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Uma Viagem ao Império do Mali no


Século XIV: O Testemunho da Rihla
de IBN Battuta (1352-1353)
José Rivair Macedo

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Diferenças e preconceit os no islamismo africano: uma análise de relat os de Ibn Bat t ut a


Teane Mundst ock Jahnke

EST EREOT IPIA DO MUÇULMANO NEGRO PARA IBN BAT UT TA


Ricardo Cort ez Lopes

IDENT IDADE E ALT ERIDADE NO MUNDO ÁRABE-ISLÂMICO AT RAVÉS DA VIAGEM DE IBN BAT T UTA (130…
Afonso Malecha
Uma Viagem ao Império do Mali no
Século XIV: O Testemunho da Rihla de
IBN Battuta (1352-1353)*

José Rivair Macedo** e Roberta Pôrto Marques***

RESUMO
Entre 1352-1353, o viajante Ibn Battuta acompanhou uma caravana de comerciantes desde
a cidade de Sijilmassa, no Marrocos, até a capital do império do Mali, ali permanecendo
durante oito meses. As informações sobre a viagem e a estadia foram registradas na
Rihla, o relato de suas memórias, composto, em 1356, pelo escriba Ibn Yuzayy. Trata-se do
único depoimento escrito, anterior ao século XV, sobre as particularidades históricas de
um dos mais poderosos Estados da savana africana. Nele o viajante descreve aspectos da
paisagem natural, das formas de organização política e social e, sobretudo, dos costumes
e das crenças religiosas.

Palavras-chave: Relato de viagens. África subsaariana. Império do Mali. Islamização. “Islã


negro”.

O território africano era praticamente desconhecido dos cristãos


ocidentais durante a Idade Média, durante muitos séculos subsistiram
idéias superficiais e visões estereotipadas a seu respeito. O alcance do
olhar europeu limitava-se à África Mediterrânica, de modo que as regiões
abaixo do Deserto do Saara constituíam um finis terrae. Foi preciso esperar
o século XV para que, na Expansão Marítima pelo Oceano Atlântico, os
primeiros contatos efetivos com a África Negra começassem a ter livre
curso.
Outra era a realidade do mundo muçulmano, do qual a África passou
a fazer parte desde o século VII, época da conquista do Egito e da Núbia e
da expansão árabe, através dos potentados berberes da Líbia, Tunísia e
Marrocos. A partir daquele momento inicial da história do islã, também se
produziu certo conhecimento a respeito dos grupos de povos e das

*
O ponto de partida do presente artigo foi o trabalho de conclusão de Roberta Pôrto
Marques intitulado “A viagem de Ibn Battuta ao Mali”, para a disciplina Seminário Temático de
História Medieval II, do curso de História da UFRGS, ministrada por José Rivair Macedo no
primeiro semestre de 2007.
Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da
**

UFRGS. E-mail: jrivair@uol.com.br.


***
Graduanda do curso de História da UFRGS.
Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 17-34, jul./dez. 2008 17
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formações estatais existentes abaixo do Saara. Uma vasta rede comercial
interligada por entrepostos das rotas caravaneiras do deserto pôs em
circulação homens, mercadorias, crenças, lendas, mitos, idéias, técnicas,
conhecimento, o que fazia dela também uma importante rede intercultural.
Portanto, no período em que a Europa vivia sua “Idade Média”,
havia formações sociais e estatais originais em todo o continente africano,
parcialmente incorporadas ao universo islâmico. Mas as fontes
documentais escritas propriamente africanas produzidas entre os séculos
VII e XVI da Era Cristã são relativamente escassas. Muito do que se conhece
sobre aquela época provém de escavações arqueológicas e, em muito menor
proporção, da tradição oral1. Entretanto os pesquisadores dispõem de
quantidade considerável de documentos escritos de variada procedência
sobre os povos africanos: roteiros de viagem, crônicas, textos enciclopédicos
produzidos, em geral, por escritores vinculados ao mundo árabe-
muçulmano para servir de orientação aos mercadores, viajantes e
interessados em manter contato com aquela parte pouco conhecida.
Nesta documentação, estão incluídos os relatos de viagem conhecidos
como rihlat. Como fonte documental, eles oferecem aos pesquisadores um
rico testemunho e, dependendo do modo como são analisados, lançam luz
sobre aspectos geográficos, antropológicos e históricos. O mais conhecido e
também o mais importante desses relatos de viagens baseia-se nas memórias
de Ibn Battuta, que ficou conhecido na posteridade como “o príncipe dos
viajantes” ou “o viajante do islã”. Depois de percorrer aproximadamente
setenta e cinco mil milhas em três continentes, passando por quarenta e
quatro países do mundo atual, Battuta decidiu atravessar o Deserto do Saara,
em direção à floresta tropical, para conhecer os povos do Império do Mali. O
objetivo do presente estudo é avaliar a contribuição do testemunho histórico
contido no relato da viagem de Ibn Battuta e discutir certas informações
fornecidas sobre os povos sudaneses.

RIHLA: texto e contexto

Desde os primeiros séculos de existência do mundo muçulmano, em


que as cidades e o comércio articulavam uma vasta rede de relações
econômicas, sociais e culturais, as viagens terrestres e marítimas eram

1
Para um balanço das fontes escritas da África ocidental, anteriores ao século XV, ver o
estudo de Theophile OBENGA publicado em Joseph KI-ZERBO (org). História Geral da África.
São Paulo: Editora Ática, 1984. Vol. 1: Metodologia e Pré-História da África; quanto ao aporte
da arqueologia, Raymond MAUNY. Les siècles obscurs de l’Afrique noire: histoire et archeologie.
Paris: Fayard, 1970. No ano de 2004 o africanista brasileiro Paulo Fernando de Moraes
Farias publicou um significativo corpus de documentação escrita em árabe e em tifinagh, a
escrita dos tuareg, produzida entre os séculos XIII-XVIII nas áreas fronteiriças entre o Sudão
e o deserto do Sael. Uma avaliação de sua obra encontra-se em Jean-Louis TRIAUD. “Uma
nova Idade Média saeliana a partir das inscrições árabes da república do Mali”. Afro-Ásia
(UFBA), nº 34, 2006, pp. 317-323.
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muito freqüentes, e atendiam a diversas exigências: religiosas para os
místicos e peregrinos; econômicas para os navegadores e caravaneiros;
político-administrativas e fiscais para os embaixadores e servidores dos
governantes. No período de esplendor do Império Muçulmano, entre os
séculos VII e XI, havia um serviço de “correios” que percorria os quatro
cantos de seus territórios, mantendo os administradores informados sobre
os movimentos de população, tributos e organização de transportes2.
De modo geral, a figura do viajante era admirada. Devido à
obrigação da peregrinação a Meca e o constante fluxo de peregrinos, a
hospitalidade fazia parte das formas tradicionais de sociabilidade
islâmica. Os peregrinos eram beneficiados com esmolas e desfrutavam do
direito de hospedagem, ficando ainda desobrigados ao cumprimento do
jejum do ramadã* e às orações diárias caso fossem atacados ou dominados
pelos “infiéis”3.
Devido a esta importância das viagens e dos viajantes, os
conhecimentos geográficos e a literatura geográfica conheceram notável
desenvolvimento. As obras da Antiguidade que pretendiam descrever o
ecúmeno foram traduzidas, copiadas e adaptadas, e alguns gêneros
textuais pretenderam fornecer referências e informações sobre os
territórios do Império Muçulmano e mesmo sobre as terras dos “infiéis” e
“pagãos”. Nos séculos VIII-IX, apareceram os primeiros “roteiros” de
viagem com descrições em parte objetivas e em parte fantasiosas das rotas,
entrepostos comerciais e produtos comercializáveis, entre os quais cabe
destacar o Suratul Ardh (Livro das descrições da Terra), concluído por volta de
850, pelo matemático e astrônomo persa al-Khwarizmi; o Kitâb al-Masâlik
wa-al-Mamâlik (Livro das Rotas e das Províncias), escrito, em 870, por Ibn
Khordadbeh; e, sobretudo, o Adja ib al-Hind (Livro das Maravilhas da Índia) – que
era uma compilação de informações extraídas de marinheiros
acostumados a navegar pelo Oceano Índico4.
No Ocidente muçulmano, sobretudo em al-Andalus, outro gênero
da literatura geográfica muito apreciado era o dos relatos de viagens,
escritos após o século XII, denominados rihlat. Neste caso, a intenção não é
meramente estabelecer as distâncias entre localidades ou indicar suas
características climáticas e topográficas, mas descrever suas instituições

