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UNIVERSIDADE LICUNCO

FACULDADE DE LETRAS E HUMANIDADES

CURSO DE MESTRADO EM LETRAS /ESTUDOS LINGUÍSTICOS

Eugénio Augusto Sebastião

As Perversões do Fin-de-Siècle em Às Avessas

Beira
2022
Eugénio Augusto Sebastião

Tema: As perversões do fin-de-siècle em Às Avessas

Artigo científico apresentado ao Programa de


Mestrado em Letras/Estudos Linguísticos da
Faculdade de Letras e Humanidades, como
requisito parcial para avaliação do módulo de
Literatura, Estética e sociedade.

Orientado por: Prof. Foutor Chimica Francisca

Beira
2022
Índice

Resumo........................................................................................................................................1
Abstract.......................................................................................................................................1
Introdução...............................................................................................................................2
1. A França nas últimas décadas do século XIX e o Decadentismo.......................................3
2. Compreendendo o Conceito da Perversão..........................................................................4
3. A obra de Huysmans..........................................................................................................6
4. A manifestação da perversão do fin-de-siècle em Às avessas...........................................6
4.1. O Incesto.....................................................................................................................7
4.2. A Misantropia.............................................................................................................7
4.3. Preferências pelo artificial.........................................................................................9
4.4. A pansexualidade........................................................................................................9
5. Considerações finais.........................................................................................................11
6. Referências Bibliogáficas.................................................................................................12
1

As perversões do fin-de-siècle em Às Avessas

Eugénio Augusto Sebastião1


easmahesse@gmail.com.

Resumo
No presente artigo discorremos sobre as manifestações da perversão retratados por Joris-
Karl Huysmans em Às avessas, com objectivo de compreender as diferentes formas de
manifestação da perversão que, ao lado de outros males do fim do século XIX, dominaram os
temas da literatura decadentista da época. Às avessas configura como a obra emblemática do
Decadentismo, um movimento literário que surge para caracterizar as últimas décadas do
século XIX, opondo-se ao naturalismo e ao romantismo. Com base no método bibliográfico, o
estudo apresenta uma breve descrição das últimas décadas do século XIX sustentado nos
trabalhos de Weber (1988), Moretto (1989) sobre a literatura e Decadentismo das últimas
décadas do século XIX; e nos estudos de Biscaia (2012), Silvia (2018) e Roudinesco e Plon
(1998) sobre as diferentes formas de manifestação da pervesão. Centrando a abordagem do
estudo nas manifestações da perversão do fim do século, retratados por Huysmans no romance
Às avessas, os resultados mostram que a perversão do fim do século XIX havia tomado
diversas formas de manifestação que ultrapassam os limites da visão psicanalítica sobre o
termo. No romance, podemos identifcar o incesto; a misantropia; a prostituição;
pansexualidade, manifestando-se em formas como o travestismo e efeminação, e pederastia
bem como sua preferência pelo artificial sobre o natural.
Palavras Chave: Decadentismo; Fim do século; Perversão, Às Avessas; Des Esseintes

Abstract
In this article we discuss about different manifestation ways of Perversion, as a kind of evils
dealt with by Joris-Karl Huysmans in his novel entitled Às avessas. The aim of the study is to
understand the different manifestation ways of perversion which, alongside with other evil
practices from the last decades of 19th Century, have been one of the most prevailing subjects
of Decadentism. Às avessas is best known as the Decadentism emblematic novel, a literary
movement which emerged to characterize the last decades of the 19 th Century, opposing other
ongoing movements such as naturalism, Parnassianism and romanticism. Basing on a
bibliographic method, the study presents a brief description of the last decades of the 19 th
century, with the support of Weber (1988) and Moretto (1989) from their work on Literature
and Decadentism of the last decades of the 19 th Century; and also from Biscaia (2012) Silva
(2018) and Roudinesco & Plon’s (1998) studies on the defferent manifestation ways of
perversion. The results of the study reveal that in the last decades of the 19 th Century, the
perversion had manifested in many different evil ways which surpasses the bounderies of the
Psychoanalyse view. Huysmans presents in his novel the following practices: incest;
misantropy; prostitution; pansexuality, which manifested in forms of tranvestism and
effeminancy and pederasty including the choice changes between the fake and the natural.

