um intenso intercâmbio com fotoclubes
internacionais que além, de possibilitar o conhecimento das novidades
teóricas e técnicas, divulgava a produção fotográfica brasileira em centros
como Paris, Londres, Nova York e Buenos Aires.

Essa menção remete à reflexão de que, ao contrário do que durante


muito tempo se supôs, o Brasil não se configurou como mero polo receptor.
Isso porque, pois, na ótica da História conectada, percebe-se que houve
um intercâmbio, inclusive intenso, a partir do qual houve a circulação de
sujeitos, modelos e artefatos que possibilitaram as conexões. Um forte
mecanismo de difusão e de conexão foram as publicações especializadas
criadas principalmente a partir das associações, grupos e fotoclubes.

Revistas especializadas
Em meados do século XIX existiam apenas três revistas especializadas:
The Daguerreian Journal, fundada em 1850 e The Photographic Art Journal, em
1851, ambas em Nova York, e La Lumière, em 1851, em Paris (MELLO, 1998).
Vinculada a Photo-Secession, de 1903 a 1917, Stieglitz editou a revista
Camera Work, uma luxuosa publicação dedicada à divulgação de imagens e
monografias tanto de integrantes da Photo-Secession quanto de pictorialistas

168
europeus como Robert Demachy. A partir de 1910, a revista passa a divulgar
outras categorias de arte moderna. (PHOTO-SECESSION, 2020).
No Brasil há a revista Photogramma, criada, redigida e administrada
pelo Photo Club Brasileiro e utilizada como meio de divulgação de suas
concepções acerca das técnicas fotográficas e das teorias desse campo em
formação. Editada mensalmente, entre 1926 e 1931, totalizando 44 números,
a revista foi a primeira a debater e a publicar sistematicamente, no Brasil, a
chamada fotografia pictorial.1
A publicação de fotografias em revistas no Brasil não era recente.
Desde 1900, após vinte anos em relação aos Estados Unidos e à Europa,
foram publicadas fotografias na Revista da Semana. Respectivamente, em
1901 e 1904, as revistas Ilustração Brasileira e Kosmos também adotaram
a fotografia, integrando o conjunto das pioneiras dessa inovação no país.
(PAES; DUARTE; VANUCCHI, 2000, p. 18). A técnica que possibilitou a
reprodução de imagens fotográficas na imprensa, por meio de processos
industriais, surgiu ainda no século XIX. Entretanto, até o início do século XX
a utilização de fotografias na imprensa restringia-se às revistas semanais. Os
jornais diários descartavam a nova tecnologia pela falta de tempo hábil para a
preparação dos clichês fotográficos. Inicialmente utilizadas como ilustrações,
as fotografias serviam para documentar fatos e para tornar os textos mais
agradáveis. Tal utilização perdurou por muito tempo sem discordância, e,
ainda que não haja mais unanimidade a respeito, a associação da fotografia
a essa função ainda é presente.
Coincidindo com a emergência do pictorialismo no país, o início
da publicação de fotografias nas revistas ilustradas foi influenciado por
essa estética, incorporando inclusive fotoclubistas comprometidos com o
movimento como colaboradores dessas revistas. Esse é o caso das revistas
Kosmos e O Cruzeiro. Como aponta Maria Teresa de Mello (1998, p. 67), em
1904 a revista Kosmos, então considerada importante publicação da capital
federal, reuniu os fotógrafos de arte Oscar Teffé, Sílvio Bevilácqua, Barroso
Neto e Guerra-Duval, publicando um conjunto de fotografias desses artistas.

1. Antes da Photogramma, foi criada, em 1925, a Photo Revista do Brasil, que encerrou sua
publicação no mesmo ano.

169
Especificamente no Brasil, pois não há informações de que na Europa isso
tenha ocorrido, os pictorialistas atuaram nas revistas ilustradas, expandindo
sua participação para outros circuitos de produção fotográfica, além dos
fotoclubes. Embora essa atuação possa ser percebida de modo mais constante
e efetivo na revista O Cruzeiro, há indícios de que os pictorialistas tenham
colaborado também com as revistas Illustração Brasileira, Revista de Semana
e Beira-Mar.2
Lançada em 1928, a revista O Cruzeiro dispõe da participação de
pictorialistas para a publicação de suas fotografias e para a organização
dos concursos fotográficos realizados pela revista. Fernando Gerra-Duval,
então diretor do Photo Club Brasileiro, José Mariano Filho, Silvio Bevilacqua,
Nogueira Borges e Hermínia Nogueira Borges são os fotoclubistas que
participaram mais ativamente na revista.
Os concursos aludidos foram anunciados já no primeiro número
da revista, com o objetivo de suprir a demanda por imagens. Com esse
expediente, a revista incorporou fotoclubistas como colaboradores, alguns dos
quais participavam dos concursos, inscrevendo fotografias de suas autorias,
e outros, organizando-os, compondo inclusive o júri.3
Ao mesmo tempo em que as revistas ilustradas supriam a demanda por
imagens, ao arregimentar fotógrafos vinculados aos fotoclubes, a estética
pictorialista ganhava projeção, pois as fotografias produzidas por esses
fotógrafos se sobressaíam no conjunto das imagens publicadas nas revistas
ilustradas. No caso da revista O Cruzeiro,
[...] a excepcional qualidade técnica e o esmero na composição demarcam
uma fronteira precisa entre o simples registro e a ‘fotografia artística’.
Essa diferenciação era acentuada pela própria revista, pois as fotos dos

2. Helouise Costa faz essa observação, esclarecendo que, na revista Illustração Brasileira a
colaboração de pictorialistas pode ter se iniciado em 1920, embora não haja como confirmar
essa informação, devido à inexistência de créditos dos autores das fotografias publicadas
na revista. (COSTA, 1998. p. 273).
3. A revista O Cruzeiro, de 29 dez. 1928, p. 12, anunciava o Concurso Mensal de Fotografia
de cujo júri participariam Fernando Guerra-Duval, que ocupava os cargos de diretor do
Photo Club Brasileiro e de redator chefe da revista Photogramma, e José Mariano Filho,
antigo diretor da Escola de Belas Artes e membro do fotoclube. A esse respeito, ver COSTA,
Helouise. Pictorialismo e imprensa: o caso da revista O Cruzeiro (1928-1932), 1998.

