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DataGramaZero - Revista de Ciência da Informação - v.3 n.

6 dez/02 ARTIGO 05

Os múltiplos aspectos e interfaces da leitura


The many aspects and interfaces of reading
por Lígia Maria Moreira Dumont

Resumo: Este trabalho apresenta uma visão panorâmica referente às áreas do conhecimento que se entrelaçam e propiciam um melhor
entendimento do ato de ler. Os estudos sobre leitura caracterizam-se pela multidisciplinaridade, portanto, estão sempre abertos à
interferência de outras áreas do conhecimento, dependendo certamente de determinado recorte, dentre os múltiplos e diversos ângulos de
análise possíveis na temática da leitura. Por suposto, está-se diante de um processo complexo; torna-se tarefa difícil estabelecer os limites
de cada olhar, pois o ato da leitura não se efetiva em ações isoladas, lineares, mas sim em decorrência de complexa reação em cadeia de
ações, sentimentos, motivações, especulações no cognóscio do leitor, suas análises e críticas. No artigo, são abordadas diversas teses e
teorias sobre a temática da leitura, centradas na premissa da leitura como ação social. Primeiramente, são delineados os estudos de Mme.
de Staël, Taine e Marx, pioneiros a destacarem o componente social na leitura. A seguir, são analisados os estudos sistemáticos
desenvolvidos nos Estados Unidos e na França, nas décadas de 1930 e 1950, respectivamente, que se constituem nas teorias cunhadas de
"sociologia da leitura": a Teoria dos fatores subjacentes de Holmes e os modelos de Carrigan e de Gray, de fundamentação organística e
funcionalista. Por fim, são delineadas algumas abordagens de autores contemporâneos estrangeiros, como Escarpit, Barthes, Compagnon,
Chartier, Allen e Spiro, bem como dos brasileiros Silva, Maria, Sodré e Kato. As teorias que se baseiam na área da psicolingüística e na
teoria da computação (inteligência artificial) são destacadas por Kato e Spiro. As abordagens culminam com a tese de Paulo Freire, que
imbrica definitivamente a vivência dos sujeitos ao aprendizado e ao desenvolvimento do ato da leitura.

Palavras-chave: Leitura-teoria, Cognóscio, Conhecimento-introjeção, Leitura e Sociedade, Informação e Sociedade

Abstract: The paper presents a scenery concerning to knowledge areas which etewine and allow a better understanding of the act of
reading. The studies about reading are characterized by its multidisciplinary aspects, therefore always open to other knowledge areas
interference, but depending on determined approach clipped among the many possible angles in the reading subject. Certainly, it is a
complex process; it becomes a hard task to establish the limits of each focus, because the effective act of reading is not an isolated, linear
action, but a result of the complex chain of actions and reactions, feelings, motivations, speculations in the reader's cognizance, his analysis
and criticisms. This article presents many thesis and theories about reading with the approach of reading as a social action. First, Mme de
Staël's, Taine's and Marx's studies are described, the pioneers to emphasize the social component in literature. Next, are analyzed the
systematic studies developed in USA and France in the 30's and 50's, respectively, that consist of the theories called as reading sociology:
the Theory of parsers of Holmes and Carrigan's and Gray's models, of organic and functionalist basis. At the end are described some
approaches of contemporary foreign author's as Escarpit, Barthes, Compagnon, Chartier, Allen and Spiro, as well as the Brazilian's Silva,
Maria, Sodré and Kato. The theories based on the psycholinguist area and in the computer science (artificial intelligence) are emphasized
by Kato and Spiro. The approaches culminate in Paulo Freire's thesis, which melts definitely the context with the learning process to
become a literate person.

Keywords: Reading Theories, Cognizance, Knowledge Absorption, Reading and Society, Information and Society

