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MOUDON, Anne Vernez - Morfologia Urbana Como Um Campo Interdisciplinar Emergente - ART
MOUDON, Anne Vernez - Morfologia Urbana Como Um Campo Interdisciplinar Emergente - ART
emergente
Revista de Morfologia Urbana (2015) 3(1), 41-9 Rede Lusófona de Morfologia Urbana ISSN 2182-7214
42 Morfologia urbana como um campo interdisciplinar emergente
profissional, a verdade é que acabou por mundos Latino e Árabe. No final da década
promover, com sucesso, o retorno aos tipos de 1970, o seu trabalho tinha sido traduzido
edificados tradicionais, potenciando assim para várias línguas europeias e circulava nos
um renovado interesse pela cidade histórica e Estados Unidos para uma possível
promovendo o seu significado na arquitetura. publicação em Inglês – esta tentativa falhou
A mensagem de Rossi teve eco nos e, até à data, este trabalho não está acessível
arquitetos Britânicos, Americanos e a audiências de língua inglesa . A afirmação
Franceses. Estes arquitetos leram também os internacional dos franceses, na morfologia
textos de outro arquiteto Italiano, Carlo urbana, deu-se pela primeira vez em 1986
Aymonino, cujo estudo sobre Pádua e outros através do prestigiado Institut d’Urbanisme
textos que ele designou como ‘tipo- da Universidade de Paris. O Instituto
morfologia’ estimularam o interesse pelo organizou um simpósio sobre morfologia
desenho da cidade. Incidentalmente, mas urbana abordando a questão do fracasso do
com significado para a estrutura do ISUF, modernismo no desenho da nova cidade. A
Rossi e Aymonino vieram a rejeitar a lista de convidados incluiu muitos
morfologia urbana, vendo-a como um campo académicos, planeadores e arquitetos de
que promovia soluções ultrapassadas para os renome, da Europa e América do Norte. No
atuais problemas urbanos e como impotente entanto, nem os membros da Escola de
na resolução de um conjunto de temas da Versalhes, nem qualquer um dos
arquitetura moderna. colaboradores mais próximos das escolas de
No entanto, em retrospetiva, o contributo Birmingham e Muratoriana participaram no
italiano com um carácter mais instrumental simpósio, à exceção de Ivor Samuels, do
na ligação das três principais escolas de Oxford Polytechnic, e Albert Levy, que
morfologia urbana e na criação do ISUF, foi então lecionava em Genebra, na Suíça. No
o programa de reabilitação do centro entanto, pouco depois do simpósio,
histórico de Bolonha, que teve Caniggia estabeleceram-se ligações entre a Escola de
como consultor. A rápida difusão deste Versalhes e o Institut d’Urbanisme, para o
projeto, o seu interessante âmbito e o sucesso estudo da região parisiense, conduzindo
da sua implementação, ajudou a desenvolver Castex e Panerai a lecionar no Instituto.
contactos entre morfologistas em diferentes Também a nova geração de geógrafos
partes do mundo. urbanos franceses tem vindo a desenvolver
Foi neste contexto que Caniggia foi relações de trabalho mais estreitas.
convidado para visitar o Oxford Polytechnic Castex, que havia passado uma
pelo arquiteto e Italianófilo Ivor Samuels no temporada em Nova Iorque no final dos anos
início dos anos 80. Apesar de Caniggia não 1960, ajudou a reforçar o desenvolvimento
ter encontrado os geógrafos de Birmingham de laços com a América do Norte, ao
por altura desta visita, Samuels tinha então retornar em 1988, como Professor Visitante à
começado a colaborar com os seus University of Oregon. Lecionou também
compatriotas. Nos últimos anos de vida, nessa altura, na University of Washington,
Caniggia desenvolveu um extensivo e em Seattle. Eu tinha conhecido Castex e
abrangente programa. Caniggia passou três visitado Versalhes um ano antes, embora
meses na University of Washington, em conhecesse o seu trabalho (e de Panerai) há
Seattle, em 1986, após um encontro comigo uma década, tendo partilhado pensamentos
e com um dos meus colegas, no ano anterior sobre morfologia com Francófilos como M.
