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A EJA NOS CONTEXTOS DE ESCOLARIZAÇÃO: INTERFACES ENTRE A
CULTURA E O CURRÍCULO
Elizabete Carlos do Vale
Resumo
A Educação de Jovens e Adultos (EJA) no atual contexto histórico vem passando por
intensas mudanças relacionadas a concepções e práticas que resultam na
reorganização, ampliação e na configuração de novos sentidos, envolvendo práticas
educativas amplas e ações de escolarização (OLIVEIRA; PAIVA, 2009). A partir dessa
compreensão, esboçamos uma reflexão sobre esse processo de ressignificação,
focalizando o papel constitutivo da cultura e do currículo na constituição das práticas
de EJA no cotidiano escolar. Apresentamos nesse artigo, recorte de uma pesquisa em
andamento desenvolvida numa escola pública de Campina Grande/PB, que objetiva
perceber como o currículo incide sobre os processos de subjetivação e diferenciação,
influenciando práticas discriminatórias e ou emancipatórias dos sujeitos envolvidos na
EJA. Tomamos como referencial teórico, estudos sobre cultura em sua correlação e
interfaces com o currículo, a partir das contribuições de Freire (2000), Giroux (1997),
Arroyo (2007), Paiva (2004), Oliveira (2007) dentre outros. Esses autores corroboram a
discussão sobre a visibilidade das culturas tidas como subalternas e a compreensão da
escola e do currículo como espaço de contradições, donde resultam relações
complexas de reprodução, mas também de resistência e emancipação.
Palavras‐chaves: EJA, CULTURA, CURRÍCULO.
A RESSIGNIFICAÇÃO DA EJA E A DIMENSÃO CULTURAL DO CURRÍCULO
Discutir sobre o currículo na educação de jovens e adultos (EJA) remete‐nos a
necessidade de refletir sobre a reconfiguração da EJA no atual contexto histórico,
sobre as intensas mudanças e os novos sentidos que a mesma vem adquirindo, tanto
em relação às práticas desenvolvidas, quanto aos aspectos conceituais. Conforme
discutido em trabalho anterior (VALE e OLIVEIRA, 2010), uma das marcas da
redefinição nas práticas de EJA é a presença cada vez mais marcante de jovens, dada a
expansão do atendimento dessa modalidade educativa. Para Haddad e Di Pierro
(2005), o desafio da expansão do atendimento na EJA já não reside apenas na
população que jamais foi à escola, “mas se estende àquela que freqüentou os bancos
escolares, mas neles não obteve aprendizagens suficientes para participar plenamente
da vida econômica, política e cultural do país e seguir aprendendo ao longo da vida” (p.
116).
A EJA como um campo caracterizado historicamente por ações “tímidas” e por
controvérsias no âmbito das políticas educacionais traz como marca a diversidade de
sujeitos cujos direitos tem sido negados historicamente (OLIVEIRA, 2011). Conforme afirmado
no Documento Nacional Preparatório à VI Conferência Internacional de Educação de Adultos
(VI CONFINTEA)1, tais diversidades e desafios precisam ser considerados quando pensadas as
políticas e práticas educativas para a EJA.
A EJA é também espaço de tensionamento e aprendizagem em
diferentes ambientes de vivências que contribuem para a formação
de jovens e adultos como sujeitos da história. Nesses espaços, a EJA
volta‐se para um conjunto amplo e heterogêneo de jovens e adultos
oriundos de diferentes frações da classe trabalhadora. Por isso, é
compreendido na diversidade e multiplicidade de situações relativas
às questões étnico‐racial, de gênero, geracionais; de aspectos
culturais e regionais e geográficos; de orientação sexual; de privação
da liberdade; e de condições mentais, físicas e psíquicas —
entendida, portanto, nas diferentes formas de produção da
existência, sob os aspectos econômico e cultural. Toda essa
diversidade institui distintas formas de ser brasileiro, que precisam
incidir no planejamento e na execução de diferentes propostas e
encaminhamentos na EJA. (BRASIL, 2009, p. 28).
Essa realidade impõe como necessidade pensar a EJA de forma diferenciada,
considerando o perfil extremamente diverso de seu público, buscando superar a visão de EJA
como uma ação restrita à alfabetização e a função de suplência, efetivando‐a como
modalidade da educação básica, nas etapas fundamental e média com característica própria,
conforme definido pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96).