2
Conforme André MIQUEL. “Comment lire la littérature géographique arabe du Moyen
Âge?”. Cahiers de Civilisation Médiévale (Poitiers), vol. XV-2, 1972, pp. 102-104, o caráter oficial,
governamental, deste tipo de documentação explica a aridez de suas informações e as
constantes repetições de fórmulas administrativas.
* Mês sagrado dos muçulmanos, no qual os fiéis devem jejuar ao amanhecer e ao anoitecer.
3
Pedro CHALMETA. “El Viajero Musulmán”. In: VVAA. Viajes y Viajeros en la España Medieval.
Madrid: Polifermo, 1997, pp. 97-98; Maria Cândida Ferreira de ALMEIDA. “Palavras em
viagem: um estudo dos relatos de viagem medievais muçulmanos e cristãos”. Revista Afro-
Ásia (Salvador), nº 32, 2003-2005, p. 84.
4
G. H. T. KIMBLE. A geografia na Idade Média. Londrina: UEL, 2000, pp. 64-65 ; Auguste
TOUSSAINT. Histoire de l’Océan Indien. Paris: Presses Universitaires de France, 1961, p. 52;
Luce BOULNOIS. A rota da seda. Mira–Sintra: Publicações Europa-América, 1999, pp. 226- 228.
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sociais, políticas, econômicas, culturais. Estamos diante de narrativas
longas, escritas em primeira pessoa, com a finalidade de descrever com
maior ou menor profundidade a experiência de uma ou mais viagens. Nas
palavras de uma pesquisadora brasileira que dedicou especial atenção a
este tipo de fonte documental, “as rihlat tratam de um conhecimento acerca da
vida humana dentro de sua organização, dentro de sua história e dentro de suas
manifestações religiosas e morais; destacam as maravilhas e os costumes íntimos dos
países distantes”5.
A rihla apresenta-se como um gênero ambíguo e pode ser lida tanto
de uma perspectiva literária, com ênfase em sua forma e nas
particularidades de sua narrativa, quanto de uma perspectiva religiosa,
uma vez que seu conteúdo está essencialmente vinculado à experiência da
peregrinação6. Seus dois mais notáveis autores, o andaluz Ibn Jubair e o
marroquino Ibn Battuta, iniciaram suas viagens quando decidiram realizar
a peregrinação a Meca. Mas a descrição da experiência da viagem comporta
informações de natureza econômica (produtos comercializáveis,
atividades locais desenvolvidas), de natureza política (forma de governo,
condições e possibilidade de intercâmbio), de natureza social (grupos e
instituições particulares) e de natureza cultural (crenças, tradições, mitos,
lendas; hábitos e costumes).
O relato contém o ponto de vista de pessoas não pertencentes às
sociedades descritas e assume um sentido eminentemente religioso. O
peregrino desloca-se para entrar em contato com o sagrado e, através da
provação do espaço, torna-se um estrangeiro não só aos olhos daqueles que
encontra pela frente, mas também em relação aos seus, que permaneceram
em sua comunidade de origem. O deslocamento proporciona-lhe a
experiência do descobrimento, no aspecto individual do encontro subjetivo
do Eu interior e no aspecto coletivo do encontro com indivíduos
pertencentes a culturas diferentes.
Do ponto de vista antropológico, percebe-se que o testemunho da
rihla está perpassado por noções valorativas e classificações hierárquicas
do narrador. Durante a viagem, o viajante encontra, em seu percurso,
espaços, paisagens e povos que desconhece ou com os quais não tem
familiaridade. Ao narrar ou registrar o que viu, ouviu ou pensou a respeito
do desconhecido, ele estabelece uma seleção de informações, dividindo-as,
hierarquizando-as, enfatizando certos aspectos e minimizando outros,
avaliando, julgando e, sobretudo, enquadrando o visto a partir de suas
próprias vivências.
Dialogar com o viajante e seu relato permite desvendar, de modo
crítico, os padrões culturais, políticos, sociais e econômicos postos em
conexão durante a viagem, identificando os filtros sociais e culturais,
5
Maria Cândida Ferreira de ALMEIDA. “Palavras em viagem: um estudo dos relatos de
viagens medievais muçulmanos e cristãos”. Afro-Ásia (UFBA), art. cit., pp. 88-89.
6
Sobre a difusão e impacto deste tipo de registro na literatura de viagens islâmica, ver
Houari TOUATI. Islam et Voyage au Moyen Âge. Paris: Seuil, 2000, pp. 260-261.
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avaliando os códigos de comportamento, a partir da construção narrativa
operada sobre o Outro. Fazemos nossa a frase lapidar de Tzvetan Todorov,
para quem “jamais se está tão consciente de sua cultura quanto no estrangeiro”7.
Isto por que a afirmação da identidade do viajante exacerba-se na
experiência do estranhamento, no contato com o Outro.