Keywords: Decadentism; End of Century; Perversion; Às Avessas; Des Esseintes

1 - Licenciado em ensino de Língua Inglesa pela universidade Pedagógica. Mestrando em Letras/ Estudos
Linguísticos pela Faculdade de Letras e Humanidades da Universidade Licungo.
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Introdução
As últimas décadas do século XIX são descritas como anos do nascimento da modernidade
e de prosperidade, resultantes de uma série de avanços tecnológicos, políticos e ainda
científicos que transformaram França num solo fértil para massificação cultural. Com estes
avanços, o homem mergulhou-se numa profunda crise de identidade social e moral,
manifestando-se por uma série de comportamentos moralmente negativos. Tais comportamntos
despertaram interesse pela sua abordagem na literatura da época e até posterior, tendo dado um
grande impulso para o surgimento do Decadentismo, nome pelo qual ficou conhecido o período
que compreende as últimas décadas do século XIX (Moretto, 1989; Mcguinness, 2011; Silva,
2019, Peres, 2022).

Este movimento decadentista reflectiu-se não apenas na França, mas chegou a atingir outros
cantos da Europa para onde o fenómeno ia se expandindo. Opondo-se ao parnasianismo,
naturalismo e romantismo, o Decadentismo foi representado por Huysmans com seu romance
Às vessas e surgiu para retratar, dentre vários temas ligados a literatura e sociedade, os males
como o vício, a perversão, a crueldade, a neurose a doença e a morte, que caracterizam as
últimas décadas do século XIX.

No presente artigo, discorremos sobre o conceito da perversão, visando compreender a


partir de Às avessas as diferentes formas de manifestação da perversão que caracterizaram o
fim do século XIX e que constituíram a maior preocupação de Huysmans no seu romance.

Com base no método bibliográfico, o estudo apresenta uma breve descrição das últimas
décadas do século XIX sustentado nos estudos de Weber (1988), Moretto (1989) sobre a
literatura e Decadentismo das últimas décadas do século XIX. Também recorremos aos
trabalhos de Roudinesco & Plon (1998) e Ribeiro (2018), os quais proporcionaram dados
relevantes que consubstanciaram a nossa argumentação sobre o conceito de perversão e suas
formas de manifestação. O estudo de Biscaia (2012) e o recente estudo de Silva (2019)
permitiram compreender a diversidade de formas de manifestação da perversão retratadas por
Huysman no seu emblemático romance decadentista.

O artigo compõe-se de secções: após a introdução, segue a primeira secção onde


apresentamos uma breve descrição da França nas últimas décadas do século XIX e o
surgimento do movimento decadentista. Na segunda secção discorremos sobre o conceito de
perversão e suas diferentes formas de manifestação, as quais nos permitem ler e reconhecer as
perversões retratadas por Huysmans no seu romance, os quais apresentamos na 4 secção,
precedida pela terceira e breve secção em que apresentamos a obra Às avessas. A quinta e
3

última secção compreende as considerações finais seguidas das referências bibliográficas onde
estão devidamente apresentadas as obras, estudos e trabalhos que suportaram toda
argumentação apresentada.

1. A França nas últimas décadas do século XIX e o Decadentismo


As últimas décadas do século XIX são descritas na literatura como anos de nascimento da
modernidade (Moretto, 1989; Mcguinness, 2011; Silva, 2019, Peres, 2022). Uma modernidade
em que, segundo Patrick Mcguinness, redator da introdução de Às avessas, regista-se uma série
de avanços tecnológicos, políticos e ainda científicos. Foi uma época de inovações sem
precedentes, e de uma massificação cultural que, acrescentando Biscaia (2012), “impôs ao
homem da época uma dificuldade de se reconhecer como indivíduo, numa sociedade que
crescia a olhos vistos e que estava imersa na mecanização oriunda dos avanços tecnológicos”.
O homem mergulhou-se numa profunda crise de identidade social e moral, manifestando-se
por uma série de comportamentos moralmente negativos. Eugen Weber, em França Fin-de-
siècle, de 1925, traduzido para Português em 1988, menciona práticas como “espetáculo
ignobil” o qual foi denunciado por Huysmans em 1891; negociações duvidosas, adultérios, e
assassinatos e escândalos financeiros, entre outros males perpetrados pela burguesia da época.

