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IDENT IDADE E ALT ERIDADE NO MUNDO ÁRABE-ISLÂMICO AT RAVÉS DA VIAGEM DE IBN BAT T UTA (130…
Afonso Malecha
Uma Viagem ao Império do Mali no
Século XIV: O Testemunho da Rihla de
IBN Battuta (1352-1353)*
RESUMO
Entre 1352-1353, o viajante Ibn Battuta acompanhou uma caravana de comerciantes desde
a cidade de Sijilmassa, no Marrocos, até a capital do império do Mali, ali permanecendo
durante oito meses. As informações sobre a viagem e a estadia foram registradas na
Rihla, o relato de suas memórias, composto, em 1356, pelo escriba Ibn Yuzayy. Trata-se do
único depoimento escrito, anterior ao século XV, sobre as particularidades históricas de
um dos mais poderosos Estados da savana africana. Nele o viajante descreve aspectos da
paisagem natural, das formas de organização política e social e, sobretudo, dos costumes
e das crenças religiosas.
*
O ponto de partida do presente artigo foi o trabalho de conclusão de Roberta Pôrto
Marques intitulado “A viagem de Ibn Battuta ao Mali”, para a disciplina Seminário Temático de
História Medieval II, do curso de História da UFRGS, ministrada por José Rivair Macedo no
primeiro semestre de 2007.
Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da
**
1
Para um balanço das fontes escritas da África ocidental, anteriores ao século XV, ver o
estudo de Theophile OBENGA publicado em Joseph KI-ZERBO (org). História Geral da África.
São Paulo: Editora Ática, 1984. Vol. 1: Metodologia e Pré-História da África; quanto ao aporte
da arqueologia, Raymond MAUNY. Les siècles obscurs de l’Afrique noire: histoire et archeologie.
Paris: Fayard, 1970. No ano de 2004 o africanista brasileiro Paulo Fernando de Moraes
Farias publicou um significativo corpus de documentação escrita em árabe e em tifinagh, a
escrita dos tuareg, produzida entre os séculos XIII-XVIII nas áreas fronteiriças entre o Sudão
e o deserto do Sael. Uma avaliação de sua obra encontra-se em Jean-Louis TRIAUD. “Uma
nova Idade Média saeliana a partir das inscrições árabes da república do Mali”. Afro-Ásia
(UFBA), nº 34, 2006, pp. 317-323.
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muito freqüentes, e atendiam a diversas exigências: religiosas para os
místicos e peregrinos; econômicas para os navegadores e caravaneiros;
político-administrativas e fiscais para os embaixadores e servidores dos
governantes. No período de esplendor do Império Muçulmano, entre os
séculos VII e XI, havia um serviço de “correios” que percorria os quatro
cantos de seus territórios, mantendo os administradores informados sobre
os movimentos de população, tributos e organização de transportes2.
De modo geral, a figura do viajante era admirada. Devido à
obrigação da peregrinação a Meca e o constante fluxo de peregrinos, a
hospitalidade fazia parte das formas tradicionais de sociabilidade
islâmica. Os peregrinos eram beneficiados com esmolas e desfrutavam do
direito de hospedagem, ficando ainda desobrigados ao cumprimento do
jejum do ramadã* e às orações diárias caso fossem atacados ou dominados
pelos “infiéis”3.
Devido a esta importância das viagens e dos viajantes, os
conhecimentos geográficos e a literatura geográfica conheceram notável
desenvolvimento. As obras da Antiguidade que pretendiam descrever o
ecúmeno foram traduzidas, copiadas e adaptadas, e alguns gêneros
textuais pretenderam fornecer referências e informações sobre os
territórios do Império Muçulmano e mesmo sobre as terras dos “infiéis” e
“pagãos”. Nos séculos VIII-IX, apareceram os primeiros “roteiros” de
viagem com descrições em parte objetivas e em parte fantasiosas das rotas,
entrepostos comerciais e produtos comercializáveis, entre os quais cabe
destacar o Suratul Ardh (Livro das descrições da Terra), concluído por volta de
850, pelo matemático e astrônomo persa al-Khwarizmi; o Kitâb al-Masâlik
wa-al-Mamâlik (Livro das Rotas e das Províncias), escrito, em 870, por Ibn
Khordadbeh; e, sobretudo, o Adja ib al-Hind (Livro das Maravilhas da Índia) – que
era uma compilação de informações extraídas de marinheiros
acostumados a navegar pelo Oceano Índico4.
