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JOGOS VORAZES E O REFLEXO DE ÁRTEMIS

Juliana Fontanella da Cunha 1

Resumo: No primeiro livro da trilogia Jogos Vorazes, de Suzanne Collins, a trajetória da


protagonista sugere a ascensão do arquétipo de Ártemis. No universo distópico assolado pela
miséria, um governo totalitário e a violência da arena mortal, Katniss Everdeen percorre o
caminho da heroína com uma postura ambígua (protetora e caçadora), tal qual a deusa. A
adolescente também protagoniza ações que geralmente são delegadas aos heróis do gênero
masculino. A ressignificação da narrativa e sua materialização para o cinema evidencia essa
inversão de funções. No filme, cujo roteiro é coassinado pela autora dos livros, a personagem
se conecta à sua versão literária por meio da representação e da potencialização das
características da deusa que foram estabelecidas no texto de partida. Sob a luz da semiótica
peirceana e na perspectiva dos Estudos do Imaginário de Gilbert Durand espera-se desvelar
alguns signos que confirmam o espelhamento de Ártemis em Katniss.

Palavras-chave: Arquétipos; literatura; cinema

Introdução
O processo de desvelar a literatura pelo viés da mitocrítica e dos estudos do imaginário
é uma jornada surpreendente porque revela diferentes superfícies de uma mesma história. Este
estudo responde a uma inquietação profissional: estimular a leitura e discussão de livros em
língua estrangeira entre aprendizes de um segundo idioma considerando também a tradução
da narrativa para outras plataformas. A partir de conversas informais com alunos entre 12 e 19
anos de uma escola de idiomas em Londrina, foi desenvolvida uma abordagem multimodal
para o livro do semestre considerando suas versões literária e cinematográfica. A rotina de
leitura e interpretação tradicional na literatura escolar transformou-se em um estudo dirigido
que examinou as mudanças necessárias (estéticas e discursivas) para contar a história em cada
meio. A escolha dos adolescentes foi Jogos Vorazes, o primeiro volume da trilogia distópica
da escritora estadunidense Suzanne Collins e que acaba de completar dez anos de publicação.
Uma das discussões originou esse artigo quando os alunos elencaram as características
principais da protagonista: destreza, força, sagacidade, inabalável senso de justiça e a
independência. Ao final da jornada da heroína, a adolescente se transforma de anônima em
ícone midiático, a Garota em Chamas, um meio termo entre a espetacularização e uma quase
divindade. A partir desse insight foi realizado uma discussão sobre mitos e arquétipos
presentes na obra. Entre eles, Teseu e o Minotauro, os gladiadores e a mulher guerreira, no
caso, Ártêmis, a deusa da caça e das florestas. Essa abordagem trouxe aos alunos de língua

1 Professora especialista em Língua Inglesa no Instituto Britânico de Londrina (IBL). E-mail:


jufontanella@hotmail.com.

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estrangeira maior conhecimento de mito permitindo, inclusive, identificar os mitos da
antiguidade que permeiam a cultura contemporânea. Trata-se, portanto, de um estudo dirigido
cujo tema central é a compreensão da narrativa como valor cultural. Outra contribuição foi
trazer para sala de aula uma reflexão sobre tradução e convergência, como estudantes de um
outro idioma, eles perceberam como a língua é viva e encontra outros modos de comunicar
alterando-se, por exemplo, a estrutura da narrativa para acrescentar diálogos no filme que não
aparecem no livro ou substituindo-se a voz interna da personagem.
Entender como se organizam as referências no filme ajudou os alunos a visualizarem a
diferença entre língua e linguagem, ampliarem seus conhecimentos sobre mitologia e política,
buscar referências contemporâneas para a política do pão e circo, a concepção e bastidores
dos reality shows, referências ao nazismo e aos governos totalitaristas, a distribuição do
trabalho em castas e o modelo feudal de organização social, entre outros. Em seguida, os
objetos de investigação a serem analisados também na versão cinematográfica foram
estabelecidos (imagens, diálogos, descrições). No caso dos alunos da escola de idiomas, a
experiência consiste em leitura, interpretação, elaboração de esquemas e, finalmente, do
contato com o filme para estimular o debate sobre os temas e subtemas abordados por Collins.
Neste artigo, um fragmento do estudo que está em desenvolvimento, optou-se pela
concepção de reflexo porque Katniss não faz as escolhas de Ártêmis, o vínculo se estabelece
por meio da similaridade de personalidade, da repetição dos arquétipos, da escolha das armas
e outros elementos no caminho da heroína até o seu “endeusamento” como campeã dos jogos.
No desenvolvimento do artigo estão dispostas as conexões icônicas (signos visuais, contexto)
e as conexões simbólicas (personalidade, consciência, arquétipos, relações interpessoais, etc.)
entre as duas personagens (deusa e heroína).