Estudos de diversos autores que refletem sobre EJA, como Oliveira (2007); Paiva (2009);
Haddad & Di Pierro (2000), dentre outros, bem como, as práticas tecidas no cotidiano escolar,
demonstram que o que define os sujeitos de EJA inseridos em contextos de escolarização não
é apenas a especificidade etária, mas prioritariamente o traço cultural, ou seja, sua condição
de excluídos da escola regular. Isso exige um olhar mais sensível para as especificidades desses
sujeitos, reconhecendo que os educandos da EJA, ao tentarem retornar a escola, trazem
consigo as marcas da exclusão e do abandono do sistema de ensino, o que remete, entre
outros aspectos, pensar a EJA e os sujeitos que a constitui para além da ideia das carências
educativas. Compreender os sujeitos de EJA como sujeitos sociais e culturais que chegam às
escolas com identidades de classe, raça, etnia, gênero, território, entre outros.
Tais aspectos apontam para a necessidade de compreender o papel constitutivo da
cultura, o lugar que a cultura ocupa no espaço/tempo do cotidiano e na constituição da
subjetividade e da própria identidade do sujeito como ator social, bem como, sua influência
nos “currículos praticados” (OLIVEIRA, 2003) no cotidiano escolar. Começamos a discussão
sobre cultura apoiadas nas reflexões provocadas por Garcia Canclini (citado por ROSA, 2006)
que afirma:
Cultura será entendida como aquela dimensão da realidade que dá
conta das práticas institucionais que, de uma ou outra maneira,
1
A VI CONFINTEA foi realizada no Brasil, na cidade de Belém/PA, no ano de 2009. Realizada desde
1949, a cada 12 anos, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO), seu objetivo é debater e avaliar as políticas implementadas em âmbito internacional para essa
modalidade de educação e traçar as principais diretrizes que nortearão as ações neste campo. O Brasil é o
primeiro país do Hemisfério Sul a sediar uma CONFINTEA, as cinco edições anteriores foram
recepcionadas, respectivamente, pela Dinamarca, Canadá, Japão, França e Alemanha. (BRASIL, 2009).
contemporânea, e, para pensar o currículo no cotidiano da sala de aula, a partir de
perspectivas defendidas por Giroux (2009) como: a) Transformar a cultura num construto
central da estruturação dos currículos e do fazer pedagógico cotidiano das salas de aula,
focalizando questões relacionadas às diferenças culturais, ao poder e à história; b)
Compreender a relação intrínseca entre a linguagem e o poder, particularmente, como a
linguagem é usada para moldar identidades sociais e assegurar formas específicas de
autoridade. c) Enfatizar o vínculo do currículo às experiências que os estudantes trazem para o
encontro com o conhecimento institucionalmente legitimado. (GIROUX, 2009).
Sobre esse aspecto, nos reportamos a Silva (2005), que enfatiza que o currículo como
política cultural, de Giroux, fala numa “pedagogia da possibilidade” que supere as teorias de
reprodução, tomando como referência os estudos da Escola de Frankfurt sobre a dinâmica
cultural e a crítica da racionalidade técnica. Desse modo, compreende o currículo a partir dos
conceitos de emancipação e liberdade, já que vê a pedagogia e o currículo como um campo
cultural de lutas. Giroux acredita que a dinâmica cultural tem grande importância na
elaboração dos currículos, pois, para ele, as pessoas não aceitam simplesmente o que lhes é
imposto pelas classes dominantes. Sua premissa fundamental é precisamente a recusa a
pensar qualquer intencionalidade normativo‐pedagógica sem referência ao contexto histórico
e social mais amplo no qual ela se insere, enfatizando assim, a necessidade do currículo “dar
voz” às culturas excluídas, “negadas ou silenciadas”.
Ainda de acordo com Silva (2005), na discussão sobre as dimensões emancipatória e
libertadora do currículo, Giroux a partir de Habermas e Gramsci defende três conceitos
centrais: esfera pública ‐ escola e currículo devem atender às questões propostas pelos
estudantes, seus interesses a partir da vida social; intelectual transformador ‐ mais do que
técnicos capacitados ou simplesmente ‘aplicadores do currículo’, os professores são ativos na
crítica e no questionamento; e, voz ‐ os estudantes devem se manifestar, portanto, o currículo,
por consequência, tem que dar ouvido a eles. Silva (idem) afirma ainda que para Giroux,
entender o currículo enquanto política cultural é entender o currículo não como mero
reprodutor da ideologia dominante, mas sim como fruto da construção de significados e
valores culturais de uma sociedade, significados esses, impostos, mas também contestados.
