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Agradeço a Paulo Dias a leitura atenta e as sugestões que dela resultaram.
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Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (1992),
mestrado (1997) e doutorado (2003) em Antropologia pela Universidade de Brasília.
Atualmente é professora adjunto do Departamento de Antropologia da Universidade
Federal do Paraná. Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Antropolo-
gia Rural (destaque para o estudo de Povos e Comunidades Tradicionais), Antropologia
das Populações Afro-Brasileiras, Cultura e Religiosidade Populares, Ações Afirmativas.
Atua principalmente nos seguintes temas: magia, comunidades quilombolas e faxinalen-
ses, relações raciais, patrimônio imaterial, catolicismo popular, cotas no ensino superior.
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verso complexo que não se restringe, como em geral se supõe,
a perspectivas unificadas do candomblé e da umbanda –, o que
responderia somente a parte da primeira das dificuldades acima
colocadas. É fundamental também refletir sobre o segundo dos
problemas levantados – a conjugação dos preconceitos racial e
religioso, perpassada pelo temor à magia – que gera resistências
e reações afetivas (muitas vezes intensas) tanto no corpo docen-
te quanto discente, impedindo até mesmo que as temáticas se-
jam abordadas. Ou, em alguns casos, levando a que a exposição
das dinâmicas das religiões afro-brasileiras tenha resultado opos-
to àquele visado – ou seja, que este conhecimento seja tomado
como reforço dos preconceitos religiosos e raciais preexistentes.
Foram as considerações acima que estimularam a redação
deste texto tal como se propõe. Nele, partimos de uma refle-
xão sobre as relações entre religião, magia e preconceito racial
no Brasil, fundamentais para que os professores compreendam os
dilemas e as resistências enfrentados ao se trabalhar com a temá-
tica no ensino fundamental e médio, bem como que possam ela-
borar estratégias para lidar com contextos específicos de sala de
aula. Em seguida, fazemos uma breve reflexão sobre as religiões
de matriz africana – com destaque para as religiões de orixás/vo-
duns, mas ressaltando também as especificidades das religiões de
origem banto3 – e a umbanda (pensada como uma religião sincré-
tica e brasileira, que contém em si importante diversidade inter-
na). Neste momento, as relações e divergências entre a umbanda
e o candomblé serão fundamentais. No entanto, não esgotamos
aí a análise, pois o universo do cristianismo também é essencial
para se pensar a influência africana na constituição e perfil atual
da religiosidade brasileira. Consideramos, portanto, a relevância
das irmandades religiosas de “homens pretos” – inclusive de seus
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ritos e festas que celebram os santos de devoção – na formação
do catolicismo nacional. Ao final, passamos às religiões neopente-
costais, a partir do modelo da Igreja Universal do Reino de Deus
(IURD). Esta será abordada sob duas perspectivas: por um lado,
a maneira pela qual a “guerra santa” por ela preconizada reforça
o preconceito racial/religioso a que nos referimos e dificulta o
estudo das religiões afro-brasileiras; por outro, como o universo
afro-brasileiro é fundamental na constituição da IURD – que im-
porta (embora invertendo) vários símbolos e seu calendário ritual
(principalmente da umbanda), bem como os reitera e reconhece
sua eficácia. Esperamos que, desta forma, seja possível simulta-
neamente trazer informações necessárias e auxiliar na compre-
ensão dos contextos concretos de dificuldade enfrentados pelos
professores ao discutir a religiosidade afro-brasileira. Pois, apesar
do discurso prevalente, no senso comum, do país como caldeirão
cultural e marcado pela “democracia racial”, na prática, como se
explicitará, a visão construída do negro e de sua religião os vin-
cula a características não só desvalorizadas, mas também social-
mente condenadas. Sabemos, contudo, que a tarefa de questio-
nar ideias consolidadas ao longo de séculos não é nada simples4 .
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Como se esclarecerá ao longo do texto, estudiosos sobre negros do Brasil, inspira-
dos por Nina Rodrigues (1988), dividem-nos em dois grandes grupos de origens diver-
sas no contexto africano: sudaneses, provenientes da região subsaariana (África seten-
trional), e bantos, originários do centro-sul da África (África meridional). As religiões
de orixás vinculam-se ao primeiro desses grandes grupos – que, por sua vez, subdivi-
dem-se em várias nações distintas: dentre os sudaneses estão os nagô, jeje, mina, haus-
sás, malês, entre outros; dentre os bantos, angola, moçambique, congo, cabinda, etc.
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I. INTRODUÇÃO: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE AS RELA-
ÇÕES ENTRE RELIGIÃO, MAGIA E PRECONCEITO RACIAL
NO BRASIL
Nossa experiência com cursos de formação sobre história
e cultura afro-brasileiras para professores do ensino fundamental
e médio no Paraná indicam os empecilhos enfrentados pelos par-
ticipantes ao tentar levar para o contexto de sala de aula a temática
religiosa, principalmente quando o foco são as religiões afro-bra-
sileiras. Os relatos ouvidos apontam o desconhecimento do tema,
mas, principalmente, as resistências apresentadas por alunos, pais
e mesmo colegas professores e funcionários das instituições de
ensino. Sendo assim, é fundamental a todos que pretendem am-
pliar sua reflexão neste sentido a adoção de uma postura de fle-
xibilidade e a disposição de abrir mão de preconceitos e ideias
já estabelecidas como verdades (mesmo que temporariamente).
Em outras palavras, deixar de lado condenações racionais e mo-
rais, e tentar identificar de que maneira tais condenações foram
elaboradas, de onde partiram e como se sustentam. Não só reco-
nhecer a diversidade e complexidade inerentes ao mundo, mas
apostar no seu potencial em termos de abertura, ampliação de
nossa reflexividade e capacidade de pensar e agir. Com efeito, ou-
tros modos de ser e viver trazem consigo saberes diferenciados e
perspectivas interessantes sobre o cosmos, o ambiente, a socieda-
de em que vivemos, e sobre os quais podemos, também, intervir.