Introdução

Sem dúvida alguma, o estudo da leitura compõe-se de um mosaico de teorias e conceitos pertencentes a várias
áreas do conhecimento. Concebida enquanto ação, e não ato passivo, pressupõe abordagem multidisciplinar
devido às diversas facetas do processo dinâmico do ato de ler. É a diversidade que delineia o seu corpus teórico,
sempre aberto e, portanto, tolerante à interferência de outros olhares, focados certamente em determinado recorte,
dentre os múltiplos e diversos ângulos de análise possíveis na temática da leitura. No entanto, cada ciência possui
um olhar específico, diferenciado no que se quer fazer em um determinado momento social, antropológico,
histórico, comportamental, filosófico, teológico, dentre os vários possíveis. Nessa perspectiva, torna-se necessário
sublinhar as diferentes formas de relação do leitor com o texto. Tal relação compõe-se de um sujeito-leitor
produtor de sentidos, que interage com determinado texto impregnado de sentidos, escrito por outro sujeito-autor,
também produtor de sentidos. Sendo que ambos - leitor e autor - geralmente pertencem a contextos diferentes.
Tem-se no final do processo a produção de terceiro sentido. Essa trama se relaciona, direta ou indiretamente, em
menor ou maior grau, com diversas áreas do conhecimento que se interlaçam, fazem interseções, amalgamam-se,
vindo por fim a conceber outro conhecimento.

Por suposto, estamos diante de um processo complexo, que pode ser estudado sob vários ângulos. É tarefa difícil ?
mesmo didaticamente ? isolar, esquematizar, separar, perceber onde se manifesta determinado conceito,
estabelecer os limites de cada um. Porém, o que mais interessa é exatamente o produto final dessas manifestações.
O ato da leitura não se efetiva em ações isoladas, nem mesmo lineares, mas sim em decorrência de complexa
reação em cadeia de ações, sentimentos, desejos, especulações na bagagem de conhecimentos armazenados,
motivações, análises, críticas do leitor. A leitura é uma experiência e encontra-se submetida a diversas variáveis
que não podem deixar de ser verificadas, ao se tentar teorizá-la.

Neste artigo, abordar-se-ão diversas teses e teorias sobre a temática da leitura, centradas na premissa da leitura
como ação social. Primeiramente, serão delineados os estudos de Mme de Staël, Taine e Marx, pioneiros a
destacarem o componente social na literatura. Utilizaram a expressão "romance social", portanto, ainda
circunscrita à literatura de ficção com temática amorosa. A seguir, serão analisados os estudos sistemáticos
desenvolvidos nos Estados Unidos e na França, nas décadas de 1930 e 1950, respectivamente, que constituíram
teorias cunhadas de "sociologia da leitura": a Teoria dos fatores subjacentes de Holmes e os modelos de Carrigan
e de Gray, de fundamentação organística e funcionalista. Por fim, serão delineadas algumas abordagens de autores
contemporâneos estrangeiros como: Escarpit, Barthes, Compagnon, Chartier, Allen e Spiro; bem como dos
brasileiros: Silva, Maria, Sodré e Kato. As teorias que se baseiam na área da psicolingüística e na teoria da
computação (inteligência artificial) são destacadas por Kato e Spiro. As abordagens culminam com a tese de Paulo
Freire, que preconiza que "a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a
continuidade da leitura daquele", imbricando definitivamente a vivência dos sujeitos ao aprendizado e à efetivação
do ato de ler.

O estudo sistemático da leitura

A tomada de consciência de que a leitura se subordina à dimensão social passou primeiro pelo estudo do ato ¾ ou
gosto ¾ de ler romances. Data de 1800 a obra de Mme de Staël[1] que inclui uma das primeiras tentativas de reunir
as noções de leitura e sociedade em estudo sistemático, assim definido pela autora: "eu me proponho a examinar
qual é a influência da religião, dos costumes e das leis sobre a literatura, e qual é a influência da literatura sobre a
religião, os costumes e as leis". (Apud ESCARPIT, 1958, p.8). Tratava-se de estender à literatura o tratamento
aplicado à história do direito, por Montesquieu ¾ um de seus mestres intelectuais ¾ escrevendo um esprit de la
litératture. Em determinado momento, usando o vocabulário da época, no qual as palavras moderno e nacional
recebiam novo sentido, tentava-se explicar a diversidade da literatura, dentro do tempo e do espaço, pelas
variações e pelos relacionamentos particulares das sociedades humanas. Essa bipolarização ¾ espaço e momento
¾ é reencontrada em Taine[2], também citado por Escarpit, e a ela se acrescenta uma forma terciária e mais
flexível: a raça. Segundo Taine, é a convergência desses três fatores que determina o fenômeno literário. Na
opinião de Escarpit, ainda faltava à teoria taineana a visão clara de "ciência humana", mas permaneceu, desde
então, a essência de que não é possível ignorar as determinações que as circunstâncias exteriores, claramente
sociais, influencia a atividade literária e, conseqüentemente, as motivações do ato da leitura.