Partindo do reconhecimento da escola como um território de luta e da pedagogia como
forma de política cultural, Giroux e McLaren (2002) defendem que é fundamental que se
reconheça que nas escolas, os significados são produzidos pela construção de formas de
poder, experiências e identidades, e estes, precisam ser analisados em seu sentido político‐
cultural mais amplo. A ideia da escola como produção de significados e de possibilidades
emancipatórias é central nas reflexões de Freire. Para Freire “a escola não é boa, nem má em
si, depende a que serviço ela está no mundo. Precisa saber quem ela defende”. (FREIRE, 1992,
p.38). A partir dessa reflexão sobre a escola e o seu papel, Freire nos instiga a compreender a
escola como um espaço em que se ensina muito mais que conteúdos, ensina uma forma de ver
o mundo. Neste sentido, “o que ensinar” não poder estar desvinculado de outras questões que
precisam ser feitas no ato de ensinar e sobre o papel da escola e as relações pedagógicas
estabelecidas no interior da escola, como: A quem serve a escola? Contra e a favor de quem
ensina? O que é ensinar? O que é aprender? Como se dão as relações entre ensinar e
aprender? O que é o saber da experiência feito? Podemos descartá‐lo como impreciso,
desarticulado?
Freire (1992) entende que para além de processos de reprodução da ideologia
dominante vivenciados no interior da escola, esta pode se configurar como um espaço
democrático privilegiado da ação educativa possibilitando aos sujeitos construírem suas
grupos em desvantagem nessas relações. Os Estudos Culturais pretendem que suas análises funcionem
como uma intervenção na vida política e social.” (Silva, 2005, p. 134).
3
As Diretrizes Curriculares Nacionais Para a Educação de Jovens e Adultos foram instituídas através da
resolução CNE/CEB n.º 1/2000. De acordo com a resolução essas diretrizes são obrigatórias tanto na
oferta quanto na estrutura dos componentes curriculares de Ensino Fundamental e Médio de cursos
desenvolvidos em instituições próprias, integrantes da organização da educação nacional, à luz do caráter
peculiar dessa modalidade de educação. (BRASIL, 2000).
Os princípios da contextualização e do reconhecimento de
identidades pessoais e das diversidades coletivas constituem‐se em
diretrizes nacionais dos conteúdos curriculares. A contextualização se
refere aos modos como estes estudantes podem dispor de seu
tempo e de seu espaço. Por isso, a heterogeneidade do público da
EJA merece consideração cuidadosa. A ela se dirigem adolescentes,
jovens e adultos, com múltiplas experiências de trabalho, de vida e
de situação social, aí compreendidos as práticas culturais e os valores
já constituídos. (BRASIL, 2000, p. 61).
A descontextualização e recontextualização dos conhecimentos/conteúdos curriculares
se tornam uma mediação significativa para a ressignificação das diretrizes curriculares, sendo
necessário que no cotidiano das práticas de EJA, os mesmos sejam trabalhados de modo que
ao “descontextualizá‐los da idade escolar própria da infância e adolescência para, aprendendo
e mantendo seus significados básicos, recontextualizá‐los na EJA”. (Ibidem). Pautar as práticas
pedagógicas escolares pelas definições das Diretrizes Curriculares Nacionais equivale dizer que
é necessário reconhecer que a EJA tem uma identidade própria que, portanto, deve se orientar
por princípios metodológicos específicos que respeite os conhecimentos e as múltiplas
experiências dos jovens e dos adultos, não os tratando como criança.