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Ao se falar na constituição e perfil da religiosidade nacional, é
importante partir da premissa de que não se está referindo a um
período específico em que esta teria sido gerada, ou mesmo a um
processo já concluído. Ao contrário, refletir sobre as influências
africanas no quadro religioso nacional exige que se considerem pro-
cessos históricos que remontam ao período colonial e se estendem
até os dias de hoje, apontando sistemas de dominação, segregação e
resistência ao longo deste tempo. Com efeito, a religiosidade bra-
sileira é tanto muito diversificada quanto dinâmica, está em cons-
tante reconfiguração. Reconhecer tal dinamicidade é fundamental
para se pensar a questão das religiões afro-brasileiras e de sua po-
sição no cenário religioso mais amplo. Principalmente quando o
foco é o sistema educacional, pois tanto professores quanto pais e
alunos reagem à temática de acordo com seus próprios contextos
sócio-culturais e religiosos. Citamos como exemplo relevante da
dinâmica contemporânea a propagação das denominações evan-
gélicas – com destaque para as neopentecostais e a demonização
explícita das religiões afro-brasileiras realizada por algumas de-
las –, que altera o quadro religioso atual de forma muito parti-
cular, estimulando o recrudescimento da intolerância religiosa;
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No Brasil, há uma conjugação entre preconceito racial, pre-
conceito religioso e condenação moral da magia. Em outras
palavras, abordar a temática das religiões afro-brasileiras leva à
necessidade de enfrentar as constantes e muitas vezes veladas
acusações dirigidas a elas a partir de sua identificação com o uso
de magia maléfica – feitiçaria ou “magia negra”. Em outras pala-
vras, aciona-se como base para a compreensão um sistema clas-
sificatório que aproxima o catolicismo e as religiões cristãs em
geral do pólo “religião”, enquanto as religiões afro-brasileiras são
identificadas com o pólo oposto, moralmente condenado, da fei-
tiçaria ou “macumbaria”. Esta identificação, por sua vez, reforça
e é reforçada por uma perspectiva dicotômica do mundo, que
o divide em “bem” e “mal”. Estabelece-se, então, um ideal que
valoriza a estética e as práticas vinculadas a um modelo bran-
co como expressão do “bem”, enquanto a estética e as práticas
identificadas com os negros seriam identificadas com o “mal”5
. Enfrentar as dificuldades colocadas por este preconceito, que
se desdobra e reforça, é condição para que as influências africa-
nas no cenário religioso nacional sejam desvinculadas de qual-
quer condenação moral. Bem como que as religiões afro-brasi-
leiras possam ser conhecidas e respeitadas na sua especificidade.
Esta última questão, por sua vez, nos leva a iniciar nos-
sas reflexões a partir do lugar ocupado pelo “medo do feiti-
ço” no Brasil, como ressalta Yvonne Maggie (1992) no títu-
lo de seu livro. Com efeito, a prevalência deste temor entre
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Rita Fazzi (2004), em O Drama Racial das Crianças Brasileiras. Socialização en-
tre Pares e Preconceito, ao estudar escolas públicas do ensino fundamental em
Belo Horizonte, identifica três eixos de construção do racismo entre as crian-
ças, que refletem o que apontamos aqui: as ideias de que “preto é feio”, “ladrão é pre-
to” e “preto parece o diabo”. Em outras palavras, expressões que conjugam o esté-
tico ao comportamental e ao religioso, em todos os casos reforçando sua negatividade.
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praticamente todos os grupos sociais do país – independen-
te de origem étnica, social, cultural, econômica – se conso-
lida desde o período colonial e se estende até a atualidade.
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não brancos são desqualificadas e identificadas como feitiçaria,
mas também práticas semelhantes, realizadas por pessoas diferen-
tes, vão ser avaliadas de maneiras distintas. É o que aponta Mário
Sá (2010) ao analisar a documentação sobre a Devassa da Visi-
ta Geral da Comarca Eclesiástica de Cuiabá, ocorrida em 1785.
Neste texto, o autor indica como, embora o “medo do feitiço” seja
geral, não é possível dizer o mesmo sobre a “cor do feitiço”. Isto
pode ser percebido na análise dos perfis raciais de denunciadores e
denunciados, em que os primeiros são majoritariamente brancos,
mas também índios e pardos, enquanto os segundos principal-
mente índios, pardos e negros6 . Há uma incidência significativa
de denúncias de índios a outros índios aos visitadores, mas a pre-
dominância da acusação de negros por brancos. Além disso, Sá ob-
serva que “delitos” de mesmo tipo, como processos divinatórios,
são classificados de maneiras distintas quando os perfis raciais dos
denunciados são diversos: assim, enquanto adivinhações feitas por
brancos são definidas como magia – um “delito” mais brando –,
práticas semelhantes realizadas por negros constituem feitiçaria
– “delito” bem mais grave. Em outras palavras, interpretações dis-
tintas para ações semelhantes, orientadas pelo preconceito racial.
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Desta maneira, se dá continuidade à construção de uma
visão do negro como por princípio condenável tanto do pon-
to de vista moral (feiticeiro, praticante de “magia negra”7 )
quanto corporal (neste caso esteticamente – contrapondo-se
ao padrão de beleza branco, com “cabelo ruim”, “feio” – e hi-
gienisticamente – visto como “sujo”, alcoólatra, sexualmente
degenerado, etc.). Preconceito fundamental para a garantia de
manutenção da dominação branca, imposição de padrões de
comportamento e pensamento europeus, bem como legitima-
ção da presença negra nas camadas mais baixas da população.
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justificando-se também – pela oposição entre as forças do
Bem, que iam de Deus ao senhor de engenho, e as forças
do Mal, que iam de Satã até os seus sequazes das senzalas
e dos mocambos. Assim, ele recuperou a “boa consciên-
cia”, e as danças místicas dos negros, ao redor de suas
pedras lavadas de sangue de animais sacrificados, torna-
vam válida, aos seus olhos, a distância social que manti-
nha entre si e eles. A definição de civilizações africanas
como diabólicas foi uma racionalização da brutalidade e
da falta de humanidade da escravidão (1985: 198-199).
