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África antes do contato com os europeus pelo Oceano Atlântico:

ouro, arte e sabedoria1


Monica Lima

Pesquisas históricas revelaram, com uso de fontes arqueológicas e relatos de viajantes,


sobretudo norte-africanos, a existência de grandes reinos e civilizações, com
conhecimentos sobre metalurgia, mineração, técnicas agrícolas, além de sofisticados
sistemas de poder, no continente africano ao Sul da Saara, séculos antes dos primeiros
portugueses lá chegarem pelo Atlântico. Um dos marcos dessas descobertas foram as
ruínas de Jenne-Jeno (antiga Jenné, em língua songai), encontradas na primeira metade
do século vinte, cuja pesquisa arqueológica, iniciada na década de setenta daquela mesma
centúria, revelou uma das mais antigas cidades da África sul-saariana, fundada no século
III a.C. e com ocupação contínua por aproximadamente 1.600 anos. Descobriu-se que
seus habitantes conheciam o ferro, criavam bois e praticavam a agricultura de vazante
desde o século I a.C.
A continuidade das investigações científicas trouxe à luz a presença de uma rede de
centros urbanos na curva do rio Níger, a qual se desenvolveu ao longo do período que a
historiografia europeia denomina de Idade Média (século V ao século XV). Essa rede se
articulava não apenas internamente, mas em conexão com o Norte da África e outros
continentes. Comerciantes africanos que dominavam os caminhos do deserto levavam da
África para a Europa e a Ásia mercadorias valiosas como temperos, sal e os cobiçados
metais preciosos. Segundo Pierre Vilar, medievalista francês integrante da célebre École
des Annales que revolucionou a historiografia ocidental, afirmou que, durante a Idade
Média na Europa, a África era conhecida como a “terra do ouro”.
As descobertas da arqueologia ao serem colocadas em diálogo com os relatos de
geógrafos e historiadores do mundo muçulmano, possibilitam o acesso aos
conhecimentos sobre essas áfricas caracterizadas por relações comerciais dinâmicas,
intensa vida urbana e estruturas de poder centralizado. Esses estudiosos muçulmanos,
grande parte com origem no Magreb, cruzaram o deserto e visitaram regiões da África
ocidental e oriental entre os séculos XIII e XV e produziram vasta literatura de viagem, a
qual, no entanto, tardou em começar a fazer parte das fontes privilegiadas pela pesquisa
nas diversas áreas dos estudos de letras e humanidades. Seu uso como corpus documental

1
Uma versão deste texto saiu publicada na revista Ciência Hoje de dezembro de 2018 sob o título “Ouro,
Arte e sabedoria na África Pré-colonial”
das investigações históricas durante muito tempo, até meados do século vinte,
apresentava como obstáculo para a maioria de pesquisadores ocidentais o idioma árabe
em que estavam escritas e o eurocentrismo que desvalorizava a produção do mundo não
cristão. A tradução e a divulgação desse rico material contribuíram para a descoberta de
um manancial de possibilidades de estudos e para o conhecimento sobre a África antes
da formação do mundo atlântico. Recentemente no Brasil, trabalhos como o de Beatriz
Bissio, com seu livro O mundo falava árabe (Civilização Brasileira, 2012), recuperam o
conteúdo civilizacional da cultura árabe-islâmica que por meio dos relatos de viajantes
do século XIV, apresenta o mundo africano sob outras lentes.
As histórias trazidas por esses viajantes nos contam que havia rotas de comércio que
cruzavam o deserto de Saara, por meio de caravanas que iam e vinham, com muitas
pessoas e mercadorias.

Rotas de caravanas pelo Deserto do Saara (século XI ao século XV)


Fonte: http://www.histoire-geographie-education-civique-maxime-vinot.com/2015/05/activite-5eme-l-
afrique-au-moyen-age.html

Com o crescimento da comércio caravaneiro pelo Saara também foram surgindo,


em pontos estratégicos ligados a essas rotas ou à fontes de mercadorias valiosas, alguns
núcleos de poder centralizado, graças à riqueza trazida por toda essa atividade. Assim se
originaram muitos reinos, que se foram se formando na franja ao Sul do deserto e nas
regiões de savana, favorecidos por terem acesso e controle sobre os bens mais valorizados
nos mercados do Norte do continente: o ouro e o sal. Os mais conhecidos entre esses
reinos da África Ocidental entre os séculos X e XVI são: Gana (Ghana), Mali e Songai
(Songhai).