Relações intertextuais: Ártemis preservada

Neste artigo considera-se o filme e o livro como obras individuais que se referenciam
por meio da intertextualidade, portanto uma não é superior a outra. Não existe o compromisso
de considerar o livro como texto de partida, muitos alunos, por exemplo, começaram pelo
filme. Cada obra se constrói em uma linguagem particular com recursos e materialidades
individuais e próprias do suporte em que foram produzidas: meio literário e meio audiovisual.
Pode-se considerar o filme como uma experiência formal de “mudança de uma linguagem
para a outra” ou ainda uma “forma de interação entre mídias” (CURADO, 2007, n.p.),
entretanto, em acordo com o entendimento da tradução contemporânea, não há um

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“compromisso de fidelidade”, aliás o próprio conceito caiu em desuso por ser relativo demais.
Ainda que a teoria do imaginário siga em outra direção, optou-se por adotar o viés da
semiótica para selecionar os signos mais relevantes para a discussão que aqui se apresenta. A
produção cinematográfica baseada em uma obra literária é, para os semioticistas, um signo do
livro, ao passo que a obra escrita se torna um objeto desse filme. O livro e o filme, portanto
remetem um ao outro, num processo infinito de ressignificação.
Na primeira etapa da pesquisa para Jogos Vorazes e o Reflexo de Ártêmis foi feita a
leitura do livro para identificar a descrição do espaço/tempo, as relações interpessoais, as
armas, bem como os principais aspectos de personalidade da protagonista. A mesma operação
se deu no filme, acrescentando-se os diálogos que substituíram a voz interna de Katniss
(narradora) e observando-se como a estética utilizada na materialização dos personagens.
Também foram considerados elementos da linguagem cinematográfica com função descritivo-
narrativa (sons, movimentos de câmera, trilha, efeitos, etc.), mais facilmente reconhecidos no
processo de tradução intersemiótica do texto ao filme.
A aceitação da história na versão cinematográfica será mais fácil se os leitores
puderem “reconhecer” a personagem do livro, o mesmo vale para o caminho inverso. No caso
de Jogos Vorazes, Katniss tem cabelo preto liso, pele cor de oliva e olhos cinzentos; usa uma
longa trança nas costas; é magra, não é muito alta, mas é forte. A descrição remete a uma
jovem de ascendência indiana, muito diferente do biótipo da atriz escolhida para interpretar a
heroína, uma jovem caucasiana de olhos azuis e pele alvíssima, alta e esguia. Entretanto,
outros elementos se sobressaíram proporcionando a aceitação de Jennifer Lawrence como
Katniss Everdeen. A forma como a jovem interpretou e personificou a personagem, entretanto,
foi o suficiente para que ela representasse a adolescente do livro por meio da ressignificação
da personagem para a tela grande.

Em seu notável trabalho de audição, eu vi Jennifer (Lawrence) incorporar


toda a qualidade essencial para interpretar Katniss: Eu vi uma garota que tem
a raiva potencial de enviar uma flecha para os Gamemakers e, ao mesmo
tempo, oferecer o protecionismo para fazer dela sua aliada. (...) Acima de
tudo, eu acreditava que aquela era uma garota que poderia segurar aquele
punhado de frutas e incitar os distritos abatidos de Panem a se rebelar. Eu
acho que essa foi a questão essencial para mim. Ela poderia inspirar uma
rebelião? Ela projetou a força, desafio e intelecto que você precisaria para
segui-la naquela guerra? Para mim, ela [Lawrence] o fez. [tradução nossa]
(COLLINS apud FRANICH, 2011, n.p.)

