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Acórdãos TRC Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

Processo: 211/15.4GATND.C1

Nº Convencional: JTRC

Relator: ELISA SALES

Descritores: DIREITOS DE AUTOR


USURPAÇÃO
ACTIVIDADE DE DIFUSÃO
TELEVISÃO

Data do Acordão: 22-02-2017

Votação: UNANIMIDADE

Tribunal Recurso: VISEU (SEC. INST. CRIMINAL DA INST. CENTRAL DE VISEU - J1)

Texto Integral: S

Meio Processual: RECURSO CRIMINAL

Decisão: CONFIRMADA

Legislação Nacional: ARTS. 68.º, 149.º, 195.º E 197.º DO CDADC

Sumário: I - A simples actividade de audição/visionamento de canal televisivo,


em cafés, restaurantes, bares, e outros estabelecimentos abertos ao
público em geral, não dependendo de prévia autorização dos
autores das obras transmitidas, não é idónea à verificação do crime
de usurpação.

II – Assim é porquanto em causa está tão só a captação, por


aparelho de TV, dos sinais de sons e imagens difundidos pelo
transmissor e não a reutilização de obra, prevista no n.º 2 do artigo
149.º do CDADC, reportada a situações em que a transmissão,
acrescentando, modificando ou inovando - através de meios
técnicos na forma de recepção - constitui uma nova utilização de
determinada obra.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação
de Coimbra

I - RELATÓRIO

Sociedade Portuguesa de Autores, C.R.L., assistente nos autos, veio


interpor recurso da decisão proferida pela Mmª Juiz de Instrução de
não pronúncia do arguido A..., pela prática do crime de usurpação p. e
p. pelos artigos 149º, 195º e 197º do Código do Direito de Autor e dos
Direitos Conexos (CDADC), ou qualquer outro, mantendo o despacho
de arquivamento proferido pelo Ministério Público.

São as seguintes as conclusões da motivação de recurso:

a) No dia 27 de Novembro de 2015, pelas 12h20, no estabelecimento


comercial denominado “Restaurante Café X... ”, e que no momento se
encontrava aberto ao público e em funcionamento, com cerca de 4
clientes, encontravam-se a ser difundidas obras musicais e literário-
musicais, protegidas pelo direito de autor, sendo que essa difusão era
efectuada através da exibição do canal RTP1;

b) As obras transmitidas neste estabelecimento comercial são


protegidas pelo direito de autor;

c) O arguido não dispunha de autorização da Recorrente, que o


habilitasse a difundir tais obras em espaço público;

d) A questão a apreciar nos autos é saber se a utilização que o arguido


fazia das obras configura o conceito de “comunicação pública”, tal
como previsto no artigo 3º n.º 1 da Directiva 2001/29;

e) O CDADC tem a sua fonte de inspiração na Convenção de Berna;

f) O artigo 149º do CDADC, que tem a sua referência directa no artigo


11º bis da Convenção de Berna, prevê o direito exclusivo do autor
autorizar a utilização das suas obras de três formas diferentes: a
radiodifusão; a retransmissão e a comunicação pública de obras
radiodifundidas;

g) A previsão destas três formas de utilização das obras pretende


assegurar que a autorização dada para uma fase (a radiodifusão) não
seja automaticamente considerada extensiva às fases posteriores, por
exemplo, a retransmissão ou comunicação pública das obras
radiodifundidas;

h) O autor considera a sua autorização de radiodifusão no sentido de


abranger apenas a audiência directa que recebe o sinal, num círculo
familiar;

i) A Directiva 2001/29 consagrou o direito exclusivo do autor autorizar


qualquer comunicação pública das suas obras, estipulando que “Os
Estados Membros devem prever a favor dos autores o direito
exclusivo de autorizar ou proibir qualquer comunicação ao público
das suas obras”;

j) O Tribunal de Justiça da União Europeia tem vindo, pelo menos


desde 2007, em sucessivos Acórdãos, a proferir decisões que nos
permitem, com segurança e de modo uniforme a toda a União
Europeia, circunscrever e entender este conceito;

