Você está na página 1de 9

Capítulo 1 – Correntes.

*Splash*
— ACORDA MALDITO!
Um grito e balde d’água retiraram Hermes de seu profundo descanso.
O susto o fez espernear em cima daquele frio piso de madeira. Ele se virou,
desnorteado, na direção a qual havia vindo, tanto o grito, quanto a água.
Avistou um grupo de pessoas. Miseráveis, sujas, doentes. Velhos, mulheres,
homens e crianças.
Todos olhavam para ele inexpressivos. O ambiente, porém, transparecia o
sentimento de tristeza e exploração.
— Levanta daí, branquelo! — Um homem de aparência rude e com uma
armadura de couro grunhiu entre dentes para Hermes, que repousava recolhido
contra as grades no fundo daquela gaiola enorme de madeira.
Aquelas pessoas seguiam atravessando a curta entrada da jaula. Todas ligadas
por uma corrente, dos pés e mãos de um, aos pés e mãos do outro, e assim por
diante.
Hermes tentou adquirir algum discernimento daquela situação. Não tinha ideia
de como havia vindo parar ali. Reconheceu o local com uma espécie de cela de
madeira.
Não é deixado com muito tempo para pensar. Um puxão em seus braços e
pernas o fazem perceber que também estava preso às mesmas correntes as
quais estavam os outros.
O bruto encara impacientemente o homem de cabelos brancos, rangendo os
dentes.
Hermes olha para o lado, percebendo então que estava numa carroça.
— Onde eu estou, mortal? — O rapaz pergunta para o bruto, com um olhar
despreocupado.
Devido ao tom, o homem sentiu que estava sendo inferiorizado. A fúria o
tomou.
Um mero escravo, como poderia?
— Esse desgraçado! — Ele começa a entrar na gaiola.
Hermes o encara confuso.
O homem então puxa de sua cintura um chicote. Um chicote de couro, fino e
delgado.
O rapaz não parece amedrontado. O homem range os dentes e força o aperto
no cabo do chicote, o erguendo no alto.
*Schlap*
Uma chicotada acerta Hermes direto em sua face, o fazendo virar o rosto.
Ele arregala os olhos, surpreso.
“Dor?” O choque toma conta de seu rosto.
O homem não dá tempo de se virar, e segue o golpeando.
*Schlap**Schlap**Schlap*
Hermes eleva os braços na frente do rosto, tentando evitar os golpes.
Não adianta.
Sua boca se contorce com a dor. Seus olhos se fecham.
Ele aperta o punho e flexiona todos os músculos que consegue em seu corpo, os
forçando, como se se preparasse para algo. Nada acontece.
Seus olhos se abrem, ainda mais chocados que antes.
“Ma-mas o que aconteceu com os meus-” Ele não tem espaço para refletir.
As chicotadas continuam.
Hermes range os dentes, se recolhendo no chão. Indefeso.
A sensação de ardência piora a cada segundo, devido à água que ainda escorria
por seu corpo.
— Hump- Hak — O soldado ruge, utilizando cada vez mais força em seus
golpes.
— Ghahah- Gah- Argh- — Hermes gemeu de dor, agonizando no chão molhado
de madeira.
O sangue do rapaz começara a voar dentro da gaiola, arremessado tanto pelos
impactos, quanto pelo ensopado chicote.
Hermes estava atônito. Sua mente e corpo estavam um caos.
De tanto ranger os dentes para suportar a dor, sua boca também começou a
sangrar.
O homem pareceu se divertir com o que estava fazendo.
Gritos foram escutados do lado de fora da carroça.
Hermes não conseguia escutá-los.
Alguém entrou na carroça de maneira apressada.
— HUMP!
*Pump*
O chicote cessou de repente.
O soldado estava no chão, uma marca de punho jazia vermelha em sua face.
— Você quer morrer? — Um homem alto e intimidante de armadura negra
perguntou em um tom raivoso.
— Ma-mas capitão Ixíon, ele- — O homem no chão faz uma tentativa de
reclamar, apontando para Hermes que se retorcia no chão com dores.