A economia, igualmente tida como ciência humana, envereda-se também pelas questões literárias. Escarpit
acrescenta que, apesar de Marx e Engels terem reunido seus escritos, no fim do século XIX, na obra Sobre a
literatura e sobre a arte, é só a partir do início do século seguinte que se constrói uma verdadeira teoria marxista
da literatura, que é, bem entendido, essencialmente sociológica. Entretanto, "em seguida, o objetivo da eficácia
política conduziu a crítica literária soviética a enfocar menos a sociologia da literatura propriamente dita, em
detrimento ao estudo do testemunho social abordado pelas obras literárias". (ESCARPIT, 1958, p.10)

O estudo sistematizado da leitura teve início nos Estados Unidos durante a grande crise econômica dos anos 1930.
Tendo como base o cenário sociológico e sob a denominação de 'sociologia da leitura', as pesquisas sobre a difusão
desta e os seus efeitos sobre o leitor reuniam, na mesma direção, as ações de literatos, educadores, bibliotecários,
pedagogos, psicólogos e sociólogos. Na França, os estudos tiveram início na década de 1950. O objetivo era
melhorar as condições de promoção do uso e da partilha dos textos. Buscava-se saber quem, o que, por que e
como se lia. Tratava-se de questão decisiva para desenvolver a formação dos adultos, para promover as bibliotecas
e centros de documentação junto aos jovens ou para lutar contra os fatores sociais que limitavam a cultura às
elites. (ESCARPIT, 1958; CHARTIER, HÉBRARD, 1995).

Ao se tentar delinear os conceitos de leitura e mesmo de texto, verifica-se que esses extrapolam até os limites do
verbal. Os chineses, por exemplo, utilizam mais amplamente o conceito de leitura há muitos séculos. Referindo-se
a um quadro, dizem 'ler o quadro', e não vê-lo. Para se ler, não se necessita tão somente de decodificar signos, mas
de utilizar todos os sentidos, ou seja, toda a capacidade de interpretação e compreensão. Lêem-se quadros,
fotografias, gestos, pessoas, cidades. A palavra grega legei significa colher, juntar, pôr as coisas umas ao lado das
outras. Em latim, originou a palavra lego, mas os latinos utilizavam também interpretare, tendo ambas o
significado de 'ler'. Segundo Sodré (1994), a diferença consiste em que, quando os latinos diziam lego, legere,
estavam se referindo a olhar para o mesmo plano, juntar horizontalmente com o olhar; quando empregavam
interpretare, significava ler de um plano para o outro, verticalmente, com aprofundamento de dimensão vertical.

Tal é a dificuldade na conceituação de leitura, que Barthes e Compagnon (1987) assim definem o verbete leitura:
"A palavra 'leitura' não remete para um conceito, e sim para um conjunto de práticas difusas". (BARTHES,
COMPAGNON, 1987, p.184). Perguntam que ponto de vista deve-se adotar para o "conceito", que é utilizado de
formas distintas em várias áreas do conhecimento, como sociologia, fisiologia, história, semiologia, religião,
fenomenologia, psicanálise, filosofia, dentre outras. Cada uma dessas disciplinas tem uma palavra a dizer. Mas a
leitura não é simplesmente a somatória dessas palavras. Afirmam ainda que determinados assuntos não podem ser
tratados com método, sendo necessário "abrir entradas na palavra, ocupá-la por meio de sondagens sucessivas e
diversas, segurar muitos fios ao mesmo tempo - que, entrelaçados, tecem a trama da leitura" (BARTHES,
COMPAGNON, 1987, p.184). Segundo os autores, histórica e socialmente, o ato de ler envolve-se com um
conjunto de práticas - a técnica da decodificação e da prática social -, ler sempre esteve ligado às lutas políticas e
sociais no decorrer da história. É ainda uma forma de gestualidade, mesmo nos tempos modernos, pois significa
para o corpo uma ocupação do tempo livre com o prazer, o trabalho e o passatempo. Para os autores, a leitura
como lazer é forma de sabedoria, ou sinônimo de ler bem, quando desenvolvida criticamente e não mecânica ou
inocentemente. Citam ainda a prática da atividade voluntária. "Ler, portanto, adquire três auréolas prestigiosas
(pouco importa que talvez sejam contraditórias): a da ciência (exatidão, rigor), a da razão (desmitificação), a do
gosto (conformidade com o belo)" (BARTHES, COMPAGNON, 1987, p.186).