l) O Tribunal de Justiça da União Europeia tem entendido que a


transmissão de obras radiodifundidas, através de aparelhos de
televisão ou rádio em espaços públicos, configura o conceito de
comunicação pública, uma vez que o detentor do aparelho de
televisão, ao permitir a escuta ou a visualização da obra, tal
intervenção deve ser considerada um acto de comunicação ao
público, nos termos do artigo 3º n.º 1 desta Directiva;

m) O Tribunal de Justiça da União Europeia tem circunscrito o


conceito de “comunicação pública” em diversos Acórdãos, de entre os
quais os Acórdãos SGAE, C-306/05; Football Association Premier
League, C-403/08 e C-429/08 e OSA, C-351/12;

n) O Tribunal a quo afirmou conhecer a Directiva 2001/29, mas


interpretou-a de forma diferente do sentido e alcance que tem de
acordo com esta directiva;

o) As normas nacionais devem ser interpretadas no sentido que


resulta da letra e do espírito da Directiva;

p) No âmbito de um processo de reenvio promovido pelo Tribunal da


Relação de Coimbra, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu
que “o conceito deve ser interpretado como abrangendo a
transmissão de obras radiodifundidas através de um ecrã de televisão
– que se estende ao aparelho de rádio – e de colunas aos clientes que
se encontrem presentes num estabelecimento comercial. Em tal
situação estamos perante uma nova comunicação ao público e não
perante uma mera recepção de uma obra”;

q) Uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia proferida em


casos de reenvio prejudicial para efeitos de interpretação vincula,
quer quanto às conclusões, quer quanto à fundamentação, os
tribunais nacionais.

r) O Tribunal a quo estava vinculado a seguir a interpretação que o


Tribunal de Justiça da União Europeia deu ao conceito de
“comunicação pública” no processo de reenvio suscitado pelo
Tribunal da Relação de Coimbra;

s) Ao ter decidido de forma diferente o Tribunal a quo violou os


princípios do primado e da interpretação conforme;

t) Bem andou o Tribunal da Relação de Lisboa, no seu acórdão


proferido em 30 de Junho de 2016, no âmbito do processo
170/15.3GCMFR.L1, em que, referindo-se, e transcrevendo, o
Despacho proferido pelo TJUE em 14.07.2015, já aqui referido,
entende aquele Tribunal da Relação de Lisboa que Assistiria razão ao
MºPº neste entendimento acerca da aplicação do acórdão nº 15/2013
se não tivesse sido proferido, posteriormente ao mesmo acórdão ter
sido tirado, o despacho.

u) Concluindo que Assim analisada a questão colocada pela


recorrente Sociedade Portuguesa de Autores, o recurso tem de ser
decidido no sentido de o mesmo merecer provimento, e de ser
revogada a decisão recorrida, determinando-se a sua substituição por
outra que pronuncie a arguida, conforme vem pedido.

v) A decisão proferida pelo Meritíssimo Juiz a quo deve, por isso, ser
alterada, pronunciando-se o arguido pela prática de um crime de
usurpação.

Termos em que deve ser revogada a decisão proferida em primeira


instância, pronunciando-se o arguido A... pela prática de um crime de
usurpação, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 195º e
197º do CDADC.

Respondeu o Magistrado do Ministério Público junto do tribunal


recorrido, defendendo a improcedência do recurso, por considerar
que “A transmissão de programa por televisão em estabelecimento
comercial não é, por si só, reutilização da obra. Sê-lo-á se forem
empregues meios técnicos que recriem de qualquer forma a difusão
da mesma, produzindo um espectáculo diferente do que é
teledifundido.”.

Nesta instância também o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu


parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP, não foi obtida


resposta.

Os autos tiveram os vistos legais.