No Ocidente muçulmano, sobretudo em al-Andalus, outro gênero
da literatura geográfica muito apreciado era o dos relatos de viagens,
escritos após o século XII, denominados rihlat. Neste caso, a intenção não é
meramente estabelecer as distâncias entre localidades ou indicar suas
características climáticas e topográficas, mas descrever suas instituições
2
Conforme André MIQUEL. “Comment lire la littérature géographique arabe du Moyen
Âge?”. Cahiers de Civilisation Médiévale (Poitiers), vol. XV-2, 1972, pp. 102-104, o caráter oficial,
governamental, deste tipo de documentação explica a aridez de suas informações e as
constantes repetições de fórmulas administrativas.
* Mês sagrado dos muçulmanos, no qual os fiéis devem jejuar ao amanhecer e ao anoitecer.
3
Pedro CHALMETA. “El Viajero Musulmán”. In: VVAA. Viajes y Viajeros en la España Medieval.
Madrid: Polifermo, 1997, pp. 97-98; Maria Cândida Ferreira de ALMEIDA. “Palavras em
viagem: um estudo dos relatos de viagem medievais muçulmanos e cristãos”. Revista Afro-
Ásia (Salvador), nº 32, 2003-2005, p. 84.
4
G. H. T. KIMBLE. A geografia na Idade Média. Londrina: UEL, 2000, pp. 64-65 ; Auguste
TOUSSAINT. Histoire de l’Océan Indien. Paris: Presses Universitaires de France, 1961, p. 52;
Luce BOULNOIS. A rota da seda. Mira–Sintra: Publicações Europa-América, 1999, pp. 226- 228.
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sociais, políticas, econômicas, culturais. Estamos diante de narrativas
longas, escritas em primeira pessoa, com a finalidade de descrever com
maior ou menor profundidade a experiência de uma ou mais viagens. Nas
palavras de uma pesquisadora brasileira que dedicou especial atenção a
este tipo de fonte documental, “as rihlat tratam de um conhecimento acerca da
vida humana dentro de sua organização, dentro de sua história e dentro de suas
manifestações religiosas e morais; destacam as maravilhas e os costumes íntimos dos
países distantes”5.
A rihla apresenta-se como um gênero ambíguo e pode ser lida tanto
de uma perspectiva literária, com ênfase em sua forma e nas
particularidades de sua narrativa, quanto de uma perspectiva religiosa,
uma vez que seu conteúdo está essencialmente vinculado à experiência da
peregrinação6. Seus dois mais notáveis autores, o andaluz Ibn Jubair e o
marroquino Ibn Battuta, iniciaram suas viagens quando decidiram realizar
a peregrinação a Meca. Mas a descrição da experiência da viagem comporta
informações de natureza econômica (produtos comercializáveis,
atividades locais desenvolvidas), de natureza política (forma de governo,
condições e possibilidade de intercâmbio), de natureza social (grupos e
instituições particulares) e de natureza cultural (crenças, tradições, mitos,
lendas; hábitos e costumes).
O relato contém o ponto de vista de pessoas não pertencentes às
sociedades descritas e assume um sentido eminentemente religioso. O
peregrino desloca-se para entrar em contato com o sagrado e, através da
provação do espaço, torna-se um estrangeiro não só aos olhos daqueles que
encontra pela frente, mas também em relação aos seus, que permaneceram
em sua comunidade de origem. O deslocamento proporciona-lhe a
experiência do descobrimento, no aspecto individual do encontro subjetivo
do Eu interior e no aspecto coletivo do encontro com indivíduos
pertencentes a culturas diferentes.
Do ponto de vista antropológico, percebe-se que o testemunho da
rihla está perpassado por noções valorativas e classificações hierárquicas
do narrador. Durante a viagem, o viajante encontra, em seu percurso,
espaços, paisagens e povos que desconhece ou com os quais não tem
familiaridade. Ao narrar ou registrar o que viu, ouviu ou pensou a respeito
do desconhecido, ele estabelece uma seleção de informações, dividindo-as,
hierarquizando-as, enfatizando certos aspectos e minimizando outros,
avaliando, julgando e, sobretudo, enquadrando o visto a partir de suas
próprias vivências.
