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Por que a Virada Cultural no centro de

SP favorece a população periférica


Por Lívia Lima

Foto: @viradacultural/Instagram
A Virada Cultural, desde sua criação em 2005, e, sobretudo, a partir de seu crescimento
e reconhecimento como um dos eventos mais importantes da cidade de São Paulo
promovidos pelo poder público, foi concebida como uma ação que parte da cultura para
desenvolver a cidade. Sua inspiração, as “Nuit Blaches” de Paris, também nos confirmam
que, mais que as artes, é ela, a própria cidade, a protagonista do evento.

Em suas primeiras edições, a Virada Cultural concentrou suas atividades no centro


histórico de São Paulo e esta tradição se manteve nos últimos 12 anos, porém ampliando
cada vez mais sua área de abrangência. Em muitos discursos, seja do próprio público, da
imprensa, especialistas e pesquisadores, houve a defesa de que o evento se tornasse cada
vez mais descentralizado, alcançando, também, os bairros periféricos.

De fato, é importante que as periferias sejam contempladas em um evento em


que se pretende mobilizar toda a cidade, lembrando que a periferia faz parte da cidade o
tempo todo (isso nem sempre é tão claro e evidente), mas isso não deslegitima o centro
como o local privilegiado do conceito do evento, ao contrário, isto só tende a beneficiar
a população periférica.
Quando discutimos os locais onde a programação das 24 horas do evento deve ou não
acontecer, também estamos pré-definindo quais são as relações que os sujeitos vão
estabelecer com a cidade. E nós, moradores dos bairros mais afastados, temos poucas
oportunidades, devido diversas condições e contextos, de fruição cultural no centro de
São Paulo. E neste espaço ainda está concentrada a maioria dos equipamentos culturais.

Ainda que muitos desses espaços não tenham custos de entrada ou ofereçam preços
acessíveis, frequentá-los compreende questões complexas que demonstram desde as
dificuldades de nosso cotidiano, de moradores da periferia que trabalham na região central
e eixo sudoeste e despendem de muito tempo perdido no trajeto – cerca de 3 horas diárias,
em média – e que ficam cansados demais para estender a permanência no centro; até
mesmo os horários de funcionamento dos espaços. O MASP, por exemplo, exceto às
quintas-feiras, quando fecha às 20h, encerra as atividades às 18h, o horário em que o
trabalhador periférico muitas vezes ainda está saindo de seu expediente.

A possibilidade de visitar alguns desses espaços que se mantêm abertos nas 24 horas da
Virada Cultural se faz relevante. Além disso, atraídos por atrações como os shows de
importantes cantores e bandas que aconteciam nos palcos principais do centro e que este
ano serão realocados para outros endereços, como o Anhembi e a Chácara do Jóquei, os
moradores das periferias poderiam se deparar com a oportunidade de entrar em centros
culturais entre os intervalos, adentrar em equipamentos que desconheciam, ou seja, se
apropriar daquilo a que têm direito o ano todo, mas que, por estarem distantes geográfica,
social e simbolicamente, não efetivam.

A transferência da centralidade do evento para locais fora do centro histórico, mas ainda
distantes das periferias, tal qual está sendo proposta no discurso e praticado na edição
deste ano, não favorece a participação dos moradores de bairros periféricos no evento de
modo geral. As principais atrações foram direcionadas agora para a Chácara do Jóquei e
o Anhembi que, além de serem espaços cercados e fechados, contrariando a ideia de
Direito à Cidade que está na origem do evento, ficam distantes de muitas das demais
regiões, além de serem longe do metrô e pouco acessíveis por ônibus, ao contrário do
centro, que convergia todas as direções.

Eu, como moradora da zona leste, me sinto muito desestimulada a atravessar a cidade
para participar dessa programação e, diante disso, perco a oportunidade de assistir a
atrações gratuitamente que em outras ocasiões poderiam ser mais inacessíveis.

Os índices e mapas nos revelam o quanto a cidade de São Paulo é uma cidade desigual, e
a cultura é apenas um dos elementos que comprovam este fato. É natural que se pense,
então, que enquanto ação da Prefeitura, e com um orçamento tão alto, a Virada Cultural
deve direcionar sua atenção para as áreas com grande déficit de ações culturais do poder
público, entretanto, o evento não pode servir como compensação para a ausência de
investimentos nessas regiões.