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versidade cultural brasileira passa a ser vista como um empecilho
para a construção da identidade nacional visada, do que resultam
projetos de imigração europeia, intervenção no espaço urbano,
bem como criminalização de práticas populares – algumas delas
caracteristicamente negras, como o caso da capoeira. Com relação
à temática aqui abordada, pela primeira vez práticas vinculadas à
religiosidade afro-brasileira são criminalizadas no Código Penal
de 1890 (cf. Maggie, 1992, Schritzmeyer, 2004). No entanto, não
como criminalização à religião, mas como repressão à “magia” –
pois a constituição republicana de 1891 separava o Estado da Igre-
ja e garantia a liberdade religiosa no país. Assim, como ressalta
Schritzmeyer, os dispositivos do Código Penal republicano que in-
cidem sobre esta temática “concentram-se no Título III – Dos Cri-
mes contra a Tranquilidade Pública – Capítulo III – Dos Crimes
contra a Saúde Pública, especialmente nos arts. 156 a 158” (2004:
76). Estes abordam o exercício não autorizado da prática médi-
ca, dentária ou farmacêutica (Art. 156); a prática do espiritismo,
magia e seus sortilégios (Art. 157); o desempenho da atividade de
curandeiro (Art. 158). Oficializa-se, em outras palavras, o direi-
to policial de intervenção nos templos e cultos das religiões afro
-brasileiras, mas através de sua identificação com a magia. Que,
por sua vez, é lida como risco à saúde da população – pela junção
de perspectivas jurídicas e médicas que percebem em tais práticas
populares uma ameaça não só ao corpo dos cidadãos, mas ao cor-
po social da República. Podemos afirmar, em síntese, que a iden-
tificação da religiosidade afro-brasileira com a magia se torna aqui
estratégica, pois permite no ano seguinte afirmar a liberdade reli-
giosa sem, com isto, torná-la efetiva para as religiões dos negros.
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do século XIX e primeira metade do século XX o tenham sido
por médicos (Nina Rodrigues, Arthur Ramos). O primeiro de-
les explicitamente adepto das teorias científicas racistas predo-
minantes na época. As temáticas das diferenças evolutivas entre
raças, da miscigenação, das possibilidades de instaurar o “progres-
so” no país fazem com que o negro se torne um problema e, ao
mesmo tempo, um tema fundamental e legítimo de pesquisa no
advento da República. E embora posteriormente as teorias ra-
cistas sejam explicitamente abandonadas, modelos classificatórios
e de interpretação do contexto dos negros no Brasil construí-
dos por Nina Rodrigues se mantêm como quadro interpretati-
vo das manifestações de africanos e seus descendentes no país9 .
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aportaram no Brasil. Não somente sua cosmologia é desvalorizada,
mas também seu conhecimento sobre doenças e seus tratamentos
desconsiderados. E este é mais um aspecto relevante na invisibili-
zação da importância do negro para a constituição da religiosidade
brasileira, pois entre nós religião e cura sempre estiveram vincu-
ladas. Com efeito, processos de adoecimento e cura são caminhos
importantes nas dinâmicas de conversão e trânsito religioso no país.
A perspectiva sobre as práticas religiosas afro-brasileiras
presente nos ambientes de elite intelectualizados, no entanto,
não é exclusiva deles, como se pode perceber em texto do se-
gundo autor da época citado como uma das primeiras referên-
cias no estudo sobre o tema: João do Rio. O autor publica, em
1904, uma série de reportagens intituladas As Religiões do
Rio, na Gazeta de Notícias, com grande sucesso. Estas se ba-
seiam em investigações realizadas por ele com este fim, em que
visita as regiões da cidade em que as várias religiões são predo-
minantes e convive com adeptos e frequentadores. Dentre elas,
os textos intitulados “No mundo dos feitiços” têm um destaque
significativo. Neles, o jornalista faz afirmações que demons-
tram como o preconceito racial/religioso consolidado nos sécu-
los anteriores é uma realidade no início do século XX. Apenas
como exemplo, citamos um dos trechos em que ele se evidencia:
As iaôs10 abundam nesta Babel da crença, cruzando-se com a gente
diariamente, sorriem aos soldados ébrios nos prostíbulos baratos,
mercadejam doces nas praças, às portas dos estabelecimentos co-
merciais, fornecem ao hospício a sua cota de loucura, propagam a
histeria entre as senhoras honestas e as cocotes, exploram e são ex-
ploradas, vivem da crendice e alimentam o caftismo inconsciente.
As iaôs são as demoníacas e as grandes farsistas da raça preta, as ob-
sedadas e as delirantes. A história de cada uma delas, quando não é
sinistra pantomima de álcool e mancebia, é um tecido de fatos cru-
éis, anormais, inéditos, feitos de invisível, de sangue e de morte. Nas
iaôs está a base do culto africano. Todas elas usam sinais exteriores
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Apesar da postura racista, Nina Rodrigues produz trabalhos de grande qualidade, que
são referências ainda hoje – o que ajuda a compreender sua grande influência posterior.
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Nome dado às mulheres que estão em processo de iniciação nos candomblés.
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do santo, as vestimentas simbólicas, os rosários e os colares com as
cores preferidas da divindade a que pertencem; todas elas estão li-
gadas ao rito selvagem por mistérios que as obrigam a gastar a vida
em festejos, a sentir o santo e respeitar o pai de santo (2006: 35-36).
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Os candomblés tradicionais que se recusam a trabalhar
com a magia ou, segundo a expressão consagrada, “trabalhar
à esquerda”, tomam todo cuidado para não confundir Exu com
o diabo. Entre eles é que encontramos (...) a fisionomia ver-
dadeira dessa divindade caluniada (2001:165 – grifo meu).
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Em suma, o processo de consolidação dos preconceitos
racial e religioso no Brasil, acima delineado, fornece o pano de
fundo para a interpretação das religiões afro-brasileiras na atua-
lidade, bem como da influência africana na constituição da reli-
giosidade brasileira. Sendo assim, torna-se fundamental conhe-
cê-lo para saber como lidar com ele. Tendo consciência de que:
200
mas da reflexão sobre ela. Tendo sempre em mente que pro-
cessos mágicos marcam toda a religiosidade nacional – não
apenas a dos negros. Caso contrário, a mera apresentação da
estrutura e dinâmicas das religiões afro-brasileiras aos alunos
pode resultar no reforço do preconceito racial/religioso, e não
em uma maior abertura para a compreensão da diversidade12 .
Ou, então, na folclorização das religiões afro, sem que se per-
ceba que elas carregam cosmologias e práticas que estruturam
a perspectiva de mundo e o comportamento de seus membros;
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No Paraná, a transformação oficial, pela Secretaria Estadual de Educação, da “Semana da
Consciência Negra” em “Semana Cultural”, e a apresentação da cultura negra como algo
folclorizado – contribuições alimentares, danças, etc. – ou que remete ao passado (e em
especial à escravidão), mostra como o enfrentamento do preconceito racial no Brasil é
uma tarefa árdua, especialmente dificultada pelo “mito da democracia racial” que orienta
as concepções de senso comum sobre o tema. Assim, muitas vezes a “apresentação” da di-
versidade é uma estratégia de exotização e consequente estigmatização do outro. O risco
de que este processo se dê com relação à temática religiosa é, neste caso, ainda maior.