Apesar da EJA ter como marca a diversidade de sujeitos, há, conforme afirma Oliveira
(2007), uma tendência predominante nas propostas e práticas curriculares dessa modalidade
educativa de fragmentação do conhecimento, de organização do currículo numa perspectiva
excessivamente tecnicista e disciplinarista, bem como, de tratar os sujeitos da EJA de forma
homogênea. Dentre os diversos problemas que decorrem da inadequação das propostas
curriculares aos adultos que não tiveram oportunidade de se escolarizar no “tempo devido”,
Oliveira (2007) aponta que alguns são cruciais como: Infantilização do adulto, principalmente
pela utilização por parte do professor de linguagem infantilizada o que contribui para
desqualificação do aluno ao tratá‐lo de maneira artificialmente infantil através do excesso de
diminutivos; Dificuldade para o estabelecimento de diálogos entre as experiências vividas, os
saberes anteriormente tecidos pelos educandos e os conteúdos escolares.
Esse aspecto é traduzido pela dicotomia entre a lógica que preside a organização da
escola e as propostas de trabalho que ela busca pôr em prática e as concepções de mundo
bastante diferentes do público que a frequenta, “o que dificulta imensamente ao educando
realizar o enredamento daquilo que se diz e se propõe na escola com os saberes que traz de
sua vivência se apresenta como elemento fundamental. (OLIVEIRA, 2007, p.103). Para Oliveira,
Os critérios e modos de seleção e organização curricular não buscam
dialogar nem com os saberes nem com os desejos e expectativas dos
jovens a que se destinam, permanecendo enclausurados nas certezas
de uma "ciência" que, em nome das suas supostas objetividade e
neutralidade, abdica de se comunicar com o mundo das pessoas.
(OLIVEIRA, 2007, p.103)
No processo de investigação, percebemos que esses aspectos parecem ser um desafio
constante às práticas cotidianas dos professores de EJA o que tende a materializar‐se nos
currículos prescritos e praticados nos cotidianos escolares de EJA.
OS “CURRÍCULOS PRATICADOS” NO COTIDIANO DE EJA NUMA ESCOLA PÚBLICA DE CAMPINA
GRANDE/PB4: A POLISSEMIA DAS PRÁTICAS
Refletir sobre o processo de ressignificação da EJA, focalizando o papel constitutivo da
cultura e suas influencias na construção de práticas curriculares na EJA nos contextos de
escolarização, exige, no nosso entender, um “mergulho nos cotidianos” das práticas de EJA.
Para tanto, optamos pela perspectiva metodológica da pesquisa dos/nos/com os cotidianos
por entender que tal referencial metodológico contribui para a compreensão do cotidiano
escolar não como um lugar de mera repetição, de reprodução de regras e imposições do
sistema de ensino, mas, como um espaço/tempo complexo e polissêmico (OLIVEIRA, 2003),
que é constantemente reinventado por seus praticantes (CERTEAU, 1994).
Assim, conforme o observado no cotidiano da escola e a partir do objetivo principal da
pesquisa que era o de perceber como o currículo incide sobre os processos de subjetivação e
diferenciação, influenciando práticas discriminatórias e ou emancipatórias dos sujeitos
envolvidos na EJA, registramos algumas observações das práticas vivenciadas na escola e o
relato de alguns professores. No que se refere à prática pedagógica e dificuldades enfrentadas
no cotidiano da sala de aula, o relato dos professores5 Edilson, Helena e Vânia demonstram
que a ausência de uma proposta curricular e de condições para trabalhar com a EJA, tem se
traduzido na prática cotidiana da sala de aula, como um desafio constante:
Uma coisa é o que é proposto pra gente ensinar (currículo), outra
coisa é quando você se depara na prática, principalmente, quando
você vê a quantidade de conteúdo pra trabalhar, o tempo bastante
reduzido e as grandes dificuldades que os alunos têm. Na EJA o
ensino médio é trabalhado em 1 ano e meio, e os alunos tem
dificuldades seríssimas em matemática e português que dificultam a
entender os conteúdos de outras disciplinas como a física, por
exemplo. (Professora Helena).
É muito difícil trabalhar com EJA, primeiro que não é oferecida condição
nenhuma, você trabalha com a cara e a coragem. Segundo, você tem uma
maioria de alunos que não quer nada, ou melhor, querem apenas o
certificado de conclusão do ensino médio, não querem saber de aprender,
querem apenas notas. Claro que tem alunos que querem alguma coisa,
querem continuar nos estudos, fazer vestibular, mas, é uma minoria.
Desse jeito fica muito difícil, sabe... A gente não tem ajuda de nada, de
ninguém, nem da escola, nem da secretaria de educação, de ninguém
mesmo, isso mata a gente viu! (Professora Vânia).