***

II – FUNDAMENTAÇÃO

Vejamos como a Mmª Juiz a quo fundamentou a sua decisão de não


pronúncia:

 “ I- Relatório:

Iniciaram-se os presentes autos com a notícia de que no dia 27 de


Novembro de 2015, pelas 12h20m, no restaurante café X... , sito na
Avenida (...) , no Caramulo, explorado pelo ora arguido, estavam a ser
transmitidas imagem e som através de televisão, sem que o
estabelecimento fosse detentor de licença para o efeito.

O Ministério Público arquivou os autos com fundamento no ac. do STJ


n.º 15/2013.

A assistente veio requerer a abertura de instrução, pedindo a


pronúncia do arguido por um crime de usurpação, p.p.p artigo 195 do
CDADC

Foi admitida a instrução.

Procedeu-se à realização de debate instrutório.

(…)

***

II- Fundamentação da decisão:

Cabe agora proferir a decisão a que alude o art. 307° do CPP.

***

Tal como refere o art. 286°, n.º 1 do CPP “A instrução visa a


comprovação judicial da decisão de deduzir a acusação ou de arquivar
o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
De acordo com o artigo 308º do mesmo diploma preceitua que: "Se,
até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios
suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a
aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o
juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso
contrário, profere despacho de não pronúncia".

Por sua vez o art. 283º, n.º 2 refere que: "Consideram-se suficientes os
indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao
arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena
ou uma medida de segurança".

Assim, sendo este o entendimento legal em que deve assentar a


prolação de despacho de pronúncia ou de não pronúncia, do mesmo
resulta que o despacho de pronúncia só deve ser proferido se se puder
formular um juízo de probabilidade de aplicação ao arguido de uma
pena ou de uma medida de segurança".

Desde logo, na situação concreta há que ter em conta os seguintes


artigos 68°, 149°, 155°, 195° e 197°, todos do CDADC.

Assim, o artigo 68, n.º 2, al. e) estipula que:

"- A exploração e, em geral, a utilização da obra podem fazer-se,


segundo a sua espécie e natureza, por qualquer dos modos
atualmente conhecidos ou que de futuro o venham a ser.

2 - Assiste ao autor, entre outros, o direito exclusivo de fazer ou


autorizar, por si ou pelos seus representantes:

a) ( ... );

e) A difusão pela fotografia, telefotografia, televisão, radiofonia ou


por qualquer outro processo de reprodução de sinais, sons ou imagens
e a comunicação pública por altifalantes ou instrumentos análogos,
por fios ou sem fios, nomeadamente por ondas hertzianas, fibras
óticas, cabo ou satélite, quando essa comunicação for feita por outro
organismo que não o de origem;

(...)".

Por seu turno o artigo 149 estipula que:

"1- Depende de autorização do autor a radiodifusão sonora ou visual


da obra, tanto direta como por retransmissão, por qualquer modo
obtida.

2 - Depende igualmente de autorização a comunicação da obra em


qualquer lugar público, por qualquer meio que sirva para difundir
sinais, sons ou imagens.

3 - Entende-se por lugar público todo aquele a que seja oferecido o


acesso, implícita ou explicitamente, mediante remuneração ou sem
ela, ainda que com reserva declarada do direito de admissão".

O artigo 155 estipula que:

"É devida igualmente remuneração ao autor pela comunicação


pública da obra radiodifundida, por altifalante ou por qualquer outro
instrumento análogo transmissor de sinais, de sons ou de imagens".

O artigo 195 acrescenta que:

"1 - Comete o crime de usurpação quem, sem autorização do autor ou


do artista, do produtor de fonograma e videograma ou do organismo
de radiodifusão, utilizar uma obra ou prestação por qualquer das
formas previstas neste Código.

2 - Comete também o crime de usurpação:

a) Quem divulgar ou publicar abusivamente uma obra ainda não


divulgada nem publicada pelo seu autor ou não destinada a
divulgação ou publicação, mesmo que a apresente como sendo do
respetivo autor, quer se proponha ou não obter qualquer vantagem
económica;

b) Quem coligir ou compilar obras publicadas ou inéditas sem


autorização do autor;

c) Quem, estando autorizado a utilizar uma obra, prestação de artista,


fonograma, videograma ou emissão radiodifundida, exceder os limites
da autorização concedida, salvo nos casos expressamente previstos
neste Código.