O VIAJANTE E A VIAGEM

Abu Abdallah M. b. Abdallah b. M. b. Ibrahim al-Luwati, conhecido


simplesmente como Ibn Battuta, nasceu em 25 de fevereiro de 1304, na
cidade de Tânger, Marrocos. Faleceu no mesmo país, em local e data incerta,
entre 1368 e 1377. Era adepto do islã de tradição sunita, seguia o rito
maliquita e, a pretexto de realizar uma peregrinação aos lugares santos,
deu início a uma longa seqüência de viagens que duraram cerca de trinta
anos e o tornaram muito conhecido em todos os territórios do Dar al-Islam8.
Entre 1325 e 1352, visitou povos de três continentes. Na Europa,
passou por al-Andalus, que correspondia, à sua época, ao sul da atual
Espanha (Granada); pelo Império Bizantino, onde conheceu Constantinopla
e conversou com os sábios cristãos; por áreas da atual Criméia, na Rússia,
então ocupada pelos turco-mongóis. No Oriente Médio esteve em Meca, na
Arábia e em Damasco, na Síria. Dali subiu para a Anatólia, na Ásia Menor.
Passou pela Pérsia, cortou as estepes geladas da Ásia Central até a região
da Transoxiana, através do Afeganistão e do Uzbequistão, viajou por
cidades e territórios da Índia (Ceilão, Bengala), pelo sul da China e pelas
ilhas do sudeste asiático. Conheceu vários povos do continente africano,
atravessando o norte do Egito, então controlado pelos sultões mamluk,
onde conversou com os sábios de Alexandria9, e as cidades mercantis do
litoral do Oceano Índico – deixando-nos preciosas informações sobre
aspectos da vida cotidiana e das atividades comerciais de Mombaça,
Mogadiscio, Quiloa e Sofala10.
Por todos os locais por onde passou, Ibn Battuta estabeleceu contato
com as autoridades locais, às vezes sendo hospedado e alimentado

7
Tzvetan TODOROV. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993, vol. 1, p. 88.
8
Os dados biográficos foram retirados de: “Ibn Battuta”. In: Bernard LEWIS(ed). The
Encyclopaedia of Islam. Leiden: E. J. Brill, 1968, vol. 1, pp. 735-736; Blanche TRAPIER. Les
voyageurs arabes au Moyen Âge. Paris: Gallimard, 1937.
9
Suas viagens foram exaustivamente estudadas pelos pesquisadores, e abrem um leque tão
grande de possibilidades que se torna inviável estabelecer uma visão de conjunto. Entre os
estudos introdutórios, destacamos: Thomas J. ABERCROMBIE. “Ibn Battuta: prince of travelers”.
National Geographic Review, volume 180 nº 6, 1991, pp. 2-49; André MIQUEL. “L’Islam d’Ibn
Battuta”. Bulletin d’Études Orientales (Damas), vol. III, 1978, pp. 75-83 .
10
Um balanço das informações sobre as cidades da África oriental é fornecido por H. N.
CHITTICK. “Ibn Battuta and East África”. Journal des Africanistes (Paris), vol. 38-2, 1968, pp.
239-241.
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gratuitamente e às vezes prestando serviços administrativos. Ele foi
designado cadi* pelo sultão de Delhi, na Índia, e atuou durante anos como
embaixador, inclusive na China. Ao longo do tempo, foi ganhando
notoriedade e respeito devido aos conhecimentos adquiridos e ao
extraordinário espaço geográfico percorrido. Pouco antes de morrer, relatou
suas impressões de viagem ao escriba Ibn Yuzayy, que compôs, em 1356, a
rihla com o título de Presente precioso para aqueles que se interessam pelas coisas
curiosas das grandes cidades e as maravilhas das viagens11. Ao ser concluído, o
texto memorialístico foi dedicado a Abu Inan, o Sultão do Marrocos.
A última viagem empreendida pelo já célebre viajante foi a que
conferiu maior importância histórica a seu relato. Com a intenção de
completar o vasto conhecimento dos povos do mundo, ele acompanhou
uma caravana de comerciantes que se dirigia a capital do Mali, o maior
Estado negro situado abaixo do Deserto do Saara, na orla da floresta
tropical. Famoso por suas riquezas minerais, sobretudo ouro, o Mali era
um império poderoso e notícias dele eram repetidas em textos muçulmanos
escritos em al-Andalus, no Magreb e no Egito, e mesmo em textos e mapas
cristãos12. Mas Ibn Battuta foi o único viajante do período anterior ao
século XV que nos deixou registros detalhados da área subsaariana
conhecida como Bilad al-Sudan (“País dos negros”)13.
Sua descrição do “País dos negros” reproduz estruturalmente os
mesmos elementos narrativos empregados na caracterização de outros
povos e países. É como se, em seu itinerário, as informações procurassem
oferecer respostas às mesmas indagações, às mesmas curiosidades, em
geral relacionadas com as particularidades da paisagem natural, com as
características dos grupos humanos e com as formas de governo e poderes
estabelecidos. Em geral, certas informações repetem-se ao longo da