Moretto (1989, p. 14) descreve-o como um período em que, ao lado dos Parnasianos e
naturalistas, regista-se na França “um mal estar, uma agitação que se volta contra a ideologia
positivista (...) há entre as elites, um cansaço, uma vaga ideia de algo que morre, de um mundo
em decomposição, (…) uma autêntica atmosfera de melancolia e desesperança”. Acrescenta
Moretto que este período foi “marcado por uma inquietação intelectual e manifestação artística
(idem.).

Mcguinness (2011) descreve-o, portanto, como um período de assombrosa riqueza e


diversidade nas artes. Era um período marcado por grandes paradoxos, um dos quais
caracterizado por visões contraditórios – como a decadência e renovação, de começos e fins, de
exaustão e inovações – que podiam ser abraçadas simultaneamente pelas mesmas pessoas. Esta
crise de identidade despertou interesse na literatura, tendo movido a acção dos poetas
(Mallarmé, Verlaine), simbolistas e romancistas (Émile Zola, Maupassant), pintores (Manet e
Rodin) e compositores (Debussy e Erik Satie), resultando no surgimento do Decadentismo,
movimento literário que viria ter como seu representante o romance Às avessas, de Joris-Karl
Huysmans.
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Este movimento – decadentismo – surge, conforme escreve Moretto (1989) em oposição ao


naturalismo, Parnasianismo e romantismo, e passou a caracterizar as últimas décadas do século
XIX, dando um passo importante no caminho da libertação da arte que vinha se esboçando
desde décadas anteriores”. Os decadentes associam fim do século XIX com o fim do mundo,
em que os homens vivem um total apocalipse.

O objectivo do decadentismo, segundo Peres (2022), era de “livrar a arte e a literatura das
amarras materialistas da sociedade industrializada”, arremetendo contra a moral e dos costumes
da burguesia da época, numa espécie de desdém da cultura massiva e burguesa.” e exaltando a
evasão à realidade cotidiana, e o heroísmo individual explorando as regiões mais extremos da
sensibilidade humana.

Conforme afirma, Peres (2022) o Decadentismo trata, dentre vários temas, e com maior
recorrência os males como o vício, a perversão, a crueldade, a neurose a doença e a morte. São
os males de que estava revestida a crise de identidade nas últimas décadas do século XIX,
conforme descrito anteriormente. Neste texto, portanto, centramos a abordagem na perversão,
procurando identificar os comportamentos de perversão do fim do século, retratados por
Huysmans no romance Às avessas.

2. Compreendendo o Conceito da Perversão


Maria Carolina Vazzoler Biscaia, em 2012, na sua tese, havia abordado a perversão no
sentido psicanalítico, baseiando-se no conceito dado por Roudinesco & Plon. Segundo estes, o
termo perversão, derivado do Latim pervertere (perverter), é “empregado em psiquiatria e pelos
fundadores da sexologia para designar, ora de maneira pejorativa, ora valorizando-as, as
práticas sexuais consideradas como desvios em relação a uma norma social e sexual”
(Roudinesco & Plon, 1998, p. 583).

Depois, Ribeiro, no seu Dicionário Online de Português, de 2018, atribuiu um sentido mais
amplo, que não se limita na visão psicanalítica. Ele define perversão como “o acto ou efeito de
contrariar as leis da natureza e da vida moral”.

Estes dois conceitos convergem no facto de que o termo perversão remete-nos a uma
contrariedade, desvios daquilo que a humanidade convencionou e a natureza determinou como
acto normal. Portanto, a perversão, como um mal é vista em comparação com o conceito do
bem.

Sua discussão, segundo Biscaia, “está sujeita à variação temporal e cultural” (Biscaia, 2012,
p.20). Ou seja, em algum momento e em determinadas culturas, a perversão pode ser vista de
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uma forma diferente, de acordo com o que a humanidade, numa época ou num determinado
contexto sócio-cultural, convencionou como acto normal. Roudinesco e Plon dão exemplos da
variação temporal da perversão e, mantendo-se na perspectiva da psicanálise, apresentam as
diferentes formas de sua manifestação.