3 - Será punido com as penas previstas no artigo 197.° o autor que,


tendo transmitido, total ou parcialmente, os respetivos direitos ou
tendo autorizado a utilização da sua obra por qualquer dos modos
previstos neste Código, a utilizar direta ou indiretamente com ofensa
dos direitos atribuídos a outrem".

Finalmente o 197 estipula que:

"1- Os crimes previstos nos artigos anteriores são punidos com pena
de prisão até três anos e multa de 150 a 250 dias, de acordo com a
gravidade da infração, agravadas uma e outra para o dobro em caso
de reincidência, se o facto constitutivo da infração não tipificar crime
punível com pena mais grave.

2 - Nos crimes previstos neste título a negligência é punível com multa


de 50 a 150 dias.

3 - Em caso de reincidência não há suspensão da pena".

Dúvidas não existem que a criação literária e artística carece de


proteção e recebe a tutela do Direito de Autor, vertida no CDADC.

Com o CDACD protegem-se bens de carácter pessoal e direitos


patrimoniais.

A questão a decidir nos presentes autos resume-se a uma discussão de


direito, nomeadamente de saber se não fazendo as colunas que
ampliam o som parte integrante do rádio, a distribuição do som, que
por elas é feita, extravasa a mera receção, passando a configurar uma
nova transmissão do programa.

Tal questão de direito originou na jurisprudência alguma divisão,


terminando com o ac. do STJ a que alude a Digna Procuradora Adjunta
no seu despacho de arquivamento.

A nosso ver, que art.° 149°, n.º 2 do CDADC não prevê a mera receção
de emissões de radiodifusão, que é livre, mas a transmissão daquelas
emissões.

A mera receção de uma emissão radiodifundida em estabelecimentos


comerciais é livre, sendo que o que se discutia é se a futura
transmissão daquela receção, nomeadamente através de colunas
constituía, ou não crime.

A este propósito escrevia Oliveira Ascensão: “Princípio fundamental


nesta matéria é o da liberdade de recepção ( ... ) seria absurdo sujeitar
as duas autorizações o mesmo programa, com a consequente dupla
cobrança, na fonte e no destino. Na realidade, quem possuir um
receptor pode utilizá-lo livremente, pois a autorização inicial para a
radiodifusão abrange já a posterior recepção”.

Os defensores de que não constituía crime argumentavam,


basicamente que a mera existência de colunas de ampliação do som
difundido por radiofonia ou televisor não transforma o ato de receção
livre em (re)transmissão do programa, não se adulterando por essa
forma a utilização da obra transmitida através daqueles aparelhos. De
facto, o que se dizia era que a utilização das colunas em nada alterava
a utilização da obra transmitida através da televisão uma vez que
quer a imagem quer o som eram exatamente os que o canal
sintonizado transmitia.

Os defensores de que não constituía crime, salientavam, ainda, a


necessidade de distinguir entre a mera receção e a reutilização da
obra, pois só quando se dava esta última é que fazia sentido conferir
ao autor da obra direito a nova remuneração.

Acontece que esta questão ficou decidida através do UF de


13.11.2013, DR, I SÉRIE, 243, 16.12.2013, que estipulou que: "A
aplicação, a um televisor, de aparelhos de ampliação do som,
difundido por canal de televisão, em estabelecimento comercial, não
configura uma nova utilização da obra transmitida, pelo que o seu uso
não carece de autorização do autor da mesma, não integrando
consequentemente essa prática o crime de usurpação, p. e p. pelos
arts. 149°, 195° e 197° do Código do Direito de Autor e dos Direitos
Conexos".