Dialogar com o viajante e seu relato permite desvendar, de modo
crítico, os padrões culturais, políticos, sociais e econômicos postos em
conexão durante a viagem, identificando os filtros sociais e culturais,
5
Maria Cândida Ferreira de ALMEIDA. “Palavras em viagem: um estudo dos relatos de
viagens medievais muçulmanos e cristãos”. Afro-Ásia (UFBA), art. cit., pp. 88-89.
6
Sobre a difusão e impacto deste tipo de registro na literatura de viagens islâmica, ver
Houari TOUATI. Islam et Voyage au Moyen Âge. Paris: Seuil, 2000, pp. 260-261.
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avaliando os códigos de comportamento, a partir da construção narrativa
operada sobre o Outro. Fazemos nossa a frase lapidar de Tzvetan Todorov,
para quem “jamais se está tão consciente de sua cultura quanto no estrangeiro”7.
Isto por que a afirmação da identidade do viajante exacerba-se na
experiência do estranhamento, no contato com o Outro.
O VIAJANTE E A VIAGEM
7
Tzvetan TODOROV. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993, vol. 1, p. 88.
8
Os dados biográficos foram retirados de: “Ibn Battuta”. In: Bernard LEWIS(ed). The
Encyclopaedia of Islam. Leiden: E. J. Brill, 1968, vol. 1, pp. 735-736; Blanche TRAPIER. Les
voyageurs arabes au Moyen Âge. Paris: Gallimard, 1937.
9
Suas viagens foram exaustivamente estudadas pelos pesquisadores, e abrem um leque tão
grande de possibilidades que se torna inviável estabelecer uma visão de conjunto. Entre os
estudos introdutórios, destacamos: Thomas J. ABERCROMBIE. “Ibn Battuta: prince of travelers”.
National Geographic Review, volume 180 nº 6, 1991, pp. 2-49; André MIQUEL. “L’Islam d’Ibn
Battuta”. Bulletin d’Études Orientales (Damas), vol. III, 1978, pp. 75-83 .
10
Um balanço das informações sobre as cidades da África oriental é fornecido por H. N.
CHITTICK. “Ibn Battuta and East África”. Journal des Africanistes (Paris), vol. 38-2, 1968, pp.
239-241.
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gratuitamente e às vezes prestando serviços administrativos. Ele foi
designado cadi* pelo sultão de Delhi, na Índia, e atuou durante anos como
embaixador, inclusive na China. Ao longo do tempo, foi ganhando
notoriedade e respeito devido aos conhecimentos adquiridos e ao
extraordinário espaço geográfico percorrido. Pouco antes de morrer, relatou
suas impressões de viagem ao escriba Ibn Yuzayy, que compôs, em 1356, a
rihla com o título de Presente precioso para aqueles que se interessam pelas coisas
curiosas das grandes cidades e as maravilhas das viagens11. Ao ser concluído, o
texto memorialístico foi dedicado a Abu Inan, o Sultão do Marrocos.
A última viagem empreendida pelo já célebre viajante foi a que
conferiu maior importância histórica a seu relato. Com a intenção de
completar o vasto conhecimento dos povos do mundo, ele acompanhou
uma caravana de comerciantes que se dirigia a capital do Mali, o maior
Estado negro situado abaixo do Deserto do Saara, na orla da floresta
tropical. Famoso por suas riquezas minerais, sobretudo ouro, o Mali era
um império poderoso e notícias dele eram repetidas em textos muçulmanos
escritos em al-Andalus, no Magreb e no Egito, e mesmo em textos e mapas
cristãos12. Mas Ibn Battuta foi o único viajante do período anterior ao
século XV que nos deixou registros detalhados da área subsaariana
conhecida como Bilad al-Sudan (“País dos negros”)13.
Sua descrição do “País dos negros” reproduz estruturalmente os
mesmos elementos narrativos empregados na caracterização de outros
povos e países. É como se, em seu itinerário, as informações procurassem
oferecer respostas às mesmas indagações, às mesmas curiosidades, em
geral relacionadas com as particularidades da paisagem natural, com as
características dos grupos humanos e com as formas de governo e poderes
estabelecidos. Em geral, certas informações repetem-se ao longo da
*
Jurisconsulto.