170
pictorialistas eram impressas em fotogravura em tons de verde, ocre ou
azul, o que contribuía para realçá-las do conjunto. Além disso, eram as
únicas que traziam os créditos do autor. (COSTA, 1998, p. 275)

Dois anos antes do lançamento da revista O Cruzeiro, o Photo Club


Brasileiro criou, em 1926, uma revista exclusivamente dedicada à fotografia.
A inovação de Photogramma consistia no fato de que, pela primeira vez no
país, uma revista dedicava-se exclusivamente à fotografia, abordando os mais
variados assuntos relativos à temática fotográfica. Além disso, ultrapassando
o caráter ilustrativo, percebe-se a interação entre as duas linguagens utilizadas
na revista – a escrita, nos artigos, e a visual, nas fotografias publicadas –, o
que era incomum para a época. Em Photogramma, além das legendas, havia
comentários sobre aspectos técnicos, tais como composição, iluminação,
materiais, revelação, entre outros, e sobre os conteúdos das imagens. Tais
comentários abrangiam a fotografia em geral e procuravam analisar fotografias
publicadas na revista. No que se refere a estes últimos, eram veiculados em
uma seção específica, Consideranda, devidamente assinada, invariavelmente
por Amaro Bello, e referiam-se às fotografias publicadas no Supplemento
photographico, resultado de seleção à qual os fotoclubistas se submetiam em
concurso interno e periódico.
Em todas as edições da revista, na contracapa, era anunciado o fim
único ao qual Photogramma se propunha:
Divulgar a photographia e aprimorar a educação technica e artistica
dos amadores brasileiros, para o que, além de artigos e de reprodução
de photographias de seus redactores e collaboradores fixos, publicará
artigos interessantes assignados e photographias que lhe forem enviadas,
sendo que estas serão sujeitas a uma critica constructiva, com o fim de
fazer resaltar as qualidades e apontar os defeitos para que possam ser
corrigidos; responder a qualquer consulta sobre assumpto concernente
à photographia.

Assim, tanto a revista Photogramma, quanto o Photo Club Brasileiro,


responsável por sua publicação, tomavam para si a função de se tornarem
paradigmas e referências, em aspectos práticos da técnica fotográfica, impondo
a determinação de uma linha teórica comprometida com a fotografia pictorial.

171
Explicitado diversas vezes em suas páginas, o objetivo primordial da
revista era persuadir “[...] aos que cuidam de arte no Brasil que a fotografia
é a irmã mais nova das bellas artes”. Portanto, o desafio assumido pelos
fotoclubistas abrangia a produção de fotografias pictoriais, ou seja, o
desenvolvimento da técnica e a consolidação definitiva do caráter artístico
da fotografia. Para atingir tais objetivos, Photogramma constituiu-se em
um veículo privilegiado. Corroborava para tal intento o fato de que a
revista se apresentava, não só como a primeira com o propósito de abordar
sistematicamente a fotografia, mas também como a primeira a ter alcance
nacional, o que possibilitava expandir a discussão para todo o país.
O surgimento de Photogramma no Distrito Federal, em meados da década
de 1920, o seu amplo alcance em todo o Brasil, atestado pela correspondência
publicada na revista, e sua abrangência, tanto temática, quanto de categorias
dos fotógrafos, dos iniciantes e amadores, até os profissionais reconhecidos,
são aspectos que denotam a crescente importância atribuída à imagem e à
fotografia, no período. Em suas páginas, os fotógrafos imprimiam visibilidade
ao seu trabalho e o legitimavam perante um fórum autorizado.
Consolidar a fotografia como uma das belas artes era uma preocupação
constante do Photo Club Brasileiro, revelada nos textos teóricos e nas próprias
fotografias publicadas. A produção dos fotoclubistas era determinada pela
adoção dos temas acadêmicos e das regras clássicas de composição, típicos da
pintura. A estética pictorialista procurava aproximar-se da pintura, ao mesmo
tempo em que se distinguia dela, devido às técnicas exclusivas possibilitadas
pelo processo e pelos materiais fotográficos.
O fundamental era diferenciar a produção pictorialista em relação ao
caráter documental da fotografia, distanciando-se propositadamente do real,
por meio de ângulos, técnicas e processos de revelação. Segundo Boris Kossoy
(1983, p. 884), “[...] importante para o fotógrafo pictorialista era ‘interpretar’
esta realidade, através das mencionadas técnicas a tal ponto que o espectador
não podia mais diferenciar o produto final: fotografia ou pintura?”
Entre outras, duas técnicas destacaram-se no período, para a obtenção
desses efeitos desejados: o bromóleo e o flou.