Como a gente não tem nenhum apoio ou orientação pedagógica,
nem material didático específico pra esse público, então a gente tem
que se virar pra dá conta das aulas tentando adaptar os conteúdos
do ensino médio regular para a EJA. (Professor Edilson).
4
O lócus da pesquisa é a Escola de Ensino Fundamental e Médio Sólon de Lucena, localizada no centro
de Campina Grande/PB que atua com EJA desde 2003. Os dados apresentados no presente trabalho são
parciais, referem-se a uma pesquisa que vem sendo desenvolvida junto a turmas de EJA (Ensino Médio),
desde o ano de 2009. Para coleta de dados recorreu-se a dois instrumentos principais: a entrevista semi-
estruturada e a observação livre.
5
Para a preservação da identidade dos sujeitos praticantes da pesquisa, os nomes apresentados no
decorrer do texto são fictícios.
Esses aspectos acima mencionados têm uma relação intrínseca com a definição do
currículo para a EJA e sua efetivação concreta no cotidiano da sala de aula apontando como
necessidade imperativa, o repensar dos currículos com metodologias e materiais didáticos
adequados às necessidades da clientela da EJA e a formação de professores condizentes com a
especificidade dessa modalidade educativa, de modo que contribua para o diálogo entre a
seleção e organização curricular e os saberes dos alunos. Para Paiva (2004) pensar um
currículo para o Ensino Médio, na modalidade EJA, “exige admitir que se este nível de ensino,
embora integrante da educação básica, não vem sendo oferecido à medida da demanda para
os que se encontram em adequada relação idade‐série, no caso da EJA muito pouca expressão
vem podendo oferecer”. (PAIVA, 2004, p. 3).
O não enredamento entre os saberes dos alunos e os saberes que a escola se propõe
realizar (OLIVEIRA, 2004) tem uma relação intrínseca com a não neutralidade do ordenamento
do currículo, como discutido por Arroyo (2007). No entender do autor, o currículo parte de
protótipos de alunos, estrutura‐se em função desses protótipos e os reproduz e legitima a
imagem que, como docentes, temos dos alunos, das categorias e das hierarquias em que os
classificamos. Como afirma Arroyo:
E sobre essas imagens construímos as imagens de alunos, definimos
funções para cada escola e priorizamos ou secundarizamos
conhecimentos, habilidades e competências. Se a escola e
especificamente o ordenamento curricular são constituintes de
protótipos de alunos, as imagens sociais que projetamos sobre eles
nos chegam de fora, dadas pela cultura social, pela divisão de classes,
pelas hierarquias sócio‐étnico‐raciais, de gênero e território, pela
visão negativa que a sociedade tem das pessoas com “deficiências”.
(...) Um olhar crítico sobre essas imagens é um caminho para uma
postura crítica perante os currículos. (ARROYO, 2007, 23).
Durante o processo de realização da pesquisa na escola6, observamos situações que
evidenciaram imagens diversas que professores têm sobre os alunos de EJA, que no nosso
entender influenciam diretamente as práticas curriculares desses professores, ora reforçando
práticas discriminatórias, ora, práticas emancipatórias dos sujeitos envolvidos na EJA. Durante
o intervalo das aulas, uma discussão/conversa entre professores sobre os resultados das
avaliações que estavam sendo realizadas naquela semana evidenciavam concepções diversas
sobre o aluno de EJA, suas dificuldades, motivações para voltarem a freqüentar a escola e suas
potencialidades. Num dado momento da conversa o professor Marcos falou de forma irônica:
“É professoras, nas suas pesquisas você vão descobrir quanta inteligência tem aqui, vão
descobrir que esses alunos vão sair daqui e encher a UFCG e UEPB7”. O professor Roberto
acrescentou: “É, a maioria dos alunos de EJA não sabe de nada, a gente tem que tirar leite de
pedra”. A nosso ver, tais discursos evidenciam por um lado, as dificuldades enfrentadas no
cotidiano da EJA, as quais terminam por gerar no professor desânimo e descrédito, por outro,
explicitam um preconceito usual no imaginário dominante sobre os alunos de EJA, como
ignorantes, destituídos de conhecimento, portanto, como sujeitos de segunda classe.