Os bairros periféricos necessitam de investimentos permanentes em seus equipamentos


culturais – sejam públicos ou privados – porque além de serem poucos, se apresentam
cada vez mais sucateados e abandonados. Também é necessária a manutenção e
ampliação dos incentivos de grupos, coletivos, movimentos culturais criados e realizados
nas periferias, para que possam continuar suas ações locais. Este ano, com o
congelamento de 43% do orçamento da Secretaria Municipal de Cultura, os programas
específicos para os projetos do movimento cultural periférico foram os mais prejudicados.

A Virada Cultural permite que os moradores das periferias consigam, ainda que em um
fim de semana, frequentar o centro não apenas como o local de trabalho, estudo, ou para
acessar serviços que não estão disponíveis em seus bairros, como os de saúde, jurídicos
etc.

Além de nossas próprias condições objetivas e subjetivas, que diariamente orientam


nossas práticas e nos definem como não pertencentes ao centro e a tudo o que ele
representa – à própria cidade, no limite – sendo a cultura legitimada um dos campos mais
excludentes e autoexcludentes nesse sentido, quando tentamos ou ocupamos esses
espaços, emergem os conflitos estruturais de São Paulo, sobretudo a desigualdade racial
e de classe.

Eu estava na Praça da Sé na edição de 2007 da Virada Cultural quando aconteceu uma


grande confusão durante o show dos Racionais MC’s. Não é coincidência que o conflito
aconteceu no local onde estava concentrado o público que representa a população negra
e periférica da cidade. Este é o procedimento padrão de tratamento da Polícia Militar nos
bairros e foi reproduzido no evento, ironicamente (ou não) diante dos artistas que
influenciaram toda uma revolução de identidade, reconhecimento e consciência na
periferia.

Nós, cidadãos negros e periféricos, temos o direito de andarmos livremente nas ruas do
centro sem sermos considerados suspeitos, delinquentes ou subversivos. E não devemos
ser culpabilizados pelos eventuais roubos, registros de violência e arrastões que
aconteceram nas edições da Virada ao longo dos últimos 12 anos. Se esses casos
acontecem, são reflexo de toda a nossa sociedade.

Promover a cultura periférica no centro durante a Virada Cultural também é uma


estratégia que contempla e fortalece a periferia, na medida em que legitima a qualidade e
valor das produções dos coletivos e grupos artísticos, e possibilita que novos públicos
tenham acesso a essa manifestação cultural, dando destaque para ações que acontecem o
ano todo e nem sempre são reconhecidas.

A periferia não deve ser utilizada como barganha nas decisões de reestruturação da Virada
Cultural se não é ela o que realmente está motivando as alterações do projeto. Sob o
argumento de que o evento deve abranger todas as regiões e oferecer uma programação
maior nas periferias, ainda que válido, incorre-se no risco de manter a estrutura que
segrega a população preta e periférica, e com isso se perde o objetivo principal do evento
que é a apropriação do centro, e sua consequente revitalização, por toda a população,
independente de classe social, faixa etária, gênero, orientação sexual etc. Pessoas que, no
dia a dia, sob muros, carros blindados e condomínios fechados, não se permitem conviver,
têm medo das ruas e associam à cidade a tudo que é sujo e perigoso.

Retirando do centro o foco e destaque da Virada, relegamos apenas à especulação


imobiliária – excludente e higienista – a sua revitalização, perdemos a oportunidade de
promover a diversidade, característica de mais valor de São Paulo e de, pelo menos por
24 horas, vivermos todos democraticamente em uma mesma cidade, incluindo e reunindo
cidadãos de todos os cantos. E nada mais bonito que a arte e a cultura na promoção desse
encontro.

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Lívia Lima é jornalista, bacharela em letras e mestre em Filosofia pelo Programa de


Estudos Culturais da USP. Também é editora da Agência Mural de Jornalismo das
periferias e co-fundadora do coletivo Nós, mulheres da periferia.

http://www.labcidade.fau.usp.br/por-que-a-virada-cultural-no-centro-de-sp-favorece-a-
populacao-periferica/

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