172
Bromóleo é o nome dado ao processo de preparação de provas fotográficas
que consiste em branquear as zonas sombrias de uma prova em papel de
brometo e pintá-lo depois com um pigmento oleoso. Foi apresentado
em 1907, tornando-se popular entre os fotógrafos pictorialistas. Flou é o
efeito de ligeira perda de nitidez de uma imagem fotográfica provocado,
em geral, pela difusão da luz. Esse efeito pode ser obtido tanto no
momento da captação da imagem quanto no da impressão de prova.
(MELLO, 1998, p. 200-202)

Nos artigos teóricos apresentados na revista predominava a tentativa de


definir o caráter artístico da fotografia. A busca conceitual resultou em um
embate teórico que se apoiava nas técnicas. Os associados do Photo Club
Brasileiro dividiram-se em “puristas” e “intervencionistas”. Desse modo, essa
divisão já mencionada também apareceu entre os fotógrafos do período.
Alberto Friedmann e Fernando Guerra-Duval polarizaram o debate. Alberto
Friedmann condenava a prática do retoque, intervenção direta por meio de
pintura no positivo ou negativo. “Deteste o retoque. É uma mentira. Falsifica
os valores, únicos meios de expressão na photographia. Limite-se, portanto,
à emenda de pequenos deffeitos, pontos transparentes [...] (Photogramma,
set. 1926, p.3-4. “Meia dúzia de conselhos III”).
O pictorialismo chegou a ser considerado um movimento de reação
conservadora à industrialização e vulgarização da fotografia, como
decorrência lógica do processo de decadência artística do retrato fotográfico
ou daquele movimento revestido de caráter elitista. De qualquer forma,
independentemente do caráter do movimento, sua importância deve-se
ao fato de ter estimulado o debate sobre a fotografia, ao irradiar para a
sociedade, de grupos fechados, representados pelos fotoclubes, por meio
da visibilidade produzida pelos Salões Anuais de fotografia, a revitalização
do retrato e das fotografias de estúdio, ou, ainda, por meio da abertura nas
revistas de grande circulação para a discussão sobre o assunto.
Requisitando o status de arte, a fotografia mantinha uma relação
ambígua: ao mesmo tempo em que procurava se distinguir da pintura, dela
tentava se aproximar, como meio de legitimação. Os pictorialistas referiam-
se às fotos como quadros expostos à apreciação pública.

173
O movimento pictorialista não mantém com a pintura uma relação de
mera imitação. Ao contrário, estabelece uma correspondência entre
ambas que impulsiona a fotografia a elevar-se ao nível da pintura e,
nesta situação de igualdade, reivindicar o estatuto de arte (MELLO,
1998, p. 16).

Nas páginas de Photogramma, além dos textos que versavam sobre


a problemática do caráter artístico da fotografia, havia também alusões
sobre a temática, dispersas por todas as seções, inclusive nas propagandas
veiculadas. As propagandas veiculadas pela revista restringiam-se a produtos
e serviços exclusivamente relacionados à fotografia. Além dos anúncios de
casas comerciais, havia uma seção intitulada Indicadores, que se subdividia
em: “A) representantes de fábricas estrangeiras de material photographico”,
“B) revendedores de material photographico,” “C) Photographos – Atelier, D)
industria photographica” e “E) mecanica photographica”. Na seção C havia
anúncios dos ateliês dos fotógrafos associados ao Photo Club Brasileiro. É
possível que esses anúncios fossem pagos, pois eram poucos, e sua frequência
diminuiu nos últimos anos da revista.
Outro aspecto que deve ser destacado é a inclusão de textos teóricos
traduzidos nas páginas da revista, como o já mencionado de autoria do
francês M. Gandet, entre outros. Photogramma publicava também traduções
de textos de autores literários que versavam sobre a fotografia como foi o
caso da publicação de frases de Bernard Shaw, dramaturgo e crítico inglês,
sobre a fotografia e sua relação com a pintura. (Photogramma, dez. 1926 –
jan. 1927, p. 11).
Desse modo, pode-se dizer que as revistas especializadas podem ter se
constituído como eficazes meios de circulação e do que Gruzinski (2001)
considerou como meio de compressão das distâncias. Por meio dessas revistas
os fotógrafos profissionais e amadores podiam conhecer novos equipamentos,
materiais e elementos químicos e podiam também comprá-los acessando-os
pelos anúncios e propagandas veiculados nas revistas.
Em junho de 1927, Alberto Friedmann publicou na revista um artigo no
qual avaliava os quatro anos de existência do Photo Club Brasileiro. Intitulado
“Uma advertência séria”, o artigo analisava e enaltecia as contribuições

174
do fotoclube na expansão e desenvolvimento da técnica fotográfica, e
realçava discussão acerca do caráter artístico da fotografia. A tensão entre
os fotoclubistas que apoiavam o caráter artístico e os que apoiavam o caráter
industrial da fotografia permaneceu refletida na revista durante toda a sua
existência.
Ao pesquisar a revista Photogramma foi possível constatar que Nicolas
Alagemovits e Augusto Malta eram sócios do Photo Club Brasileiro e
participavam das atividades promovidas, entre elas os concursos mensais.
Desse modo, alguns dos trabalhos de ambos os fotógrafos foram publicados
na revista. Verificar essa vinculação permite estudar a produção dos dois
fotógrafos que fixaram as imagens da reforma educacional num âmbito mais
abrangente, possibilitando a compreensão de suas respectivas expressões.

Arte e expressão: inserção e atuação de Malta e Nicolas no


pictorialismo
Identificar na produção de Nicolas aspectos da estética pictorialista e sua
participação efetiva no movimento no Brasil, bem como sua contribuição para
o desenvolvimento da fotografia moderna (Nicolas ultrapassa o pictorialismo
e já delineia em seus trabalhos – principalmente nas fotografias de arquitetura
– a estética modernista), constitui ponto fundamental para compreender o
motivo pelo qual Fernando de Azevedo o contratou para registrar as ações da
reforma educacional que empreendeu. Além disso, Nicolas era um fotógrafo
com projeção no circuito social do Rio de Janeiro.
O apuro estético apresentado nos registros de Nicolas, a busca da
diagonalidade e o contraste entre luz e sombra possibilitam inferir que
suas fotografias são expressões artísticas, segundo os preceitos pictorialistas
vigentes no período. Além disso, sabe-se que atuou no Rio de Janeiro no
início do século e que mantinha certa vinculação com o meio artístico, o
que pode ter influenciado sua expressão.
Admitido como sócio no Photo Club Brasileiro, em novembro de 1926,
sua filiação foi divulgada na revista Photogramma.4 Nicolas Alagemovits