A partir de meados do século XIX, o saber psiquiátrico incluiu entre as perversões


práticas sexuais tão diversificadas quanto o incesto*, a homossexualidade*, a zoofilia,
a pedofilia, a pederastia, o fetichismo*, o sadomasoquismo*, o travestismo, o
narcisismo*, o auto-erotismo*, a coprofilia, a necrofilia, o exibicionismo, o
voyeurismo e as mutilações sexuais. (Roudinesco & Plon, 1998, pp 583-584).
Retomado por Sigmund Freud* a partir de 1896, o termo perversão foi
definitivamente adotado como conceito pela psicanálise, que assim conservou a idéia
de desvio sexual em relação a uma norma (Roudinesco & Plon, 1998, p. 584).
Em 1987, a palavra perversão foi substituída, na terminologia psiquiátrica mundial,
por parafilia, que abrange práticas sexuais nas quais o parceiro ora é um sujeito*
reduzido a um fetiche (pedofilia, sadomasoquismo), ora o próprio corpo de quem se
entrega à parafilia (travestismo, exibicionismo), ora um animal ou um objeto (zoofilia,
fetichismo). (Roudinesco & Plon, 1998, p. 584)

O estudo de Biscaia revela que as manifestações destas práticas sexuais haviam sido
retratados por Mário de Sá-Carneiro, na revista portuguesa Orpheu, desde a segunda década do
século XX. Sá-Carneiro havia centrado seu estudo em comportamentos como o incesto e
sadismo, o travetismo, a homosexualidade, o voyeurismo e outros interditos. Estes males, ao
lado de escapismo, mistério, morte e arte, consubstanciaram para Biscaia inscrever a obra de
Sá-Carneiro na literatura do mal.

Alguns anos mais tarde (isto é, em 2019), Rafael Cordeiro Silva, publicou seu artigo Eros
às avessas, em que estudara a epistemologia do pansexualismo e dissublimação repressiva,
dois termos retratados por Herbert Marcuse, em Eros e Civilização, de 1955, como formas
pernósticas da manifestação do Eros, baseando-se na psicanálise de Freud (Silva, 2019, p. 201).
No seu estudo, Silva defende que “o narcisismo, a coprofilia, a homossexualidade e o sadismo,
consideradas por Marcuse como formas de perversão, formam, com excepção do sadismo […],
parte do comportamento polimorfo-perverso de Eros e são vistos como recusa ao princípio de
desempenho, pois evocam aspectos da sexualidade que não estão relacionados com a
reprodução monogâmica.” Ao passo que a dessublimação repressiva foi tratada como
transgressão permita pela sociedade em que práticas genitais são incentivadas pelo princípio de
desempenho, excluindo assim as perversões” (Silva, 2019, p.211).

Vemos, portanto, que o incesto, o sadismo, o travestismo, a homossexualidade, o


voyeurismo, o narcisismo e a coprofilia, o pansexualismo e dessublimação repressiva que
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dominaram as abordagens de Sá-Carneiro e Marcuse (Biscaia, 2012 e Silvia, 2019),


demonstram o contínuo recrudescimento das formas de perversão e que elas não se esgota nas
manifestações apresentadas pela psicanálise (Roudinesco & Plon). O Conceito de Ribeiro sobre
a perversão permite descrever ainda muitas outras formas de manifestação de perversão
retratadas pela literatura decadentista.

3. A obra de Huysmans
Às avessas, romance publicado em 1884, é considerado o romance mais emblemático do
decadentismo. Nesta obra, o escritor parisiense Joris-Karl Huysmans narra a vida do duque
Jean Floressas des Essaintes, o qual abandona tudo e se tranca numa casa de campo com intuito
de trocar a realidade pelo sonho da realidade (Peres, 2022). A obra começa com um capítulo
inicial que apresenta informações sobre a vida pregressa à reclusão do protagonista, bem como
suas origens familiares e breves informações sobre sua infância. Este capítulo inicial é seguido
por dezasseis capítulos que compõem o romance. Estes capítulos estão dispostos de uma forma
independente um dos outros, ou seja, sem qualquer progressão temporal lógica entre eles.
Conforme descreve Oliveira, cada capítulo é suficiente de forma isolada e “aborda uma
temática própria, em geral alguma forma de arte, passando por temas como pintura, literatura,
perfumaria, pedrarias, floricultura, decoração ambiente, entre outros” (Oliveira, 2018, p. 175).

O romance anunciava uma contraposição às convenções literárias naturalistas e aos valores


burgueses vigentes na época. Conforme podemos ler na sua introdução escrita por Mcguinness
(2011, p.34), o romance “detinha-se em funções corporais, moléstias complicadas e chocantes
aventuras sexuais”. A obra retratava sua época, mas também intervinha nela.