201
Para lidar com o preconceito racial/religioso, por sua vez, o co-
nhecimento da alteridade se torna fundamental. Assim, a seguir,
passamos a abordar alguns aspectos da influência africana no con-
texto religioso brasileiro, a partir de quatro itens: as religiões de
matriz africana; o catolicismo das irmandades negras e dos “san-
tos de preto”; a umbanda; a Igreja Universal do Reino de Deus.
202
II. AS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA
203
Para compreender como este panorama é constituído faz-
se necessário refletir sobre sua abordagem pelos pesquisadores,
desde as pesquisas de Nina Rodrigues iniciadas no final do sec.
XIX (cf. Rodrigues, 1988, 2006). Este autor, conhecido por suas
posturas explicitamente racistas (e muitas vezes sequer lido de-
vido a este fato), destaca-se pelo interesse genuíno na presença
africana e sua influência no Brasil da época. Além disso, propõe a
divisão dos negros que chegaram ao país em dois grandes grupos,
que reuniriam em conjuntos com certa homogeneidade as inú-
meras nações de onde estes provieram: os sudaneses – oriundos
da região subsaariana – e os bantos – originários do centro-sul
da África. Divisão esta que é acompanhada de uma valorização
dos sudaneses em detrimento dos bantos – estes últimos vistos
como mais “primitivos”, “atrasados”, etc. (cf. Rodrigues, 1988).
204
po, a identificação dos orixás com santos do panteão católico, a di-
nâmica das religiões de origem sudanesa permaneceu muito mais
autônoma e específica ao longo do tempo. Dentre estas religiões,
destacam-se o candomblé baiano, o xangô pernambucano, o batu-
que do sul, o tambor de mina maranhense – sendo o candomblé
a mais conhecida e estudada de todas elas, para o quê o lugar cen-
tral da Bahia nos estudos sobre o negro no país também contribui.
205
to aceita com mais facilidade a linguagem dos portugueses em seus
cânticos festivos. E também não despreza os espíritos de caboclos.
Unem aos deuses de seus pais os deuses da terra adotiva. É verdade
que o sincretismo não é tão grande quanto na macumba... (:328).
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personalidade específicas. Tais orixás podem ser masculinos ou
femininos, possuem relações familiares entre si, e sua mitologia
expressa os padrões de personalidade que representam . Os hu-
manos, por sua vez, estão vinculados a certos orixás a partir de seu
nascimento, podendo ser identificado, de forma ritual, seu orixá
de cabeça e um ou dois subsidiários – pressupondo-se que estes
representam características fundamentais dos sujeitos. A incorpo-
ração do orixá de cabeça é possível apenas para alguns fiéis (não
todos), sendo necessário para tanto um processo de iniciação que
implica em reclusão e a realização de vários rituais. Neste sentido,
pode-se afirmar que ocorre aqui um tipo de transe particular, em
que a manifestação consiste em uma maximização de característi-
cas de personalidade do fiel – na medida em que o orixá “dono de
cabeça” pode ser tomado como um classificador de sua persona-
lidade. Rita Segato (2005), ao estudar o xangô de Recife, propõe
mesmo pensar os orixás em relação com a teoria arquetipal jun-
giana. Outra característica fundamental deste sistema é sua mul-
tiplicidade e abertura: na medida em que os orixás possuem vá-
rias formas de ser, com aspectos tanto positivos quanto negativos,
não se propõe uma perspectiva dicotômica de mundo, onde bem
e mal seriam bem marcados16 . Esta divisão, imposta pelo cris-
tianismo, terá relevância somente com a formação da umbanda.
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Utilizaremos, a seguir, as designações nagô, pois são as mais conhecidas. Faremos aqui,
além disso, somente uma breve descrição da estrutura geral do culto. Recomendamos
aos interessados na temática que recorram à bibliografia sugerida para se aprofundar, pois
sua complexidade impede desdobramentos mais longos em um texto geral como este.
15
No candomblé nagô baiano, os orixás mais conhecidos são: 1) masculinos – Oxalá, Ogum,
Xangô, Oxóssi, Oxumaré, Omolu, Ossaim; 2) femininos: Iemanjá, Iansã, Oxum, Obá,
Nanã; 3) gêmeos Ibeji. Também são de fundamental importância no panteão Exu (mensa-
geiro dos orixás), Ifá (oráculo), Iroko (gameleira). Há certa variedade entre os cultos aos
orixás, e em outras regiões do país (p. ex. Rio Grande do Sul ou Pernambuco) eles aparecem
em menor número. Além disso, embora haja certa correspondência entre as tradições nagô
e jeje, seus nomes diferem e há variações entre ambas.
16
Aqui, não queremos dizer que os adeptos do candomblé não possuam valores morais, mas
sim que reconhecem a complexidade do mundo, suas diversas possibilidades, bem como as
distinções entre as pessoas e formas diferenciadas legítimas de comportamento e interpre-
tação da realidade.
207
A relação com os orixás se dá através de um sistema ritual
complexo e que apresenta particularidades não só ao se levar em
conta as várias religiões citadas, mas também entre os templos
específicos de uma religião. Estes se configuram, em linhas gerais,
como “famílias rituais”, em que os processos de iniciação estabele-
cem hierarquias e relações de parentesco ritual entre os membros
– daí as denominações pai, mãe, filho de santo, tão comumen-
te utilizadas. Já os orixás estão presentes nestes espaços sagrados
através de seus “assentos”. Nestes, muito mais importantes que
suas imagens antropomórficas são os objetos sagrados em que se
localizam, e que são especialmente consagrados. A seus orixás,
os iniciados devem oferecer sacrifícios e obrigações, entre os
quais o sangue proveniente de determinados sacrifícios animais,
específicos para cada orixá. Animais estes que, posteriormen-
te, são preparados de maneira ritualmente definida e comparti-
lhados pelos membros do culto como alimento sagrado, junta-
mente com outros alimentos de origem vegetal. É este conjunto
ritual que leva a que a alimentação seja tão central no candom-
blé, e que a cozinha consista em um espaço sagrado relevante.