11
Algo similar ocorre com o texto do Livro das Maravilhas, que conta as viagens de Marco
Polo, ditado pelo viajante ao escritor Rusticiano de Pisa, em 1298, numa prisão da cidade de
Gênova. Aqui prevalece uma indistinção entre a voz do narrador e a do escritor, pontuada
por um “eu/nós” que se pode qualificar de uma “voz neutra”. No caso de Ibn Battuta e Ibn
Yuzayy, é possível distinguir a voz do narrador informante da voz do escritor, que se
autonomeia no texto e especifica seus pontos de vista e comentários pessoais. A respeito
deste aspecto da narrativa dos relatos de viagem, ver Michele GUÉRET-LAFERTÉ. Sur les
routes de l’Empire Mongol: ordre et réthorique des relations de Voyage aux XIII et XIV siècle.
Paris: Honoré Champion, 1994, pp. 138-145.
12
Sobre a difusão das imagens do Mali em representações cartográficas dos séculos XIV e
XV, especialmente da Escola de Cartógrafos de Majorca, convém consultar a tese de Yoro K
FALL. L’Afrique à la naissance de la cartographie moderne. Les cartes majorquines : XIV-XV
siècles. Paris: Karthala/Centre de Recherches Africaines, 1982, esp. p. 78, 183-185.
13
Sobre a viagem de Ibn Battuta ao Mali, ver Noel KING & Said HAMDAN. Ibn Battuta in Black
África. Princeton: Markus Wiener, 1994; Ernesta CERULLI. Nel paese dei Bantu. Le esplorazione
in Africa dall’Antichità a tutto il XIX secolo. Torino: Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1961,
pp. 45-56; Elio MIGLIORINI. L’esplorazione del Sahara. Torino: Unione Tipográfico-Editrice
Torinese, 1963, capitolo III – Il primi viaggiatori del Medio Evo. Ibn Battuta, il Marco Polo degli
arabi, pp. 57-84; Claude MEILLASOUX. “L’itineraire d’Ibn Battuta de Walata a Malli”. Journal
of African History, vol. XIII-3, 1972, pp. 389-395.
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narrativa. Entre as mais freqüentes estão: a) descrição geral dos lugares
visitados; b) menção aos santuários e lugares de culto; c) breve descrição
de seus contatos e informantes; d) lista dos notáveis (sultões, sheiks, emires)
e líderes religiosos; e) retrato do governante das terras visitadas, com suas
qualidades pessoais, beleza física e conduta moral, caráter, generosidade e
posição entre os demais soberanos; f) apreciação de audiências públicas e
etiqueta palaciana, com a descrição dos palácios; g) apreciação das orações
prescritas na lei corânica; h) descrição das rainhas e princesas14.
A viagem teve início na cidade de Fez, a capital dos sultões da dinastia
merínida - com a qual o viajante tinha bom contato. Dali ele deslocou-se
até Sijilmassa, que era um dos principais pontos de partida e chegada das
rotas comerciais do Magreb15. Durante os quatro meses em que lá esteve,
ficou hospedado na casa de Abu Muhammad al-Bushri, um alfaqui*, de
quem o viajante conhecera o irmão quando estivera na cidade de Qanyanfu,
no sul da China. Neste tempo ele adquiriu alguns camelos e os alimentou,
partindo por fim em viagem junto com uma caravana de mercadores
chefiada por Abu Muhammad Yandakan, da tribo dos massufa**, no início
do mês de muharram do ano 753 da Hégira, especificamente no dia 18 de
fevereiro de 1352 do calendário cristão.
Nos primeiros vinte e cinco dias de viagem, a caravana percorreu o
trecho entre Sijilmassa e a comunidade de Taghaza, na entrada do grande
deserto, uma aldeia em que as casas e a mesquita eram feitas de sal e os
tetos, fabricados com couro de camelo. Já neste trecho, o viajante percebe
a diferença do ambiente natural, observando que em Taghazza o solo era
arenoso, não havia árvores e a comunidade era constituída por escravos
dos massufa empregados na extração de sal. A parada seguinte foi no oásis
de Tasarahla (Bir al-Ksaib), em plena travessia do Saara. Foi um trecho
muito penoso, pois, em suas palavras, no deserto abundavam “serpentes e
gênios malignos” que a qualquer momento podiam cruzar o caminho da
caravana.
Depois de aproximadamente cinqüenta dias, os viajantes chegaram
em Iwalatan, na atual Mauritânia, o primeiro domínio do Bilad al-Sudan.
