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OURO, ARTE

E SABEDORIA
,
NA ,AFRICA
PRE-COLONIAL
Grandes reinos e civilizações. com sofisticados sistemas
de poder. já estavam presentes no continente africano séculos
antes de os portugueses desembarcarem nas terras ao sul do
deserto do Saara. Os povos que habitavam esses reinos tinham
conhecimentos de metalurgia. mineração e técnicas agrícolas.
Eram também comerciantes. que levavam mercadorias valiosas.
como sal e metais preciosos. da África à Europa e à Ásia.
A sabedoria e a riqueza dessas sociedades africanas
- uma história ainda pouco disseminada nas universidades
e escolas - foram reveladas por pesquisas a partir de fontes
arqueológicas e relatos de viajantes. sobretudo norte-africanos.

Monica Lima
l aboratório de Estudos Africanos
Instituto de História
Universidade Federal do Rio de Janeiro

SÉCULOS ANTES DE OS PORTUGUESES navegarem pelas águas do Atlânti-


co e desembarcarem no continente africano, ao sul do Saara, grandes reinos e
civilizações, com sofisticados sistemas de poder, já ocupavam a região. Esses
povos tinham conhecimentos de metalurgia, mineração e técnicas agrícolas.
Eram também africanos os comerciantes que, por dominarem os caminhos do
deserto. levavam mercadorias valiosas, como sal e metais preciosos, da África
à Europa e à Ásia. Durante o tempo conhecido como Idade Média na Europa,
a África era chamada de 'terra do ouro'.
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Rota de grandes caravanas


Outra estrada
Zona de intensa navegação fluvial

Caravanas. cidades e reinos


Aldeias, cidades e até reinos nasceram em meio às rotas
de comércio que cruzavam o deserto do Saara. Por esses
caminhos, caravanas iam e vinham, repletas de pessoas
e mercadorias.
Uma das mais importantes e ativas rotas de comér~
cio transaariano saía de Marraquexe, passava pelas mi·
nas de sal de Taghaza, até chegar ao antigo reino de Gana.
Havia outros caminhos igualmente relevantes, como o que
ia de Túnis à terra dos hauçás, no norte da Nigéria atual.
Entre os principais itinerários, destacava-se ainda um ter-
ceiro, que cruzava o deserto de Trípoli ao sul de Bornu - na
região do lago Chade - , além de outro - longo e estratégi-
co - , que levava de Gao até a cidade do Cairo. Essas rotas
centrais se subdividiam em outros caminhos secundários.
Foi nos pontos de descanso das caravanas que nasceram
cidades e aldeias (figura 1).
O crescimento do comércio caravaneiro pelo Saara con-
tinuou. Em pontos estratégicos ligados a essas rotas ou a
fontes de mercadorias valiosas, foram surgindo núcleos de
poder centralizado, graças à riqueza trazida por toda essa
atividade. Assim. se originaram muitos reinos na franja ao
sul do deserto e nas regiões de savana, favorecidos por te-
rem acesso e controle sobre os bens mais valorizados nos
FiguraI. Rotas de
mercados do norte do continente: o ouro e o sal. Os reinos caravanas pelo
mais conhecidos da África Ocidental entre os séculos 10 e deserto do Saara do
16 eram Gana (Ghana), Mali e Songai (Songhai) (figura 2). século 11 ao século 15

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Os soberanos do Mali e de Songai se con-
verteram ao Islã, fortalecendo ainda mais as
conexões da região com as rotas de longa dis-
tância comandadas por muçulmanos. A política
dos Manso (pal avra que significava 'rei' no Mali)
atraiu mercadores, professores e profissionais de
diferentes áreas para seu reino, tal era a prosperi-
dade local (figura 3).