4. Expediente Photo Club Brasileiro. Photogramma, nov. 1926. p. 21.

175
nasceu na Romênia em 1893. De acordo com a pesquisa realizada, Nicolas
chegou ao Brasil em setembro de 1923. O primeiro vestígio de sua atuação
como fotógrafo aparece no final da década de 1920; no entanto, não foi
possível descobrir como ou quando ingressou na atividade. Foi proprietário
do Studio Nicolas, situado na Avenida Rio Branco, 247 1º andar, transferido
posteriormente para a Rua Alcindo Guanabara, 5 – 2º andar, na Praça
Floriano, local onde também residia. Requereu, segundo determinações legais
impostas durante o governo de Getúlio Vargas, o registro de estrangeiro5
em junho de 1939; entretanto, faleceu em 27 de setembro de 1940, antes do
final do processo.
O auge de sua reputação coincide com o período compreendido pela
reforma, ou seja, final da década de 1920, prolongando-se até o final da
década de 1930, sendo interrompido bruscamente por sua morte prematura.
Rapidamente alcançou fama como retratista, sendo requisitado por
revistas ilustradas e pelos próprios retratados em seu estúdio, para realizar
retratos de mulheres e homens da elite carioca, e de artistas, brasileiros e
estrangeiros, de passagem pelo país. Misses, violinistas, atores, bailarinas e
escritores posaram para as lentes de Nicolas e foram por ele interpretados.
Muitos dos retratos por ele realizados foram publicados, no final da década
de 1920 e começo da década de 1930, por importantes revistas cariocas
do período, tais como Cinearte Álbum, Kosmos, Para todos..., Illustração
Brasileira e Revista da Semana. Desse modo, além de ser ele mesmo um
estrangeiro no país, teve, devido à profissão que exercia contato com pessoas
de diferentes países.
A trajetória do artista-fotógrafo, apesar de curta, foi significativa no
panorama artístico-cultural do Rio de Janeiro. Sua inserção na sociedade
carioca possibilitou espaços para que expressasse sua arte e sua interpretação
da infinidade de rostos que se posicionaram frente à sua câmera. Transitou
entre a fotografia como arte, enquanto seguia os princípios pictorialistas, e
a fotografia como produto de consumo, enquanto continuava a trabalhar
para a sociedade, como retratista.

5. Documento do Arquivo Nacional. Registro de Estrangeiro n. 17.740.

176
Sua trajetória no Photo Club, que de certa forma reflete também sua
trajetória profissional, pode ser acompanhada na revista. Em pouco tempo
galgou os níveis da hierarquia interna do fotoclube.
Em 1930, por ocasião da realização do VI Salão do Photo Club Brasileiro,
já era considerado da “velha guarda” do fotoclube, juntamente com Wenning,
Luiz Paulino, Wyszomiriski, Heitgen, Borba e Guerra-Duval, conforme
indicado na Seção Notas e Comentários, publicada na revista Photogramma
de agosto de 1930, p. 1.
Durante os anos de existência de Photogramma, foram publicadas
na revista três fotografias de Nicolas: dois retratos, categoria na qual era
especialista, e um panorama do 4o. Salão Anual do Photo Club Brasileiro.
O primeiro retrato de sua autoria publicado em Photogramma (n. 15,
outubro de 1927, p. 5 do Supplemento), o de uma mulher, foi exposto no 4º
Salão Anual e recebeu menção honrosa. Amaro Bello, na seção Consideranda,
avalia os aspectos técnicos dessa fotografia, ressaltando seu caráter artístico
e reconhecendo Nicolas como artista dotado de sensibilidade orientada para
a percepção de todos os detalhes e condições no momento da criação. Além
disso, o crítico informa acerca da técnica utilizada, brometo, e analisa a
composição, exaltando o resultado do registro, como foco no tema abordado,
o do retrato. Nesta análise destaca o cuidado do fotógrafo, reconhecido como
artista, na composição, na distribuição da luz.
O toque artístico, apregoado pelo pictorialismo, consistia na observância
de certos aspectos técnicos e na interpretação pessoal do fotógrafo. Ao olhar
a fotografia, é possível acompanhar as observações de Amaro Bello e perceber
sua afinidade com as sugestões publicadas na revista para se produzir um
bom retrato artístico.
Técnica e estilo são os principais componentes da expressão de um
fotógrafo, que, ao associar esses componentes de acordo com escolhas
subjetivas, imprime em sua produção uma marca pessoal indelével. Ao
analisar a produção de um determinado fotógrafo procura-se, portanto,
identificar os aspectos técnicos por ele escolhidos e utilizados e os elementos
que permanecem de forma constante em sua produção, compondo sua
expressão. Desse modo, conjuntos fotográficos de um mesmo autor podem