A verdadeira leitura consiste em atribuir significado ao escrito e depende diretamente das informações que o
indivíduo já possua sobre o mundo, o seu estoque simbólico. Ao atribuir significado muito mais amplo ao conceito
leitura, imbricada com a experiência prévia do leitor, Maria (1994) conclui que, em se tratando de leitura,
aprofunda-se sempre o aprendizado. Em cada novo texto que esteja lendo, em cada novo conhecimento que esteja
adquirindo, melhor o leitor está se tornando. Na realidade, pouca leitura é feita com o objetivo específico de
recolher informação do texto. Este tipo de leitura é, em geral, seletiva e localizada, respondendo diretamente à
intenção imediata do leitor. Ao contrário, quando se lê um romance, ou mesmo um ensaio, um jornal ou revista, o
motivo é muito mais a experiência e o prazer que a leitura proporciona do que a busca de informação. A autora
defende a mudança terminológica, propondo a troca da palavra alfabetização por "leiturização"[3], visando a uma
questão conceitual. O processo de decifração do código escrito torna-se, dessa forma, simplesmente o patamar de
partida para o verdadeiro entendimento de significados. Um dos maiores equívocos que se comete, ao avaliar o
nível de leitura de uma criança, é pedir que ela vá acompanhando com os olhos as linhas e recitando oralmente o
texto. Existe uma grande diferença entre ver e examinar, ouvir e escutar. Ler não é ver o que está escrito, nem
atribuir uma versão oral. É saber que certas respostas podem ser encontradas na produção escrita, construindo
conhecimento que entrelace informações novas àquelas que já possuía, conclui a autora.

Também Yunes (1994) sugere a possibilidade de se lançar muitos olhares sobre determinado conceito e questiona
se há consenso sobre o que seja leitura. Na prática do seu trabalho, prefere partir de premissas básicas como a
conexão ver/ ler/ conhecer, por mais simplistas que possam parecer. Para a autora, a partir de questão
ilusoriamente simples, encontra-se outra muito complexa, que é a precedência da leitura frente à escrita: "lemos
antes de escrevermos e lemos portanto mais que palavras, lemos o mundo, com códigos muito sutis
desentranhados da experiência e da reflexão quase intuitivamente a princípio" (YUNES, 1994, p.180).
Buscar um significado mais profundo e profícuo para a leitura foi objeto de estudo de Silva (1981), que se baseou
nos fundamentos filosóficos e psicológicos do ato de ler. Partindo da premissa básica de que a leitura seja
atribuição de significados, afirma que essa só se efetiva enquanto forma de participação, pois os signos impressos
registram diferentes experiências humanas. É, portanto, um tipo específico de comunicação, uma forma de
encontro entre o homem e a realidade sócio-cultural representada pelo texto. O 'compreender' deve ser visto
enquanto forma de ser, emergindo através de atitudes do leitor diante do texto, assim como através do seu
conteúdo, ou seja, o texto como indutor de percepção ou panorama dentro do qual os significados são atribuídos.
Segundo o autor,

"Compreender a mensagem, compreender-se na mensagem, compreender-se pela mensagem - eis aí


os três propósitos fundamentais da leitura, que em muito ultrapassam quaisquer aspectos utilitaristas,
ou meramente 'livrescos' da comunicação leitor-texto. Ler é, em última instância, não só uma ponte
para a tomada de consciência, mas também um modo de existir no qual o indivíduo compreende e
interpreta a expressão registrada pela escrita e passa a compreender-se no mundo" (SILVA, 1981,
p.45).

