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Análise do Consílio dos deuses

Início da narração (estância 19): «in medias res», à semelhança das


epopeias greco-latinas.

. A ação de Os Lusíadas não é narrada cronologicamente. De facto, o


poeta inicia a narração quando a viagem de Vasco da Gama à Índia se
situa já no Oceano Índico, perto da costa de Moçambique.
   Esta técnica narrativa, um traço das antigas epopeias, designa-se «in
medias res», ou seja, a narração é iniciada a meio dos acontecimentos.

. O início da viagem e os acontecimentos que ocorreram até ao ponto em


que a narração é iniciada na estância 19 serão contados
posteriormente, num recuo temporal (analepse), pelo próprio Vasco da
Gama.

. Espaço:
- Oceano Índico;
- «largo» (espaço marítimo vasto);
- ondas «inquietas» (ondulação ligeira - personificação);
- os ventos brandos, tranquilos, serenos (personificação: «respiravam» -
v. 3);
- as velas «inchadas» pelo vento, fazendo movimentar as naus, que vão
cortando as ondas;
- a espuma branca (causada pela ondulação e pela deslocação das
naus).
Em suma, a viagem dos Portugueses decorre num ambiente calmo,
tranquilo, sereno, com os ventos a «empurrarem» as naus.

. Plano estrutural: viagem.

. Há uma estreita ligação entre esta estância e a seguinte (20), expressa


pelo advérbio «já» e pela conjunção subordinativa temporal «quando», os
primeiros vocábulos de cada estância - aquele correspondente à oração
subordinante e este à subordinada adverbial temporal -, a marcarem a
simultaneidade dos dois acontecimentos – a viagem e o consílio. Note-se
que a frase iniciada na estância 19 só termina no verso 4 da estância
20.

. Uso do pretérito imperfeito e do gerúndio: o decurso e a continuidade


da viagem.

. 1.ª parte (est. 20-23) - Introdução – Início do consílio: convocação


dos deuses por Júpiter, sua viagem e chegada.

. Plano: mitologia (o consílio dos deuses).

. Local de realização do consílio: Olimpo (cadeia de montanhas


situada entre a Macedónia e a Tessália que era considerada a morada
dos deuses).

. Convocatória e presidência: Júpiter.

. Mensageiro: Mercúrio, o mensageiro dos deuses, leva a mensagem de


Júpiter às divindades.

. Objetivo do consílio: decidir se os Portugueses vão ou não chegar à


Índia («Sobre as cousas futuras do Oriente» - estância 20, v. 4 – isto é, o
futuro do Oriente).

. Participantes: os deuses que governam os Sete Céus, de Norte a Sul e


Este a Oeste.

. Retrato dos deuses:


- governam / comandam a vida dos homens («Onde o governo está da
humana gente» - est. 20, v. 2);
- governam os Sete Céus – todo o céu («deixam dos Sete Céus o
regimento, / Que do poder mais alto lhe foi dado» - est. 21, vv. 1-2);
- provêm de todo o cosmos, dos diferentes pontos cardeais (Norte a Sul,
Este a Oeste), mas juntaram-se no Olimpo num instante («Ali se
acharam juntos, num momento» - est. 21, v. 5);
- governam todo o céu, toda a terra e todo o mar só com o pensamento
(«Alto poder, que só c’o pensamento / Governa o Céu, a Terra e o Mar
irado» - est. 21, vv. 3-4);
- são, em suma, omnipotentes e muito poderosos.

. Retrato de Júpiter:
- é o Pai dos deuses («Estava o Padre ali» - est. 22, v. 1);
- é o presidente do consílio;
- é sublime e digno;
- é o senhor do raio;
- está sentado num trono faiscante de estrelas;
- tem um gesto alto, severo e soberano (tripla adjetivação);
- «Do rosto respirava um ar divino»;
- exala um ar que transformaria um corpo humano num ser divino;
- tem um cetro e uma coroa resplandecentes, feitos de uma pedra mais
luminosa que o diamante (comparação hiperbólica);
- possui um tom de voz «grave e horrendo» (dupla adjetivação), isto é,
que impõe respeito e temor;
- ocupa um lugar privilegiado, mais elevado (senta-se num lugar mais
elevado, superior ao dos demais deuses; repetição do adjetivo «alto»:
«poder mais alto», «alto poder», «gesto alto»);
- símbolos: os raios de Vulcano, a coroa e o cetro (símbolos de poder).