177
ser analisados pela sua coerência. Por outro lado, há elementos que são
ocasionais, condizentes ao tema, às condições e aos objetivos da produção
da imagem.
Seja devido à constância da expressão, seja devido ao caráter comercial
do retrato, que impõe um determinado padrão aceito e requerido, quando
coincide de o fotógrafo, o tema e os elementos compositivos serem os mesmos,
observa-se a recorrência de imagens que estabelecem entre si relações de
semelhança.
Augusto Malta teve seus trabalhos publicados na revista em duas
ocasiões. A primeira, em junho de 1927, fixava uma cena teatral, retratando
artistas em poses descritas por Amaro Bello, na seção Consideranda, como
“muito interessantes” (Photogramma, set. 1927 – foto na p. 8 do Supplemento,
sob a legenda Bailado Oriental, e Consideranda, p. 14). Um ano depois, em
1928, Malta publicou a fotografia de uma paisagem da Ilha Fiscal, Rio de
Janeiro, que foi apresentada com duas fotografias paisagísticas de outros
fotógrafos. (Photogramma, jun. 1928, p.1 do Suplemento de Photogramma;
Consideranda, p 18)
Ao contrário dos detalhados comentários dedicados por Amaro Bello
às fotografias de Nicolas, os relativos às fotografias de Malta são sucintos,
mais ligados à temática abordada do que à técnica utilizada.
Apesar da constatação da vinculação de Malta ao movimento pictorialista,
a partir do exame da revista Photogramma, seu comprometimento com o
movimento pode ser descrito como o de um simpatizante, mas não como
o de um ativo participante, como o foi Nicolas. Sua filiação ao Photo Club
Brasileiro não pôde ser datada, pois a divulgação dos nomes dos novos
sócios na revista abrange o período 1926 – 1931, em que não há menção ao
seu nome. Desse modo, é provável que ele tenha se filiado ao Photo Club
antes desse período, considerando-se que as fotografias publicadas na revista
eram exclusivamente de fotoclubistas e que houve divulgação de duas fotos
de Malta.
De acordo com a perspectiva teórica proposta por Serge Gruzinski
(2001, p. 189) as pistas que se referem a produções intelectuais, e nesse caso da
prática fotográfica que envolve produção intelectual voltada à discussão sobre

178
aspectos estéticos e à solução de elementos técnicos, como já mencionado
aqui, mesmo quando pertencem a um quadro comum, como o da fotografia
pictorialista, “parecem revelar parentescos insuspeitos ou até hoje pouco
analisados”. Esse parece ser justamente o caso do movimento pictorialista.
Para Gruzinki (2001, p. 189): o estudo dos indivíduos pode desvelar a
maneira como o local e o global são constantemente rearticulados. Só ao
multiplicar os estudos de caso, podemos reunir informações significativas”. E
é a partir da reunião dessas informações que pode-se montar um panorama
capaz de elucidar as conexões de movimentos e de ações vistas por muito
tempo como isoladas.

Histórias conectadas pelo pictorialismo: França, Inglaterra,


Alemanha, Estados Unidos e Brasil
Onde quer que haja luz, pode-se fotografar
(Alfred Stieglitz)
Serge Gruzinski (2001, p. 176) questiona sobre como escapar do
eurocentrismo nas investigações dos historiadores ocidentais. Ultrapassando
a perspectiva da História comparada, propõe uma História conectada a
partir da percepção de múltiplas histórias.
Essa perspectiva significa que estas histórias estão ligadas, conectadas,
e que se comunicam entre si. Diante de realidades que convém estudar
a partir de múltiplas escalas, o historiador tem de converter-se em
uma espécie de eletricista encarregado de restabelecer as conexões
internacionais e intercontinentais que as historiografias nacionais
desligaram ou esconderam.

Desse modo, a própria História da fotografia remete a múltiplas histórias


conectadas entre si pelo anseio de registrar a realidade. Remetendo-se à
afirmação do fotógrafo Stieglitz, a luz não está restrita a uma determinada
localização geográfica. É possível fotografar onde quer que ela esteja. Assim,
a descoberta da fotografia, ou seja, a solução de como criar imagens com
utilização da luz e de princípios e elementos químicos, no século XIX,
aconteceu simultaneamente em diversos lugares, assim com o desenvolvimento

179
técnico da fotografia também acompanhou esse movimento multicêntrico.
Muitos historiadores da fotografia, como Annateresa Fabris (1998, p. 12-13),
remetem a esse processo, mencionando que “[...] desde fins do século XVIII
foram realizadas várias experiências na França e na Inglaterra para obter
superfícies sensíveis à luz e para fixar as imagens [...]”.
Niépce, Daguerre e Hyppolite Bayard, na França e William Fox Talbot, na
Inglaterra foram contemporâneos que atuaram no desenvolvimento técnico da
fotografia. Niépce e Daguerre chegaram até a trabalhar conjuntamente. Essas
descobertas foram tão contemporâneas que muitos chegaram a reivindicar o
pioneirismo. O Brasil também esteve envolvido nesse processo, pois o francês
radicado na cidade de Campinas, Hércules Florence, alcançou resultados
superiores aos de Daguerre. Apesar das tentativas de disseminação do seu
invento não obteve reconhecimento, à época. Apenas em 1976, com Boris
Kossoy, publica-se um estudo sobre sua vida e sua obra. Apesar de ser apontada
como uma descoberta isolada a descoberta de Hércules Florence também
pode ser percebida como uma das conexões no processo de surgimento da
fotografia no século XIX.
Ainda no que se refere ao afastamento da perspectiva eurocêntrica,
Ricardo Mendes (1998, p. 85) considera, sobre as iniciativas nos Estados
Unidos, que “A distância da América introduzia algumas dificuldades. A
história da fotografia privilegia um enfoque sobre os momentos iniciais
na Europa, abordando o painel americano sem maiores detalhes sobre o
seu período formativo”. Para sanar essa lacuna, menciona o trabalho que
Robert Taft elaborou em 1938, Photography and the American Scene, no qual
analisa as relações entre a fotografia e a sociedade no período 1839 - 1889.
Em seu estudo, Mendes (1998) aborda três manuais fotográficos elaborados
por norte-americanos no século XIX: The History and Practice of the Art of
Photography, de Henry H. Snelling, editado em 1849, em Nova York; The
Silver Sunbeam, de John Towler, lançado em 1863-1864; e, The Ferrotype and
how to make it, de Edward M. Estabrooke, de 1872. De acordo com Mendes
(1998, p. 86) essas obras tiveram certa circulação, pois, principalmente The
Silver Sunbeam, de Towler, que “[...] representava uma das mais importantes
publicações do século XIX”, pois alcançou nove edições até 1879 e teve três