*
Jurisconsulto.
11
Algo similar ocorre com o texto do Livro das Maravilhas, que conta as viagens de Marco
Polo, ditado pelo viajante ao escritor Rusticiano de Pisa, em 1298, numa prisão da cidade de
Gênova. Aqui prevalece uma indistinção entre a voz do narrador e a do escritor, pontuada
por um “eu/nós” que se pode qualificar de uma “voz neutra”. No caso de Ibn Battuta e Ibn
Yuzayy, é possível distinguir a voz do narrador informante da voz do escritor, que se
autonomeia no texto e especifica seus pontos de vista e comentários pessoais. A respeito
deste aspecto da narrativa dos relatos de viagem, ver Michele GUÉRET-LAFERTÉ. Sur les
routes de l’Empire Mongol: ordre et réthorique des relations de Voyage aux XIII et XIV siècle.
Paris: Honoré Champion, 1994, pp. 138-145.
12
Sobre a difusão das imagens do Mali em representações cartográficas dos séculos XIV e
XV, especialmente da Escola de Cartógrafos de Majorca, convém consultar a tese de Yoro K
FALL. L’Afrique à la naissance de la cartographie moderne. Les cartes majorquines : XIV-XV
siècles. Paris: Karthala/Centre de Recherches Africaines, 1982, esp. p. 78, 183-185.
13
Sobre a viagem de Ibn Battuta ao Mali, ver Noel KING & Said HAMDAN. Ibn Battuta in Black
África. Princeton: Markus Wiener, 1994; Ernesta CERULLI. Nel paese dei Bantu. Le esplorazione
in Africa dall’Antichità a tutto il XIX secolo. Torino: Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1961,
pp. 45-56; Elio MIGLIORINI. L’esplorazione del Sahara. Torino: Unione Tipográfico-Editrice
Torinese, 1963, capitolo III – Il primi viaggiatori del Medio Evo. Ibn Battuta, il Marco Polo degli
arabi, pp. 57-84; Claude MEILLASOUX. “L’itineraire d’Ibn Battuta de Walata a Malli”. Journal
of African History, vol. XIII-3, 1972, pp. 389-395.
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narrativa. Entre as mais freqüentes estão: a) descrição geral dos lugares
visitados; b) menção aos santuários e lugares de culto; c) breve descrição
de seus contatos e informantes; d) lista dos notáveis (sultões, sheiks, emires)
e líderes religiosos; e) retrato do governante das terras visitadas, com suas
qualidades pessoais, beleza física e conduta moral, caráter, generosidade e
posição entre os demais soberanos; f) apreciação de audiências públicas e
etiqueta palaciana, com a descrição dos palácios; g) apreciação das orações
prescritas na lei corânica; h) descrição das rainhas e princesas14.
A viagem teve início na cidade de Fez, a capital dos sultões da dinastia
merínida - com a qual o viajante tinha bom contato. Dali ele deslocou-se
até Sijilmassa, que era um dos principais pontos de partida e chegada das
rotas comerciais do Magreb15. Durante os quatro meses em que lá esteve,
ficou hospedado na casa de Abu Muhammad al-Bushri, um alfaqui*, de
quem o viajante conhecera o irmão quando estivera na cidade de Qanyanfu,
no sul da China. Neste tempo ele adquiriu alguns camelos e os alimentou,
partindo por fim em viagem junto com uma caravana de mercadores
chefiada por Abu Muhammad Yandakan, da tribo dos massufa**, no início
do mês de muharram do ano 753 da Hégira, especificamente no dia 18 de
fevereiro de 1352 do calendário cristão.
Nos primeiros vinte e cinco dias de viagem, a caravana percorreu o
trecho entre Sijilmassa e a comunidade de Taghaza, na entrada do grande
deserto, uma aldeia em que as casas e a mesquita eram feitas de sal e os
tetos, fabricados com couro de camelo. Já neste trecho, o viajante percebe
a diferença do ambiente natural, observando que em Taghazza o solo era
arenoso, não havia árvores e a comunidade era constituída por escravos
dos massufa empregados na extração de sal. A parada seguinte foi no oásis
de Tasarahla (Bir al-Ksaib), em plena travessia do Saara. Foi um trecho
muito penoso, pois, em suas palavras, no deserto abundavam “serpentes e
gênios malignos” que a qualquer momento podiam cruzar o caminho da
caravana.
Depois de aproximadamente cinqüenta dias, os viajantes chegaram
em Iwalatan, na atual Mauritânia, o primeiro domínio do Bilad al-Sudan.
Daí em diante, ressaltam no relato as mudanças observadas no meio
ambiente. À paisagem agreste do deserto, recortada por pequenas
comunidades (são mencionadas a aldeia de Zaghari, ou diaghara, e a cidade
14
Uma refinada análise dos elementos tópicos da visão de Battuta a respeito das áreas
limítrofes do mundo, consideradas pelos muçulmanos como finis terrae, encontra-se em
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR & Bertrand HIRSCH. “Voyage aux frontières du monde.
Topologie, narration et jeux de miroir dans la Rihla de Ibn Battuta”. Afrique & Histoire, nº 1,
2003, pp. 75-122 (para os elementos narrativos mencionados, pp. 97-98).
15
Dali partiam regularmente caravanas que realizavam o trajeto norte-sul das rotas
transaarianas. Ver Hussain MONÉS. “Las rutas de comercio en el Sahara africano segun los
escritores arabes”. In: IV Congresso de estudos árabes e islâmicos (Actas). Coimbra: Faculdade
de Letras da Universidade de Coimbra, 1968, pp. 505-522.
*
Conhecedor das leis corânicas; autoridade religiosa.
**
Parte de um povo do Saara, aparentado aos tuareg e aos lamtuna.
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de Karsakhd) organizadas por pessoas que viviam da exploração dos
recursos minerais, da criação de animais e da plantação de cereais
(sobretudo o milhete, designado de anli), ou que serviam de entreposto das
rotas caravaneiras, sucede a paisagem natural característica do Rio Níger,
com vegetação típica da savana. Em pleno domínio do império sudanês, o
viajante menciona as cidades de Zagha, Kawkaw (ou Gao, que viria depois
a constituir a capital do império Songai, no atual Senegal) e a cidade de
Tombuctu. Ao que tudo indica, sua entrada na capital do império se deu
no dia 28/06/1352, depois de pouco mais de quatro meses de viagem. Ali ele
permaneceu durante oito meses, até 27/02/1353.

A CORTE DO “SULTÃO” DO MALI

Estranhamente, nosso viajante confunde o Níger com o Nilo,


tomando o primeiro pelo segundo. Admira-se ao ver animais da África
subsaariana, como os hipopótamos e os crocodilos. Sobre estes animais
aquáticos, narra uma anedota curiosa. Para exemplificar a falta de modos
dos sudaneses diz que, em certa ocasião em que defecava à beira do rio,
sentiu-se incomodado com a presença de um negro que permaneceu parado
à sua frente durante todo o tempo. Ao reclamar do ocorrido, soube que a
intenção era das melhores, e que, ao se interpor entre ele e o rio o homem o
estava protegendo dos crocodilos.
A anedota revela a pouca simpatia do viajante pelos sudaneses,
aspecto recorrente em toda a narração da viagem. Ele os qualifica como
gente mal educada, cheia de desprezo pelos “brancos”. Esta rejeição
mostra-se desde a descrição da hospitalidade que lhe ofereceram em
Iwalatan. Tendo recusado o convite pela primeira vez, aceitou participar
depois da insistência de seus companheiros de caravana, reclamando
muito da simplicidade e da pouca quantidade de comida – feita de milhete
moído misturado com mel e leite coalhado. Algum tempo depois, teve
uma grave indigestão ao ter comido uma espécie de cuscuz denominada
asida, feita com a raiz de uma planta cujo nome científico é colocasia estulenta,
a qual corresponde ao tubérculo conhecido popularmente por taro.
Sua opinião também se mostra pouco favorável ao comportamento
pessoal do governante máximo do império, chamado de mansa* Sulaiman
(1336-1358). Em suas palavras, “é um rei avaro, do qual não se pode esperar um
dom importante”. Ibn Battuta não se sentiu devidamente satisfeito com o
jantar de hospitalidade que lhe foi oferecido quando chegou no coração do
império do Mali, nem com os presentes que lhe foram mandados. Em suas
palavras, quando o representante do mansa adentrou no recinto “levantei-
me pensando que eram tecidos valiosos e uma boa soma de dinheiro. Mas eis que eram
três tecidos redondos, um pedaço de carne de boi fria e uma cabaça com leite coalhado.
*
Nome dado aos governantes do reino do Mali, equivalente a rei.
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Não pude conter um riso de admiração por sua fraqueza de espírito e pelo grande caso
que fazem por coisas de tão pouco valor”. Nos primeiros meses em que
permaneceu na capital do Mali, habitou o bairro dos comerciantes “brancos”,
na residência de um cadi marroquino chamado Muhammad al-Fakih al-
Misri. Só depois é que Sulaiman teria se dignado a conceder agrados e
presentes condizentes com o status do recém-chegado e uma casa para seu
alojamento.
Pelo que se pode depreender do texto, Ibn Battuta esteve mais de
uma vez nas dependências do palácio do soberano, porque descreve
diferentes locais em que ele concedia audiências. Sobre as condições pelas
quais se dava a comunicação diante do mansa, uma informação mostra-se
particularmente digna de nota: durante as audiências Sulaiman não dirigia
a palavra diretamente a ninguém, mas valia-se ele próprio de um porta-
voz, identificado pelo termo dhuga, a quem falava sempre em voz muito
pausada e baixa.
Além deste porta-voz, havia no palácio outros personagens
especialistas da palavra. Ibn Battuta menciona os griots que recitavam
versos e contavam estórias, criticando-os por suas bufonarias. Deve ter
percebido a íntima ligação entre a palavra, o canto, e as tradições “pagãs”
que, aos olhos do Islã, pareciam condenáveis. Como se sabe, cabia aos griots
tanto a preservação da memória das dinastias reais quanto a transmissão
das crenças, das lendas e dos mitos.
O viajante mostra admiração pelos sons e ritmos produzidos por
instrumentos musicais que permanecem fundamentais na cultura sonora
sudanesa, mencionando explicitamente tambores, trompas feitas com
chifre de elefante e uma espécie de flauta designada anafil. Depreende-se
que ele tenha ouvido o instrumento de corda denominado kora e que o
instrumento de percussão feito de bambu e cabaças “em que se bate com
varetas, produzindo um som maravilhoso” corresponde ao que se designa
atualmente de balafo. Ele diz que cada frase de aprovação pronunciada
pelo mansa era seguida de batidas de tambor ou do som produzido pela
reverberação das cordas dos arcos dos guerreiros.
As audiências ocorriam freqüentemente ou sob um pavilhão
abobadado existente na frente do palácio, que recebia o nome de maswar, ou
sob uma grande árvore – talvez um baobá16. A opulência do palácio revela-
se na quantidade de vezes em que o visitante menciona os artefatos de
ouro e de prata, os tecidos egípcios, as cortinas de lã e os magníficos trajes
de seda fina. O “sultão” apresenta-se luxuosamente vestido, carregando