Daí em diante, ressaltam no relato as mudanças observadas no meio
ambiente. À paisagem agreste do deserto, recortada por pequenas
comunidades (são mencionadas a aldeia de Zaghari, ou diaghara, e a cidade
14
Uma refinada análise dos elementos tópicos da visão de Battuta a respeito das áreas
limítrofes do mundo, consideradas pelos muçulmanos como finis terrae, encontra-se em
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR & Bertrand HIRSCH. “Voyage aux frontières du monde.
Topologie, narration et jeux de miroir dans la Rihla de Ibn Battuta”. Afrique & Histoire, nº 1,
2003, pp. 75-122 (para os elementos narrativos mencionados, pp. 97-98).
15
Dali partiam regularmente caravanas que realizavam o trajeto norte-sul das rotas
transaarianas. Ver Hussain MONÉS. “Las rutas de comercio en el Sahara africano segun los
escritores arabes”. In: IV Congresso de estudos árabes e islâmicos (Actas). Coimbra: Faculdade
de Letras da Universidade de Coimbra, 1968, pp. 505-522.
*
Conhecedor das leis corânicas; autoridade religiosa.
**
Parte de um povo do Saara, aparentado aos tuareg e aos lamtuna.
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de Karsakhd) organizadas por pessoas que viviam da exploração dos
recursos minerais, da criação de animais e da plantação de cereais
(sobretudo o milhete, designado de anli), ou que serviam de entreposto das
rotas caravaneiras, sucede a paisagem natural característica do Rio Níger,
com vegetação típica da savana. Em pleno domínio do império sudanês, o
viajante menciona as cidades de Zagha, Kawkaw (ou Gao, que viria depois
a constituir a capital do império Songai, no atual Senegal) e a cidade de
Tombuctu. Ao que tudo indica, sua entrada na capital do império se deu
no dia 28/06/1352, depois de pouco mais de quatro meses de viagem. Ali ele
permaneceu durante oito meses, até 27/02/1353.
16
Sabe-se bem do significado simbólico do baobá na África ocidental. Na tradição oral, foi o
tronco de um gigantesco baobá que Sundjata Keita teria arrancado com as próprias mãos
como prova de sua força e de sua liderança. O registro deste episódio encontra-se em:
Djibril Tamsir NIANI. Sundjata ou a epopéia mandinga. São Paulo: Editora Áica, 1982, p. 40. De
acordo com Maurício WALDMAN. “Africanidade, espaço e tradição: a topologia do imaginário
espacial tradicional africano na fala griot sobre Sundjata Keita do Mali”. África (USP) nº 20-
21, 1997-1998, p. 256, o baobá, por vezes, é tomado como símbolo do continente negro.
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consigo uma aljava, e nas mãos um arco e uma espada. Na cabeça, usa um
barrete amarrado por uma fita de ouro. Geralmente veste uma aljuba*
vermelha grossa e felpuda do tecido cristão conhecido como mutanfas. Senta-
se num estrado com três degraus, chamado penpi, “recoberto de seda, arranjado
com almofadas e coberto com um guarda-sol que forma uma grande cúpula de seda.
Sobre o guarda-sol há uma ave de ouro do tamanho de um falcão”17.
Nestas ocasiões as hierarquias da sociedade sudanesa são
explicitadas, de acordo com a posição em que cada pessoa ocupa no local
de audiência, considerando a maior ou menor proximidade com o
governante e os gestos e rituais palacianos18. O mansa é rodeado por
trezentos escravos, provavelmente eunucos, que o antecedem, armados
com arcos, lanças e adagas. Todos os demais presentes acomodam-se fora
do pavilhão, “numa grande rua arborizada” ou distantes da árvore, de acordo
com seu grau de importância. Os governadores de província e os
comandantes militares põem-se adiante de seus homens: “cada comandante
leva uma aljava presa aos ombros, um arco na mão e montam a cavalo. Seus guerreiros
dividem-se entre infantes e cavaleiros”19.
Cabe sublinhar a extrema rigidez dos gestos e rituais. O andar solene
do mansa e o silêncio cerimonioso reforçam seu carisma e sua imagem
como figura detentora do poder. As batidas de tambor ou os sons da corda
dos arcos, a cada frase pronunciada, complementam este contexto de
ritualização e reiteração de um poder fundado na tradição religiosa.