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como no caso de Xangô, que pode ocorrer como jovem ou velho.
209
divinatórios, é então possível se comunicar com o sobrenatural
e, entre outros aspectos, receber orientações sobre obrigações e
atitudes rituais necessárias ou recomendadas para cada contexto.
210
de Exu, além de terem realizado sua fusão com outros orixás –
como Ogum, Oxóssi e Omolu – e seu desdobramento em vários
tipos de Exus distintos. Neste processo, a divindade se tornou cada
vez mais identificada com os espaços e símbolos que contribuem
para sua relação com o diabo cristão: cemitérios, encruzilhadas,
doenças, cadáveres, magia e morte. Posteriormente, este desdo-
bramento será uma das bases da construção da “esquerda” na um-
banda, denominada quimbanda. Acrescente-se que, nestas, com
sua multiplicidade de incorporações, Exu, em suas diversas for-
mas, se integra ao universo das entidades passíveis de serem “rece-
bidas” pelos membros do culto. E, frente ao uso do português pe-
las mesmas, de manter contato direto com a assistência dos ritos.
211
religião a afirmação de características mais genuinamente africa-
nas, o que não se colocava em momentos históricos anteriores.
212
gras foi sua incorporação ao catolicismo, principalmente atra-
vés das irmandades leigas e de suas festas, crenças e cultos19.
213
tentativa de atribuição dos custos da catequização a particulares.
O estímulo à formação de irmandades leigas foi importante estra-
tégia para atingir estes objetivos22 . Elas acabaram arcando com a
maior parte do ônus da propagação do catolicismo na área mine-
radora, pois se tornou sua responsabilidade cobrir todos os gastos
com a construção de seus altares, capelas e igrejas, de seus cemi-
térios, e com todo o tipo de obras assistenciais que realizavam em
benefício de seus membros – que iam desde a ajuda em casos de
crise financeira ou doença até o sepultamento e a garantia dos “su-
frágios” (missas que se mandava celebrar pela alma do irmão mor-
to). Assim, a metrópole se esquivava não apenas dos gastos com a
construção de templos e sustento de padres – sendo os capelães
e demais padres que celebravam quaisquer rituais para as confra-
rias por elas devidamente remunerados – mas também de uma
série de serviços sociais de assistência que seriam sua função23 .
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Salles ressalta as distinções das irmandades no caso do litoral e da região mineradora,
embora seja aqui também importante deixar clara a presença de irmandades importantes
em várias das cidades litorâneas: “Dois fatores contribuíram para o caráter de classe dessas
corporações: o primeiro é que, sendo o Estado ligado à Igreja, isto determinou o interesse
daquela em estimular a eclosão das corporações; o segundo é que a estratificação social
do Brasil colônia se efetuou calcada na diferenciação interétnica da população, o que está
intimamente vinculado ao colonialismo e ao regime escravocrata. Neste sentido, foi com-
pletamente diferente a função social das irmandades em Minas e no litoral. É que ali havia,
para propagar a religião e exercer as suas funções sócio-econômicas, as grandes congrega-
ções religiosas, como os jesuítas e carmelitas. Em Minas, não as existindo, a Coroa tratou
de estimular as irmandades, a fim de – com elas e através delas – transferir ao próprio
povo, isto é, aos mineradores, comerciantes e escravos, os encargos tão dispendiosos de
construir os grandes templos, os cemitérios, etc. Todos os complexos e caros cerimoniais
do culto religioso eram, desta forma, transferidos à população. Em virtude disso, tanto à
coroa como ao clero interessava muito o desenvolvimento das ordens terceiras e confrarias.
A população, por sua vez, encontrava nestas corporações uma estrutura eficien-
te e legal, uma forma orgânica para expandir suas necessidades ou reivindicações co-
letivas. E então vemos as irmandades não só lutando umas contra as outras, como
também trabalhando para prestar aos seus filiados pronta e vária assistência. Com o
aumento do poderio econômico dessas corporações, a coroa começa a restringir os
seus direitos ou, pelo menos, as suas possibilidades de enriquecimento” (1963: 27).
21
O temor da metrópole de contrabando de ouro e pedras preciosas fez com
que ela proibisse a presença de ordens religiosas nas regiões de mineração.
22
As irmandades leigas já se encontravam presentes em Portugal, vinculadas às corporações
de ofício, e isto facilita a adoção do modelo na Colônia. No entanto, aqui passam a se rela-
cionar não com ofícios, mas com grupos raciais particulares.
214
No ambiente urbano que se compôs na região de extra-
ção aurífera, as irmandades foram não somente as principais or-
ganizações de propagação da fé católica, mas também os grandes
eixos da sociabilidade local. Praticamente todos os eventos so-
ciais coletivos e particulares de relevo – festas, celebrações re-
ligiosas, batizados, casamentos, sepultamentos, etc. – eram por
elas coordenados, e muitos deles ocorriam em seus espaços. Dis-
putas por questões aparentemente simples, como a ordem das
irmandades nas romarias, se tornavam fundamentais, na medida
em que definiam o status social dos grupos. No entanto, em uma
sociedade marcada pelas divisões raciais instauradas a partir da
escravidão negra, a constituição das associações e suas atividades
não se deram sem que tais divisões estivessem também nelas ins-
critas. Constituiram-se irmandades fundadas em clivagens étni-
co-raciais e sociais, que eram explicitadas em seus documentos
regulatórios – os compromissos. Assim, houve uma tendência a
que, com a formação de qualquer povoado na região das Minas,
fossem organizadas duas irmandades: a Irmandade do Santíssi-
mo Sacramento, composta por brancos e que normalmente ti-
nha o controle da Igreja Matriz, e a Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário dos Homens Pretos, que reunia os negros libertos e
cativos. Posteriormente, com a diversificação das categorias so-
ciais dos moradores urbanos, estas poderiam se desdobrar em
várias outras irmandades – como de brancos vinculados a ofí-
cios ou grupos sociais específicos, negros libertos, pardos, cada
uma delas com seus respectivos santos de devoção e celebrações.