Traduzir exige habilidade técnica de “fazer corresponder ou adequação” entre meios,


isso quer dizer provocar a “ressignificação” do enredo, criar uma estrutura, função e forma

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ideais para o novo código. Na ausência do signo verbal, outro signo se impõe e no cinema a
palavra escrita pode ser transformada em objeto, um reflexo, um som, música, efeito ou
movimento de câmera, etc. Ainda assim, nem mesmo a crítica cinematográfica é capaz chegar
a um consenso sobre quais signos são essenciais uma vez que a atribuição de importância irá
sempre variar de pessoa para pessoa. “Não há regras capazes de determinar o que deve ser
suprimido, modificado ou ressignificado do livro para o filme” (MILTON, 2015, p. 29).
Assim, analisar as duas versões permite identificar algumas decisões tomadas no
processo de tradução intersemiótica e a visualizar como o diretor “traduziu” a linguagem
literária. O livro Jogos Vorazes é narrado por Katniss em primeira pessoa, no filme existe
uma alternância do foco narrativo. “No cinema, que é basicamente, um meio de muitos
canais, os discursos podem surgir dos diversos elementos visuais de num simples plano. As
relações entre planos subsequentes podem também ser lidas como diálogos” (GATTI, 2000, p.
43).
Para refletir sobre o que significa o reflexo da deusa Ártêmis na heroína foi
considerado que a deusa da caça e da Lua, irmã gêmea de Apolo, representa o espírito
feminino livre, o sentido de integridade, independência, autoconfiança e dispensa a aprovação
masculina, mas aceita o apoio masculino. Vive entre seus iguais, conquista espaço social, faz
escolhas, protege e mata se for preciso. Em Katniss esse reflexo está na personalidade,
atitudes e também em símbolos da deusa como a destreza natural no uso do arco e flecha,
conexão com a natureza e com os seus aliados, a coragem, as habilidades em batalha
(estratégia, sagacidade e força, quando necessário) e o temperamento ora protetor, ora
explosivo, mesmo nos seus aspectos mais sombrios, conforme mostra a tabela abaixo:

ÁRTÊMIS KATNISS (REPRESENTAÇÃO SÍMBOLICA)


Proteção Assume a família na orfandade, protege a mãe, Primrose, Rue, Peeta, Gale,
Cara de Raposa, a comunidade do Distrito Doze.
Justiça Poupa vidas, caça o necessário, evita violência na arena e não caça tributos
mais fracos, toma posição contra o extermínio protegendo Rue enquanto
pode
Independência Toma as decisões sozinha, dispensa a proteção de Gale e da mãe, caminha
sozinha a maior parte do tempo, decide aprender o jogo, ataca os
patrocinadores, desafia Snow, não segue a maioria na arena
Coragem Voluntária nos jogos, cercada não demostra pânico, enfrenta o desconhecido
na arena e no jogo político.
Autopreservação Ações calculadas no distrito e nos jogos, evita relações frívolas, precavida,
conhece os próprios limites, não rejeita ajuda (Rue, Peeta, Cena). Entende
rapidamente o mecanismo dos jogos, prevê as ações dos outros e encontra os

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pontos fracos do sistema, negociante nata.
Influência Tem seguidores e admiradores pela integridade e coragem, na arena ganha
inimigos em razão dessa influência, joga de igual para igual com Snow
Tabela 1- Atributos da deusa refletidos na heroína

O filme dialoga com o texto de partida, porém preserva o contexto e as peculiaridades


de cada meio e linguagem. É preciso reorganizar o enredo no espaço-tempo do filme e
mudanças acontecem para dar sentido à versão cinematográfica e essa tradução em signos se
manifesta pelas ações da personagem, sua voz interior e pistas que se apresentam nos diálogos
em cena, na interpretação (expressões) dos atores, etc. A materialização do enredo depende de
um processo de criação coletiva, toda a equipe contribui. O roteiro aproxima ou substitui os
signos literários para ressignificá-los conforme a interpretação dos realizadores, sobretudo a
do diretor. A ressignificação fílmica é uma relação de inter e transtextualidade.