Algumas indicações são muito claras nesse sentido. O próprio visitante
nos informa que, durante toda a cerimônia, “dois cavalos arreados e dois carneiros
são introduzidos no local, pois eles acreditam que isto é bom contra o mau olhado”.
Outro costume particularmente curioso a atestar o quanto este momento
solene estava cercado de tabus consistia na proibição estrita a qualquer
um de espirrar na frente do governante, sob pena de castigo físico severo20.
Pouco simpático a estes hábitos, nosso viajante não hesita em julgá-
los a partir de um ponto de vista próprio, considerando os sudaneses “os
povos mais submissos ao seu rei e os mais aplicados a se humilhar diante dele”21. Tal
juízo baseia-se na observação de um ritual de corte do qual Ibn Battuta
*
Túnica longa que descia até os joelhos, com meias mangas largas.
IBN BATTUTA. À través del Islam. Introducción, trad. y notas de Serafín Fanjul y Federico
17
22
AL UMARI. Masalik al-absar fi mamalik al-amsar. In: Joseph M. CUOQ (trad). Recueil des sources
arabes concernant l’Afrique occidentale du VIII au XVI siècle. p. 270.
23
Elikia M’BOKOLO. África negra. História e civilizações. Lisboa: Editorial Vulgata, 2003, Tomo
I – Até o século XVIII, p. 124. Para uma visão genérica do processo de islamização, ver as
duas partes do artigo de Ricardo Luiz Silveira da COSTA. “A expansão árabe na África e os
impérios negros de Gana, Mali e Songai (séculos VII-XVI). Disponível on-line em:
www.ricardocosta.com (texto acessado em 22/05/2008).
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nenhuma transformação dos modos de vida e das concepções religiosas.
Para Hubert Deschamps, bastava recitar a sha’âda (Só há um Deus, e Maomé
é seu Profeta) para converter-se em muçulmano24. A impressão é que haveria
uma doutrina islâmica pré-instituída que suplantaria as formas religiosas
tradicionais. Atualmente, este modo de ver a questão tem sido questionado
e o que se busca é perceber de que modo processou-se a conjunção entre a
religião que se instalava, as crenças e práticas já existentes e as formas
religiosas e culturais daí resultantes.
A islamização do nordeste africano, isto é, da área magrebina, e da
África ocidental, isto é, da área sudanesa, assumiu contornos distintos em
relação ao islã oriental clássico. Jomier valeu-se, tempos atrás, de uma
metáfora interessante para definir o islã. Este seria “uma água límpida, com
propriedades bem determinadas, e que é a mesma em toda parte”25. O que se percebe,
porém, é que o solo em que essa água fluiu era bastante diverso e em cada
caso a água adquiriu cores e contornos variados. Embora houvesse uma
mesma fé, sua interpretação variava de acordo com diferentes escolas de
interpretação da sharia (os maliquitas, hanafitas, chafeítas e hanbalistas),
sua prática podia ser orientada por interpretações que divergiam do
sunismo (as várias formas do xiismo, o movimento kharidjita), e as
apropriações e significações que se fizeram dela foram tão diversificadas
quanto as sociedades e grupos que a assimilaram.
Na área magrebina, de onde surgiu o complexo de crenças do qual
Ibn Battuta participava, houve, ao longo dos séculos, uma marcada
evolução do islã rumo ao perfeccionismo religioso e moral, uma
determinação persistente para estabelecer um credo purificado, canônico
e completamente uniforme. Até o século XI, o que se difundiu entre os
berberes foram formas islâmicas dissidentes, de inspiração xiita * e
sobretudo kharidjita**. Nos séculos XI e XII, dois movimentos nascidos da
espiritualidade islâmica gerada no Deserto do Saara, o movimento
almorávida e o movimento almôada, promoveram as condições para a
unificação de um Estado centralizado e de formas religiosas
especificamente magrebinas 26. Não obstante a constituição de uma
tradição escrita, erudita, aí o islã recebeu forte influência do modo de vida
24
Jacques JOMIER. Islamismo: história e doutrina. Petrópolis: Ed. Vozes, 1993, p. 57; Hubert
DESCHAMPS. Las Religiones del Africa Negra. Buenos Aires: Editorial Universitária de Buenos
Aires, 1962, p. 86.
25
Jacques JOMIER. Islamismo: história e doutrina. Op. cit., p. 64.