4. A manifestação da perversão do fin-de-siècle em Às avessas


O fin-de-siècle, foi caracterizado por inúmeros comportamentos perversos cujo
recrudescimento viria transbordar os limites geográficos e sociais da França e mereceram
atenção de alguns estudos quer de dentro como de fora da França. Nesta secção procuramos
concentrar a atenção nas formas de manifestação da perversão do fin-de-siècle retratados por
Huysmans.

Ao percorrermos a obra Às avessas deparamos com retratos de algumas formas de


manifestação da perversão que, ao lado dos outros males que, ao lado do vício, crueldade,
neurose, doença e a morte, caracterizam o fim do século XIX: Estas formas incluem o incesto,
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a misantropia; a prostituição; homossexualidade, manifestando-se em formas como o


travestismo e efeminação, bem como sua preferência pelo artificial sobre o natural

4.1. O Incesto
Se tomarmos o conceito de perversão tal como definido no dicionário Online de Português –
“o acto ou efeito de contrariar as leis da natureza e da vida moral” – podemos ver na própria
identidade de Des Esseintes o primeiro retrato de manifestação de perversão em Às avessas – o
incesto.

O incesto, concebido por Biscaia (2012) como o relacionamento íntimo entre parentes da
primeira linhagem, é considerado contrário à lei da vida moral e, por isso, considerado acto
imoral. Sua prática é uma abominação e repugnante em todas sociedades e culturas. Huysmans
(2011), contudo, apresenta o seu personagem, Des Esseintes, como fruto de uniões
consaguíneas, e essas uniões eram a prática de toda linhagem de Des Esseintes desde gerações
anteriores, conforme escreve Huysmans “durante dois séculos, casaram seus filhos entre si,
exaurindo-lhes o resto de vigor em uniões consanguíneas” (2011, Pag. 67).

Esta forma de perversão vai mostrar, logo no começo, o carácter decadentista de Às avessas.
Por um lado, Des Esseintes provém de uma nobre linhagem que outrora fora tão numerosa e
que “ocupava quase todos os territórios da Ilha de França e de Brie”, mas todos acabaram. Des
Esseintes é o último descendente da sua linhagem, o que torna dependente dele toda
possibilidade de regeneração da sua linhagem.

Mas, por outro lado, o que é mais grave é que ele é impotente (Huysmans, 2011, p. 74), não
há menor esperança de procriação para uma possível regeneração da linhagem através do seu
último descendente. Aliás, se retrocedermos a leitura, percebemos que seu corpo magro vinha
manifestando sinais que o causariam esta impotência desde a sua mocidade: foi um jovem
“franzino”, “anémico” de “mãos magras e longas” (Pg. 68). Logo, a sua linhagem já está
sentenciada a extinção. Está em decadência. E uma decadência que é eminente. Huysmans
retrata a decadência do fim-de-século na identidade e decadência da linhagem do seu
personagem Des Esseintes.

4.2. A Misantropia
A misantropia é, etimologicamente, uma palavra de origem grega misánthropia que refere a
“qualidade ou particularidade do que é misantropo”, aquele que sente repulsão ou aversão às
pessoas, à sociedade dos homens, que se aborrece com a companhia humana, preferindo
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solidão do que o convívio com outras pessoas (Ribeiro, 2018). Des Esseintes manifesta seu
carácter misantrópico ao considerar uma loucura e condenação que as pessoas com vida pouco
promissora tenham direito a vida neste mundo:

[…] diante do escarniçamento dos garotos, ficou a pensar na cruel e abominável lei da
luta pela sobrevivência e, conquanto aquelas crianças fossem ignóbeis, não pode
impedir-se de interessar-se pela sorte delas e de acreditar que melhor fora, para elas,
que suas mães não as tivessem posto no mundo (Huysmans, 2011, p. 233).

Quando a humanidade veio à existência, só havia a natureza com suas belezas naturais: as
águas do mar, dos rios, dos oceanos; a terra, com as suas maravilhas como as árvores; as
plantas; os animais; as aves; e os peixes. Estas belezas não são criação do homem mas sim são
obras da própria natureza sob ordem divina, as quais, de acordo com a crença religiosa e que
podemos ler nos seus textos sagrados (como a Bíblia em Gênesis, capítulo 1) foram criadas não
apenas para dar beleza à natureza, mas, segundo a ordem da criação, para tornar possível, ou
seja, para criar condições para a existência da última criação – o próprio homem. Ao nascer o
homem, há haviam sido criadas condições naturais para o seu crescimento saudável.