em Nápoles, Itália, num seminário em Christine Boyer e o académico da paisagem
homenagem ao trabalho de Kevin Lynch. urbana Paul Groth, estudante de James
Caniggia visitou ainda o Federal Polytechnic Vance. Em 1987, eu tinha planeado dar uma
Institute of Zurich, na Suíça, para apresentar palestra em Roma, como parte de uma
o seu trabalho (em co-autoria com Maffei) tentativa de ‘fechar o círculo’ entre as
sobre Florença que foi traduzido e editado escolas Italiana e Francesa de morfologia
por Sylvain Malfroy. urbana. A súbita morte de Caniggia foi um
Como mencionado anteriormente, a impulso para estabelecer relações com os
Escola de Versalhes manteve contactos nos seus colegas em Florença, Roma e Génova.
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das células, varia de cidade para cidade, mas du projet basée sur les traditions
também se enquadra, de um modo geral, em d’édification de la ville.
ciclos relacionados com a economia e a iii. O estudo da forma urbana para avaliar
cultura. Os ciclos de construção e de o ‘impacto de teorias de desenho do passado
transformação são processos importantes que na construção da cidade’. Este é o domínio
devem ser explorados pelo planeamento da crítica de desenho, que faz a sofisticada
urbano e pelo imobiliário; no entanto, distinção entre ‘teoria do desenho como
raramente são estudados nas cidades ideia’ e ‘teoria do desenho como prática’.
contemporâneas. Estes estudos avaliam as diferenças ou
Alguns estudos também se focam no que semelhanças entre diretivas sobre o que deve
Conzen chama ‘unidade de plano’ e que os ser construído (teorias normativas) e aquilo
Italianos designam por ‘tecido’. Unidades de que é realmente construído. A Escola
plano ou tecidos são conjuntos de edifícios, Francesa tem defendido esta utilização da
espaços abertos, parcelas e ruas, que formam análise morfológica identificando, com
um todo coeso, ou porque foram todos sucesso, as raízes do modernismo no
construídos num mesmo tempo ou com as desenho urbano no século XVIII. No
mesmas condicionantes, ou porque sofreram entanto, este continua a ser um exercício
um mesmo processo de transformação. mental difícil para muitos planeadores, que
Para além disso, e se bem que todas as tendem a não perder tempo a avaliar o
análises morfológicas são desenvolvidas com impacto das suas ações sobre a vida (em
um objetivo de construção de teoria, existem termos de longo prazo) das cidades.
propósitos distintos entre as diferentes
tradições em morfologia urbana que
produzem diferentes tipos de teorias. Cada Questões e potencial
uma das três escolas tem tido diferentes
intenções nos seus esforços de ‘construção Como é frequente quando algo novo está a
de teoria’. Essas intenções são as que se ser proposto, os pontos fortes da inovação
seguem: são também as suas fraquezas. A fundação
i. O estudo da forma urbana com de um campo interdisciplinar de morfologia
propósitos ‘descritivos’ e ‘explicativos’, com urbana cria tensões e oportunidades que o
o objetivo de desenvolver uma ‘teoria de ISUF terá de enfrentar. Discutamos primeiro
construção da cidade’ (théorie de algumas das questões gerais relacionadas
l’édification de la ville). Estes estudos estão com a morfologia urbana e, em seguida,
preocupados com o modo como as cidades algumas das questões específicas sobre o
são construídas e com o porquê. Este é o estado atual do campo.