*
Adeptos da crença de que apenas os descendentes de Ali e Fátima seriam os sucessores
legítimos do Profeta, com direito ao título de califas.
**
Nascida nos primórdios do Islã, durante o califado de Ali, a dissidência kharidjita baseava-
se na idéia de que qualquer muçulmano podia obter o título de Califa desde que inspirado por
Alá, e não apenas aqueles da dinastia dos Omíadas ou os sucessores diretos do Profeta.
26
A melhor síntese do processo de islamização desta parte do continente encontra-se na
obra de Abdallah LAROUI. Historia del Magreb: desde los orígenes hasta el despertar magrebí. Un
ensayo interpretativo. Madrid: Editorial MAPFRE, 1994, pp. 66-82.
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das tribos berberes e, nas palavras de Clifford Gertz, assumiria traços
particulares como o da crença nos “homens santos” e nos marabutos* 27. O
complexo das crenças pré-islâmicas foi sendo assimilado e reinterpretado,
na medida em que se desenvolvia um processo de permeabilidade
simbiótica – entre os costumes tradicionais e as transformações do mundo
islâmico.
Na área sudanesa, os contatos com o islã foram muito superficiais até
o século XI. Daí até o século XVI, houve um gradual e irregular processo de
islamização, cujo alcance, no máximo, foram as áreas urbanas e as camadas
dirigentes. Os intercâmbios culturais e os contatos humanos que as redes
comerciais proporcionaram estão entre os fatores principais da inserção do
Islã. Nesta primeira etapa, que alguns denominam de “Islã de corte”, o mais
comum era que membros das dinastias reais africanas adotassem a religião
monoteísta, inclusive por razões políticas (pois a doutrina islâmica fornecia
elementos que capacitavam maior organização e centralização do poder),
sem esquecer as solicitações das crenças locais. Desde as pesquisas de
Nehemia Levtizion, admite-se que as relações entre o islamismo e as religiões
africanas tenham oscilado entre a acomodação e o confronto e que as bases
ideológicas do poder dos chefes de Estado tenham assentado nos princípios
islâmicos e nas práticas religiosas tradicionais dos clãs28.
Além disso, certas correspondências entre o Islã e os cultos africanos
levaram a que se produzisse um amplo conjunto de crenças amalgamadas,
sincretizadas, que alguns especialistas denominam de “Islã negro”. Um
exemplo desse sincretismo pode ser encontrado na representação da figura
dos reis que se fizeram muçulmanos, permanecendo com a função de
mediadores entre o humano e o divino tal qual ocorria nos costumes
“animistas”. Segundo o africanista brasileiro Alberto da Costa e Silva,
tanto os muçulmanos quanto os “pagãos” da África subsaariana
acreditavam que a estada em Meca fortalecia o baraka, o poder propiciatório
do rei, sua capacidade de influir favoravelmente sobre a terra, bem como
de proporcionar modificações climáticas e, assim, a satisfação dos súditos29.
*
No Magreb, marabuto é o nome dado aos homens santos e ascetas, reverenciados pela
população. Na área sudanesa, o termo é aplicado a líderes muçulmanos carismáticos que
atuam como conselheiros e curandeiros.
27
Clifford GEERTZ. Observando o islã: o desenvolvimento religioso no Marrocos e na Indonésia. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, p. 24, 29. A popularidade dos “homens santos”, verdadeiros
milagreiros, taumaturgos, e dos lugares santos, que tanta influência exerceram nas crenças
populares do Magreb, são examinados no estudo de Émile DERMENGHEM. Le culte des saints
dans l’Islam maghrébin. Paris: Gallimard, 1954.
28
Para uma avaliação da questão da difusão do islamismo na África ocidental, ver o
excelente artigo de David ROBINSON. “L’espace, les methaphores et l’intensité de l’Islam
Ouest-africain”. Annales ESC (Paris), 40-6, 1985, pp. 1395-1405.
29
Alberto da COSTA E SILVA. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. Rio de
Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1996, p. 92. Com respeito aos traços gerais do sincretismo afro-
muçulmano, consultar Martine QUELCHON. “Reflexions sur certains aspects du syncrétisme
dans l’Islam Ouest-africain”. Cahiers d’Études Africaines (Paris), vol. 11 nº 42, 1971, pp. 206-230.