16
Sabe-se bem do significado simbólico do baobá na África ocidental. Na tradição oral, foi o
tronco de um gigantesco baobá que Sundjata Keita teria arrancado com as próprias mãos
como prova de sua força e de sua liderança. O registro deste episódio encontra-se em:
Djibril Tamsir NIANI. Sundjata ou a epopéia mandinga. São Paulo: Editora Áica, 1982, p. 40. De
acordo com Maurício WALDMAN. “Africanidade, espaço e tradição: a topologia do imaginário
espacial tradicional africano na fala griot sobre Sundjata Keita do Mali”. África (USP) nº 20-
21, 1997-1998, p. 256, o baobá, por vezes, é tomado como símbolo do continente negro.
Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 17-34, jul./dez. 2008 25
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consigo uma aljava, e nas mãos um arco e uma espada. Na cabeça, usa um
barrete amarrado por uma fita de ouro. Geralmente veste uma aljuba*
vermelha grossa e felpuda do tecido cristão conhecido como mutanfas. Senta-
se num estrado com três degraus, chamado penpi, “recoberto de seda, arranjado
com almofadas e coberto com um guarda-sol que forma uma grande cúpula de seda.
Sobre o guarda-sol há uma ave de ouro do tamanho de um falcão”17.
Nestas ocasiões as hierarquias da sociedade sudanesa são
explicitadas, de acordo com a posição em que cada pessoa ocupa no local
de audiência, considerando a maior ou menor proximidade com o
governante e os gestos e rituais palacianos18. O mansa é rodeado por
trezentos escravos, provavelmente eunucos, que o antecedem, armados
com arcos, lanças e adagas. Todos os demais presentes acomodam-se fora
do pavilhão, “numa grande rua arborizada” ou distantes da árvore, de acordo
com seu grau de importância. Os governadores de província e os
comandantes militares põem-se adiante de seus homens: “cada comandante
leva uma aljava presa aos ombros, um arco na mão e montam a cavalo. Seus guerreiros
dividem-se entre infantes e cavaleiros”19.
Cabe sublinhar a extrema rigidez dos gestos e rituais. O andar solene
do mansa e o silêncio cerimonioso reforçam seu carisma e sua imagem
como figura detentora do poder. As batidas de tambor ou os sons da corda
dos arcos, a cada frase pronunciada, complementam este contexto de
ritualização e reiteração de um poder fundado na tradição religiosa.
Algumas indicações são muito claras nesse sentido. O próprio visitante
nos informa que, durante toda a cerimônia, “dois cavalos arreados e dois carneiros
são introduzidos no local, pois eles acreditam que isto é bom contra o mau olhado”.
Outro costume particularmente curioso a atestar o quanto este momento
solene estava cercado de tabus consistia na proibição estrita a qualquer
um de espirrar na frente do governante, sob pena de castigo físico severo20.
Pouco simpático a estes hábitos, nosso viajante não hesita em julgá-
los a partir de um ponto de vista próprio, considerando os sudaneses “os
povos mais submissos ao seu rei e os mais aplicados a se humilhar diante dele”21. Tal
juízo baseia-se na observação de um ritual de corte do qual Ibn Battuta
*
Túnica longa que descia até os joelhos, com meias mangas largas.
IBN BATTUTA. À través del Islam. Introducción, trad. y notas de Serafín Fanjul y Federico
17

Arbós. Madrid: Ed. Alianza, 1987, p.777.


18
É preciso sublinhar que estamos diante de movimentos corporais codificados, empregados
em situações especiais, sobretudo em cerimônias funerárias, festas de entronização real,
encontros de embaixadas e audiências, como se pode depreender dos relatos de viajantes
que visitaram a África ocidental nos séculos XVIII-XIX. Para o estudo deste aspecto da
cultura sudanesa, ver Céline BADUEL-MALTHON. “Le langage gestuel en Afrique occidentale:
recherches bibliographiques”. Journal des africanistes (Paris), vol. 41-2, 1971, pp. 203-249, esp.
pp. 211, 213.
19
IBN BATTUTA. À través del Islam. Op. cit., p.. 778..
20
Esta informação é fornecida pelo enciclopedista egípcio AL UMARI. Masalik al-absar fi
mamalik al-amsar. In: Joseph M. CUOQ (trad). Recueil des sources arabes concernant l’Afrique
occidentale du VIII au XVI siècle. Paris: Éditions du CNRS, 1975, p. 270.
21
IBN BATTUTA. À través del Islam, p. 780.
Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 17-34, jul./dez. 2008 26
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não conseguiu captar o sentido. Segundo ele, quando o “sultão” convoca
alguma pessoa para uma audiência pessoal, dentro do pavilhão, o
convidado substitui suas vestimentas por outras, usadas, não leva
turbante e anda descalço. Ao entrar, dirige-se com humildade e submissão,
batendo na terra, prosternando-se para escutar as palavras do governante.
Ao ouvi-las, tira a parte de cima da roupa e joga terra sobre a própria
cabeça e o peito, como quem se banha.
Mais distante e talvez melhor instruído, Al Umari demonstra
compreender melhor o significado dos referidos gestos. Estes seriam gestos
solenes, ritualizados, que se seguiam ao oferecimento de concessões de
terra (ikta) ou gratificações por parte do monarca:

Se o rei atribui um presente a alguém, ou lhe promete


algum favor, ou ainda o felicita por algum feito, o
interessado rola por terra diante dele, de um lado a outro
do local em que estiver ocorrendo a audiência, depois,
uma vez atravessado o local, um serviçal ou um de seus
companheiros pegam um pouco de cinza, deixada
permanentemente num dos cantos do local para estas
circunstâncias, e a espalham sobre a cabeça daquele que
está sendo beneficiado 22 .

