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Foto: @viradacultural/Instagram
A Virada Cultural, desde sua criação em 2005, e, sobretudo, a partir de seu crescimento
e reconhecimento como um dos eventos mais importantes da cidade de São Paulo
promovidos pelo poder público, foi concebida como uma ação que parte da cultura para
desenvolver a cidade. Sua inspiração, as “Nuit Blaches” de Paris, também nos confirmam
que, mais que as artes, é ela, a própria cidade, a protagonista do evento.
Ainda que muitos desses espaços não tenham custos de entrada ou ofereçam preços
acessíveis, frequentá-los compreende questões complexas que demonstram desde as
dificuldades de nosso cotidiano, de moradores da periferia que trabalham na região central
e eixo sudoeste e despendem de muito tempo perdido no trajeto – cerca de 3 horas diárias,
em média – e que ficam cansados demais para estender a permanência no centro; até
mesmo os horários de funcionamento dos espaços. O MASP, por exemplo, exceto às
quintas-feiras, quando fecha às 20h, encerra as atividades às 18h, o horário em que o
trabalhador periférico muitas vezes ainda está saindo de seu expediente.
A possibilidade de visitar alguns desses espaços que se mantêm abertos nas 24 horas da
Virada Cultural se faz relevante. Além disso, atraídos por atrações como os shows de
importantes cantores e bandas que aconteciam nos palcos principais do centro e que este
ano serão realocados para outros endereços, como o Anhembi e a Chácara do Jóquei, os
moradores das periferias poderiam se deparar com a oportunidade de entrar em centros
culturais entre os intervalos, adentrar em equipamentos que desconheciam, ou seja, se
apropriar daquilo a que têm direito o ano todo, mas que, por estarem distantes geográfica,
social e simbolicamente, não efetivam.
A transferência da centralidade do evento para locais fora do centro histórico, mas ainda
distantes das periferias, tal qual está sendo proposta no discurso e praticado na edição
deste ano, não favorece a participação dos moradores de bairros periféricos no evento de
modo geral. As principais atrações foram direcionadas agora para a Chácara do Jóquei e
o Anhembi que, além de serem espaços cercados e fechados, contrariando a ideia de
Direito à Cidade que está na origem do evento, ficam distantes de muitas das demais
regiões, além de serem longe do metrô e pouco acessíveis por ônibus, ao contrário do
centro, que convergia todas as direções.
Eu, como moradora da zona leste, me sinto muito desestimulada a atravessar a cidade
para participar dessa programação e, diante disso, perco a oportunidade de assistir a
atrações gratuitamente que em outras ocasiões poderiam ser mais inacessíveis.
Os índices e mapas nos revelam o quanto a cidade de São Paulo é uma cidade desigual, e
a cultura é apenas um dos elementos que comprovam este fato. É natural que se pense,
então, que enquanto ação da Prefeitura, e com um orçamento tão alto, a Virada Cultural
deve direcionar sua atenção para as áreas com grande déficit de ações culturais do poder
público, entretanto, o evento não pode servir como compensação para a ausência de
investimentos nessas regiões.
A Virada Cultural permite que os moradores das periferias consigam, ainda que em um
fim de semana, frequentar o centro não apenas como o local de trabalho, estudo, ou para
acessar serviços que não estão disponíveis em seus bairros, como os de saúde, jurídicos
etc.
Nós, cidadãos negros e periféricos, temos o direito de andarmos livremente nas ruas do
centro sem sermos considerados suspeitos, delinquentes ou subversivos. E não devemos
ser culpabilizados pelos eventuais roubos, registros de violência e arrastões que
aconteceram nas edições da Virada ao longo dos últimos 12 anos. Se esses casos
acontecem, são reflexo de toda a nossa sociedade.
A periferia não deve ser utilizada como barganha nas decisões de reestruturação da Virada
Cultural se não é ela o que realmente está motivando as alterações do projeto. Sob o
argumento de que o evento deve abranger todas as regiões e oferecer uma programação
maior nas periferias, ainda que válido, incorre-se no risco de manter a estrutura que
segrega a população preta e periférica, e com isso se perde o objetivo principal do evento
que é a apropriação do centro, e sua consequente revitalização, por toda a população,
independente de classe social, faixa etária, gênero, orientação sexual etc. Pessoas que, no
dia a dia, sob muros, carros blindados e condomínios fechados, não se permitem conviver,
têm medo das ruas e associam à cidade a tudo que é sujo e perigoso.
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http://www.labcidade.fau.usp.br/por-que-a-virada-cultural-no-centro-de-sp-favorece-a-
populacao-periferica/