- poder
- superioridade
- severidade
- distinção
- majestática dignidade

. Chegada e disposição dos deuses no consílio:


- Júpiter ocupa o lugar mais elevado;
- os restantes deuses eram distribuídos hierarquicamente, por ordem de
importância, de acordo com as suas dignidades («Como a Razão e a
Ordem concertavam»).

. Nestas estâncias, está presente a luminosidade característica das


entidades divinas, visível nos nomes e adjetivos do campo lexical
de luz: «estrelas», «cristalino», «rutilante», «clara», «diamante»,
«luzentes», «ouro», «perlas», etc.

. A intenção de Camões é caracterizar os deuses como seres superiores,


respeitados e temidos pelo Homem. De facto, os deuses apresentam-se
como seres imponentes no aspeto e nos ambientes que frequentam.
Esta imponência concretiza o objetivo do maravilhoso n’Os Lusíadas:
uma alegoria de enaltecimento dos feitos portugueses, que, por ação
dos deuses olímpicos, atingiram uma grandeza transcendente. A
sublime majestade dos deuses olímpicos acaba por se refletir na
grandeza e no caráter sublime dos feitos dos Portugueses.

. 2.ª parte (estâncias 24 a 29). Exposição – Início do consílio


propriamente dito.

a) Discurso de Júpiter (est. 24 a 29).

. Introdução (est. 24):


- Destinatário do discurso: os deuses («Eternos moradores do luzente» -
perífrase: o Olimpo).

- Caracterização dos Portugueses: «grande valor da forte gente» (est. 24,


v. 3).

- Profecia dos Fados (decisões a que nem os deuses podem opor-se e


contrariar): os Portugueses tornar-se-ão mais famosos do que os povos
da Antiguidade – Assírios, Persas, Gregos e Romanos -, isto é, os seus
feitos farão esquecer os feitos e as glórias desses povos.

- A sumária alusão aos Portugueses, ao seu valor e valentia, e a


referência à profecia dos Fados permitem antecipar a posição favorável
de Júpiter relativamente à empresa lusitana.

. Desenvolvimento (est. 25 a 28): Argumentos de Júpiter:

- Os feitos passados dos Portugueses: o valor, a coragem e a força


demonstrados na luta e nas grandes vitórias alcançadas contra os
Mouros (est. 25, v. 2) durante a Reconquista, contra os Castelhanos
para assegurar a independência (est. 25, v. 5) e nas guerras contra os
Romanos, capitaneados por Viriato e por Sertório (est. 26), general
romano («peregrino» = estrangeiro) que se uniu aos lusitanos contra o
seu próprio povo após a morte de Viriato e que fingia ter por conselheira
uma corça que o acompanhava e que teria poderes de adivinhação.
Todos estes sucessos foram obtidos em inferioridade numérica e
desproporção de forças («Cum poder tão singelo e tão pequeno, / Tomar
ao Mouro forte e guarnecido» - antítese – est. 25, vv. 2-3), apenas com a
ajuda divina («favor do Céu sereno» - est. 25, v. 6).

- Os feitos do presente (advérbio de tempo «agora»):


. a coragem e a ousadia de navegar por mares incertos («duvidoso mar» -
est. 27, v. 2) desconhecidos («Por vias nunca usadas» - est. 27, v. 3), em
frágeis embarcações («num lenho leve» - metonímia - est. 27, v. 2), sem
temer a força dos ventos («não temendo / De Áfrico e Noto a força» - est.
27, v. 4)
. a persistência dos Portugueses, apesar do tempo de viagem já
decorrido («Que, havendo tanto já que as partes vendo / Onde o dia é
comprido e onde breve» - est. 27, vv. 5-6), do cansaço («A gente vem
perdida e trabalhada» - est. 28, v. 6) e do sofrimento e das dificuldades e
perigos enfrentados durante a viagem («duro inverno», «ásperos perigos»,
«climas e céus experimentados», «furor de ventos inimigos» - est. 28 e
29).

- Os feitos do futuro – profecia: o Fado já havia determinado que


detivessem, por longo tempo, o domínio do Oriente («Prometido lhe está
do Fado eterno, / Cuja alta lei não pode ser quebrada, / Que tenham
longos tempos o governo / Do mar que vê do Sol a roxa entrada.» - est.
28, vv. 1-4) e nada nem ninguém o pode contrariar («Cuja alta lei não
pode ser quebrada» - est. 28, v. 2).