— ENTÃO VOCÊ QUER MORRER!? — Ixíon repete a pergunta de maneira muito
mais agressiva. — VOCÊ QUER MATAR A MERCADORIA DO LORDE? — Ele grita
cuspindo indelicadamente no rosto de seu subordinado.
— Na-Não senhor, eu só- — O homem no chão, amedrontado, se recolhe no
canto da cela. Tal qual havia feito Hermes anteriormente.
Íxion não o dá chances.
*PUMP**Crack*
Um soco encontra seu nariz, claramente o quebrando a medida que o som ecoa
na espaçosa carroça.
O capitão segura seu subordinado pelo colarinho, o arrastando para a entrada
da carroça, e então o arremessa de lá para fora.
Ele se vira, e encontra Hermes no chão. Tremendo com a ardência em suas
costas.
— Humpf- Tá vivo. — Ele reflete em voz alta, seu rosto rígido mas relaxado.
Se aproximando do rapaz, ele agacha ao seu lado. Segurando o queixo do rapaz
que encarava o chão, chocado, ele tenta erguê-lo. Hermes resiste.
— Levanta, senão eu mesmo finalizo o trabalho. — Íxion fala em um tom
ameaçador.
Hermes não vê alternativas.
Em meio à dor e ardência de suas costas, e a fraqueza em suas pernas, ele se
força a levantar. Suas pernas bambeiam, e ele é segurado pelo pescoço por
Íxion.
Este o arrasta, do mesmo jeito que fez com o soldado de antes, e então o joga
para fora, de novo, do mesmo jeito que fez antes.
O rapaz cai de cara num chão lamacento, manchando toda sua fronte. Seu
rosto, parcialmente afogado em lama, força-se a se levantar.
E então, ele consegue, com ajuda do mesmo que o havia posto naquela
situação, ficar de pé.
Sua visão contempla, finalmente, o ambiente o qual se encontra.
Inúmeras pessoas, tão miseráveis quanto as anteriores, todas enfileiradas em
grupos.
O lugar é uma espécie de colina gramada, com uma estrada de lama ao centro
em direção à subida. O sol não parecia brilhar tanto. Provavelmente falta pouco
para que se ponha.
Hermes olhou em volta, ainda tremendo, e constatou o que já sabia. Não tinha
ideia do que estava acontecendo.
— Vai, vai pra fila. — Íxion ordenou, empurrando rudemente o rapaz pelas
costas.
A dor do toque fez com que Hermes nem sequer relutasse. Ele seguiu andando
até a frente de uma das fileiras mais próximas. Íxion ficou para trás,
conversando com alguns outros homens de armadura.
Hermes continuou olhando em volta, seu corpo recolhido, suas costas ardiam
com feridas abertas.
Ele se sentiu surpreso e ao mesmo tempo confuso. Eram muitas pessoas
acorrentadas. Sua mente, de repente, teve um estalo.
— Isso é um caravanado de escravos!? — Ele pergunta com os olhos
arregalados.
“Mas como eu vim parar aqui?” Sua mente confusa busca respostas que muito
provavelmente não o ajudariam em nada. “Eu tava no Olimpo e então-”
— Garghh!
Enquanto tenta pensar mais sobre o assunto, sente uma dor excruciante
penetrar sua cabeça. Como se algo se abrisse e forçasse sua passagem dentro
de sua mente. Como se uma espada perfurasse o interior de seu crânio.
Em meio a respirações profusas, ele se acalmou, e então percebeu a dor indo
embora aos poucos.
Ele se lembra.
No topo da colina, pouco acima de onde todos estavam, havia uma espécie de
muros de madeira em formato circular cercando todo o local.
Não demora muito e um grupo de indivíduos desce de lá, se aproximando dos
soldados. Todos em vestes de panos e portando consigo, uma espada e um
chicote.
Um deles, o maior de todos, se aproximou de Íxion com um rosto sorridente.
Possuía cabelo apenas aos lados e uma falha enorme no topo de sua cabeça,
além de uma farta barba.
Eles se aproximam lentamente das fileiras de ‘mercadoria’ enquanto conversam
calmamente.
Quando estavam perto o suficiente, Hermes pôde ouvir parte de sua conversa.