180
edições em espanhol, de 1876 a 1890. Essa obra também foi, segundo Mendes
(1998), disponibilizada em 1891 no catálogo para fotógrafos amadores de E.
& H. T. Antony & Co. (Illustred Catologue of Photographic Equipments and
Materials for Amateurs).
Sobre a velocidade de ingresso de novos profissionais no ramo fotográfico
nos Estados Unidos, Mendes (1998, p. 99) afirma que: “[...] parece ter mantido
em aceleração crescente. Em 1864, segundo o editor de The Silver Sunbeam,
Joseph H. Ladd, no prefácio da quarta edição, o número de fotógrafos nos
Estados Unidos estaria entre 12 e 15 mil”.
Ainda sobre os manuais Ricardo Mendes (1998) estudou o que se poderia
chamar de “literatura fotográfica”, ou os manuais técnicos publicados durante
as primeiras décadas do invento. O autor observa a importância de:
[...] tratar os manuais como documentos de relevância no sistema
fotográfico, posicionando-os ao nível das imagens em si e não como
mera via para o estudo do produto “fotografia”. Manuais, tratados,
compêndios, são depositários do fazer. A tentativa de transmitir o
conhecimento e a necessidade de sua avaliação de modo geral – um
pensar a fotografia e os seus papéis – têm nestes textos um registro
único e extensivo (MENDES, 1998, p. 84).

Na Coleção Militão Augusto de Azevedo do Museu Paulista foi


encontrada a terceira edição da obra La Photographie en Amérique: traité
complet de photographie pratique, de Alphonse Lièbert. Há a probabilidade
do fotógrafo brasileiro ter adquirido o exemplar do manual em Paris quando
visitou a cidade. Além da própria obra em francês, na Coleção Militão
Augusto de Azevedo encontra-se, no verso de um livro copiador de cartas
de 1883, a tradução inacabada da obra, realizada por Militão.
Com o subtítulo de “tratado completo de fotografia prática”, a obra La
Photographie en Amérique continha as “descobertas mais recentes”, de acordo
com inscrição na capa. A obra englobava indicações acerca do material
fotográfico, aspectos químicos da revelação e sobre o tratamento em caso
de acidentes. Com relação às prescrições para a composição e fixação de
retratos, havia vários capítulos dedicados ao assunto. Além desses aspectos
a obra trata também especificamente da relação entre fotografia e pintura,

181
afirmando que o retrato pintado é uma referência para a composição do
retrato fotográfico. Em uma passagem o autor indica que:
Iluminação à la Rembrandt. Recentemente, a popularidade parece
relacionar-se apenas a estes retratos iluminados ao modo das pinturas
de Rembrandt, ou seja, o lado maior do modelo, em vez de ser leve,
como tem sido geralmente realizados os retratos, é, pelo contrário,
escuro, enquanto que o lado pequeno muito brilhante, mas sem duração
(LIÈBERT, 1878, p. 76) tradução livre. 6

Desse modo, percebem-se as prescrições para o retrato fotográfico ainda


bastante relacionadas ao retrato como pintura com foco na luz. Essa ênfase
também aparece quando o autor define o que seriam os “melhores retratos”:
Ao constatar a presença do manual Photographie en Amérique dentre
os documentos de Militão Augusto de Azevedo, é possível inferir que suas
prescrições podem ter subsidiado a realização dos retratos do fotógrafo
brasileiro, que, por ter alcançado grande notoriedade a partir de sua produção
fotográfica pode ter contribuído para disseminar essas prescrições no Brasil.
O próprio autor do manual, Alphonse Lièbert, também circulou. Belga
de nascimento parece ter se estabelecido na França e foi, além de fotógrafo,
editor e oficial da Marinha. Por volta de 1853, se estabeleceu como fotógrafo
nos Estados Unidos, especificamente na Califórnia. Durante esse período
nos Estados Unidos pode ter tido contato com fotógrafos norte-americanos
engajados no movimento pictorialista e pode ter escrito seu manual. Na
década de 1870 há indícios de sua permanência em Paris porque foi um
dos únicos fotógrafos a ficar ali durante a Comuna de Paris de 1871 e, em
1872, ele publicou as fotos de sua autoria sobre esse evento histórico em um
álbum duplo intitulado As ruínas de Paris e seus arredores. 1870 - 1871. Cem
fotografias. (ALPHONSE LIÉBERT, 2020).
Serge Gruzinki (2001) defende que a História conectada ou cruzada não
tem centros difusores e centros receptores. Esses caminhos e descobertas se

6. Éclairage à la Rembrandt. Depuis quelque temps, la vogue semble s’attacher avec


just raison à ces protraits éclairés à la façon des tableaux de Rembrandt, c’est-à-dire
que le grand côte du modèle, au lieu d’être en lumiére, comme cela a lieu généralement,
se trouve au contráire dans l’ombre, tandis que le petit Côté est violemment éclairé, mais
sans durété. (Photographie en Amérique, p. 76)

182
cruzaram e continuaram a promover o desenvolvimento técnico da fotografia
até a sua transformação em um fenômeno de massa, ainda no final do
século XIX. Foi com o norte-americano George Eastman que a fotografia
se popularizou definitivamente como produto de consumo, a partir de
1888, quando ele criou o primeiro aparelho fotográfico em forma de caixa.
“Daí em diante, um imenso mercado de aparelhos e materiais suplantaria
progressivamente o comércio de imagens. O grande público não compra
mais fotografias, e sim, o meio de produzi-las” (MELLO, 1998, p. 31).