Convergências e novos signos

Muito da dramaticidade de um filme está nas três categorias de estratégias narrativas


que traduzem o imaginário dos realizadores como o mise-en-scène (a ação diante das
câmeras), o som (não apenas a trilha) e a edição. Alguns movimentos de câmera são usados
com função descritiva, por exemplo, acompanhar a personagem ou objeto; criar ilusão de
movimento para objeto estático; descrever um espaço ou ação. Há também o modo de filmar
com função dramática para descrever relações espaciais entre dois elementos; realçar um
personagem ou objeto; criar a expressão subjetiva de uma personagem; expressão da tensão
mental de uma personagem, etc.
Os recursos da linguagem cinematográfica e os da linguagem literária convergem na
criação de signos que têm maior ou menor potencial simbólico, símbolos, ícones ou índices.
Entretanto, o signo ou representámen precisa ter reconhecida sua capacidade de substituir o
objeto e para isso depende de qual interpretante pode gerar. No caso do reflexo da deusa na
protagonista de Jogos Vorazes têm-se as armas (arco e flecha); o amor à natureza; a
capacidade estratégica e de adaptação; a independência e a sagacidade ocupando o lugar de
símbolos, ou seja, o que se pode reconhecer de imediato.
Num outro plano existem evidências da conexão das duas quando Katniss se abaixa
para falar com a irmã ou encara os olhos do presidente Snow com a mesma naturalidade; a
mudança da linguagem corporal quando a guerra se torna real (do desfile à arena); a
abominação à mentira e à fraqueza; a luta constante para manter sua existência como está, a

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capacidade de se reerguer e enfrentar cada situação; proteger aos que ama até as últimas
consequências (ela se expõe por Peeta, enfrenta o assassino de Rue, ataca os patrocinadores,
encara a câmera e os organizadores dos jogos; aprende a jogar para vencer a outra batalha).
Estes signos são icônicos, ou seja, remetem a conexões com a deusa.
Finalmente, da pontaria certeira que reduz a dor das presas até o assassinato do jovem
inimigo por piedade, a adolescente mostra estar no caminho da deusa. A cada escolha feita,
um novo degrau para a vitória, neste caso, a sobrevivência. A jovem despreza a devoção dos
patrocinadores e possíveis amantes porque está mais preocupada com a batalha diante dela;
recusa-se a revelar sua fragilidade, mas permite uma lenta construção de relações de afeto que
precisam ser provadas antes de se consolidarem. A personalidade de Katniss e da deusa se
aproximam, mas em Jogos Vorazes a heroína tem seu próprio universo e vai jogar quantos
jogos forem precisos para sobreviver.
O mito da deusa ajuda a organizar o relato para os alunos, mas a função da mitologia
vai além de facilitar a compreensão de uma narrativa. Segundo Pitta (2005, p.20.) transformar
em literatura no estudo da narrativa e também dos mitos que ela contém dá aos alunos acesso
a um tipo de relato capaz de “organizar o mundo, estabelecer o modo das relações sociais” e
que fornece modelos (personagens) para a ação cotidiana dos indivíduos. Sendo assim, os
schémes, arquétipos, símbolos e mitos, por meio de sua organização, orientam o
desenvolvimento de uma cultura. O processo de traduzir os signos depende em primeiro lugar
das operações da cultura, em seguida do conhecimento de cada linguagem. Os esquemas
mentais que os alunos elaboraram seguem o mesmo processo de geração dos signos icônicos,
aqueles que têm semelhança com o objeto, portanto podem ser “traduzíveis” de um meio para
outro. Conforme categoriza Umberto Eco:

(…) o filme como discurso, leva em conta os vários códigos narrativos, as


chamadas “gramáticas” da montagem e as convencionadas (modelizadas,
sabidamente existentes, mas eficazmente denotantes, exemplo: os raios de
sol em forma de vareta. Um esquema gráfico reproduz as propriedades
relacionais de um esquema mental (ECO, 1991, p.107)