6
Vale salientar que o registro de observações de vivências do cotidiano escolar de EJA tem como
pretensão a compreensão do que acontece, sem julgar quem faz, sem acusar professor “A” ou “B” de ser
progressista e/ou conservador, ou o aluno de não entender ou de ainda não saber nada.
7
UFCG (Universidade Federal de Campina Grande) e UEPB (Universidade Estadual da Paraíba).
Entretanto, dada a complexidade do cotidiano das escolas, “onde tudo entrecruza e
entrelaça, sem perda da variedade e da diversidade das complexidades que o tecem”
(OLIVEIRA, 2011, p. 25), essas concepções acerca dos alunos de EJA não são generalizadas. O
contraponto feito por outros professores à fala dos professores acima mencionados deixa isso
claro: A professora Helena retrucou: “O que é isso professor! Dificuldades todos eles tem e
muito, mas isso não quer dizer que não sejam inteligentes”. O que foi complementado pela
professora Soraia, quando afirmou: “É...pras condições de vida e de estudo deles, já é muita
vitória estar aqui e conseguirem permanecer até concluírem o ensino médio”! Já a professora
Vânia comentou: “Pode ser muito pouco, mas na semana passada vieram aqui quatro alunos
pra compartilhar com a gente a alegria de terem sido aprovados no vestibular”. Já o professor
Edilson afirmou: “Aluno fraco você tem em todo canto, claro que os alunos de EJA tem mais
dificuldades, até pelas condições de estudo, né!”. A conversa acalorada continuou até que a
campanhia tocou indicando o fim do intervalo. Quando nos direcionávamos pra sala de aula, a
professora Helena comentou:
Viu como é difícil trabalhar com EJA! Tem professor aqui que parece
que sente prazer em botar os alunos mais pra baixo do que já estão,
só vêem as coisas com pessimismo, bota a gente pra baixo também.
Sinceramente acho que tem uns tipos de professores que não deveria
ser professor de jeito nenhum, principalmente de EJA.
A fala da professora nos reporta as reflexões feitas por Freire (1996) sobre os saberes
necessários à prática educativa, quando este afirma que ensinar não é transferir
conhecimento, que é fundamental que em sua prática pedagógica cotidiana o professor
compreender que necessita de outros saberes, além do domínio do conteúdo da sua área de
conhecimento, entre outros, o respeito aos saberes do educando. Para Freire (op.cit), isso
remete a necessidade de entender que ensinar exige humildade educacional para entender o
educando como cidadão que já possui uma leitura de mundo. “Na sua prática cabe ao
professor descobrir a melhor maneira de a partir do conhecimento cultural do aluno ensinar o
conhecimento escolar num processo onde o saber científico só será apreendido quando o
conteúdo tiver significado na vida do educando”(FREIRE, 1996, p. 49).
Entendemos que os professores de EJA, mesmo convivendo com complexas
adversidades no seu fazer educacional, criam no cotidiano das suas práticas saberes e tecem
currículos para além do que é definido, para além do que é prescrito. Ou seja, existem
conhecimentos que são da ordem de experiências engendradas em táticas singulares
presentes nas ações cotidianas do professor, conhecimentos esses, entendidos no sentido
certeauniano como “artes de fazer” (CERTEAU, 1994). Nesse sentido, percebemos a partir das
observações do cotidiano da sala de aula e do relato de alguns alunos e professores a
preocupação que os mesmos tinham em contextualizar os conteúdos ensinados, na medida
em que buscavam o envolvimento e participação dos alunos numa perspectiva de
entendimento dos conhecimentos trabalhados.
Em uma das aulas de matemática, por exemplo, foi possível observar a preocupação do
professor em envolver a turma na realização de atividades propostas no quadro, através da
qual instigava e incentivava o aluno a vir responder no quadro, lembrando sempre que todos
eram capazes de responder e que, se não soubessem não tinha problema. Logo após algum
aluno responder a questão no quadro, o professor perguntava a turma se a resposta estava
correta, corrigindo a questão de forma conjunta com a turma, o que tornava a aula bastante
participativa. A preocupação do professor com o aprendizado dos alunos e com o
envolvimento dos mesmos nas aulas fica claro na fala de uma aluna (uma senhora de 65 anos)
que comentou conosco: “matemática é muito difícil, ainda bem que o professor é bom, ajuda a
gente, tem paciência com a gente”.