Núcleos de poder centralizado: África Ocidental (Sudão Ocidental, Estados da Floresta e Sudão Central)
Referência: http://www.fafich.ufmg.br/luarnaut/Afrika%20docs.html

Nos reinos de Mali e Songai os soberanos se converteram ao Islã, fortalecendo ainda


mais as conexões desta região com as rotas de longa distância comandadas por
muçulmanos. A política dos Mansa (palavra que queria dizer ‘rei’ no Mali) atraiu
mercadores, professores e profissionais de diferentes áreas para seu reino, tal era a
prosperidade local. Um dos mais famosos soberanos do reino do Mali foi Mansa Mussa,
que ao realizar sua peregrinação à Meca, cidade sagrada dos muçulmanos, entre os anos
de 1324 e 1325, teria maravilhado a todos com sua riqueza. Numa de suas paradas no
caminho, na cidade do Cairo, no Egito, teria presenteado tantas pessoas com ouro, que o
valor desse metal se desvalorizou por mais de 10 anos. A fama de Mansa Mussa foi tão
grande que, num mapa da África Ocidental naquele mesmo século, a figura desse
soberano aparece com uma pepita de ouro na mão. Esse mapa, chamado Atlas Catalão,
de 1375, é atribuído a um cartógrafo judeu chamado Abrãao Cresques, que morava na
Ilha de Maiorca, na Espanha, e que desde lá teve informações sobre o poder do soberano
africano.

Atlas Catalão (detalhe), de 1375.


Referência: https://historiativanet.wordpress.com/2010/08/23/lendo-a-historia-a-africa-em-mapas/

Arte, conhecimentos e técnicas

Além destes reinos, houve outros núcleos de poder centralizado na África


Ocidental, alguns em torno de cidades importantes como nas regiões hauçá e iorubá que
ficam hoje na Nigéria. Em Ifé, cidade sagrada dos iorubás, se produziam desde tempos
muito antigos com sofisticadas técnicas de escultura, as famosas cabeças de bronze que
datam provavelmente dos séculos XIII e XIV. Estas obras de arte, descobertas em 1938,
maravilham até hoje todos que as veem pela qualidade do trabalho artístico. A região
iorubá era densamente urbanizada, com núcleos de poder importantes como o que se
formou na região de Oió, que chegou a exercer seu domínio sobre outras cidades da
região, sendo por essa razão conhecida como um reino.
Cabeças de bronze de Ifé (Nigéria) séculos XIV e XIII
https://pt.wikipedia.org/wiki/Cabe%C3%A7a_de_bronze_de_If%C3%A9

Os reinos da África Ocidental também englobavam em suas fronteiras diversos


povos de agricultores e mineradores e eram estes os trabalhadores que criavam as grandes
riquezas controladas por reis e nobres. Estas pessoas - homens e mulheres – produziram
objetos com arte e engenho, inventaram instrumentos, elaboraram tecnologias e sistemas
de trabalho que contribuíram para o desenvolvimento da produção agrícola e da
mineração, não só em suas regiões como para o Brasil - quando trazidos pelo tráfico
atlântico de escravizados. Na história do Brasil, conhecemos os iorubás pela herança
cultural e religiosa de religiões de matriz africana como o candomblé, e entre os
muçulmanos que participaram da famosa Revolta dos Malês, em 1835 em Salvador, havia
africanos hauçás. Essas pessoas, das quais temos registros por seus nomes de nação que
indicavam regiões de procedência, carregaram parte da história de seus povos de origem
na travessia e trouxeram para o nosso país as experiências vividas por elas e seus
antepassados.
Na África Centro-Ocidental, na fronteira entre os países que são hoje Angola,
Congo RDC e República Popular do Congo, desde o século XIV se localizava outro
núcleo de poder centralizado que se tornou muito importante: o antigo reino do Congo.
Nesse reino, moravam povos que viviam da atividade agrícola que também comerciavam
diversos produtos com grupos de outras regiões. O território do reino era dividido em
províncias e seus limites eram traçados pelas aldeias que pagavam impostos ao poder
central, que estava nas mãos do Mani Congo - título que era dado ao soberano - e seus
assessores e conselheiros. A capital do reino era conhecida como Banza Congo e na sua
época era tão grande como as capitais da Europa. Os portugueses quando chegaram pela
primeira vez à região do reino do Congo em 1483, se espantaram com a dimensão e o
esplendor dessa cidade, com suas construções e a riqueza do interior das residências.
Havia na cidade verdadeiros labirintos que levavam ao palácio, só conhecidos por alguns,
e nos aposentos reais as paredes eram decoradas com finíssimos tapetes e tecidos de ráfia.