A ISLAMIZAÇÃO DO MAGREB E DO SUDÃO

Os seguidores do Profeta Maomé expandiram sua crença a partir do


século VII d.C, para outras regiões além da Península Arábica, inclusive
no continente africano. Isto levou a que, para alguns estudiosos, tivesse
ocorrido uma “islamização da África”, enquanto para outros, como o
congolês Elikia M’Bokolo, a idéia mais justa seria a de uma “africanização
do Islã”23.
Esta última afirmação exige algum esclarecimento, porque parece
inverter as proposições tradicionais, que supõem ter o islã se instalado no
continente africano de modo integral, substituindo as crenças preexistentes.
Neste tipo de abordagem, o foco de atenção reside na doutrina exterior e
não nas práticas religiosas efetivas das áreas em que o islã instalou-se. Na
opinião de Jacques Jomier, não havia dúvida de que rapidamente a África
Ocidental passou a gravitar na órbita árabe, porque o islã não exigia

22
AL UMARI. Masalik al-absar fi mamalik al-amsar. In: Joseph M. CUOQ (trad). Recueil des sources
arabes concernant l’Afrique occidentale du VIII au XVI siècle. p. 270.
23
Elikia M’BOKOLO. África negra. História e civilizações. Lisboa: Editorial Vulgata, 2003, Tomo
I – Até o século XVIII, p. 124. Para uma visão genérica do processo de islamização, ver as
duas partes do artigo de Ricardo Luiz Silveira da COSTA. “A expansão árabe na África e os
impérios negros de Gana, Mali e Songai (séculos VII-XVI). Disponível on-line em:
www.ricardocosta.com (texto acessado em 22/05/2008).
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nenhuma transformação dos modos de vida e das concepções religiosas.
Para Hubert Deschamps, bastava recitar a sha’âda (Só há um Deus, e Maomé
é seu Profeta) para converter-se em muçulmano24. A impressão é que haveria
uma doutrina islâmica pré-instituída que suplantaria as formas religiosas
tradicionais. Atualmente, este modo de ver a questão tem sido questionado
e o que se busca é perceber de que modo processou-se a conjunção entre a
religião que se instalava, as crenças e práticas já existentes e as formas
religiosas e culturais daí resultantes.
A islamização do nordeste africano, isto é, da área magrebina, e da
África ocidental, isto é, da área sudanesa, assumiu contornos distintos em
relação ao islã oriental clássico. Jomier valeu-se, tempos atrás, de uma
metáfora interessante para definir o islã. Este seria “uma água límpida, com
propriedades bem determinadas, e que é a mesma em toda parte”25. O que se percebe,
porém, é que o solo em que essa água fluiu era bastante diverso e em cada
caso a água adquiriu cores e contornos variados. Embora houvesse uma
mesma fé, sua interpretação variava de acordo com diferentes escolas de
interpretação da sharia (os maliquitas, hanafitas, chafeítas e hanbalistas),
sua prática podia ser orientada por interpretações que divergiam do
sunismo (as várias formas do xiismo, o movimento kharidjita), e as
apropriações e significações que se fizeram dela foram tão diversificadas
quanto as sociedades e grupos que a assimilaram.
Na área magrebina, de onde surgiu o complexo de crenças do qual
Ibn Battuta participava, houve, ao longo dos séculos, uma marcada
evolução do islã rumo ao perfeccionismo religioso e moral, uma
determinação persistente para estabelecer um credo purificado, canônico
e completamente uniforme. Até o século XI, o que se difundiu entre os
berberes foram formas islâmicas dissidentes, de inspiração xiita * e
sobretudo kharidjita**. Nos séculos XI e XII, dois movimentos nascidos da
espiritualidade islâmica gerada no Deserto do Saara, o movimento
almorávida e o movimento almôada, promoveram as condições para a
unificação de um Estado centralizado e de formas religiosas
especificamente magrebinas 26. Não obstante a constituição de uma
tradição escrita, erudita, aí o islã recebeu forte influência do modo de vida

24
Jacques JOMIER. Islamismo: história e doutrina. Petrópolis: Ed. Vozes, 1993, p. 57; Hubert
DESCHAMPS. Las Religiones del Africa Negra. Buenos Aires: Editorial Universitária de Buenos
Aires, 1962, p. 86.
25
Jacques JOMIER. Islamismo: história e doutrina. Op. cit., p. 64.
*
Adeptos da crença de que apenas os descendentes de Ali e Fátima seriam os sucessores
legítimos do Profeta, com direito ao título de califas.
**
Nascida nos primórdios do Islã, durante o califado de Ali, a dissidência kharidjita baseava-
se na idéia de que qualquer muçulmano podia obter o título de Califa desde que inspirado por
Alá, e não apenas aqueles da dinastia dos Omíadas ou os sucessores diretos do Profeta.
26
A melhor síntese do processo de islamização desta parte do continente encontra-se na
obra de Abdallah LAROUI. Historia del Magreb: desde los orígenes hasta el despertar magrebí. Un
ensayo interpretativo. Madrid: Editorial MAPFRE, 1994, pp. 66-82.
Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 17-34, jul./dez. 2008 28
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das tribos berberes e, nas palavras de Clifford Gertz, assumiria traços
particulares como o da crença nos “homens santos” e nos marabutos* 27. O
complexo das crenças pré-islâmicas foi sendo assimilado e reinterpretado,
na medida em que se desenvolvia um processo de permeabilidade
simbiótica – entre os costumes tradicionais e as transformações do mundo
islâmico.
Na área sudanesa, os contatos com o islã foram muito superficiais até
o século XI. Daí até o século XVI, houve um gradual e irregular processo de
islamização, cujo alcance, no máximo, foram as áreas urbanas e as camadas
dirigentes. Os intercâmbios culturais e os contatos humanos que as redes
comerciais proporcionaram estão entre os fatores principais da inserção do
Islã. Nesta primeira etapa, que alguns denominam de “Islã de corte”, o mais
comum era que membros das dinastias reais africanas adotassem a religião
monoteísta, inclusive por razões políticas (pois a doutrina islâmica fornecia
elementos que capacitavam maior organização e centralização do poder),
sem esquecer as solicitações das crenças locais. Desde as pesquisas de
Nehemia Levtizion, admite-se que as relações entre o islamismo e as religiões
africanas tenham oscilado entre a acomodação e o confronto e que as bases
ideológicas do poder dos chefes de Estado tenham assentado nos princípios
islâmicos e nas práticas religiosas tradicionais dos clãs28.
Além disso, certas correspondências entre o Islã e os cultos africanos
levaram a que se produzisse um amplo conjunto de crenças amalgamadas,
sincretizadas, que alguns especialistas denominam de “Islã negro”. Um
exemplo desse sincretismo pode ser encontrado na representação da figura
dos reis que se fizeram muçulmanos, permanecendo com a função de
mediadores entre o humano e o divino tal qual ocorria nos costumes
“animistas”. Segundo o africanista brasileiro Alberto da Costa e Silva,
tanto os muçulmanos quanto os “pagãos” da África subsaariana
acreditavam que a estada em Meca fortalecia o baraka, o poder propiciatório
do rei, sua capacidade de influir favoravelmente sobre a terra, bem como
de proporcionar modificações climáticas e, assim, a satisfação dos súditos29.