No intento de compreender como as práticas pedagógicas dos professores são
indicativas ou apontam para a possibilidade de vivência ou não de práticas emancipatórias no
cotidiano escolar da educação de jovens e adultos, apresentamos narrativas das professoras
Vânia e Helena e Ivone sobre suas práticas pedagógicas, sobre o que priorizam quando
definem os conteúdos a serem trabalhados nas suas aulas. Como relatam as professoras:
Como a gente não tem material didático voltado para a EJA, aí o jeito
é ir adaptando. Então eu pego um livro didático que é do ensino
médio regular, certo que muitas vezes não interessa a eles, vou
tentando contextualizar, trabalhar o que acho que é importante e
interessante pros alunos, por que se não for interessante pra eles
não vai, não evolui. (profª Vânia).
Eu tô sempre procurando um jeito de melhorar, de tornar as aulas
mais interessantes, por que tem conteúdos que são mais difíceis, tem
muita matemática. A matemática é necessária, mas eu tô tentando
trabalhar os conteúdos sem matematizar tanto. Quando o aluno de
EJA vem pra escola, pra sala de aula, ele já vem cansado ou
desestimulado, então, ele permanece na sala de aula se aquilo
interessar a ele, até porque não tá ali obrigado. Então eu faço muito
trabalho de grupo por dois motivos: primeiro como os alunos têm
muita dificuldade, não tem tempo pra estudar, eu faço trabalho de
dupla na sala de aula, porque os que sabem mais um pouco ajuda os
que têm mais dificuldades, então eu percebo que eles se envolvem
mais, são solidários e segundo porque como quase não tem material
didático, muitas vezes eu que trago, tirando dinheiro do bolso, então
não dá pra todo mundo. (Profª Helena).
Olha, eu puxo pra eles o dia‐a‐dia, por exemplo, quando o assunto é
mistura peço pra trazerem vidrinhos com mistura homogênea,
heterogênea... Então, tudo que eu vou falar eu puxo pra realidade
deles, para o dia‐a‐dia deles. Quando eu trago um texto, vamos
supor, sobre a água que é uma coisa que ta no dia a dia deles, de
todo mundo, eu tento discutir sobre a importância da água, como
eles vêem a questão da água como orientam a família no uso
adequado da água, e, dessa forma conscientizar que devemos
economizar água. Tento saber o ponto de vista deles, trabalhar com
textos que facilitem a participação deles sabe! (Profª Ivone)
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Conforme as observações nos/dos/com os cotidianos da escola pesquisada, percebemos
que, mesmo convivendo com complexas adversidades e dificuldades comuns a EJA, há uma
preocupação dos professores em recontextualizar os conteúdos, aproximando‐os de situações
vividas pelos alunos, a partir de uma abordagem dialógica e problematizadora, numa
perspectiva freireana, na medida em que possibilitam o envolvimento e participação dos
alunos, na busca de entendimento dos conhecimentos trabalhados. Entendemos ainda, que o
enredamento entre os conhecimentos produzidos pelos alunos e os saberes que a escola se
propõe realizar (OLIVEIRA, 2007), exige conforme afirma Paiva (op.cit), pensar o currículo de
EJA a partir de um movimento de (re)construção que não nega de modo algum as
experiências, mas dialoga com elas, no sentido de investigá‐las com um olhar de
estranhamento. (PAIVA, 2004).
Esses aspectos indicam no entender de Oliveira (2009) a possibilidade de compreensão
do currículo como uma criação cotidiana baseada nas redes de saberes e fazeres dos sujeitos
da EJA da qual fazem parte conhecimentos e modos de compreensão de mundo plurais e
enredados. Essa concepção de currículo exige que, no cotidiano da sala de aula, o professor
perceba, constantemente, as conexões existentes e possíveis entre o universo cultural dos
alunos de EJA, com toda sua diversidade e diferenças (vozes, identidades, subjetividades,
dificuldades de aprendizagem, etc.) e o universo da cultura escolar. Neste sentido, é de
fundamental importância compreender, no espaço cotidiano da EJA, como os currículos
prescritos e apresentados aos professores são ressignificados e moldados por eles a partir de
saberes diversos, resultado de vivências práticas dos sujeitos. (OLIVEIRA, 2007).
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