objetivo principal dos geógrafos, e da Escola A missão do ISUF é ambiciosa e,
de Birmingham em particular. Os cientistas portanto, cheia de potenciais conflitos com
sociais da Escola Francesa também têm este as estruturas existentes nos mundos da
propósito quando desenvolvem estudos investigação e da prática. O ISUF
morfológicos. estabeleceu um domínio que se estende pela
ii. O estudo da forma urbana com geografia, história, arqueologia, arquitetura e
propósitos ‘prescritivos’, com o objetivo de planeamento, e consequentemente pelas
desenvolver uma ‘teoria de desenho da humanidades, ciências sociais e por um
cidade’. Estes estudos centram-se no modo conjunto de profissões; estende-se pelo
como as cidades deveriam ser construídas. estudo e pela ação, pelo conhecimento e pela
Este é o enfoque principal da Escola Italiana decisão, pela descrição e pela prescrição.
que deu a este propósito uma direção Este domínio é atualmente constituído por
particular, o desenvolvimento de uma teoria um vasto mosaico de territórios intelectuais,
de desenho do edificado assente nas ajustando lentamente os seus limites por
tradições históricas de construção da cidade. entre as habituais disputas sobre poder e
Alguns investigadores Franceses têm tido ideias, sendo tudo isto representado em
intenções semelhantes nas suas análises inúmeras revistas, jornais, livros,
morfológicas, tendo como propósito do seu organizações com as suas conferências
trabalho o desenvolvimento de uma théorie associadas, páginas web, etc. Do lado
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positivo, o ISUF está a criar um domínio que de teoria por parte da morfologia urbana vêm
reúne peças de todos estes territórios para se de dois lados opostos. Por um lado, os
focar num fenómeno real: James Vance positivistas questionam o modo empírico e
designa este fenómeno real como indutivo de investigar a cidade e apontam a
‘construção da cidade’, de modo a incluir as fraca capacidade de previsão de uma teoria
formas físicas e todos os processos de construção da cidade. No entanto, a
relacionados com o ato de fazer cidade. Isto própria capacidade de previsão da
significa que a morfologia urbana pode virar investigação positivista tem sido alvo de
costas às lutas internas pelo poder que estão crítica, porque a natureza reducionista desta
a ocorrer dentro da geografia e transcender abordagem não tem sido eficaz no
as contendas adolescentes que assolam o tratamento das questões relativas ao
planeamento, a arquitetura, o imobiliário e a comportamento humano. Por outro lado, os
construção. Significa ainda que a morfologia grupos artísticos e literários desconfiam do
urbana poderá preencher um vazio que enfoque único da morfologia urbana na
atualmente debilita tanto a investigação realidade física da cidade. No entanto, a
como a prática de ‘construção da cidade’. crítica relacionada com o que pode ser
Consequentemente, o ISUF é uma interpretado como o determinismo físico da
oportunidade para estabelecer um fórum de morfologia urbana pode também ser
pensamento e ação sobre como moldar e silenciada: a morfologia urbana aborda a
gerir os nossos habitats – um assunto cidade não como um artefacto, mas como
oportuno neste momento da história da organismo, onde o mundo físico é
civilização. Todavia, por mais excitante que inseparável dos processos de transformação a
seja a oportunidade e por mais nobre que que está sujeito. O enfoque está no mundo
seja o objetivo, o caminho futuro do ISUF físico enquanto ‘resultado’ de forças sociais
será provavelmente árduo, por um conjunto e económicas com uma natureza dinâmica. O
de razões. desafio do ISUF é demonstrar os processos
Primeiro, ao contrário, por exemplo, da correntes que suportam o modo como as
engenharia e da medicina, a arquitetura e o cidades são construídas e transformadas,
planeamento têm ainda que desenvolver, definir e ilustrar os princípios de
isoladamente ou em conjunto, uma base de transformação em diferentes contextos – por
conhecimento partilhada. Ambas são exemplo, como é que os quarteirões são
profissões que prosperam na ação e no alterados, dependendo de como são
projetar de futuros possíveis, mas que implantados numa fase inicial e do tipo e da
deixam pouco espaço para a investigação e intensidade de desenvolvimento em seu
para a avaliação. São profissões que não redor; ou como diferentes condições
seguiram outras no desenvolvimento de uma definirão se uma determinada área é sujeita a
abordagem sistemática e empírica de um desenvolvimento de densificação ou a
aprendizagem e construção de uma base de um completo re-desenvolvimento.