*
No Magreb, marabuto é o nome dado aos homens santos e ascetas, reverenciados pela
população. Na área sudanesa, o termo é aplicado a líderes muçulmanos carismáticos que
atuam como conselheiros e curandeiros.
27
Clifford GEERTZ. Observando o islã: o desenvolvimento religioso no Marrocos e na Indonésia. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, p. 24, 29. A popularidade dos “homens santos”, verdadeiros
milagreiros, taumaturgos, e dos lugares santos, que tanta influência exerceram nas crenças
populares do Magreb, são examinados no estudo de Émile DERMENGHEM. Le culte des saints
dans l’Islam maghrébin. Paris: Gallimard, 1954.
28
Para uma avaliação da questão da difusão do islamismo na África ocidental, ver o
excelente artigo de David ROBINSON. “L’espace, les methaphores et l’intensité de l’Islam
Ouest-africain”. Annales ESC (Paris), 40-6, 1985, pp. 1395-1405.
29
Alberto da COSTA E SILVA. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. Rio de
Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1996, p. 92. Com respeito aos traços gerais do sincretismo afro-
muçulmano, consultar Martine QUELCHON. “Reflexions sur certains aspects du syncrétisme
dans l’Islam Ouest-africain”. Cahiers d’Études Africaines (Paris), vol. 11 nº 42, 1971, pp. 206-230.

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Além disso, o Islã era tolerante em relação à adivinhação e à magia,
condenando apenas o seu uso ilegítimo. Isto explica que, na área sudanesa,
os marabutos tenham retirado sua autoridade do Alcorão, utilizando-o
entretanto como uma espécie de amuleto, e que os “homens santos” sejam
admirados por seu desempenho em rituais de possessão30.
Integrado por diversos povos, entre eles os manden (mandinga,
malinkê), os soninkê (sarakolê), os peul (fula), os dogon e os sosso, o reino
do Mali evoluiu para a condição de um grande império, na medida em que
os governantes conseguiram se impor militarmente, conquistando outras
comunidades e exigindo o pagamento de tributos. Era constituído de
núcleos distintos de tribos, chefaturas e pequenos reinos que anteriormente
faziam parte do reino de Gana. O controle era, direta ou indiretamente,
estabelecido por um poder central, representado na figura do governante,
o mansa, que era tido como o líder supremo, gozando do prestígio e poder
dos soberanos, recebendo as queixas dos súditos, distribuindo e aplicando
justiça. Havia duas categorias de províncias: as aliadas, cujos reis
conservavam os títulos (caso de Gana e Nima) e as conquistadas, em que,
ao lado dos chefes tradicionais, um governador, chamado farin,
representava o mansa.
O clã Keita é tido como a principal dinastia real, fundadora do
império cuja capital passou mais tarde a ser chamada de Niane. Quando
Sundjata Keita (1230-1255) unificou o reino e constituiu o império
mandinga, as atividades agrícolas e artesanais prosperaram. Foi nesse
período que se intensificaram os contatos do Mali com os mercadores das
caravanas transaarianas, principalmente devido à exploração das minas
auríferas de Bambuk e de Bure, ao comércio do sal e ao comércio de escravos.
O apogeu da dinastia ocorreu durante o século XIV, no governo de mansa
Mussa (1307-1332). Ele consolidou as bases administrativas nos domínios
já existentes e ampliou a área de influência do império com o apoio de
tropas disciplinadas de ocupação.
Seguidor do Alcorão, mansa Mussa realizou a peregrinação a Meca,
passando pelo Egito e divulgando no exterior a importância de seu Estado.
Percebera o isolamento do Mali, sua posição marginal frente ao mundo
islâmico, e procurou dar-lhe maior visibilidade e ampliar sua rede de
contatos comerciais e culturais. No retorno da peregrinação, trouxe sábios,
poetas e conhecedores da lei muçulmana para ensinar nas madrassas, as
escolas corânicas, sobretudo em Djenne e em Tombuctu. Palácios e
mesquitas também foram erguidos, inaugurando o estilo de arquitetura

30
Costuma-se chamar de “Islã negro” a forma sincrética que prevalece no Islã praticado na
África ocidental. A respeito deste conceito, ver as obras de Vincent MONTEIL. “O Islão na
África Negra”. Afro-Ásia (Salvador), nº 4-5, 1967, pp. 5-23; IDEM. L’Islam noir. Paris: Seuil,
1964. Não obstante os africanistas africanos terem questionado a propriedade deste conceito,
reconhecem a existência dos fenômenos que lhe são associados. Para um balanço da
questão, ver Ravane MBAYE. “L’Islam noir en Afrique”. Revue Tiers Monde (Paris), vol. 23 nº
92, 1982, pp. 831-838.
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sudanesa predominante na atualidade, no qual estão articulados motivos
de inspiração muçulmana com uma técnica de construção em argila
própria da região.
A partir da segunda metade do século XIV, o império do Mali
conheceu um lento e inexorável processo de enfraquecimento da autoridade
central, devido principalmente a uma série de conflitos sucessórios. Isto se
deveu, em boa parte, ao choque entre o velho princípio de sucessão colateral
(fratrilinear), presente entre vários povos sudaneses, com o princípio da
sucessão dinástica em linha patrilinear, quer dizer, de pai para filho –
própria da tradição islâmica31.