Arte, conhecimentos e técnicas


Além desses reinos, houve outros núcleos de poder cen-
tralizado na África Ocidental, alguns em torno de cidades
importantes, como nas regiões hauçá e ioruba, que ficam
hoje na Nigéria. Em !fé, cidade sagrada dos iorubás, se
produziam, desde tempos muito antigos e com sofisticadas
>
figura 2. Núcleos de
poder centralizado na
África Ocidental

MUSSA, OSOBERANO QUE DISTRIBUíA OURO


Um dos mais famosos soberanos do reino do Mali foi Mansa Mussa, que, ao realizar sua peregrinação
à Meca, cidade sagrada dos muçulmanos, enlre os anos de 1324 e 1325, teria maravilhado a lodos
com sua riqueza. Em uma de suas paradas no caminho, na cidade do Cairo, no Egito, teria
presenteado tantas pessoas com ouro, que o valor do metal se desvalorizou por mais de 10 anos.
A fama de Mansa Mussa foi tanta que sua figura foi retratada com uma pepita de ouro na mão, em
um mapa da África Ocidenlal naquele mesmo século. Esse mapa, chamado Atlas Catalão, de 1375, é
alribuido a um carlógrafo judeu chamado Abrãao Cresques, que morava na Ilha de Maiorca, na
Espanha, e que desde lá leve informações sobre o poder do soberano africano.

figura 3. Mansa
Mussa, representado
em delalhe do Atlas
Catalão, de 1375

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técnicas de escultura, as famosas cabeças de bronze, data- Capital de luxo e riqueza
das provavelmente dos séculos 13 e 14. Essas obras de arte, Na África Centro-Ocidental, na fronteira entre os países
descobertas em 1938, maravilham até hoje a todos que as que são hoje Angola, Congo RDC e República Popular do
veem pela qualidade do trabalho artístico. A terra iorubá Congo, localizava-se, desde o século 14, outro núcleo de po-
era densamente urbanizada, com núcleos de poder impor- der centralizado que se tornou muito importante: o antigo
tantes, como o da região de Oió, que chegou a exercer seu reino do Canga. Ali moravam povos que viviam da ativida-
domínio sobre cidades vizinhas e, por isso, era conhecida de agrícola e que também comerciavam diversos produtos
como um reino (figura 4). com grupos de outras regiões. O território do reino era di-
Os reinos da África Ocidental também englobavam em vidido em províncias e seus limites eram traçados pelas
suas fronteiras diversos povos de agricultores e minerado- aldeias, que pagavam impostos ao poder central, centrado
res, trabalhadores criadores das grandes riquezas contro- nas mãos do Mani Congo - título dado ao soberano - e seus
ladas por reis e nobres. Essas pessoas - homens e mulhe- assessores e conselheiros (figura 5).
res - produziam objetos com arte e engenho, inventavam A capital do reino era conhecida como Banza Canga e,
instrumentos e elaboravam tecnologias e sis- na sua época, era tão grande como cidades importantes da
temas de trabalho que contribuíram para o Europa. Os portugueses, quando chegaram pela primeira
desenvolvimento da produção agríCOla e da vez à região do reino do Congo, em 1483, se espantaram
mineração não só em suas regiões, como com a dimensão e o esplendor da cidade, com suas cons-
também no Brasil - quando trazidos para cá truções e a riqueza do interior das residências. Havia lá
pelo tráfico atlântico de escravizados. verdadeiros labirintos que levavam ao palácio, só conhe-
Na história do Brasil, conhecemos os iom- cidos por alguns, e nos aposentos reais as paredes eram
bás pela herança de religiões de matriz afri- decoradas com finíssimos tapetes e tecidos de rátia.
cana, como o candomblé. Entre muçul- Na região do antigo reino do Canga e no
manos que participaram da famo- norte de Angola atual, onde ficava o reino
sa Revolta dos Malês, em 1835 do Ndongo (Dongo), havia uma longa tra-
em Salvador, também havia dição de trabalho com metalurgia. Os
africanos hauçás. Essas pes- ferreiros eram profissionais com mui-
soas, das quais temos regis- to prestígio e seu ofício era conside-
tros por seus nomes de na-
ção que indicavam regiões
de procedência, carrega-
ram parte da história de
seus povos de origem na
travessia e trouxeram para
o nosso país as experiên-
cias vividas por elas e seus
antepassados.