Considerações finais
A partir do estudo aqui apresentado, pode-se inferir que é possível que
as polêmicas para a legitimação da fotografia como arte, os debates sobre
posicionamentos técnicos e as experimentações para o aprimoramento da
técnica fotográfica (que estão inseridos no escopo do movimento pictorialista,
mas que o transbordam, tratando de aspectos e elementos da própria noção
de fotografia) podem ter tido maior visibilidade do que as conexões que
estabeleceram.
Assim como o processo de surgimento e consolidação da fotografia no
século XIX não ficou restrito a um único sujeito ou país, o pictorialismo,
inclusive cronologicamente próximo ao surgimento da fotografia, acompanhou
esse mesmo fenômeno. A conexão pode ser percebida em diversas dimensões
e por diversos modos, mas para ficar num exemplo, que foi o fio condutor
deste estudo, o caso do fotógrafo Nicolas Alagemovits a partir do qual foi
possível chegar ao movimento pictorilista e desvendar todas essas articulações.
O papel individual dos fotógrafos, profissionais e amadores, e técnicos no
desenvolvimento da fotografia englobando a técnica, mecanismos, recursos,
elementos químicos e materiais foi fundamental para a difusão da fotografia
e do movimento pictorialista quase que concomitantemente, mas não foram
atuações isoladas, foram, ao contrário, articuladas em conexões que se
desdobravam em outras possibilidades.
Sujeitos, artefatos e modelos circularam entre os mundos e se conectaram
nesse fazer e nesse pensar sobre a fotografia como registro da realidade a
partir da subjetividade do fotógrafo. Há ainda muitas pontas soltas que

183
podem ser conectadas pela investigação historiográfica, por exemplo, no
caso de Stieglitz que não só fez circular artefatos como também circulou
ele próprio e mais do que isso, com ele e suas promoções de circulação de
artefatos em exposições fez circular ideias e modelos.

Fontes documentais
Acervo fotográfico do Arquivo Fernando de Azevedo – IEB/USP
Cinearte Álbum, Rio de Janeiro. Números de 1929 e 1930.
La Photographie en Amérique: traité complet de photographie pratique.
Troisième èdition. Paris, 1878. Coleção Militão Augusto de Azevedo. Museu
Paulista.
Registro de Nicolas Alagemovits RE 17.740, Serviço Nacional de Estrangeiros.
Arquivo Nacional/RJ.
Revista da Semana, Rio de Janeiro. Números publicados entre 1928 e 1929.
Illustração Brasileira, Rio de Janeiro, números publicados em 1929.
Kosmos, Rio de Janeiro. Números publicados entre 1929 e 1930.
O Cruzeiro, Rio de Janeiro. Números publicados em 1928.
Para todos... Rio de Janeiro. Números publicados entre 1927 e 1930.
Photogramma, Rio de Janeiro. Números publicados entre 1926 e 1931.

Referências bibliográficas
ABDALA, Rachel Duarte. A fotografia além da ilustração: Malta e Nicolas
construindo imagens da Reforma Fernando de Azevedo no Distrito Federal
(1927-1930). [Dissertação Mestrado]. São Paulo: Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo-FEUSP, 2003.
ALPHONSE LIÈBERT, In: Babelio. Disponível em: https://www.babelio.
com/auteur/Alphonse-Liebert/519764 Acesso em: 8 out. 2020.
BARROS, Armando Martins de. Da pedagogia da imagem às práticas do
olhar: a escola como cartão postal no Distrito Federal do início do século.
Tese (Doutorado em História da Educação), Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 1997.

184
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. 3ª ed.,
trad. Sergio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1980.
COSTA, Helouise. Pictorialismo e imprensa: o caso da Revista O Cruzeiro
(1928-1932). In: FABRIS, Annateresa (org.). Fotografia: usos e funções no
século XIX. São Paulo: Edusp, 1998.
FABRIS, Annateresa. A invenção da fotografia: repercussões sociais. In:
FABRIS, Annateresa (org.). Fotografia: usos e funções no século XIX. São
Paulo: Edusp, 1998.
GRUZINSKI, Serge. Os mundos misturados da monarquia católica e
outras connected histories. In: Topoi, Rio de Janeiro, mar. 2001, p. 175-195
disponível em: (http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/Topoi02/
topoi2a7.pdf) Acesso em: 29 set. 2020.
KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo: Ática, 1989.
KOSSOY, Boris . Hercules Florence – 1833: a descoberta isolada da fotografia
no Brasil. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1980.
KOSSOY, Boris . “A História da fotografia”. In: História geral da arte no Brasil.
Volume II. São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles, 1983.
MELLO, Maria Teresa de. Arte e fotografia: o movimento pictorialista no
Brasil. Rio de Janeiro: Funarte, 1998. (Coleção Luz e Reflexão, 7)
MENDES, Ricardo. Descobrindo a Fotografia nos Manuais: América (1840-
1880). In: FABRIS, Annateresa (org.). Fotografia: usos e funções no século
XIX, São Paulo: Edusp, 1998.
PAES, Maria Helena; DUARTE, Geni Rosa e VANUCCHI, Camilo. Leituras
de imprensa. Fotografias de Sebastião Salgado. São Paulo: Bei Comunicação,
2000. (Coleção Êxodos: programa educacional).
PHOTO-SECESSION. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura
Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: http://enciclopedia.
itaucultural.org.br/termo3818/photo-secession. Acesso em: 09 out. 2020.
Verbete da Enciclopédia.