215
Boschi, 1986, Scarano, 1978, Porto, 1998) indica como havia se-
gregação no caso das irmandades de brancos, que muitas vezes
explicitavam em seus compromissos não somente o controle da
ascendência de seus membros, mas também de suas relações fa-
miliares. O mesmo não ocorria nas irmandades de pretos, que na
maioria das vezes não somente não limitavam a filiação a um gru-
po racial específico, mas chegavam mesmo a prever a participação
de brancos em suas diretorias, principalmente em cargos que exi-
giam domínio da escrita e de conhecimentos financeiros – como
secretaria e tesouraria. Neste sentido, pode-se pensar a ambigui-
dade representada pelas irmandades dos “santos de preto”: por
um lado, foram uma forma de imposição da religião dominante
aos negros, inserindo-os, mas simultaneamente segregando-os,
no contexto mais amplo do catolicismo; por outro, permitiram a
formação de espaços de relativa autonomia dos negros, de legiti-
midade de agremiação e de auxílio mútuo, e de possibilidade de
celebração de suas próprias festas, missas, ritos sociais e fúnebres.
216
aos seus membros e, em certos casos, até mesmo da libertação
individual de alguns – embora, por outro lado, irmandades ne-
gras também eventualmente possuíssem seus próprios escravos.
217
... sublinhando a importância e a função que tais comemorações ti-
nham para a comunidade negra. Aparato, luxo e riquezas jamais so-
nhadas para esses segmentos, considerados tradicionalmente pela
historiografia como subalternos, enfatizam, como já dissemos, sua
capacidade de acumulação. Seu potencial político frente à comuni-
dade reafirmava-se, nesse momento, pela apresentação do que po-
deria parecer uma inversão completa: a sagração de um rei negro...
Mas é justamente essa capacidade de expor outras realidades que
devolvia a festiva dignidade aos negros e à sua cultura (1994: 83).
218
ção dos negros transcende o período colonial e se propaga para
regiões de colonização posterior. Juliana Calábria (2008) aponta
como, em Uberlândia (assim como em outras regiões do Triângu-
lo Mineiro e Goiás, onde as festividades de “santos de preto” são
relevantes), as irmandades de negros e suas festividades datam
de finais do século XIX, e ocorrem em contextos muito distintos
daqueles do período de extração aurífera. Em outras palavras, a
tradição dos reinados e congadas fornece uma matriz que será
reinterpretada e adaptada de acordo com a situação do momen-
to, e que continua sendo reinterpretada até a atualidade – o que
em Uberlândia e região resultou na diminuição da importância
dos reinados e no crescimento e valorização da atuação dos vários
ternos. Assim como apontamos no caso das religiões de matriz
africana, observa-se a possibilidade de leitura destas tradições de
várias maneiras a partir do presente, inclusive como possibilidade
de afirmação da negritude por integrantes do movimento negro.
219
não aceitação deste de que seus adeptos recebessem espíritos “da
terra”, como caboclos e pretos velhos. Esta narrativa, por sua vez,
já aponta que há outras matrizes religiosas fundamentais para a
constituição da umbanda, além da macumba: o espiritismo kar-
decista, o catolicismo, o ocultismo europeu e algumas religiões
indígenas. As duas primeiras matrizes, cristãs, trazem à umbanda
características fundamentais, que a afastam do contexto das reli-
giões de matriz africana anteriormente descritas, quais sejam: 1) a
adoção de uma perspectiva dicotômica de mundo, dividido entre
bem e mal (noções muitas vezes confundidas com “de Deus” e “do
diabo”); 2) a concepção de que o “bem” se intensifica com a práti-
ca da “caridade” (fazendo com que o atendimento ao público seja
um dos eixos da religião). Acrescente-se que, apesar de não haver
uma unanimidade sobre a interpretação do que define o bem ou
mal – sendo constantes as negociações dos adeptos em torno do
que pode ser identificado, principalmente, como “mal” – a estru-
tura se impõe e se expressa em várias das dicotomias constituintes
do culto – como mesa branca x esquerda, entidades batizadas x
não batizadas, guias x exus, entre outras25 .
Sendo assim, pode-se afirmar que a umbanda retoma vá-
rios elementos característicos das macumbas (também já religiões
sincréticas26 ), mas os resignificando e fazendo-os dialogar e se in-
serir em uma lógica de bases cristãs. Nas palavras de Renato Ortiz
(1988):
A síntese umbandista pôde assim conservar parte das tradições
afro-brasileiras; mas, para estas perdurarem, foi necessário rein-
terpretá-las, normatizá-las, codificá-las. Foi este o trabalho dos
intelectuais umbandistas: canalizar uma situação de fato para
constituir uma nova religião. Mas quem eram esses intelectuais?
____________________
24
É necessário ter em mente que este é o discurso oficial da criação de uma unidade que
não se observa na prática. Em vários casos, o que há é mais uma adoção da denominação
de umbanda por praticantes das antigas macumbas – como uma forma de se proteger da
repressão policial e reivindicar o direito à liberdade religiosa – que uma reconfiguração das
atividades dos grupos (sem, contudo, negarmos sua dinamicidade). A denominação ma-
cumba passa a ser utilizada apenas por agentes externos, como forma de discriminação.
220
Brancos e mulatos de “alma branca”, que reconstituíram as anti-
gas tradições com os instrumentos e os valores fornecidos pela
sociedade. Não estamos, pois, mais em presença de um culto afro
-brasileiro, mas diante de uma religião brasileira que traz em suas
veias o sangue negro do escravo que se tornou proletário (:33).
Se retomarmos as características da macumba levantadas
por Bastide (1988), isto se esclarece. Segundo o autor, seus su-
premos sacerdotes se chamavam embandas ou umbandas (kim-
bandas na Angola) – termos que dão nome tanto à nova religião
quanto a sua “esquerda”. Suas filhas, assim como no espiritismo,
também eram denominadas médiuns. Os grandes orixás, identi-
ficados com santos católicos, estariam presentes no panteão, mas
adorados em suas correspondentes imagens católicas, presentes
no altar dos templos – de maneira semelhante ao contexto um-
bandista contemporâneo.
221
que se divide em falanges ou legiões, o que resulta em um poten-
cial de expansão ilimitado, podendo surgir novas entidades a qual-
quer momento – embora algumas sejam recorrentes em inúme-
ros terreiros (como, por exemplo, Caboclo Sete Flexas, Pai João,
Exu Tranca Rua, Maria Padilha, Zé Pelintra, etc.). Os orixás são a
representação de várias dessas linhas, mas a maior parte deles não
incorpora diretamente nos membros da religião. Também seria
forte a presença do culto aos mortos, que se configura como culto
às almas, comum na tradição banto, mas na umbanda claramente
dialogando com o culto aos espíritos característico do espiritismo
kardecista – no entanto, sem se limitar a espíritos “de luz” do kar-
decismo (sinônimo, na prática, de espíritos de brancos).
