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Perspectiva socio-histórica do fogo perpétuo.

O caso umbundu

Introdução

Olhando um pouco no presente, curiosamente em cerimónias matrimoniais


informais muito frequentes e bastante concorridas por todos estratos sociais
em Angola, ao que chamam de pedidos de noivados, entre os vários elementos
que compõe o pacote de alembamento, chama atenção a presença da caixinha
de fósforo. Aparentemente sem nenhum valor, a sua omissão do conjunto de
todos os componentes matérias exigidos pode ser motivos de conflitos
incontornáveis mas, dificilmente se explica a razão da sua exigência, porque
todos dizem ser tradição e ninguém diz porquê.

A estrutura do sistema educacional comunitário baseado na autoridade familiar


uterina primava pela decência, religiosidade e etnonacionalismo, evitando
máculas sobre a ética e a moral, quer no tipo do perfil do cidadão pretendido,
quer na herança histórica da autoridade de parentesco. Assim optava-se pelo
método preventivo inclusivo e não curativo, atacando o crime antes do
criminoso ou combater a delinquência antes do delinquente, a prostituição
antes da prostituta, a fome antes do esfomeado, a inveja antes do invejoso, a
preguiça antes do preguiçoso, etc., mas, dentro da família, sem recurso aos
agentes externos.

Reconhecendo importância no tipo do método educacional não-formal


implementado através de instituições endógenas, algumas ainda sobreviventes
no contexto actual, Bondo (2008) que falou pela universidade Agostinho Neto
admitia que “no âmbito da globalização e do desenvolvimento há uma área
extremamente importante no caso dos países que têm a tradição oral muito
forte que é o caso do nosso, que há instituições tradicionais que continuam a
fazer a educação não-formal 1.

Com esta intervenção, a universidade pública angolana trouxe ao lume uma


perspectiva que noutros países já é uma realidade científica com mais de 50
anos, e o Brasil tem assumido a liderança experimental das metodologias orais
e participativas nos processos educacionais não-formais e consequentes
1
Em “Voz da América”. Artigo jornalístico divulgado a 28/05/2008, com o título “UAN e ISCED's
repensam educação em Angola”.

1
pesquisas. O I Encontro Nacional das Ciências da Educação realizou-se em
2008 para passar em revista o renascimento e contributo que o sistema de
educação não-formal pode trazer para o desenvolvimento do país, no geral e
para o sector de educação em particular. O certo é que a realização de
processos educacionais em torno de fogos perpétuos, mesmo estando quase
ou, aparentemente, em desuso, por se tratar de dinâmicas meramente rurais
para uma realidade não industrial como é angolana, representa um valor
peculiar em abordagens educacionais.

O método inclusivo

Na dimensão do sistema de conhecimento, segundo a perspectiva de


Chambers (1995:94), o sistema educacional inclusivo, também caracterizado
por Estermann (1950) como tendo um currículo próprio é restringido pela
componente do poder local em on job a partir de um pacote de exercícios
práticos feitos em pequenos grupos homogéneos, no geral, concentrados em
torno do fogo e traduzidos em “participação directa, observação e imitação (ou
experimentação!) […] em relação ao que fazem os adultos, não são os únicos
métodos empregues […]. Segundo Malumbu (2005:240), “este processo é
sistematicamente acompanhado e assistido através de ritos próprios de
iniciação” sob tutoria exclusiva dos pais legítimos. E “é mesmo esse o sentido
dos ritos de iniciação: uma porta fechada para o lado da infância” como garante
Mendel (1973:219) e aberta à participação do homem e da mulher separados
em mundos feminino e masculino. Sendo a educação um processo
permanente, na realização de rituais de passagem de classes, houve sempre a
gestão de oportunidades para a cedência faseada de autoridade das famílias
aos membros comunitários por idades, género e classes sócio-comunitárias do
nascimento à morte.

O fogo perpétuo do Ocoto2 comunitário uterino

Na mesma dimensão, referindo-se ao Ocoto, apesar da caracterização dos


seus espaço e da importância que encerra no processo educacional dos
2
Ociyoto, co’kuyota ondalu (lugar ou espaço do fogo perpétuo para finalidades comunitárias
entre grupos pastorís do centro-sul de Angola. O caso dos municípios da Baía Farta,
Caimbambo, Cubal e de Chongoroi)

2
adolescentes e jovens, à semelhança de David (1997), Guebe (2003) não faz
realce ao método mais frequente e Estermann (1950) apenas define os seus
actores e descreve em síntese as matérias curriculares mais frequentes assim
como o respectivo impacto na vida das comunidades.