. Conclusão - Decisão de Júpiter: por estes motivos e como prémio de


terem já vencido tantos perigos e de «tanto furor de ventos inimigos»,
Júpiter determina que os marinheiros lusos sejam «agasalhados» na
costa africana, para seguirem o seu caminho até à Índia, isto é, que os
Portugueses sejam recebidos como amigos e ajudados na costa
africana, no restabelecimento das forças e das naus, para que a viagem
possa prosseguir (estância 29).

. 3.ª parte (est. 30 a 40) – Conflito: reação dos deuses ao discurso de


Júpiter.

1) Divisão de opiniões entre os deuses: uns opõem-se à atitude favorável


de Júpiter, outros defendem a posição do pai dos deuses (4 versos
iniciais da est. 30). A forma como os deuses se envolvem na discussão
revela a importância que atribuem ao assunto, isto é, o sucesso ou
insucesso da empresa dos Portugueses, o que lhes confere um estatuto
especial.

2) Posição de Baco (2.ª metade da estância 30 à estância 32): oposição à


decisão de Júpiter, isto é, à empresa dos Portugueses.

a) Argumentos de Baco (em discurso direto):


- o receio de que os seus feitos no Oriente sejam esquecidos caso os
Portugueses aí cheguem (est. 30, vv. 5-8);
- o receio de que a chegada dos Portugueses («gente fortíssima de
Espanha» - est. 31, v. 2) e as suas «novas vitórias» (est. 31, v. 5) façam
desaparecer o seu renome, a sua glória e a sua fama, conforme profecia
dos Fados (estância 31);
- o deus dominou a Índia («já teve o Indo sojugado» - metonímia – est.
32, v. 1) e foi, por isso, cantado pelos poetas, os que «bebem a água de
Parnaso» (est. 32, v. 4); com a chegada dos Portugueses, receia que o
seu nome glorioso, cantado pelos poetas, caia no esquecimento
(metáforas dos versos 5 a 7 da estância 32).

b) Simbolismo de Baco:
- as dificuldades e obstáculos enfrentados pelos Portugueses durante a
sua navegação;
- os interesses prejudicados de mouros e outros indígenas e mesmo de
Portugueses cuja posição social poderia ser afetada.

3) Posição de Vénus (est. 33 e 1.ª parte da est. 34): Defesa e apoio à


viagem dos Portugueses.

a) Razões de Vénus:
1) a simpatia que sente pelos Portugueses («Afeiçoada à gente Lusitana»
- perífrase – est. 33, v. 2) porque são um povo semelhante ao seu amado
povo romano (descendente de Eneias, seu filho, nascido em Tróia, que
seguiu para Itália, depois da destruição daquela cidade pelos Gregos e,
segundo Virgílio, foi o progenitor dos Romanos), proximidade essa
visível em aspetos como:
i) a grande valentia e fortuna («Nos fortes corações, na grande estrela» -
est. 33, v. 5) mostradas na guerra no Norte de África («terra Tingitana» -
est. 33, v. 6);
ii) as semelhanças a nível da língua (entre o português e o latim) – est.
33, vv. 7-8;
- a certeza de que o seu nome e o culto do Amor, que ela simboliza,
serão sempre celebrados, no Oriente, em todos os lugares onde os
Portugueses chegarem (est. 34, vv. 1-4).

b) Vénus simboliza a civilização ocidental e o seu desejo de expansão no


Oriente.

c) Esta disputa entre Baco e Vénus significa um conflito de interesses:


de um lado, a inveja, o despeito, o receio de perda de influência; do
outro, a simpatia e o desejo de glória. Ou seja, os deuses evidenciam, na
sua discussão acalorada, sentimentos bem humanos.

4) Ponto da situação do consílio (2.ª parte da est. 34 e est. 35):


a) Baco teme a infâmia resultante da perda de influência no Oriente;
b) Vénus ambiciona as honras e a glória que os portugueses lhe
poderão proporcionar;
c) A divisão dos deuses no apoio às duas partes gera um tumulto
comparável a uma tempestade gigantesca na floresta e nas montanhas
(além da comparação, destaque para as aliterações em «r», «f», «t»,
sugerindo o ruído da tempestade; para a adjetivação, para as sensações
visuais e auditivas, para a hipérbole, todos estes recursos sugerindo a
sua violência).