— Dessa vez eu quem estou responsável pelas vendas. E com isso, os valores
também. — Íxion afirmou em um tom contente com um sorriso vanglorioso.
— Não pense que vai conseguir me enganar, imbecil! — O outro homem
responde com desdém. — Seu chefe já tentou e não conseguiu.
— Te enganar, Gérion? — Íxion pergunta, levantando a sobrancelha. — Eu
jamais faria isso. — Ele completa com um sorriso malicioso.
Gérion funga, sem perceber isso.
Íxion para na primeira fileira, e Gérion segue andando em frente a esta,
encarando e analisando cada uma das pessoas pelas quais passa.
Todos olhavam para o chão, evitando encarar de volta o ogro em sua frente.
Os homens que vieram com ele acompanham de longe a sua caminhada.
— Este aqui. — Gérion aponta para um rapaz de aparência forte.
Seus homens chegam e soltam-no, levando-o para longe.
— Este. — Novamente, aponta para um homem na fila.
Ele seleciona algumas pessoas, até que chega em um homem de aparência mais
saudável e forte.
Ele ergue o rosto, adotando uma cor pálida e uma expressão desesperada.
— Nã-Não! Por favor, eu não! — Ele implora, juntando as mãos.
Os homens de Gérion se aproximam enquanto este segue caminhando
paralelamente à fileira.
O rapaz esperneia, lutando contra os homens que o soltam das correntes e o
arrastam para longe. Ele grita em direção a Íxion, o chamando de chefe, e este
apenas ignora, observando Gérion andando de braços cruzados.
O homem foi levado em meio a socos e chutes, até que parasse de resistir.
Hermes encara tudo extasiado, observando de longe na segunda fileira.
Logo, Gérion contorna o fim da primeira fileira.
Hermes sentiu um calafrio.
“Eu preciso sair daqui!” Ele pensou.
Mas, percebendo a situação de seu corpo, e tomando consciência de todo o seu
entorno, viu que era suicídio.
Ele fechou os olhos, rangeu os dentes e flexionou todos os músculos de seu
corpo, os forçando. Nada aconteceu.
Ele sentiu como se estivesse sendo desobedecido. Seu corpo não fazia o que ele
estava ordenando.
Hermes deixou de resistir.
“Eu... Meu corpo... Eu virei um mortal?” Ele se pergunta, ainda sem querer
acreditar.
Hermes se viu sem saída.
— NÃO! MINHA IRMÃ! — Um garoto pequeno atravessou a fileira, correndo de
maneira desesperada em direção a Gérion, que segurava pelo braço uma jovem
garota.
O pequeno correu em direção a sua irmã que o encarava com temor.
— Não! — Ela gritou estendendo o braço.
*Schlap*
Um chicote acertou o garoto no rosto, o jogando no chão.
Gérion o encarava por cima com desdém.
E então, quando o menino se levantou, cobrindo parte de seu rosto que
sangrava.
O ogro sorriu para ele de maneira repugnante.
— Não se preocupe, pequeno. — Ele apertou o braço da garota ainda mais
forte, a fazendo gemer de dor. — Nós vamos cuidar muito bem da sua irmã.
Gérion lambeu os beiços de uma maneira nojenta. A menina olhou para ele
retorcendo os lábios e com os olhos cheios de lágrimas.
O garotinho se levantou de novo, e tentou pular na direção de Gérion, mas foi
parado pelos seus homens.
— NÃO! Não machuquem ele, por favor! — A menina implorou enquanto
tentava correr na direção do garoto.
Gérion a segurou no lugar, e então a puxou, fazendo ela olhar diretamente para
ele.
— Eu me preocuparia mais consigo, se fosse você. — Ele ri de maneira
assustadora.
A menina chora enquanto encara seu irmão sendo levado pelos homens. O
menino gritava, se debatendo e chamando pelo nome da garota.
Logo, ela também foi levada para longe.
Hermes encarava o chão, pensativo.
Suas costas ainda ardiam, mas já bem menos que antes.
— Este aqui está todo arrebentado! — Gérion gritou. — Eu vou querer
desconto.
Só então, Hermes percebeu que era a ele a quem as palavras se referiam.