222
Mas, ao mesmo tempo, uma visão do mundo como conflituoso,
repleto de perigos, e em que ritos e mecanismos de proteção são
necessários.
O panteão umbandista representa o contexto brasileiro,
dando destaque privilegiado aos marginalizados: caboclos, pretos
velhos, crianças, marinheiros, ciganos, boiadeiros, cangaceiros,
baianos. A esquerda, por sua vez, traz um outro tipo de margi-
nalidade: malandros, criminosos, prostitutas, devassos, feiticeiros
expressos através dos sofredores/eguns, pombagiras, exus. Di-
versidade fundamental para a religião, pois, como indicam Bru-
mana e Martinez:
Diante de um Deus único e monolítico só existem duas possibi-
lidades: a submissão (qualquer que seja a feição que esta assuma)
ou a perdição. Os múltiplos poderes, nenhum deles tão forte
como para poder prevalecer sobre os demais, deixam uma mar-
gem de manobra pelo contrapeso entre as diversas entidades.
Nenhum poder é absoluto, sempre há limites para seu alcance.
(...)
...da vontade ou da natureza da entidade não pode des-
prender-se um código universal de respeito obriga-
tório. Assim, os objetivos do cliente não têm por que
submeter-se aos da entidade; sua heterogeneidade está pressu-
posta na oferenda como pagamento de serviços (1991: 259).
223
diuns umbandistas incorporem um caboclo, um preto velho, uma
criança, um exu, um boiadeiro, uma pombagira, etc., vinculados
a eles a partir de sua iniciação religiosa. Acrescente-se, ainda, que
as entidades se expressam em português, o que traz um aspecto
fundamental para a estruturação da umbanda: a possibilidade de
que o sistema de “consultas” com as entidades se dê de maneira
direta, e que se torne o eixo dos ritos rotineiros. A religião con-
segue, portanto, reunir não apenas um número significativo de
adeptos, mas também uma clientela numerosa, que procura os
terreiros para assistir aos ritos, mas, principalmente, buscar so-
luções para problemas das mais diversas ordens. A clientela é tão
importante quanto os adeptos, pois:
224
processos de atendimento e cura possam provocar estes vínculos
posteriormente –, traz um segundo aspecto importante relativo à
divisão da umbanda em umbanda e quimbanda: o problema da co-
brança por “trabalhos”. Neste sentido, a umbanda como primeiro
termo da divisão passa a ser valorizada não só por apontar para uma
maior distância dos rituais e da cosmologia afro-brasileiros, além
de trazer uma ideia moral do bem se contrapondo ao mal, mas tam-
bém por carregar uma perspectiva da importância do “trabalho” de
caridade, não remunerado. Assim, a quimbanda será simultanea-
mente condenada por ser mais “negra” – tanto do ponto de vista de
suas referências religiosas como de vínculo atribuído com a “ma-
gia negra” – e por ser mais voltada para o ganho financeiro. Nova-
mente, o preconceito não é enfrentado, mas deslocado para outro
grupo – neste caso, para uma parte marginal do mesmo grupo.
225
A umbanda relegou elementos dos mais significativos da cul-
tura afro-brasileira ao plano da quimbanda. Enviou o Exu para
a senzala, colocou-o em seu lugar, na magia negra. Apesar da
fachada umbandista, é a quimbanda que é sempre praticada
quando as coisas não funcionam bem ou nos estados de aflição.
Não tememos dizer que, ao longo de nossas pesquisas, a quim-
banda se revela a prática mais importante dos terreiros um-
bandistas (...). A quimbanda, como imagem refletida no es-
pelho, e o inverso da umbanda, ou ainda a sobrevivência da
memória negra através da rearticulação de Exu (2000: 79).
Vê-se, portanto, na umbanda uma ambiguidade que traz a
riqueza da religião e sua capacidade de penetração em todo o ter-
ritório nacional: uma incorporação da moralidade e da lógica cris-
tãs que, embora presentes no discurso e nos processos de avaliação
e construção de legitimidade interna dos vários grupos, não se
mostra absoluta. A diversidade, aliada a uma perspectiva que torna
a dicotomia complexa, permite a abertura para comportamentos
e desejos diferenciados, e uma negociação sempre possível entre
bem e mal. Além disso, a umbanda dialoga com o universo da re-
ligiosidade popular brasileira, em que o mundo é percebido como
repleto de perigos – estando a maior fonte deles nos contatos
próximos entre o humano e o sobrenatural27 –, os males são atri-
buídos a fatores externos, a inveja é uma das principais ameaças à
vida, ritos de proteção devem fazer parte do cotidiano. E a possi-
bilidade de intervenção no mundo traz um alívio às várias aflições
que permeiam as histórias das pessoas – sejam adeptos ou clientes.
Por fim, cabe ressaltar que a umbanda não apresenta dis-
curso condenatório de outros códigos religiosos. Na verdade,
o discurso condenatório é muito mais mobilizado internamen-
te, seja para contestar a atuação de pais ou mães de santo como
charlatães, seja para condenar moralmente suas ações (então
reconhecendo-as como eficazes). Não há, portanto, incompati-
bilidade entre ser católico e umbandista, na medida em que o
226
primeiro vínculo religioso estaria muito mais direcionado a
questões de salvação e ritos sociais consagrados, enquanto na
umbanda “o que realmente importa não são as doutrinas e sim
a ajuda que se pode obter” (Brumana e Martinez, 1991: 422).
É interessante observar que, no centro do Rio de Janeiro, seria
possível inclusive identificar várias igrejas de um “catolicismo de
umbanda” – em que a devoção a santos importantes no panteão
umbandista (como São Cosme e Damião, São Jerônimo, São Jor-
ge, São Cipriano, entre outros) se reúne ao culto às almas, e a
uma ritualística característica da umbanda (com o uso de velas
coloridas e pipocas juntamente com ex-votos, por exemplo). Es-
tas igrejas têm missas regularmente celebradas, e são aquelas da
região central da cidade que congregam público significativo.