conhecimento. São profissões que têm Segundo, o material de investigação que o
poucos – se é que têm algum – mecanismos ISUF oferece a este mundo agora mais
para relacionar estudo e ação. Quaisquer que alargado tem as suas próprias fragilidades.
sejam as razões para a existência de uma Uma parte significativa da investigação em
abordagem artística no que se refere à morfologia urbana tem-se centrado em
tomada de decisão em arquitetura e cidades Europeias históricas, uma dupla
planeamento, este estado de coisas significa limitação que pode parecer dificultar
que os morfologistas irão percorrer, com aplicações práticas no mundo atual. Existe
estas profissões, territórios desconhecidos, uma necessidade de a investigação abordar a
tendo de captar a atenção destas profissões, expansão sem precedentes das cidades ao
para demonstrar a validade e a eficácia da longo deste século, e uma necessidade de
abordagem morfológica na identificação de dirigir esta investigação para cidades que
relações de causa-efeito. cresceram em culturas não-Europeias.
Do ponto de vista das ciências sociais, as Significativamente, no entanto, um conjunto
dúvidas sobre as capacidades de construção de estudos recentes sobre as cidades do
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ii
Para uma discussão sobre o papel da morfologia arquitetura, e respetivas referências, ver
urbana na geografia, e referências sobre este Panerai, P., Depaule, J. C., Demorgon, M. e
papel, ver Conzen, M. P. (1978) ‘Analytical Veyrenche, M. (1980) Eléments d’analyse
approaches to the urban landscape’, em Butzer, urbaine (Editions Archives d’Architecture
K. W. (ed.) Dimensions of human geography, Moderne, Bruxelas); Moudon, A. V. (1992) ‘A
University of Chicago Department of catholic approach to organizing what urban
Geography Research Paper 186, 128-65; Slater, designers should know’, Journal of Planning
T. R. (ed.) (1990) The built form of Western Literature 6, 331-49.
cities (Leicester University Press, Leicester);
Whitehand, J. W. R. (ed.) (1981) The urban
landscape: historical development and Notas de tradução
management Institute of British Geographers
Special Publication 13 (Academic Press, Nova M. R. G. Conzen (1907-2000) faleceu a 4 de
Iorque); Whitehand, J. W. R. (1988) ‘Recent Fevereiro de 2000.
developments in urban morphology’, em A publicação da Escola de Versalhes Castex, J.,
Denecke, D. and Shaw, G. (eds) Urban Depaule, J. C. e Panerai, P. (1970) Formes
historical geography: recent progress in Britain urbaines: De l'îlot à la barre de (Dunod, Paris)
and Germany (Cambridge University Press, foi entretanto adaptada e traduzida para Inglês -
Cambridge) 285-96. Panerai, P., Castex, J., Depaule, J.-C. e Samuels,
iii
Para uma discussão sobre o papel da I. (2004) Urban forms, the death and life of the
morfologia urbana no desenho urbano e na urban block (Architectural Press, Oxford).
Abstract. The forces and events leading to the formation of the International Seminar on Urban Form
(ISUF) are identified. ISUF is expanding the field of urban morphology beyond its original confines in
geography, particularly into the domains of architecture and planning. Three schools of urban
morphology, in England, Italy and France, are coming together, following seminal work by two
morphologists, M. R. G. Conzen and Saverio Muratori. The bringing together of these schools provides
the basis for an interdisciplinary field and the opportunity to establish common theoretical foundations
for the growing number of urban morphologists in many parts of the world. ISUF’s ambitious mission is
to address real and timely issues concerning city building by providing a forum for thought and action
which includes related disciplines and professions in different cultures. The potential of an
interdisciplinary urban morphology to contribute to the understanding and management of urban
development in a period of unprecedented change is discussed.
Tradução
Este texto foi traduzido por Vítor Oliveira, que agradece a Anne Vernez Moudon a disponibilidade
permanente para esclarecer todas as questões relacionadas com este processo.