No momento de analisar um objeto no meio cinematográfico, vale ressaltar que é


preciso considerar que se trata de um código (linguagem) de três articulações, por isso quando
se busca o reflexo da deusa na heroína que protagoniza Jogos Vorazes, o filme oferece signos
mais facilmente reconhecíveis pelos alunos. Essa terceira articulação explica o efeito de
realidade do cinema e a razão pela qual a Katniss de Lawrence é considerada a mesma
descrita no livro de Suzanne Collins:

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Num código de três articulações ter-se-iam, portanto: figuras que se
combinam em signos, mas não são parte do significado deles; signos que se
combinam eventualmente em sintagmas; elementos X que nascem da
combinação de signos, os quais não são parte do seu significado. (…) Mas
além disso, o filme como discurso, leva em conta os vários códigos
narrativos, as chamadas “gramáticas” da montagem, e de todo um aparato
retórico hoje analisado pelas semiologias do filme (ECO, 1991, p. 147; 151).

Comparando-se novamente a natureza da deusa e a da adolescente, pode-se descrever


Ártêmis como “a virginal filha de Zeus”, representante da dualidade do feminino: aquela que
protege e é a mesma que destrói. Exímia caçadora com arco e flecha, líder e defensora da vida
selvagem, protetora das parturientes, crianças, árvores e das matas. Por outro lado, herda de
Zeus a natureza vingativa é implacável, nunca hesitante, ela toma as próprias decisões e
rejeita a submissão ao masculino, mas não despreza o amor. O amante deve respeitar a
individualidade e a independência dela. Por sua vez, Katniss Everdeen é a heroína improvável
e não convencional que tira sua força da floresta e da liberdade que o ambiente oferece, trata a
caça com respeito, retirando apenas o suficiente para a subsistência da família. A destreza não
advém da coragem (ou divindade), mas da necessidade de sobrevivência para manter a irmã
caçula alimentada e protegida da Capital. Pelo fato de Katniss reagir e decidir ao mesmo
tempo e não ser uma divindade e sim uma guerreira, faz mais sentido considerar a heroína
como um reflexo e não um duplo de Ártêmis.
No início da história, a heroína é uma garota comum, pobre e praticamente invisível à
sociedade. Imersa em um universo apocalíptico onde não existe mobilidade social e os adultos
parecem conformados em mandar crianças e adolescentes para morrer em uma arena à moda
dos gladiadores, Katniss não está sob a proteção de ninguém. De Ártemis, ela herda a força da
dualidade do feminino: concebe e mata. Ela luta “pela causa da deusa”, a autonomia.
Enquanto a batalha molda essa menina para a mulher que ela será, a jovem que não deseja o
poder chega fácil até ele, mas assim como Ártemis no colo de Zeus, não busca
reconhecimento, mas liberdade.
Katniss é assombrada pela morte, mas está ainda mais aterrorizada com a
possibilidade de perder a irmã. A adolescente não realiza um ato de coragem, mas de
sobrevivência. E, assim como a deusa impressiona e conquista admiradores por sua
autenticidade. A adolescente não luta contra um indivíduo, luta contra o sistema que a oprime,
luta com outras meninas, com monstros (bestantes, assassinos) e contra si mesma. Em busca
de justiça, reage até contra a promessa de um governo “livre” que, na verdade, está

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impregnado de ódio e vingança. A personagem continua a lutar para sobreviver, não por
questões ideológicas ou por aclamação pública. Diferente da jornada heroica masculina, não
está em busca de uma recompensa final, mas luta para descobrir seu lugar no mundo.
A personalidade da protagonista é obscura para o público em boa parte do livro, mas
vai se desvelando aos poucos. O diretor do filme faz o mesmo e, apesar das evidentes
conexões com a personalidade da deusa até ali, será na cena em que ela erra a primeira flecha
diante dos patrocinadores. Na segunda tentativa, quando acerta o tiro perfeito, eles parecem
ter perdido o interesse. A personalidade implacável de Artêmis se sobressai e, a despeito das
consequências, ela revela sua força:

De repente, eu estava furiosa, aquilo colocava minha vida em risco e eles


não haviam tido a decência de prestar atenção em mim. Fui posta em
segundo plano por um porco morto. Meu coração disparou. Senti meu rosto
queimando. Sem pensar, coloquei uma flecha no meu arco e mirei direto na
mesa dos gamemakers. A flecha atravessou a maçã na boca do porco e a
grudou na parede. (COLLINS, 2010, p. 102).