— Não acho que ele vai conseguir trabalhar tão bem, chefe. — Um dos homens
de Gérion afirmou enquanto se aproximava com as chaves.
— Que trabalhar o que. — Gérion desdenhou. — Esse cabelinho dele me deu
uma coisa no meio das pernas! — A afirmação veio acompanhada de um riso
alto e escandaloso.
Hermes arregalou os olhos.
Não podia aguentar essa humilhação.
Logo que o homem o soltou das correntes, ele as segurou, pulando na direção
do ogro. Ele as enrolou em volta do pescoço do gigante.
Ele se assustou e começou a cambalear, segurando e puxando as correntes.
— ESSE FILHO DA- KUHAAK! — Gérion gritou com uma voz rouca, lutando
contra o aperto em seu pescoço.
O companheiro dele encarou boquiaberto, sem saber o que fazer.
As pessoas na fila fizeram o mesmo. Algumas pareceram assustadas, outras
pareciam torcer pelo rapaz.
Íxion começou a se aproximar com um rosto sério.
Gérion começou a socar Hermes no lado de sua cabeça, sem muito sucesso.
O rapaz havia se colocado completamente nas costas daquele gigante, o
impedindo de acertá-lo diretamente.
Hermes começou a apertar o pescoço de Gérion cada vez mais forte, cruzando
os braços com as correntes.
Íxion chegou.
Num movimento rápido, ele chuta o calcanhar de Gérion, que cai para trás
desequilibrado, esmagando Hermes. O rapaz revirou os olhos com o imenso
peso acima dele.
O aperto em seu pescoço se soltou e ele se levantou rapidamente.
— ESSE DESGRAÇADO! — Gérion gritou rangendo os dentes.
*PUMP**PUMP**THUMP**PUMP*
Toda a sua raiva foi transmitida a Hermes na forma de chutes e socos.
O rapaz estava indefeso no chão e pôde apenas se recolher, mais uma vez.
Hermes não tinha o que fazer.
Como um deus como ele havia acabado em tal situação?
Como poderia alguém como ele se sentir tão incapacitado tal qual naquele
momento?
Íxion puxou Gérion pelo ombro, o impedindo de continuar.
Este se virou com um olhar furioso e revoltado.
— Não antes de pagar, amigo. — Íxion afirmou em um tom sério.
Gérion encarou Íxion em meio a respiradas fundas, e então puxou seu ombro
como um bruto, dando as costas para ele.
Íxion olhou para Hermes no chão, e então acenou para o companheiro de
Gérion ao seu lado.
— Já que danificaram a mercadoria, vão ter que levar.
O homem não pareceu ter coragem de retrucar, apesar de claramente o querer.
Ele levantou Hermes com dificuldade, já que o rapaz era bem mais alto que ele
próprio.
Erguendo o rosto, Hermes encarou Íxion com um olhar mortal rangendo os
dentes.
O homem hesitou, dando uma pequena recuada com o tronco.
Ele sentiu algo nos olhos de Hermes. Algo ameaçador.
— Tire esse desgraçado daqui! — Ordenou para o rapaz que já o carregava com
dificuldade.
Íxion encarou os dois fazendo seu caminho para longe.
O soldado sentiu calafrios encarando as costas feridas de Hermes, e aquele
sangue seco escorrendo de cada ferida.
Ele sentiu como se, cada cicatriz daquela, fosse uma abertura pela qual um
monstro estava tentando escapar.
Tentou tirar o sentimento ruim de sua mente. Voltou para a ponta da caravana,
e esperou até que Gérion estivesse pronto para realizar o pagamento, querendo
sair logo daquele lugar.

........................
*PUMP**PUMP*
Dois socos acertaram Hermes diretamente na barriga. Ele se segurou para não
vomitar.
— Você achou engraçado, né? — Gérion pergunta irritado, e enfeita seu
questionamento com mais um soco. — *PUMP* KUH- Pular em mim daquele
jeito?! VOCÊ ACHOU ENGRAÇADO PORRA?!
Hermes estava sendo torturado a cerca de duas horas. Desde que Gérion havia
voltado de suas compras.

Você também pode gostar