Portanto, a existência do homem no mundo não é resultado das suas ações. Ela é um direito
natural. Como um direito natural, não se pode prever a qualidade de vida e o destino da criança
que está ainda no ventre de sua mãe para decidir sobre o seu nascimento. Ou seja, evitar o
nascimento da criança porque não terá uma vida promissora, ou porque sua família não terá
condições suficientemente estáveis para cria-la é uma contraposição ao direito natural à vida.
Isso demonstra uma misantropia.

Desde a sua criação, a humanidade foi, e continua ser, sempre responsável pela sua própria
prosperidade ou destino no mundo. Os avanços (e os retrocessos) que se registam no mundo, os
quais têm determinado a qualidade e o estilo da vida da humanidade, e por conseguinte, dividi-
la em grupos sociais, sim, esses são resultados da acção dos homens. E alguns desses homens
não tiveram uma vida promissora, ou ainda, não nasceram de famílias com condições
suficientemente estáveis para o seu sustento. Não houve preferência de que eles não deviam ter
nascido porque não tinham vida promissora.

Se a vida é um direito natural, Des Esseintes, contudo, condiciona esse direito a garantia de
uma vida promissora e, para ele, é viável impedir o nascimento daqueles que já foram
concebidos só porque não à indicação de que seu futuro será sempre um mar-de-rosas. Des
Esseintes demonstra não só sua contraposição ao direito natural à vida, como também o seu
desprezo pelo mundo.
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4.3. Preferências pelo artificial


No capítulo viii, Des Esseintes estabelece uma relação analógica entre as flores da
horticultura e as categorias da sociedade. Ele distingue entre: (1) as flores pobres e canalhas,
flores de pocilgas, por exemplo o goivo; (2) flores pretensiosas, cujo único lugar são os Cache-
pots, por exemplo, a rosa; e (3) as flores de alta linhagem, como: as orquídeas, as flores
exóticas exiladas em París e as flores burguesas (Huysmans, 156). Nesta analogia, Des
Esseintes manifesta sua preferência pelo artificial sobre o natural, uma das atitudes que
Mcguinness considera como “definidoras do decadentismo” (Mcguinness, 2011, p. 55).

O mundo de Des Esseintes é um mundo artificial: abstrato e descontextualizado, cheio de


artefactos e objectos refinados. Sua lógica se alcança num extremo de perversão decadente no
capítulo viii sobre as flores tropicais. Insatisfeito com flores artificiais, Des Esseintes, escolhe
flores verdadeiras que imitam as artificiais, invertendo a relação entre o natural e o artificial, a
cópia e o original (idem). Sua influência dominante foi Baudelaire, para quem a natureza
levava os homens a se matarem e se brutalizarem; a própria autoridade e civilização que
preservavam os valores humanos eram artificiais: as religiões, as leis, os códigos morais.

4.4. A pansexualidade
Huysmans dedica o capítulo ix de Às avessas a outras formas de perversão, desta vez ligada
àquilo que Eugen Weber, em França fin-de-siècle, chamou de “apetites do baixo ventre” e
classificou a competição na busca de sua satisfação como a “forma mais aguda” do carácter do
fin-de-siècle (Weber, 1988, p. 20). Esta forma de perversão – que, segundo Weber, criou uma
preocupação na literatura, tendo dominado as publicações de autores como Émile Zola,
Alphonse Daudet, Aurélien Scholl, Octave Mirbeau, entre outros – chegara a manifestar-se de
formas que ultrapassa o carácter de prostituição, tendo assumido formas de pansexualidade.

O pansexualismo, segundo Silva (2019, p. 209) “diz respeito a uma atração sexual entre
pessoas que independe do sexo ou da identidade de gênero”. De acordo com Roudinesco e
Plon, o termo pansexualismo, surgiu após a publicação, em 1905, dos Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade (Roudinesco & Plon, 1998, p.567). Pansexual é, de acordo com Ribeiro,
aquele que denota, demonstra ou abarca o sexo em todos os seus aspectos e/ou diferentes
formas. Aquele ou aquela que se sente atraído por quaisquer pessoas; pessoa que mantém
relaxões sexuais com pessoas de qualquer sexo.