CC BY-SA 2.5, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=1337145


Na região do antigo reino do Congo e no Norte de Angola atual, onde ficava o reino do
Ndongo (Dongo), havia uma longa tradição de trabalho com metalurgia. Os ferreiros eram
profissionais com muito prestígio e seu ofício era considerado sagrado. Nesses reinos os
instrumentos de trabalho, objetos rituais e artísticos eram fabricados com maestria por
conhecedores dos segredos do ferro. Todo o conhecimento que envolvia essa atividade
era passado de pai para filho, e havia cerimônias secretas para a habilitação dos futuros
ferreiros. Como em quase todas as sociedades africanas, o saber e o poder eram
governados pela relação com o mundo dos espíritos e das divindades. No reino do
Ndongo, no século XVII, surgiu uma soberana que desafiou os portugueses, e que por
isso ficou famosa. Era a rainha Nzinga (Ginga), que comandava exércitos e tinha toda
uma corte em torno de si, dando mostras de poder e força em sucessivas campanhas
militares. Esse personagem tornou-se tão célebre na história da região que cruzou o
oceano nos corações e mentes dos escravizados que recriaram sua memória aqui no
Brasil, aparecendo como figura lendária em celebrações festivas e religiosas de matriz
africana. Assim como o rei e rainha do Congo nas Congadas brasileiras, a rainha Ginga
passou a frequentar nossos festejos populares, num expressão de memória e tradição
cultural que nos conecta de forma incontornável com o continente africano. As fontes
sobre a história dessa região foram em grande parte produzidas por portugueses e
integrantes de missões católicas europeias – na grande compilação Monumenta
Misionaria Africana, disponível em arquivos online e impressa (no Real Gabinete
Português de Leitura, no Rio de Janeiro) encontram-se muitas informações.

Artífices trabalhando o ferro em Angola. Gravura de G.A. Cavazzi de Montecuoccolo. Istorica


Descrizione de Tre Regni, Congo, Matamba et Angola, 1687.
Fonte: HENRIQUES, Isabel de Castro e MEDINA, João. A rota dos escravos. Angola e a rede de
comércio negreiro. Lisboa: CEGIA, 1996.p.95.
(deve haver outras reproduções dessa imagem na internet, com melhor resolução)

Estes núcleos de poder centralizado – que chamamos de reinos para ficar mais fácil de
entender, mas que nem sempre tinham uma figura de rei, ou estrutura de poder como nos
modelos de reinos europeus - surgiram não apenas na África Ocidental e Centro-
Ocidental. Havia também na África Oriental e, como nas outras regiões, bem antes do
contato com os europeus pelo Oceano Atlântico. É importante ressaltar que o modelo
teórico das monarquias europeias não serve para definir as funções políticas dos
soberanos africanos.
Nas regiões próximas à costa do Índico surgiram formações políticas complexas ligadas
ao grande comércio transoceânico que ligava essa área litorânea da África à Península
Arábica. Essa ligação não era muitas vezes direta, havia rotas atravessando, por rios ou
por terra, do interior até a costa. Uma das evidências materiais de uma dessas formações
que ficavam ao interior são as majestosas ruínas de pedra conhecidas como Grande
Zimbabué (Grande Zimbabwe) no local onde existiu o reino do Zimbabwe, entre os
séculos XIII e XV. Neste reino, o ouro, o cobre e o ferro eram extraídos e com eles se
realizava um intenso comércio com a costa e regiões do Oceano Índico. O comércio
marítimo era favorecido pelo sistema de monções que criava ventos propulsores das
embarcações em períodos e percursos determinados, fazendo com que as viagens entre o
litoral africano e Índia pudessem ser rápidas e relativamente seguras. Na esteira dessa
atividade comercial, em rotas mais longas, chegavam diversos produtos trazidos da China
e do Japão, como sofisticadas porcelanas e sedas, além dos temperos orientais.
Quando os portugueses aí chegaram no século XV se maravilharam com a riqueza e
beleza das cidades dessa região do continente, tendo que se haver também com o poder
de seus governantes que lhes impuseram condições para se estabelecerem, além de
oferecer resistência militar aos interesses lusos.
Redes de comércio na costa africana do Oceano Índico, século X ao XVI.
Fonte: SHILLINGTON, Kevin. History of África. Nova Iorque: Macmillan, 2005. 2ªed rev.
p.126

Muro de pedra nas ruínas do Grande Zimbabué.


http://www.historiailustrada.com.br/2014/06/tesouros-historicos-africanos-ruinas-do.html
A história da África ao Sul do Saara, antes do contato com os europeus pelo
Oceano Atlântico, está repleta de riqueza e expressões de poder. Suas sociedades criaram
formas de governo que se assemelham aos reinos e impérios que conhecemos, bem como
formaram exércitos de guerreiros e guerreiras – como as amazonas do Daomé, na África
Ocidental. Mas, principalmente produziram arte, conhecimentos e técnicas que se
espalharam pelo mundo por meio da diáspora africana.

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