O autor acima citado desenvolve uma apreciação dos modelos clássicos de leitura, lembrando que várias ciências,
através de abordagens específicas, propuseram diferentes modelos para explicar o fenômeno da leitura. Destaca,
dentre outros, a Teoria dos fatores subjacentes da leitura de Holmes[4], que tenta relacionar mecanismos de
funcionamento do cérebro ao processo de leitura; o modelo de Smith e Carrigan[5], fundamentando o ato de ler
com considerações neurológicas; e o modelo de Gray[6], que apresenta um elenco de habilidades que são
acionadas durante a leitura. Silva mostra que os modelos, elaborados a partir da visão que enfoca o homem como
organismo que se comporta e se adapta a diferentes ambientes, assumem que a leitura pode ser explicada somente
através de termos reducionistas, como algo corporificado e situado ou, ainda, enquanto processo. A maioria desses
modelos, de origem norte-americana, mostra a inadequação - e portanto os defeitos - das abordagens organímicas
e funcionalistas que tentaram explicar o ato de ler. Por serem propostas mecanicistas, os investigadores buscaram
nas ciências exatas as respostas para uma problemática essencialmente humana. Por isso mesmo, seria mais
apropriado buscar na ontologia, na hermenêutica, na comunicação e na própria psicologia (não a behaviorista, mas
a fenomenológico-existencial) aqueles dados que permitam perspectivar os elementos constitutivos do ato de ler,
colocando-os dentro de uma estrutura significativa. Os modelos "prontos" da leitura mostraram que nenhum deles
explica adequadamente o ato de ler. O autor refuta, então, qualquer proposta que explique o ato de ler segundo
padrões funcionalistas, experimentais ou naturalistas.

Silva apresenta o paradigma humano do ato de ler, baseado no princípio do ato de comunicar, isto é, da relação
emissor-receptor. Sua contribuição consiste em explicitar que o leitor, ao buscar a compreensão do texto, executa
as atividades de constatação, cotejo e transformação. Na constatação, o sujeito situa-se nos horizontes da
mensagem, destacando e enumerando as possibilidades de significação; no cotejo, o sujeito compara os
significados atribuídos com os anteriormente introjetados e os interpreta; na transformação, o sujeito responde aos
horizontes evidenciados, reelaborando-os em termos de novas possibilidades.

Neste ponto, faz-se necessária a ressalva de que a tese de doutorado de Ezequiel Silva foi publicada no ano de
1981. Sabe-se perfeitamente o longo e rápido caminho percorrido pela ciência da informação nesse período,
principalmente em relação aos estudos relativos ao cognóscio e à introjeção de conhecimentos, em que se insere
basicamente a ação de ler, decodificar signos. Questiona-se, mesmo na atualidade, o estreito atrelamento entre os
sistemas de informação e de comunicação, este último desenvolvido por Weaver (1975), e no qual Silva baseia sua
teoria.

Kato (1985) e Spiro (1980) também apresentam teorias de decodificação de leitura, desenvolvidas por lingüistas,
psicolingüístas e psicólogos, divididas nas duas categorias seguintes: as que se fundamentam na área da psicologia
e psicolingüística e as que a estas acrescentam o trabalho das teorias da computação. Denominadas teorias de
decodificação do campo de cognição e inteligência artificial, trabalham com modelos identificados como
parceladores (parsers). As teorias que se baseiam em processos cognitivos - ou seja, atividades mentais de como
pensar, imaginar, relembrar e solucionar problemas - também têm sido tema de pesquisas na área de ciência da
informação, investigando como esses processos podem se relacionar com o comportamento de busca de
informação. A intenção é desenvolver modelos que demonstrem como o sujeito apreende a informação
apresentada, interpreta o que apreendeu comparando com o conhecimento existente na memória e, então, toma
decisões e resolve problemas. Tais estudos têm produzido resultados e propiciado o desenvolvimento de várias
teses sobre a ação leitura, mas lacunas substanciais ainda persistem. Esse é o diagnóstico de Allen (1991), que
relata vários estudos que se estão desenvolvendo sob essa perspectiva.

Devido ao fato de, atualmente, os trabalhos sobre leitura serem expressivamente numerosos, é quase impossível
reunir e selecionar o conhecimento exaustivo sobre os mesmos. Além disso, os problemas tratados pelos
pesquisadores são tão específicos, que o objeto leitura não define nem o conteúdo, nem a metodologia. Dessa
característica nasce a necessidade de práticas multidisciplinares, pois não é mais possível delimitar o campo de
estudo da leitura e da literatura. Várias disciplinas interagem para delinear a temática da leitura e integram um
quadro teórico interpretativo de conjunto. Segundo Chartier (1995),

"por ser a leitura um objeto comum de múltiplas pesquisas, oriundas de todas as disciplinas, e por
continuar sendo uma questão científica esfacelada, a leitura foi e continua sendo a oportunidade para
trocas interdisciplinares tão frutíferas quanto imprevistas" (CHAARTIER, ª M., 1995, p.47) .

Constata-se, contudo, certa ênfase recaindo sobre estudos das áreas de semiologia, motivação e contexto do leitor
- tríade considerada inseparável na efetivação do ato da leitura.