Em Às avessas, o pansexualismo aparece a dominar as experiências imaginadas por Des


Esseintes, nas piedosas leituras dos romances de Dickens. Ele faz estas leituras na sua casa de
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Fontenay, para distrair-se das intérminas horas do seu tédio, do qual não conseguira distrair-se
com as suas obras de arte (Huysmans, 2011, pp. 166-167). Estas leituras evocam recordações
carnais de amantes (Pags. 167 – 168), reforçadas pelo sabor de deliciosos bombons –
“bombons inventados por Siraudin e designados pelo ridículo nome de “Pérolas dos Pirineus”
eram uma gota de perfume […] de essência feminina cristalizada no torrão de açucar” (Pag.
168) –. Neles emergem as figuras de uma acrobata americana miss Urania; de uma morena
ventríloqua, que conhecera num café-concerto e de um rapaz que perturbava Des Esseintes,
para além de muitas outras “mulheres cujos atrativos haviam sido menos falaciosos e seus
prazeres menos limitados” (pag. 171).

Em cada uma destas três figuras que emergem nas recordações carnais de Des Esseintes,
Huysmans retrata diferentes paixões e atitudes que revelam as formas de manifestação da
Pansexualidade. Esta pansexualidade de Des Esseintes manifestava-se de formas diferentes: o
travestismo e a efenimação; a prostituição e pederastia

a) O travestismo e a efeminação
Na imaginação de Des Esseintes com a acrobata americana manifesta-se, por algum
momento, o travestismo – “adopção por certos indivíduos da indumentária e das atitudes
sociais do sexo oposto”(Ribeiro, 2018). Este travestismo verificou-se pelo “uranismo” da
americana, e pela consequente efeminação de Des Esseintes.

“[…] singulares concepções lhe ocorriam; à medida que admirava a sua agilidade e
força, via produzir-se, nela, uma artificial mudança de sexo; suas momices graciosas,
seus dengues de fêmea iam se apagando mais e mais, enquanto se desenvolviam, no
lugar deles, os encantos ágeis e vigorosos de um macho; numa palavra, após ter sido, à
principio, mulher, e em seguida, após ter hesitado […], ela parecia resolver-se,
precisar-se, tornar-se completamente homem (Huymans, 2011, p.169)”.

Efeminar (depreciativo para homens) significa perder ou fazer perder as características


tradicionalmente consideradas masculinas para adoptar outras geralmente associadas ao sexo
feminino (Ribeiro, 2018). Des Esseintes, ao ver, na sua imaginação, o travestismo da miss
Urania a aparecer mudar de sexo, tornar-se homem, “acabou ele por experimentar a impressão
de efeminar-se e cobiçou decididamente a possessão daquela mulher” (pag. 170).

b) A Pederastia
A outra forma de perversão de Des Esseintes é a homossexualidade pederástica que
manifesta-se quando ele depara-se com o rapaz que lhe pediu o caminho mais curto para
chegar à “rua de Babilônia” (Huysmans, 2011, p. 174).

Pederastia é uma das variações da homossexualidade, envolvendo, neste caso, relações


homossexuais entre homens adultos e rapazes mais jovens. Segundo afirmam Roudinesco e
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Plon, no seu dicionário de psicanálise, a homossexualidade constitui desde séculos parte das
“práticas sexuais anormais, demoníacas, desviantes, bárbaras e altamente reprovadas pela
Bíblia, por Deus, pelos profetas, pela Igreja* e pela justiça dos homens” (1998, pp. 350-351) e
que na tradição judaico-cristã infligia-se duras perseguições físicas e morais aos que eram
acusados de se entregar a ela e de transgredir as leis da família.

Babilônia, nome da cidade capital do antigo império Babilónico, é um termo de origem


hebraica que significa “Grande confusão”. Para além de ter sido usado como instrumento de
castigo divino contra o reino de Judá em 598 a.C, Babilônia é, desde séculos, conhecido como
símbolo de degradação moral, idolatria e materialismo; uma cidade de falta de ordem; de
confusão. A referência de “rua Babilôncia” no encontro de Des Esseintes com o moço pode
revelar, portanto, um simbolismo de manifestação de todo tipo de imoralidades, incluindo
práticas sexuais consideradas anormais como a pederastia. Em Des Esseintes desenvolve uma
paixão pelo moço (175), uma atitude típica de pederastia.