5) Posição de Marte (est. 36 a 40): toma o partido de Vénus e dos


Portugueses.

a) Razões o apoio de Marte:


- o «amor antigo» que nutria por Vénus, também ela defensora da causa
lusitana («ou porque o amor antigo o obrigava» - est. 36, v. 3);
- o merecimento da «gente forte» (est. 36, v. 4).

b) Descrição de Marte: a força, a majestade e imponência,


características evidenciadas pelo seu aspeto, pelas atitudes e pelo efeito
que aquelas têm na natureza e nos próprios deuses:
- a adjetivação expressiva, dupla e tripla por vezes: «merencório»,
«medonho e irado», «armado, forte e duro», «penetrante», etc.;
- a armadura de guerreiro e os símbolos: o escudo, o elmo com viseira
de diamante, o bastão;
- as suas atitudes de firmeza, determinação e revolta, de um guerreiro
forte (atentar na adjetivação expressiva):
- levanta-se diante dos deuses (para se destacar, ser visto, avançar em
direção a Júpiter);
- atira o escudo para trás, «medonho» e «irado» (para poder falar
melhor);
- levanta a viseira do elmo «mui seguro» (para poder ver melhor);
- coloca-se diante de Júpiter, «armado», «forte» e «duro» (para mostrar
que não o teme);
- dá uma pancada tão violenta com o bastão que Apolo perde um pouco
a cor (para chamar a atenção) [«O Céu tremeu, e Apolo, de turvado, /
Um pouco a luz tremeu, como infiado;» - hipérbole: realça a violência e a
fúria da pancada do bastão de Marte no chão sagrado do Olimpo, a tal
ponto que o próprio Céu tremeu e o Sol (ambos personificados) até
perdeu a luz].

c) Argumentos de Marte (em discurso direto):


- o mérito e a bravura dos portugueses, gente guerreira (Marte é o deus
da guerra), reconhecidos pelo próprio Júpiter no seu discurso [«esta
gente (…) / Cuja valia e obras tanto amaste» - est. 38, vv. 3-4];
- a inveja e a falsidade das razões apresentadas por Baco [«Não ouças
mais (…) / Razões de quem parece que é suspeito» - est. 38, vv. 7-8;
estância 39];
- é sinal de fraqueza voltar atrás numa decisão tomada («Da
determinação que tens tomada / Não tornes por detrás, pois é
fraqueza / Desistir-se da cousa começada» - est. 40, vv. 2-4).
d) Conclusão: Marte solicita a Júpiter que dê cumprimento à sua
determinação de ajudar os Portugueses, ordenando a Mercúrio, o
mensageiro, que indique aos nautas lusos a terra onde podem colher
informações sobre a Índia e restabelecer-se da viagem, retemperando
forças.

                Observe-se como Camões faz surgir Marte diante de Júpiter,


com uma força e autoridade quase iguais à do pai dos deuses. Tal
sucede não apenas por se tratar do deus da guerra. De facto, a intenção
do poeta era apresentar Marte como o símbolo da força, da coragem, da
vitória, um símbolo da força dos Portugueses (povo «que a Marte tanto
ajuda»), do seu amor à luta, das suas vitórias passadas e futuras. Note-
se, por outro lado, que, após o seu discurso, favorável aos Portugueses,
nenhum deus se atreveu a contrariá-lo e o próprio Júpiter consentiu no
que o deus da guerra disse.

. 4.ª parte (est. 41) – Desenlace:


- Júpiter assente no que Marte disse («Como isto disse, o Padre
poderoso, / A cabeça inclinando, consentiu / No que disse Mavorte
valeroso» - est. 41, vv. 1-3);
- Júpiter encerra o consílio e os deuses regressam aos seus domínios.

. Narrador

                O narrador do episódio é Camões, um narrador


heterodiegético, pois narra na terceira pessoa uma história em que não
tomou parte, da qual não foi personagem.

. Glorificação dos Portugueses no episódio

                Este episódio glorifica e engrandece os feitos dos


Portugueses, desde logo porque o próprio Júpiter elogia a coragem e a
ousadia do povo luso.
                Por outro lado, a referência às descobertas e aos sofrimentos
e dificuldades enfrentados engrandece também os Portugueses, tendo
em conta o facto de o consílio se realizar unicamente para tomar uma
decisão sobre o apoio a dar aos navegadores que procuram chegar à
Índia.
                Os próprios receios e oposição de Baco engrandecem o feito,
já que uns simples humanos conseguem provocar o temor e a inveja de
um deus.

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