____________________
27
No catolicismo popular paranaense há um exemplo muito ilustrativo desse perigo: um
dos dias mais temidos do ano, segundo relatos que ouvi em vários grupos rurais do es-
tado, é o 25 de março. Normalmente situado na quaresma, este dia se caracteriza por
uma abertura arriscada do mundo ao sobrenatural – com várias visagens povoando o co-
tidiano. Exige jejum, respeito, não trabalho, reclusão. Ao indagar o motivo de tal perigo,
recebi a resposta de que a data antecede em exatos nove meses o nascimento de Cristo.
Assim, um contato com o sagrado capaz de gerar a concepção de Maria, se é o funda-
mento do cristianismo, é também o exemplo de uma proximidade que se deve temer.
227
IV. O NEOPENTECOSTALISMO DA IGREJA UNIVERSAL
DO REINO DE DEUS (IURD)
228
de objetos e a realização de ritos com eficácia mágica são compo-
nentes do calendário religioso – como o uso de óleos consagra-
dos, a passagem por corredores ou portais, a queima de roupas
e objetos, etc., com consequências diretas nas vidas dos que se
submetem a tais ritos. Acrescente-se, ainda, o lugar fundamental
ocupado pelo sacrifício – agora não mais pela mobilização do san-
gue sacrificial, mas das doações monetárias29 . Pontos de contato
mais ou menos próximos, que pedem uma análise aprofundada.
229
Quando os primeiros escravos chegaram ao Brasil, trouxeram com
eles as seitas animistas e fetichistas que permeavam seus países de
origem na África. Aqui, encontraram muita afinidade por parte
dos índios que tinham também uma forma de religião semelhan-
te, onde os espíritos dos mortos eram consultados e onde se fa-
ziam trabalhos para agradarem aos desencarnados ou deuses em
seus rituais, ora folclóricos, ora macabros. Para evitar atritos com
a Igreja Católica, os escravos que praticavam a macumba, inspi-
rados pelas próprias entidades demoníacas, passaram a relacio-
nar os nomes de seus deuses ou, para ficar mais claro, demônios,
com os santos da Igreja Católica. Assim, podiam escapar à gran-
de perseguição que a própria Igreja Católica moveu contra eles,
após a libertação dos escravos, por praticarem tais cultos (:44).
230
atingido por ritos intencionalmente feitos por terceiros. Assim,
não basta se converter, mas é necessária uma verdadeira “guerra
santa” com o objetivo de combater as religiões a que se opõem.
231
referência à preocupação da igreja, por exemplo, com a aproxima-
ção do dia de São Cosme e Damião, em que há tradicionalmente a
distribuição de doces por membros das religiões afro-brasileiras.
A fim de que as crianças da membresia não sejam contaminadas –
já que a simples ingestão de alimentos vinculados a tais religiões
tem potencial deletério –, a IURD organiza, ela mesma, um even-
to infantil com a doação de guloseimas para suas crianças. E, ainda,
estão presentes nos ritos e produtos (com eficácia mágica) ofere-
cidos pela igreja ervas e óleos utilizados tanto nas religiões de ma-
triz africana e na umbanda quanto na religiosidade popular de ma-
neira mais ampla – como, por exemplo, a arruda (cf. Silva, 2007).
232
maléfica podem destruir a vida das pessoas, também é necessá-
rio realizar constantemente ritos mágicos de proteção – no que a
IURD teria uma função essencial para seus adeptos e clientela34.
233
so de expansão por uma antropofagia religiosa, na qual as mais
diversas crenças podem ser negadas em seu conteúdo religio-
so original e, ao mesmo tempo, parcialmente assimiladas em
suas formas de apresentação e funcionamento (2009: 122-124).
234
Assim, ao incorporar aspectos das religiões afro-brasileiras
através de sua identificação com “o mal”, que deve ser extirpado, a
IURD contribui de maneira direta e violenta para consolidação da
relação inicialmente abordada neste texto entre preconceito reli-
gioso, preconcei preconceito racial, temor à feitiçaria e identidade
entre os três termos. Neste sentido, reforça (e, em certa medida,
recria) uma construção que se deu ao longo de toda a história nacio-
nal – exercendo influência muito mais abrangente que apenas sobre
seus membros (tanto no meio evangélico quanto não evangélico).
É importante ressaltar, ainda, que a “guerra santa” baseada
na importância atribuída à ação de demônios na vida das pesso-
as, a necessidade de investir em rituais de libertação e proteção,
a identificação do diabo com o universo religioso afro-brasilei-
ro não são exclusividade da Igreja Universal do Reino de Deus.
Tais ideias estão difundidas no interior de várias denominações
pentecostais – de maneira muito semelhante na Igreja Internacio-
nal da Graça de Deus. Vagner Silva (2007) afirma, inclusive, que:
235
Contudo, dentre as denominações de grande projeção nacional e
presença midiática, é na IURD que o ataque direto às religiões afro
-brasileiras tem maior centralidade, e toma sua forma mais agres-
siva. Analisar seu exemplo contribui para compreender como a
expansão das religiões evangélicas no país trouxe consigo a reati-
vação, fortalecimento e reconfiguração do preconceito racial/re-
ligioso36 . Mas, por outro lado, permite perceber como o diálogo
com as religiões afro-brasileiras e a mobilização do “medo do feiti-
ço” são elementos de evangelização importantes mobilizados por
certas denominações evangélicas. É possível, em suma, apontar tais
conformações do campo religioso evangélico brasileiro também
como resultados da influência da religiosidade africana no país.
236
ra matricial, pois que constantemente remodelados para atender
a novas situações e permitir novos arranjos do campo religioso.
237
REFERÊNCIAS
238
cialização entre Pares e Preconceito, Belo Horizonte: Autêntica.
239
ORO, Ari P. 2002. Religiões Afro-Brasileiras do Rio Grande do
Sul: Passado e Presente in Estudos Afro-Asiáticos, Ano 24, n. 2,
pg 345-384. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/eaa/
v24n2/a06v24n2.pdf.
240
RODRIGUES, Nina. 1988. Os Africanos no Brasil, Brasília:
EdUnB.
241
SILVA, Vagner G. (org.). 2007. Intolerância Religiosa. Impactos
do Neopentecostalismo no Campo Religioso Afro-Brasileiro, São
Paulo: EDUSP.
242
ATIVIDADES
243