Ora, concordamos na integra com os fundamentos que constam do


acórdão, aplicável, por maioria de razão às situações do som ser
difundido não por televisão, mas por rádio.

Assim, e não obstante, o mesmo, nos termos do artigo 445, n.º 3 do


CPP não constituir jurisprudência obrigatória para os tribunais
judiciais, nada mais temos a acrescentar, sendo que, só em caso de
divergência do acórdão é que a mesma deveria ser fundamentada.

Aliás, ainda muito recentemente e, precisamente sobre um recurso


que incidiu sobre uma decisão desta instância central de instrução
criminal decidiu o TRC (ac. de 20.1.2016, in http://www.dgsi.pt/jtrc.)
nos seguintes termos:

"I - A usurpação é um crime comum e de execução vinculada, que


tutela o bem jurídico criação intelectual, artística e científica sendo
que, parte significativa da acção típica está remetida para as formas
de utilização de obra ou prestação previstas no CDADC,
essencialmente contidas no seu art. 68.

II - O estabelecimento comercial gerido pelo arguido [frutaria] é, face


à matéria de facto que se mostra indiciada, obviamente, um lugar
público.

III - Deste modo, o que há a decidir é saber se a difusão de obra


radiodifundida em local público através de colunas que, ampliando e
distribuindo o som, não faziam parte integrante do aparelho que
sintonizava a estação emissora de rádio, configura uma mera
recepção [recepção - ampliação] da obra ou antes traduz uma nova
utilização, uma recepção transmissão, da mesma obra.

IV - Constitui mera recepção e não reutilização da obra transmitida, a


difusão de música ambiente através de várias colunas de som,
distribuídas pelo tecto da frutaria, aberta ao público e gerida pelo
arguido, ligadas a um circuito integrado de som, marca Efapel,
sintonizado em determinada estação emissora de rádio;

V - Por isso, esta actividade de difusão de música ambiente não carece


de autorização dos autores das obras radiodifundidas por aquela
estação emissora".

É certo que, em abono da sua tese, alega a assistente uma diretiva


comunitária, mais concretamente a diretiva 2001/29/CE e o princípio
do primado.

Acontece que, este Tribunal não se recusa a aplicar a mencionada


diretiva, entende é que a mesma deve ser interpretada nos termos por
nós já exposto, e pelos fundamentos que consta do citado UF, e isto,
como todo o respeito pelas decisão do TJ invocados, proferidas no
âmbito de processos distintos deste e anteriores ao acórdão do STJ.

Na verdade do TJ tem feito uma interpretação distinta da da nossa


jurisprudência da diretiva 2001, o que não significa que este Tribunal,
bem como o STJ esteja a violar a diretiva comunitária, bem como o
princípio do primado.

Bem andou a Sr.ª Procuradora Adjunta ao arquivar os autos, não


assistindo razão ao assistente.

Perante tal, e tratando-se exclusivamente de uma questão de direito,


o Tribunal não descrimina os factos indiciados e os não indiciados, não
obstante dúvidas não existirem que os factos que constam do auto de
notícia se encontram suficientemente indiciados.

Pelo exposto:

III- Decide-se:

Não Pronunciar o arguido, por um crime de usurpação, p.p.p artigo


194, 195 e 197 do CDADC, ou qualquer outro, mantendo o despacho
de arquivamento.

 (…).”

***

APRECIANDO

Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso e que estas


limitam o seu objecto, a questão suscitada e a decidir, consiste em
saber se, face aos factos que constam do auto de notícia e se
encontram suficientemente indiciados, deveria o arguido ser
pronunciado pela prática do crime de usurpação p. e p. pelos artigos
149º, 195º e 197º Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos
(CDADC),

A assistente notificada do despacho que, nos termos do art. 277º do


CPP, determinou o arquivamento dos autos, requereu a abertura de
instrução, visando a pronúncia do arguido pela prática do aludido
crime de usurpação.

Como refere o despacho recorrido dúvidas não existem que os factos


que constam do auto de notícia se encontram suficientemente
indiciados.