Conclusão

A leitura não é só uma operação do intelecto humano. Pode-se dizer que tem início com o lado físico do sujeito,
mas decorre, acima de tudo, da inscrição deste em determinado contexto ou espaço, do relacionamento consigo
mesmo e com os outros sujeitos. Ler é trabalho de linguagem e de comunicação social.
Ao se desenvolver o ato da leitura, torna-se necessário que o leitor encontre sentidos e nomeie-os. Estes nomes
agrupam-se a outros nomes e são novamente nomeados, estabelecendo-se uma cadeia sem fim, a qual Barthes
(1980) denomina de "trabalho metonímico". E prossegue:

ler é entrar em "uma rede com mil entradas; seguir esse caminho é visar ao longe, não uma estrutura
legal de normas e desvios, uma lei narrativa e poética, mas uma perspectiva (de restos, de vozes
vindas de outros textos, de outros códigos) cujo ponto de fuga é misteriosamente aberto e, no entanto,
continuamente transferido" (BARTHES, 1980, p.17).

A transnominação e esse 'navegar' em rede de significados e palavras infinitas, tão bem descritos pelo autor,
mostram que o sujeito, ao ler determinado texto, já é pluralidade de outros textos. Essa conclusão remete
invariavelmente a Paulo Freire que, imaginando a alfabetização de adultos mais adequada à realidade brasileira,
criou o método de alfabetização, cujo pressuposto básico fundamenta-se na afirmativa de que "a leitura do mundo
e a leitura da palavra estão dinamicamente juntas". Conseqüentemente, o comando do ato de ler dá-se a partir de
temas significativos à experiência do alfabetizado, e não à do alfabetizador. Para a verdadeira efetivação da
alfabetização, com o do domínio da leitura, é necessário partir de determinado atrativo, algo familiar, para se
atingir a interpretação. O homem lê num processo de permanente interação entre sensações, emoções e
pensamentos.

Assim, o leitor será capaz de fazer a interpretação global do texto, que será finalmente percebido como Burgos
(1992) o define, "uma máquina que faz refletir". Ou seja, é ele que instiga no leitor a capacidade de interpretação,
de reflexão, propicia a leitura elaborada de situações "dúbias". E, para finalizar, complementa-se que a leitura é a
relação dialógica entre o mundo do texto e o mundo do leitor. Para que esse encontro se efetive, não é necessário
possuir somente competência técnica - indispensável mas insuficiente. Torna-se ainda necessária a capacidade de
saber integrar esses dois universos. Ousa-se até afirmar que tal diálogo seja a essência de todo o processo da ação
leitura.

"Um leitor auto-suficiente descobre constantemente nos escritos de outrem


perfeições diferentes daquelas que o autor colocou e se apercebeu; e
insere sentidos e visões muito mais ricas".
Montaigne
Notas

[1] STAËL, Mme de. De la littérature considérée dans ses rapports avec les institutions sociales. Paris: [s.ed.],
1800.

[2] Compilado por Escarpit da obra de: LANSON, G. Méthodes de l'histoire littéraire. Études Françaises, Paris,
p.23, jan. 1925.

[3] MARIA (1994) apóia-se em Jean Foucambert para defender o conceito da palavra leiturização: "não se trata
apenas de mudança de nomes, mas sim de questão conceitual. Em vez da ênfase no processo de decifração da
escrita com base na correspondência grafofonêmica, a ênfase recai em estratégias que possibilitem o indivíduo a
construir significados e a recolher informações a partir do texto escrito" (p.174) .

[4] HOLMES, Jack A. Factors underlying major reading disabilities. Genetic Psychology Monographs,
Princetown, Mass., v.49, p.3-95, Jan./June 1954.

[5] SMITH, Donald E. P., CARRIGAN, Patrícia M. The nature of reading disability. New York: Harcourt, Brace,
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[6] GRAY, William S. The major aspects of reading. In: ROBINSON, Helen M. (Ed.). Sequential development of
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Sobre o Autor/About the Author


Lígia Maria Moreira Dumont
dumont@eci.ufmg.br
Doutora em Comunicação e Cultura pelo IBICT/UFRJ. Professora Adjunta da Escola de Ciência da Informação
da UFMG. Consultora ad-hoc da Pró-Reitora de Pesquisa da UFMG e da Comissão de Especialistas da
SESu/MEC. Chefe do Departamento de Teoria e Gestão da Informação da ECI/UFMG

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