30
Costuma-se chamar de “Islã negro” a forma sincrética que prevalece no Islã praticado na
África ocidental. A respeito deste conceito, ver as obras de Vincent MONTEIL. “O Islão na
África Negra”. Afro-Ásia (Salvador), nº 4-5, 1967, pp. 5-23; IDEM. L’Islam noir. Paris: Seuil,
1964. Não obstante os africanistas africanos terem questionado a propriedade deste conceito,
reconhecem a existência dos fenômenos que lhe são associados. Para um balanço da
questão, ver Ravane MBAYE. “L’Islam noir en Afrique”. Revue Tiers Monde (Paris), vol. 23 nº
92, 1982, pp. 831-838.
Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 17-34, jul./dez. 2008 30
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sudanesa predominante na atualidade, no qual estão articulados motivos
de inspiração muçulmana com uma técnica de construção em argila
própria da região.
A partir da segunda metade do século XIV, o império do Mali
conheceu um lento e inexorável processo de enfraquecimento da autoridade
central, devido principalmente a uma série de conflitos sucessórios. Isto se
deveu, em boa parte, ao choque entre o velho princípio de sucessão colateral
(fratrilinear), presente entre vários povos sudaneses, com o princípio da
sucessão dinástica em linha patrilinear, quer dizer, de pai para filho –
própria da tradição islâmica31.
32
Neste sentido, ver o estudo de Remke KRUK. “Ibn Battuta: travel, family life, and chronology”.
Al-Qantara (Madrid), vol. XVI-2, 1995, pp. 369-384.
33
IBN BATTUTA. À través del Islam, p. 280.
*
Membros de uma seita dissidente inspirada nas interpretações do jurista e teólogo Abdallah
ibn Ibadh at-Tamimi, nascida em Omã e difundida na Líbia, Argélia, Tunísia e em Zanzibar.
Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 17-34, jul./dez. 2008 32
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Marrocos, admirou-se com o fato de que, entre os povos Bardama, no
Deserto do Saara, as mulheres gozavam de notável prestígio e detinham
posições de liderança. Por fim, na própria capital do Mali, estranhou que a
primeira esposa do “sultão”, designada pelo título de kasa, estivesse
associada a ele no governo e desfrutasse efetivamente de poder. Ele chega
a descrever uma tentativa de rebelião dela contra o marido34.
Todos estes indícios nos levam a pensar o quanto, para o narrador,
que pertencia a uma sociedade poligâmica, patriarcal e de sucessão patrilinear,
pareciam incompreensíveis e mesmo inaceitáveis comportamentos
associados a sociedades como as dos sudaneses, em que a presença de traços
matriarcais se fazia sentir e a linha de sucessão patrilinear convivia com
outras formas de sucessão, como a avuncular e mesmo a matrilinear. O
papel de destaque das mulheres nas antigas sociedades africanas foi, aliás,
um dos pontos recorrentes que chamou a atenção de antropólogos e
historiadores e que aguarda estudos mais pormenorizados.
***
Title: A Journey to the Mali Empire in the 15th Century: IBN Battuta’s Rihla Account (1352 -1356)
Abstract
Between 1352 and 1353, the traveler Ibn Battuta followed a merchant’s caravan from the city
of Sijilmassa (Morocco) to the Mali’s Empire capital, and there he stayed for eight months.
Information on his journey and stay were reported in Rihla, and his memory accounts were
made by the scribe Ibn Yuzavy, in 1356. It is the only written report on historical features of
34
IBN BATTUTA. À través del Islam, p. 282. Em algumas comunidades sudanesas tradicionais,
a figura do governante era desdobrada em dois pólos e personificada por dois soberanos,
um representando a guerra e outro representando o poder da palavra e da fertilidade, a
quem chamavam “rei-fêmea”. Sobre esta curiosa instituição, vale a pena consultar o estudo
de Jean BAZIN. “Princes desarmés, corps dangereux. Les “rois-femmes” de la région de
Segou”. Cahiers d’Études Africaines (Paris), volume XXVIII nº 111-112, 1988, pp. 375-441.
Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 17-34, jul./dez. 2008 33
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one of the most powerful states of the African Savannah before the 15th century. In this
report, the traveler describes some aspects of the natural landscape, forms of social and
political organization and, especially, some practices and religious beliefs.
Key Words: Travel writing. Subsaarian Africa. Mali Empire. Islamization. “Islam noir”.