São tais factos:

“No dia 25 de Novembro de 2015, pelas 11:33, procedeu-se à


fiscalização do estabelecimento de restauração e bebidas,
denominado “ X... ”, sito na (...) , Caramulo – Tondela, explorado pelo
Sr, A... ;

Durante a fiscalização, constatou-se que no espaço dedicado aos


clientes do café, na parede lateral direita, encontrava-se um televisor
LCD, encontrando-se ligado a uma BOX do operador de
telecomunicações MEO, a qual comunicava publicamente, na
presença de quatro clientes, as obras provenientes do canal RTP1
naquele horário;

Questionado o Sr. A... se se encontrava habilitado pela licença SPA,


para emissão pública das obras difundidas naquele canal, o mesmo
não soube responder, apresentando licenças SPA dos anos de 2011,
2012 e 2013.”

Coloca-se, assim, a questão de saber se com base nos mencionados


factos o arguido deve ser pronunciado pela prática do crime de
usurpação p. e p. pelos artigos 149º, 195º e 197º do CDADC.

Tendo em conta o disposto nos artigos 68º, n.º 2, al. e), 149º, 155º,
195º e 197º, todos do CDADC (já transcritos na decisão recorrida),
sendo o estabelecimento em causa um lugar público (de acordo com
a definição do n.º 3 do art. 149º do CDADC), pergunta-se se a
audição/visionamento de estações de televisão em cafés,
restaurantes, bares, e outros estabelecimentos abertos ao público em
geral determinará a obrigação para os seus responsáveis de obter
autorização dos autores das obras transmitidas?
A esta pergunta respondeu o Acórdão Uniformizador de
Jurisprudência n.º 15/2013 (DR, 1ª série, n.º 243, 16 Dez. de 2013),
nos seguintes termos:

«Para decidir tal questão, há que operar a distinção entre receção e


comunicação. A receção consiste na captação pelos equipamentos
adequados dos sinais de sons e imagens difundidos pelo transmissor.
A receção é o terminus do processo de transmissão e só ela o justifica:
transmite-se (radiodifunde-se) para o recetor.

Esta utilização das obras pelo recetor confere naturalmente aos


autores o direito de a autorizarem (e o consequente direito à
remuneração por essa utilização), nos termos do n.º 1 do artigo 149º.

Mas, uma vez autorizada, a receção é livre, ou seja, o recetor pode


organizá-la como bem entender. Ponto é que se mantenha no âmbito
da receção.

É necessário, pois, distinguir entre a mera receção (captação dos


sinais) e a reutilização da obra, situação prevista no n.º 2 do artigo
149º. Este preceito tem de reportar-se a situações em que a
transmissão acrescenta, modifica ou inova, constituindo assim uma
nova utilização da obra. Só assim tem sentido conferir ao autor da
obra direito a nova remuneração.

Esta nova utilização passa necessariamente por uma qualquer


modificação por meios técnicos na forma de receção, em ordem a
aproveitá-la para produzir um efeito visual ou sonoro espetacular,
para criar uma encenação que a mera receção do programa
radiodifundido não provocaria.

Assim, sempre que a situação se configure como de mera receção,


ainda que alterada por quaisquer equipamentos, mas desde que
limitados à função de a aperfeiçoar ou melhorar, não se aplica o
disposto no n.º 2 do artigo 149º. Doutra forma, seriam cobrados
direitos a dobrar sobre a mesma utilização da obra, uma vez que pela
autorização da radiodifusão da obra já o autor recebeu a
correspondente remuneração».

Como escreveu Oliveira Ascensão ([1]) «Princípio fundamental nesta


matéria é o da liberdade de recepção. Poder-se-ia pensar na sujeição
de recepção a autorização do autor, ou pelo menos em atribuir uma
remuneração ao autor em consequência da recepção. Mas seria
absurdo sujeitar a duas autorizações o mesmo programa, com a
consequente dupla cobrança, na fonte e no destino. Na realidade,
quem possuir um receptor pode utilizá-lo livremente, pois a
autorização inicial para a radiodifusão abrange já a posterior
recepção.