Mcguinness afirma, baseando-se no biógrafo de Huysmans, Robert Baldick, que a


prostituição retratada por Huysmans não começa em Às avessas; ela é retratada desde o seu
primeiro romance “Marthe, Histoire d’une fille”, publicado em 1876, em que Huysmans trata
da “prostituição em boldéis autorizados”, ou chamados ‘matadouros de amor’ (Mcguinness,
2011). O retrato de, logo, destas formas perversas e sendo de forma recorrente, conforme
afirma Mcguinness, revela a diversidade de perversões ligadas com relacionamentos carnais do
fim do século e consubstancia a avaliação de Eugen Weber (1988, p. 20) quando considera os
“apetites do baixo ventre” como a forma mais aguda da perversão do século XIX. Isto revela-
nos, portanto, que as perversões do fin-de-siecle, que denotam o carácter decadentista da
literatura, não se restringiam aos relacionamentos carnais. Elas perpassam os limites da visão
psicanalítica sobre a perversão, conforme podemos constatar nas perversões demonstradas pelo
protagonista de Huysmans em Às avessas.

5. Considerações finais
As últimas décadas do século XIX são descritas como anos do nascimento da modernidade
e de prosperidade, resultantes de uma série de avanços tecnológicos, políticos e ainda
científicos que transformaram França num solo fértil para massificação cultural. Com estes
avanços, o homem mergulhou-se numa profunda crise de identidade social e moral,
manifestando-se por uma série de comportamentos moralmente negativos, dentre eles, a
perversão.
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A perversão é um dos males que configuram dos temas tratados pelo Decadentismo, um
movimento literário que surge em oposição ao naturalismo e parnasianismo e ao romantismo.

No romance Às avessas, Huysmans demonstra, através do seu protagonista o Jean Floressas


des Esseintes, que a perversão do fim do século XIX havia atingido níveis alarmantes, tendo
chegado a manifestar-se em diversas práticas consideradas demoníacas e repugnantes. Tais
formas incluíam: o incesto; a misantropia; a prostituição; e pansexualidade, manifestando-se
em formas como o travestismo e efeminações, e pederastia, bem como sua preferência pelo
artificial sobre o natural, uma das atitudes definidoras do decadentismo.

Tais comportamentos despertaram a atenção na literatura da época e até posterior, tendo


dado um impulso para o surgimento do Decadentismo, movimento que, opondo-se ao
naturalismo e romantismo, chegou a se reflectir não apenas na França, mas noutros cantos da
Europa para onde o fenómeno ia se expandindo.

6. Referências Bibliogáficas
Biscaia, M. C. V. (2012) Beleza, Perversidade, Vício e Doença” — Um Passeio pela Literatura
do mal de Mário de Sá-Carneiro [tese de doutoramento]. Digital Library. Theses and
dissertations. São Paulo: USP. doi:10.11606/T.8.2012.tde-28082013-094108.
Disponível em https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8150/tde-28082013-094108/
en.php. Acesso em 17/09/2022.

Huysmans, J-K, (2011). Às avessas – [tradução de José Paulo Paes]. São Paulo: Penguin

Mcguinness Patrick (2011). Introdução. Às avessas – [tradução de José Paulo Paes]. São Paulo:
Penguin

Moretto, F. M. L. (1989). Caminhos do Decadentismo Francês. São Paulo: Editora Perspectiva

Oliveira, L. C. De, (2014). Às avessas e a crítica de arte de J-K. Huysmans. Palimpsesto:


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vol.13 no 18. pp. 171-182. Instituto de Letras de UERJ. doi:10.12957/palimpsesto.
Disponível em https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/palimpsesto/article/view/
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https://www.gestaoeducacional.com.br/decadentismo-o-que-e/. Acesso em 7/09/2022

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https://www.dicio.com.br . Acesso em 15/09/2022;

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Silva, R. C. (2019): Eros às avessas: pansexualismo e dessublimação repressiva. Revista


Dialectus. Revista de Filosofia. número 14 pp 198–210. (Jan-Jul 2019)
https://doi.org/10.30611/2019n14id41624

Weber, E. J. (1988). França Fin-de-siècle – [Tradução de Rosaura Eichenberg]. São Paulo:


Companhia das Letras.

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