185
Sobre os autores

Diana Gonçalves Vidal


Professora Titular em História da Educação da Faculdade de Educação
da USP. Diretora do Instituto de Estudos Brasileiros na mesma Universidade.
Pesquisadora 1A do CNPq. Membro do Comitê Executivo da International
Standing Conference for the History of Education (ISCHE) e Tesoureira na
mesma entidade. Editora-chefe da coleção Global Histories of Education,
publicação ISCHE/Palgrave Macmillan. Editora Senior da Oxford Research
Encyclopedia of Education. Membro do International Advisory Board of
British Journal for Educational Studies (BJES). Líder do Núcleo Interdisciplinar
de Estudos e Pesquisas em História da Educação-NIEPHE. Coordenadora
do Projeto Temático FAPESP Saberes e Práticas em fronteiras: por uma
história transnacional da educação (1810-...) (processo n. 2018/26699-4).

Keila da Silva Vieira:


Licenciada e bacharel a em Letras, Português e Espanhol pela Universidade
de São Paulo. Sendo bolsista FAPESP, desenvolveu duas pesquisas em nível de
Iniciação Científica versando sobre a vida e a obra de Luiz Alves de Mattos
e o seu lugar na produção e circulação de saberes pedagógicos no campo
educacional brasileiro. Atualmente, integra o Projeto Temático Saberes e
Práticas em fronteiras: por uma história transnacional da educação (1810-...),
com o projeto de IC Saberes pedagógicos em fronteiras: um estudo sobre a
circulação das ideias de Luiz Alves (processo n. 2019/19450-2)

Rachel Duarte Abdala


Mestre e Doutora pela Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo-FEUSP. Coordenadora Adjunta e docente permanente do Programa
de Mestrado em Desenvolvimento Humano da Universidade de Taubaté-
UNITAU. Docente colaboradora do programa de Mestrado Profissional em

186
Educação da UNITAU. Docente do Curso de História da UNITAU. Professora
Colaboradora da FEUSP. Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos
e Pesquisas em História da Educação-NIEPHE da FEUSP. Atualmente,
integra o Projeto Temático Saberes e Práticas em fronteiras: por uma história
transnacional da educação (1810-...) na qualidade de pesquisadora associada.

Rafaela Rabelo
Professora Colaboradora da Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo (FEUSP). É doutora em Educação pela FEUSP, com estágio de
pesquisa no Teachers College/Columbia University, mestre em Educação
em Ciências e Matemática e Licenciada em Matemática pela Universidade
Federal de Goiás. Membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas
em História da Educação (NIEPHE). Atualmente, integra o Projeto Temático
Saberes e Práticas em fronteiras: por uma história transnacional da educação
(1810-...) na qualidade de pesquisadora associada.

Vinicius Monção
Doutor e mestre em Educação, com ênfase em História da Educação, e
pedagogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É membro pesquisador
da Red de Estudios de Historia de las Infancias en América Latina desde 2015,
e membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História
da Educação (NIEPHE). Pós-doutorando na Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo, sob supervisão de Diana Vidal, com o projeto
“A revista The New Era: produção e circulação de saberes sobre a Educação
Nova a partir da perspectiva da história transnacional da Educação” (Processo
FAPESP 2020/00219-6), vinculado ao projeto temático “Saberes e Práticas
em Fronteiras: por uma história transnacional da Educação (1810-...)” .

Vivian Batista da Silva


Professora Associada da FEUSP, onde também orienta pesquisas em nível
de mestrado e doutorado. É uma das pesquisadoras principais do Projeto
Temático Saberes e Práticas em fronteiras: por uma história transnacional
da educação (1810-...), desenvolvido junto à FAPESP desde 2018. Boa parte

187
de seus estudos tomam como objeto e fonte livros escritos para formar
professores, investigando questões ligadas à produção e circulação de saberes
pedagógicos em perspectiva histórica.

Wiara Rosa Alcântara


Mestre e doutora em Educação pela Universidade de São Paulo, tendo
sido bolsista da FAPESP, tanto no mestrado quanto no doutorado. Atualmente,
é professora da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP/Diadema.
Atua principalmente nos seguintes temas: Formação de professores; Memória
e profissão docente; Cultura Escolar; Cultura Material Escolar; História
Econômica da Escola; Legislação escolar; História da Administração escolar.
Membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da
Educação (NIEPHE-USP) e do Grupo de Pesquisa em História da Educação
em Ciências/UNIFESP-Diadema. Integra o Projeto Temático Saberes e
Práticas em fronteiras: por uma história transnacional da educação (1810-...)
na qualidade de pesquisadora associada.

188
formato: 15,5cm x 22,5cm | 190 p.
tipologias: Minion Pro, Myriad Pro
papel da capa: Cartão 250g/m2
papel do miolo: Offset 90g/m2

coordenação. editorial: Betânia G. Figueiredo


diagramação: Marcela Paim do Carmo
capa: Amanda Paim do Carmo
revisão de textos: Cláudia Rajão
O desafio contemporâneo de refletir criticamente
sobre a realidade brasileira, em perspectiva inter/
multi/ trans e pós-disciplinar, materializa-se nos
títulos que integram a Coleção Estudos Brasileiros,
do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade
de São Paulo, na Série Paralelos 22, publicada pela
Editora Fino Traço.
Pensar a América portuguesa e o Brasil, a partir de
apurada perspectiva epistemológica, pressupõe
a ampliação, o adensamento e a interconexão de
diferentes enfoques teóricos e metodológicos
capazes de propiciar a apreensão de experiências
coletivas e individuais, desvelando áreas de
investigação fronteiriças ou ainda pouco exploradas.
Supõe, igualmente, a compreensão das múltiplas
temporalidades que constituem o processo histórico,
tensionadas entre continuidades e rupturas. Impõe um
olhar, simultaneamente abrangente e verticalizado,
sobre questões econômicas, políticas e geográficas,
e sua configuração social, étnica/racial e de gênero,
contemplando alteridades e diversidades, assim como
sobre sua conformação educacional, cultural, literária,
artística e religiosa, em um mundo globalizado.

Você também pode gostar