Figura 4. Cabeças de
bronze de Ifé (Nigéria)
dos séculos 13 e 14

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Reino do Loango

Figura 5.
Reinos da África
Centro-Ocidental Reino do Cango

Reino de Matamba

Reino de Angola Reino do Ndongo

Figura S. Artifices
trabalhando o ferro
em Angola. Gravura
de G.A. Cavazzi de
Montecuoccolo
feita no século 17

rado sagrado. Nesses reinos, os instrumentos de traba-


GINGA, A RAINHA QUE DESAFIOU
lho, objetos rituais e artísticos eram fabricados com
OS PORTUGUESES
maestria por conhecedores dos segredos do ferro. Todo
No reino do Ndongo, no século 17, surgiu uma soberana que o conhecimento que envolvia essa atividade era passa-
ficou famosa por desafiar os portugueses. Era a rainha do de pai para filho, e havia cerimônias secretas para
Nzinga IGinga), que comandava exércitos e tinha toda uma a habilitação dos futuros ferreiros, Como em quase to-
corte em torno de si, dando mostras de poder e força em das as sociedades africanas, o saber e o poder eram
sucessivas campanhas militares. governados pela relação com o mundo dos espíritos e
Essa personagem tornou-se tão célebre na história da das divindades (figura 6).
região que cruzou o oceano nos corações e mentes dos Esses núcleos de poder centralizado - aos quais cha-
escravizados, que recriaram sua memória aqui no Brasil, mamos de reinos, para ficar mais fácil de entender, mas
fazendo com que ela aparecesse como figura lendária em que nem sempre tinham uma figura de rei, ou estrutu-
celebrações festivas e religiosas de matriz africana. Assim ra de poder nos modelos de reinos europeus - surgiram
como o rei e rainha do Canga nas Congadas bras'ileiras, a não apenas na África Ocidental e Centro-Ocidental.
rainha Ginga passou a frequentar nossos festejos populares. Havia também na África Oriental e, assim como nas
em uma expressão de memória e tradição cultural que nos outras regiões, bem antes do contato com os europeus
conecta de forma incontornável com o continente africano. pelo Oceano Atlântico. >
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Figura 7. Ruínas do Grande Zimbabuê

Bons ventos no indico cidades portuárias, como Quíloa, em que se falava a língua
Nas regiões próximas à costa do Indico, surgiram for- Suaíle, um idioma que se originou dos contatos entre po-
mações políticas complexas, impulsionadas pelo grande vos que falavam línguas do tronco linguístico Banto e os
comércio transoceânico que conectava essa área litorânea árabes. O Suaíle se tornou uma língua franca, utilizada em
da África à Península Arábica. Essa ligação não era muitas toda essa costa e por comerciantes que a frequentavam.
vezes direta, havia rotas que levavam, por rios ou por terra, Na esteira da atividade comercial, chegavam diversos pro-
do interior até a costa. dutos trazidos da China e do Japão, como sofisticadas por-
Há evidências materiais dessas formações que ficavam celanas e sedas, além dos temperos orientais.
ao interior. Um exemplo são as majestosas ruínas de pedra Quando os portugueses aí chegaram, no século 15, se
conhecidas como Grande Zimbabué (Grande Zimbabwe) maravilharam com a riqueza e beleza das cidades dessa
no local onde existiu o reino do Zimbabwe, entre os região do continente, tendo que se entender também com
séculos 13 e 15 (figura 7). Nesse reino, o ouro, o cobre e o o poder de seus governantes, que lhes impuseram condi-
ferro eram extraídos e usados em um intenso comércio ções para se estabelecerem, além de oferecer resistência
com a costa e regiões do Oceano Indico. O comércio ma- militar aos interesses lusos.
rítimo era favorecido pelo sistema de monções, que criava A história da África ao Sul do Saara, antes do contato
ventos propulsores das embarcações em períodos e percur- com os europeus pelo Oceano Atlântico, está repleta de
sos determinados, fazendo com que as viagens entre o li- riqueza e expressões de poder. Suas sociedades criaram
toral africano e a Índia pudessem ser rápidas e relativa- formas de governo que se assemelham a reinos e impérios
mente seguras. que conhecemos, bem como formaram exércitos de guer-
O intenso contato marítimo pelo Oceano indico se dava reiros e guerreiras - como as amazonas do Daomé, na
também com a Península Arábica, e essa relação comercial África Ocidental. Mas, principalmente, produziram arte,
era acompanhada por uma história de migrações. Tudo conhecimentos e técnicas. que se espalharam pelo mundo
isso fez surgirem na costa oriental africana as poderosas por meio da diáspora africana. I

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