O fogo perpétuo do Onjango3 comunitário uterino

Por sua vez, ao debruçar-se sobre Onjango, Malumbu (2005), procurou ser
mais sistemático fazendo referências aos aspectos metodológicos, princípios,
epistemologia, normas e do impacto do próprio processo educacional. Tal
como aconteceu com Childs (1949) em relação às comunidades do planalto,
Estermann (1950) no que respeita aos povos do sul, Altuna (1993) na
perspectiva global Bantu em Angola e Gomes (2007) no que toca ao litoral
centro-sul mas, do ponto de vista conceptual, quase como todos, deixou bem
visível a dificuldade de meter limites claros entre este sistema e os processos
relativos à educação informal. À semelhança de J. Redinha (1965-1969) em
relação à Mukanda lunda, L. Cardoso (1959-1963) deixou um volume de dados
descritivos sobre Ekwenje entre as comunidades Mbali do Namibe mas, ambos
não se debruçaram do papel educacional desta instituição como fez mais tarde
R. Altuna (1993).

O fogo perpétuo da Ekula

Da inteira responsabilidade do Ohoma y’Ekula, o fogo perpétuo da Ekula


(Gomes, 2007) é o menos conhecido. Trata-se de uma instituição inclusiva
Ndombe, posterior ao Ekwenje e realizável no Ocombo, pelo menos, quatro
vezes em cada 100 anos. A última realização conhecida aconteceu em 1999.

O fogo perpétuo do Soba como veículo de valores endógenos

Por dificuldades de alguns pesquisadores-oralistas em estabelecer fronteiras


claras entre a educação informal e não-formal endógenas produz-se algum
equívoco de haver uma influência directa do Soba na educação comunitária,
em vez da autoridade endógena (Gomes, 2006) onde ele é parte integrante
3
Onjo yo hango (lugar ou espaço do fogo perpétuo para finalidades comunitárias entre grupos
sedentários do planalto de Angola. O caso dos municípios do Balombo, Bocóio, da Ganda).

3
que, ao seu nível, esta se insere na família. Em termos praticamente rigorosos,
por natureza institucional adstrita ao sistema de parentesco uterino e
multifuncional, a figura do Soba se excluía dos processos educacionais directos
por ser ela o representante da autoridade suprema e da idoneidade moral das
comunitária na linha de consanguinidade, pelo que o seu papel de gestor-
supervisor da vida comunitária projectava-se a partir dos fogos perpétuos dos
Onjango e Ocoto dos Alombe, o centro das decisões do Estado, segundo os
processos político-administrativos, religiosos e sócio-económicos a ele adstritos
para fazer-se chegar no Onjango das famílias através dos pais sociais. Os
fogos perpétuos dos Onjango e Ocoto dos Alombe correspondiam com o
espaço legislativo e jurídico enquanto os fogos dos Onjango e Ocoto
comunitários referiam-se aos espaços executivos.

Entre os diversos fogos perpétuos até aqui identificados, particularmente nas


áreas socioculturais da faixa ao sul e leste do rio Kwanza, apenas três
conheceram intervenção directa do Soba, devido ao seu elevado nível de
exigência socioeconómica, o grau de envolvimento comunitário e o seu impacto
nos sectores político, militar e religioso: Ekula, Evamba e Mukanda. Por detrás
da organização da Ekula se antecedia o Ocombo e do Ekwenje o Ocilombo
guarnecidos por kasanji e protegidos através de Ndala eram agentes sagrados
interpretados na religiosidade do poder da autoridade ligada ao Elombe.

Estudos de autores referenciados, com excepção de Melo (1991), dão maior


ênfase às instituições educacionais masculinas e do poder local por haver
relação cuja influência no seio das comunidades são mensuráveis, por um lado
e, por outro, porque sendo melhor estruturadas, o processo educacional
endógeno era geralmente massivo com tempo lectivo muito mais longo e que,
de uma amaneira ou de outra, todas famílias eram envolvias. Em tempos idos o
Ekwenje durava cerca de um ano lectivo mas, no geral, a Evamba (Arjago,
1999) correspondia com a época entre o fim das colheitas e o início das
culturas, mais ou menos de Junho a Setembro. Para ter-se a ideia do
envolvimento comunitário, cerca de três mil almas terão participado na Ekula
de 1999 durante apenas sete dias.

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4
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