IDENTIDADE ISLÂMICA E SINCRETISMO

Ibn Battuta sentiu-se autorizado a emitir impressões pessoais sobre


as características predominantes dos sudaneses, sublinhando suas
principais virtudes, e seus principais defeitos. Estas impressões, é claro,
resultam de uma avaliação cujos critérios foram estabelecidos a partir da
perspectiva do observador e nos dizem tanto do que foi visto quanto do
que deveria ter sido visto. Na lista das virtudes, consideradas louváveis,
positivas, estão o rigor da aplicação da justiça; a pequena incidência de
roubos e crimes; a assiduidade às orações e a fidelidade ao costume da
oração comum às sextas-feiras; o cuidado e asseio dos trajes utilizados
nos ofícios religiosos e a dedicação ao estudo do Alcorão. Na lista dos
defeitos, destaca o hábito de as mulheres (escravas ou serviçais domésticas)
aparecerem nuas em público; o hábito de jogar cinza no rosto como
demonstração de boa educação; o apreço por bufonarias e recitações de
versos dos poetas (griots); o hábito de comer carne de animais não
ritualmente imolados – como cães e asnos.
Em seu conjunto, estas apreciações parecem contraditórias.
Louvados pela assiduidade e aplicação na condução da vida religiosa, os
sudaneses são recriminados por “desvios” de conduta e apego a costumes
não condizentes com o islã. O que salta aos nossos olhos, em primeiro
lugar, é o caráter seletivo dos julgamentos emitidos pelo viajante
marroquino. Apesar dos sudaneses partilharem do mesmo “verniz
islâmico” de Ibn Battuta, os substratos culturais do Sudão e do mundo
magrebino eram distintos. O viajante pertencia a um lugar onde a chegada
do islã há muito se havia dado e conhecia como “práticas aceitáveis” aquilo
31
Sobre a história do Império do Mali, ver o verbete correspondente em C. E. BOSWORTH(ed).
The Encyclopaedia of Islam. Leiden: E. J. Brill, 1987, vol. 6, pp. 257-361; Djibril Tamsir NIANI. “O
Mali e a segunda expansão Manden”. In: IDEM (org). História Geral da África. ;São Paulo: Ed.
Ática/UNESCO, 1984, volume 4 – A África do século XII ao XVI, pp. 135-189. Quanto ao relato
da viagem de mansa Mussa, e informações concernentes às escolas corânicas de Djenne e
Tombuctu, uma importante fonte documental continua a ser a crônica escrita em meados do
século XVII pelo sábio sudanês AL SADI. Ta’rikh es-Soudan. Traduction de l’arabe par Octave
Houdas. Paris: Maisonneuve, 1898-1900.
Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 17-34, jul./dez. 2008 31
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considerado como tal em seu lugar de origem. A vivência proporciona
experiência e capacidade de distinção entre certo e errado, bom e mau,
aceitável e reprovável, mas todos esses conceitos são construções culturais.
Quando recrimina o hábito da nudez das mulheres, o que está em
pauta não é um julgamento moral, mas um julgamento de cunho religioso.
Em situações distintas, quando conheceu outros povos, há diversas
menções a hábitos corporais e mesmo a hábitos sexuais contrários ao seu
costume, sem que por isto tais hábitos sejam condenados por ele. Além
disso, em suas viagens teve várias escravas, mantendo relações sexuais
com elas, inclusive deixando alguns filhos pelo caminho32. Entretanto, em
todos esses casos os povos não eram muçulmanos e sim “pagãos”. Em
terras muçulmanas, tais práticas não podiam ser aceitas sem reservas. Já
na primeira cidade que integrava os domínios do Mali, Iwalatan, a “falta
de pudor” das mulheres e seu descumprimento do uso do véu chamou a
atenção do visitante. Além disso, com a conivência dos maridos, elas
entregavam-se a outros homens, algo que o deixou perplexo: “vi isto no
mundo apenas entre os pagãos do país de Malabar, junto aos indianos. Mas eles são
muçulmanos, são aplicados nas orações, estudam a fikh e aprendem o Alcorão!”33.
O problema, em última instância, está relacionado à falta de
uniformidade das práticas religiosas e dos códigos culturais pretensamente
islâmicos que o viajante encontrou no Sudão. É claro que islã estava presente
no Mali, embora saibamos que sua difusão ganhou maior intensidade
apenas no início do século XIV, isto é, meio século antes da visita de Ibn
Battuta. Ele próprio nos fornece várias indicações da presença efetiva do
ideário islâmico, mencionando os berberes ibaditas* e kharidjitas da cidade
de Zaghari; enaltecendo as qualidades morais de indivíduos como Ibn
Shaykh al-Laban, que era letrado e mestre no ensino do Alcorão na capital
do Mali; visitando o túmulo do ilustre poeta sudanês al-Tuwaydjin na
cidade de Mima. Convém aliás reparar que suas reclamações não dizem
respeito aos membros da elite e sim aos costumes da população – que
mantinha suas crenças ancestrais.
Embora o estranhamento seja expresso em termos religiosos, há
algo mais a ser considerado. O que está em causa, também, são diferenças
na forma de organização social. Em Iwalatan, antes de descrever os hábitos
“libertinos” dos homens e mulheres casadas, indica um dado curioso sobre
sua forma de organização familiar: os homens não reconheciam sua
ascendência no pai, mas no tio materno. Tratava-se, pois, de um tipo de
sucessão familiar avuncular, na qual a figura da mãe desempenhava papel
social mais importante que a figura paterna. No caminho de retorno ao

32
Neste sentido, ver o estudo de Remke KRUK. “Ibn Battuta: travel, family life, and chronology”.
Al-Qantara (Madrid), vol. XVI-2, 1995, pp. 369-384.
33
IBN BATTUTA. À través del Islam, p. 280.
*
Membros de uma seita dissidente inspirada nas interpretações do jurista e teólogo Abdallah
ibn Ibadh at-Tamimi, nascida em Omã e difundida na Líbia, Argélia, Tunísia e em Zanzibar.
Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 17-34, jul./dez. 2008 32
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Marrocos, admirou-se com o fato de que, entre os povos Bardama, no
Deserto do Saara, as mulheres gozavam de notável prestígio e detinham
posições de liderança. Por fim, na própria capital do Mali, estranhou que a
primeira esposa do “sultão”, designada pelo título de kasa, estivesse
associada a ele no governo e desfrutasse efetivamente de poder. Ele chega
a descrever uma tentativa de rebelião dela contra o marido34.
Todos estes indícios nos levam a pensar o quanto, para o narrador,
que pertencia a uma sociedade poligâmica, patriarcal e de sucessão patrilinear,
pareciam incompreensíveis e mesmo inaceitáveis comportamentos
associados a sociedades como as dos sudaneses, em que a presença de traços
matriarcais se fazia sentir e a linha de sucessão patrilinear convivia com
outras formas de sucessão, como a avuncular e mesmo a matrilinear. O
papel de destaque das mulheres nas antigas sociedades africanas foi, aliás,
um dos pontos recorrentes que chamou a atenção de antropólogos e
historiadores e que aguarda estudos mais pormenorizados.

***

Em conclusão, o que se percebe na Rihla é que o sentido religioso que


orientava a conduta de Ibn Batutta era rigorosamente vinculado à matriz
islâmica de viés mais canônico da África mediterrânica, magrebina,
enquanto o sentido religioso dos sudaneses estava inserido em outra camada
do “verniz islâmico”, numa perspectiva sociológica menos prescritiva,
porém não menos performática. A estes códigos de comunicação de cunho
religioso, todavia, agregavam-se elementos de caráter social e de caráter
étnico que alargavam o fosso entre o viajante e os povos visitados. Em todos
as circunstâncias, ele identifica-se com os “brancos”, assumindo uma posição
de distanciamento que só diminui diante do reconhecimento da identidade
religiosa com o islã. O que temos, enfim, são distintos participantes de um
islã plural, que acabou por configurar um mosaico de relações político-
religiosas e sócio-culturais nas antigas civilizações africanas.
Recebido em agosto de 2008.
Aprovado em outubro de 2008.

Title: A Journey to the Mali Empire in the 15th Century: IBN Battuta’s Rihla Account (1352 -1356)
Abstract
Between 1352 and 1353, the traveler Ibn Battuta followed a merchant’s caravan from the city
of Sijilmassa (Morocco) to the Mali’s Empire capital, and there he stayed for eight months.
Information on his journey and stay were reported in Rihla, and his memory accounts were
made by the scribe Ibn Yuzavy, in 1356. It is the only written report on historical features of

34
IBN BATTUTA. À través del Islam, p. 282. Em algumas comunidades sudanesas tradicionais,
a figura do governante era desdobrada em dois pólos e personificada por dois soberanos,
um representando a guerra e outro representando o poder da palavra e da fertilidade, a
quem chamavam “rei-fêmea”. Sobre esta curiosa instituição, vale a pena consultar o estudo
de Jean BAZIN. “Princes desarmés, corps dangereux. Les “rois-femmes” de la région de
Segou”. Cahiers d’Études Africaines (Paris), volume XXVIII nº 111-112, 1988, pp. 375-441.
Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 17-34, jul./dez. 2008 33
Disponível em: <http://www.fapa.com.br/cienciaseletras>
one of the most powerful states of the African Savannah before the 15th century. In this
report, the traveler describes some aspects of the natural landscape, forms of social and
political organization and, especially, some practices and religious beliefs.
Key Words: Travel writing. Subsaarian Africa. Mali Empire. Islamization. “Islam noir”.

Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 17-34, jul./dez. 2008 34


Disponível em: <http://www.fapa.com.br/cienciaseletras>

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