(…) A lei não pode pois pretender limitar uma recepção que se quer
sem barreiras, e está já prevista na autorização para a radiodifusão.

(…) A recepção é livre, qualquer que seja o modo como se realiza. Não
tem a ver com o uso privado. Mesmo a recepção pública não altera
esta situação».

Portanto, tendo os direitos de autor sido já pagos pela entidade


difusora que presta o serviço televisivo ao arguido, este na qualidade
de explorador do estabelecimento, não carece de autorização da SPA,
dado que é mero receptor do serviço (teledifundido).

Deste modo, estando a situação dos autos no domínio da mera


recepção, não havendo qualquer recriação, não se verifica o crime de
usurpação imputado pela assistente/recorrente ao arguido.

Acresce que, acompanhamos a opinião segundo a qual “os


estabelecimentos dotados de aparelhos receptores de televisão,
ligados ao respectivo sinal difundido pelo distribuidor de cabo, pelo
qual pagam o respectivo serviço, se integram nos casos que se
prevêem no considerando da Directiva 2001/29/CE do Parlamento
Europeu e do Conselho de 21 de Maio de 2001, segundo o qual “a
mera disponibilização de meios materiais para permitir ou realizar
uma comunicação não constitui só por si uma comunicação na
acepção da presente directiva”.

Como salienta o Exmº PGA no seu parecer “Quanto à jurisprudência


do TJ da UE e consequente questão prejudicial anote-se apenas que o
AFJ, cujo acolhimento é obrigatório, teve em conta o conceito de
comunicação definido pelo TJ das Comunidades nas referências que
faz para decisões deste sobre o assunto, designadamente quando
refere a recepção multiplicada em estabelecimento hoteleiro, onde
indica, na nota 7, o ac. de 15.3.2012, proc. n° C162/10 (a que se
poderia acrescentar o de 7/12/2006 proc. C-306/05), ou quando alude
à transmissão televisiva em cafés, mencionando em sentido contrário
ao que aí se afirma o ac. de 4.10.2011, procs. n.ºs 403/08 e 429/08
(importando contudo atentar que, neste último caso, a destrinça no
conceito de comunicação se reporta a público presente ao evento - o
que estava em causa era a transmissão televisiva de jogos de futebol
através de retransmissores não comercializados no país em causa - e
público dele ausente, mas que pode visualizar, através da
retransmissão, aquele, o que no caso da transmissão de espectáculo
de um estúdio, como ocorre na situação dos autos, não se verifica,
sendo certo que a situação ali em apreço, pela ambiência que
envolve, bem diferente da que referem os presentes autos, se poderá
enquadrar na visualização de eventos desportivos a que se reporta o
AFJ, o qual também menciona, a propósito das transmissões
televisivas, o seu carácter anódino - normalmente apenas serve a
clientela habitual, para a qual não constitui nenhum atrativo). Daí que
não pareça existir a divergência mencionada pela recorrente, sendo
diferentes as situações e não tendo aqui aplicação a aludida
jurisprudência do TJUE.”.

Deste modo, não se vislumbrando no despacho recorrido qualquer


violação das orientações legais e jurisprudenciais da União Europeia a
que o Estado Português está obrigado e, dado que os factos indiciados
não preenchem o tipo do crime de usurpação, não merece censura o
despacho impugnado.

*****

III - DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal


da Relação em:

- Negar provimento ao recurso, confirmando-se, consequentemente,


o despacho recorrido.

Sem tributação (dado a recorrente estar isenta de custas – art. 4º, n.º
1, al. f) do Regulamento das Custas Processuais).

***

Coimbra, 22 de Fevereiro de 2017

(Elisa Sales – relatora)

(Paulo Valério – adjunto)

[1]
- in Direito de Autor e Direitos Conexos, 2008, págs. 301 e 302.

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