Outros elementos corroboram com tal perspectiva porque, assim como a deusa, a
adolescente se veste para a caça e não para ficar bonita como as outras meninas, tem poucos
amigos e não permite interferência no seu modo de vida. Em suas ações não segue os padrões
e só se sente plena longe do olhar alheio onde se permite demostrar ternura e alegria. A
heroína é o ícone que mergulha nos signos e arquétipos do mito de Ártemis para emergir
como uma semideusa, um símbolo da revolução.

Considerações finais

A literatura garante o equilíbrio social por recuperar nosso elo com a humanidade, pois
“cada sociedade cria as suas manifestações ficcionais, poéticas e dramáticas de acordo com os
seus impulsos, as suas crenças, os seus sentimentos, as suas normas, a fim de fortalecer em
cada um a presença e atuação deles” (CÂNDIDO, 1995, p.175). Atentos aos signos no livro e
no filme, os alunos discutiram os mitos relacionados às deusas Vênus, Atena e Ártêmis,
identificando rapidamente a terceira como referência para a personagem de Collins. A ideia
foi traduzir o mito da deusa da lua de forma simples, assim, selecionou-se a frase “uma garota
que empunha arco e flecha pode escolher seu destino”.
O perfil combatente também foi associado ao mito de Teseu, o adolescente que liberta
os outros do sacrifício no labirinto. E com o objetivo de estimular outras relações de

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significado de acordo com o imaginário de cada um, foi pedido aos jovens que lembrassem
outras narrativas em que as heroínas pudessem ser relacionadas às deusas. Os alunos
comentaram como nos últimos tempos as princesas de contos de fada foram revistas e ficaram
mais interessantes com uma Cinderela que tem suas próprias opiniões, uma Branca de Neve
que vai para o campo de batalha, a Aurora que unifica os povos do seu reino de forma pacífica
ou a recém-criada Tiana, que recebeu o título de princesa por mérito próprio.
Mérida (Valente) e Fiona (Shreck), duas personagens contemporâneas, foram as mais
comentadas por terem “coração bom” e serem “boas de briga”. A donzela heroína desse tempo
não surge apenas como companheira do herói, conquista o que é dela por direito. Os alunos
também disseram que Katniss conquistou o direito de ser “endeusada” como campeã dos
jogos porque tomou suas próprias decisões e não mudou o seu modo de ser. Quando a
comparam com a deusa, apontam como “lição” da personagem em relação ao mito que é
preciso assumir as consequências de suas escolhas, não levar tão a sério a opinião dos outros
ou prognósticos porque a heroína combateu a miséria, levantou-se contra a falta de esperança
em relação a irmãzinha, mostrou seu valor aos patrocinadores e venceu tanto os favoritos,
quanto os gamemakers e ainda impulsionou, por sua coragem, a revolta dos distritos.
No projeto de trabalhar uma narrativa em duas mídias e apresentar o mito como
referência na leitura os alunos tiveram uma experiência com a língua em outra escala, ficou
evidente para eles como a linguagem se modifica entre os falantes, o espaço
(literário/cinematográfico) e mesmo como Suzanne Collins trabalhou neologismos e mesclou
estilos de fala de várias épocas para compor os personagens. A liberdade de explorar as novas
possibilidades oferecidas pela narrativa ajudou a incluir os alunos de diferentes níveis de
conhecimento da língua nos debates: a leitura do livro em inglês, a tradução, quando
necessária (alguns leram em língua portuguesa) e assistiram ao filme mais de uma vez.
Ao acrescentar o mito de uma deusa e uma protagonista da idade dos alunos o
aprendizado foi além do esperado porque eles se envolveram e conseguiram identificar o
reflexo de Ártêmis em Katniss; entenderam a importância dos mitos na formação das culturas
do mundo e como essas narrativas transcenderam as Eras explicando situações,
comportamentos e traços de personalidade que moldaram seu modo de vida.

Referências
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